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ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESUNÇÃO JUDICIAL
Sumário
I - No local do embate os dois sentidos de marcha estavam separados por uma linha longitudinal contínua pintada no pavimento, mas com a tinta parcialmente apagada. II - Não tendo resultado provado que tal marca rodoviária estivesse invisível, entendeu-se impender sobre o condutor do veículo o dever de observar as regras resultantes dessa linha contínua. III - Não se pode presumir judicialmente da matéria provada que a referida marca rodoviária não fosse visível, já que a falta de prova de um facto não pode ser colmatada ou suprida por presunção judicial.
Texto Integral
Apelação nº 1366/07.7TBGDM.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Desembargador Henrique Araújo
Desembargador Fernando Samões.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto.
RELATÓRIO
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Recorrente: B….
Recorrida: C…, S.A..
Tribunal Judicial de Gondomar (1º Juízo) – Círculo Judicial de Gondomar.
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B… intentou a presente acção declarativa de condenação com a forma ordinária demandando a companhia de seguros C…, S.A., pedindo sua a condenação no pagamento da quantia de 81.121,41€ (oitenta e um mil cento e vinte e um euros e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros desde a citação.
Como fundamento da sua pretensão alega o autor a ocorrência de um embate entre motociclo por si conduzido e veículo ligeiro de passageiros, relativamente ao qual havia sido celebrado entre o respectivo proprietário e a ré seguradora pertinente contrato de seguro de responsabilidade automóvel. Após descrever a sua versão da dinâmica do embate, cuja eclosão imputa a conduta culposa e exclusiva do condutor do veículo ligeiro (alegando ainda a presunção de culpa deste), alega o autor os danos (patrimoniais e não patrimoniais) por si sofridos e ligados ao evento por nexo de causalidade adequada.
Contestou a ré, impugnando (parcialmente) a matéria alegada pelo autor, quer relativamente à matéria dos danos, quer relativamente à matéria do embate, alegando a sua versão do embate e imputando a conduta culposa do autor o seu deflagrar. Conclui pela sua absolvição do pedido.
O Estado Português (ADSE) apresentou-se a intervir nos autos nos termos do DL 59/89, deduzindo pedido de reembolso no montante de 2.407,91€ e juros vincendos, relativo aos custos do tratamento hospitalar ministrado ao autor em consequência das lesões por ele sofridas no embate.
Após réplica do autor, impugnando a versão do embate alegada pela ré, foi saneado o processo, afirmando-se a validade e regularidade da instância, organizando-se despacho sobre a base instrutória, que sofreu reclamação por parte da interveniente (inteiramente atendida) e do autor (parcialmente deferida).
Efectuado julgamento (com documentação da prova produzida) e decidida a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a ré dos pedidos formulados pelo autor e pelo interveniente.
Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso o autor, pugnando quer pela revogação do despacho que decidiu da deduzida reclamação ao despacho sobre a base instrutória, quer pela substituição da sentença por outra que condene a ré no pedido.
Nas suas alegações, formula o autor as seguintes conclusões:
1ª- A matéria alegada pelo autor na réplica, tratando-se de factos susceptíveis de infirmar as excepções alegadas pela ré na contestação, deveria ter sido incluída na base instrutória;
2ª- Tais factos não se traduzem em qualquer impugnação, mas sim na alegação de factos que, a serem provados, terão que levar necessariamente à improcedência das excepções invocadas;
3ª- Com efeito, estando a linha longitudinal contínua existente no local praticamente invisível eximirá os condutores da obrigação de a respeitarem;
4ª- Mas tal já não será assim se o condutor residir perto do local e tiver perfeito conhecimento da existência da linha contínua;
5ª- O Sr. Juiz a quo descredibiliza por completo as testemunhas arroladas pelo autor, referindo que as testemunhas D… e E… se revelaram parciais, e colocando em dúvida que a testemunha F… tenha efectivamente visualizado o acidente;
6ª- Por outro lado, valoriza o depoimento prestado pelas testemunhas G… (condutor do veículo garantido pela ré) e H…, referindo que as mesmas tiveram um depoimento muito próximo, quando o que ocorreu foi precisamente o oposto, conforme depoimentos acima transcritos; Efectivamente a testemunha G… refere que as motas circulavam uma atrás da outra; Refere, inclusivamente que só visualiza o motociclo do autor depois de se cruzar com o primeiro motociclo; por sua vez a testemunha H… indica que os motociclos surgem do entroncamento a par, em paralelo, tudo conforme depoimentos que acima se transcreveram; Ora, não poderiam tais depoimentos ser mais divergentes, pelo que não deverão ser valorados;
7ª- Também as testemunhas I… e J…, sobrinho e tia, revelaram grandes contradições relativamente à forma como presenciaram o acidente, começando a primeira por referir que visualiza a aproximação das motas ao entroncamento porque se encontrava dentro do café a acompanhar a tia a atravessar a rua na passadeira existente mesmo em frente ao café; que esta faz a travessia em direcção ao café e que por isso vê o acidente; Já a sua tia começa por dizer que não se encontra do lado oposto ao café, mas sim do lado do café, pois dirigia-se para casa do pai que alegadamente fica numa rua situada à direita após o café em que o sobrinho se encontrava, atento o sentido … – …; Quando confrontada com o que foi alegado pelo sobrinho, mudou a versão, já não ia para casa do pai mas vinha de lá, pretendendo atravessar a passadeira no sentido inverso ao assinalado pelo sobrinho; Por outro lado esta testemunha mostrou uma memória selectiva, tem a certeza, garante que o condutor do RI deu o pisca, sem que tal lhe seja perguntado, mas já não é capaz de se recordar da travagem e do fumo dos pneus do automóvel ligeiro – Tudo isto conforme depoimentos acima transcritos.
Por outro lado,
8ª- Deverão ser considerados como provados os quesitos 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º e 15º da base instrutória, conforme o depoimento acima transcritos prestado pela testemunha D…; Do depoimento desta testemunha resultou claro que o autor circulava a uma velocidade moderada, que a manobra foi sinalizada pela própria testemunha, que parou à entrada do entroncamento em obediência ao sinal de STOP, passando posteriormente a circular na Rua …, encostado ao limite direito da faixa de rodagem;
9ª- Também os quesitos 16º, 17º (na parte repentina), 18º, 20º, 22º e 23º da base instrutória deverão passar a figurar dos factos dados como provados, tendo em consideração os depoimentos que acima se transcreveram das testemunhas D…, E…, F… e G…; Na verdade, basta atentar na descrição desta última testemunha, condutor do RI, para perceber que o mesmo não teve a perícia suficiente para manobrar o veículo que tripulava em ordem a evitar o acidente; Por esta testemunha (depoimento acima transcrito) é referido que após a lomba se depara com veículos estacionados, manobra para ultrapassar esses veículos transpondo a linha contínua e passando a circular com mais de metade do seu veículo na via de trânsito contrária; que mal visualiza a primeira mota acciona e bloqueia os travões do seu carro e não mais larga os travões, mesmo só visualizando o autor depois de se cruzar com a primeira mota; Parece óbvio que este condutor se assustou e a única atitude que teve foi travar, quando ele próprio admite que do seu carro aos veículos estacionados do seu lado direito havia pelo menos 50 cm, medida esta que seria mais do que suficiente para evitar o acidente pois, recorde-se, o embate ocorre entre a bainha do motociclo e a “quina” da frente do lado esquerdo do ligeiro de passageiros.
10ª- O quesito 34º deverá ser alterado, passando a constar que o autor ficou a padecer de uma IPG de 5,4 ponto e não 3 uma vez que a cicatriz é dolorosa e sendo dolorosa confere, para além de dano estético, desvalorização a título de IPG, de acordo com o Relatório de Avaliação de Dano Corporal em Direito Civil elaborado pelo Dr. K… – conforme depoimento acima transcrito;
11ª- O quesito 67º deverá ser considerado como não provado, porquanto é o próprio condutor do RI que refere que não sabe de onde os motociclos surgiram; Não tem a certeza, deduz que os mesmos tenham surgido do entroncamento pois não os visionou antes, mas não é capaz de precisar, pois quando os vê eles já estão na Rua …;
12ª- As medidas constantes dos quesitos 69º e 70º deverão ser alteradas para, pelo menos 1,5 metros e para, pelo menos 1 metro, respectivamente; Pela testemunha F… é referido que o RI circulava praticamente todo dentro da via de trânsito contrária aquando do embate, conforme depoimento que acima se transcreveu;
13ª- Alterado que seja o quesito 10º em consonância com o acima referido terá necessariamente o quesito 72º que ser considerado não provado;
14ª- Por sua vez, o quesito 78º deverá passar a figurar sem qualquer referência ao veículo que alegadamente terá provocado o sulco no alcatrão; É referido por várias testemunhas, inclusive pelo condutor do RI que o motociclo ficou imobilizado no local onde foi embatido, tendo-se limitado a tombar para o lado, conforme depoimentos que acima se transcreveram.
Por fim,
15ª- Existe claro erro de julgamento por parte do Sr. Juiz a quo, ao considerar, na sentença recorrida, que ‘Repare-se que a marca deixada pelo motociclo não é um rasto de pneu mas um sulco que só poderia ter sido aberto por uma qualquer peça dura da estrutura do motociclo ao raspar no pavimento quando este, já inclinado ou tombado (necessariamente para o seu lado direito), se deslocava em projecção para a frente – daí se inferindo que a trajectória que seguia quando se deu o embate era mais próxima do eixo da via e ainda mais distante do limite desta pelo seu lado direito do que os 3,10 m a que ficou marcado tal sulco’. - Sublinhado meu; Efectivamente, aquela marca, ao situar-se a 3,10 metros do muro só prova que o acidente não ocorreu junto ao eixo da via; isto porque, tendo cada via de trânsito 3,15 metros no Ponto J do croqui da participação de acidente de viação, no Ponto G a faixa de rodagem terá uma largura muito superior; Basta atentar que na Letra D a medida do RI ao muro é de 5 metros ou seja, quase a totalidade da faixa de rodagem indicada em J – Tudo isto conforme acima devidamente se explanou, com transcrição de depoimentos, nomeadamente do cabo da GNR que elaborou a participação.
PELO EXPOSTO,
16ª- Deverão ser considerados como provados os quesitos 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º (na parte repentina), 18º, 20º, 22º e 23º da base instrutória;
17ª- O quesito 34º deverá passar a indicar uma IPG de 5,4 pontos;
18ª- As medidas constantes dos quesitos 69º e 70º deverão passar a ser de 1,5 metros e 1 metro, respectivamente;
19ª- Deverão ser considerados como não provados os quesitos 67º, 72º e 75º.
20ª- Para além de o artigo 78º se limitar a fazer referência à existência de uma marca na via, sem qualquer referência ao veículo concreto que a originou.
E, por via disso, ser alterada a decisão recorrida, com a consideração do condutor do RI como único responsável pelo acidente
Termos em que,
Deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele:
- ser revogado o despacho de fls. 127, com o consequente aditamento à base instrutória da matéria acima indicada, com as demais consequências legais,
- ser alterada a decisão recorrida, condenando-se a ré no pedido, com as demais consequências legais, fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça.
Contra-alegou a ré, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Do objecto do recurso
Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, podem enunciar-se as questões decidendas como segue:
- apreciar se é ou não indispensável à decisão da causa a ampliação da base instrutória;
- apreciar a decisão da matéria de facto, apurando se ela deve ou não ser alterada (o autor impugna a matéria de facto e pretende a sua modificação, no que respeita aos números 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º, 18º, 20º, 22º, 23º, 34º, 67º, 69º, 70º, 72º, 75º e 78º da base instrutória);
- apreciar do direito do autor à peticionada indemnização (o que pressupõe apreciar dos requisitos da obrigação de indemnizar, seja com base na culpa, seja com base no risco).
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos[1]:
1º- Cerca das 17,15h do dia 13 de Fevereiro de 2005 ocorreu um embate na Rua …, em …, Gondomar – A;
2º- Nele foram intervenientes o motociclo de matrícula ..-..-ZL, propriedade de L…, conduzido pelo autor, B…, e o veículo ligeiro de passageiros e matrícula ..-..-RI, propriedade de M… e conduzido por G… – B;
3º- O motociclo ..-..-ZL procedia da … em direcção à Rua … – 7;
4º- Por sua vez, o veículo ..-..-RI circulava na Rua … mas em sentido inverso, ou seja, …/… – E;
5º- Atento o sentido …/…, a … entronca com a Rua …, pelo lado esquerdo desta – 1 e 65;
6º- Atento aquele sentido (…/…), após mas junto do entroncamento, existe uma travessia para peões marcada a tinta no pavimento, conforme se vê na foto de fls. 13. – 3;
7º- O condutor do motociclo ZL pretendia, ao chegar ao entroncamento referido no facto 5, passar a circular na Rua …, no sentido …/… – D;
8º- A faixa de rodagem tem 6,30 metros de largura e é composta por duas vias de trânsito afectas a sentidos opostos – C;
9º- A via encontra-se marginada por edificações – 2;
10º- As duas hemi-faixas de rodagem da Rua … estão delimitadas, até ao entroncamento, por uma linha longitudinal contínua pintada no pavimento mas com a tinta parcialmente apagada – 5;
11º- Existindo, antes do local onde o embate ocorreu, uma lomba -6;
12º- No local, o limite máximo de velocidade é de 50 km/hora – 15-A;
13º- O RI seguia pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido – 66;
14º- Ao aproximar-se do entroncamento referido, o condutor do RI verificou que, em sentido oposto ao seu, não era visível qualquer veículo – 67;
15º- No lado direito da estrada (sentido do RI) estavam estacionados pelo menos dois veículos ocupando uma parte da sua hemi-faixa de rodagem – 68;
16º- O condutor do RI, não cabendo todo na sua hemi-faixa, manobrou-o de forma a contornar os veículos estacionados e a prosseguir a sua marcha, tendo, por efeito disso, uma parte desse veículo transposto a linha divisória e ocupado assim idêntica parte da hemi-faixa de rodagem contrária à sua (a esquerda), pelo menos em 50 cm – 69;
17º- O RI deixou entre a sua parte lateral direita e a parte lateral esquerda dos veículos estacionados um espaço de 40 a 50 cm – 70;
18º- Quando se encontrava a ultrapassar conforme referido em 16, surgiram pela sua esquerda, procedentes da …, o motociclo do autor e um outro veículo de duas rodas que entraram na Rua …, nesta tomando o sentido oposto ao do RI – 71;
19º- O motociclo do autor e o outro veículo de duas rodas não pararam no entroncamento – 72;
20º- O autor tinha na via, pelo seu lado direito e até ao limite respectivo, espaço livre e, se o tivesse utilizado, teria evitado o embate ocorrido conforme referido no facto 24 – 73;
21º- Na … e para os condutores que daí pretendam ingressar na Rua …, há um sinal STOP – 74;
22º- Quando, no momento referido no anterior facto 18, o condutor do RI viu o motociclo e o outro veículo de duas rodas, accionou os travões, tendo parado 8,5 m à frente – 75;
23º- O condutor do veículo ..-..-RI transpôs a linha longitudinal contínua e parte da faixa de rodagem destinada à circulação em sentido contrário – 17 e 19;
24º- O ZL embateu na parte lateral esquerda, junto ao canto dianteiro, do RI – 20;
25º- Quando aquele (o ZL) já se encontrava a circular na Rua …, sentido …/… – 21;
26º- O autor ficou caído e imóvel junto do poste de madeira (suporte de cabos aéreos) que se vê nas fotos de fls. 12 e 13 – 23 e 24;
27º- Depois de ter embatido no RI, o ZL continuou em deslocação no mesmo sentido, deixou um sulco marcado no chão a cerca de 3,10 do lado direito da via (considerando esse seu sentido) e imobilizou-se junto ao poste referido no anterior facto – 78º;
28º- Em consequência do embate, o autor ficou ferido com gravidade no pé esquerdo, tendo sido transportado para o Serviço de Urgência do Hospital … – 26;
29º- Onde lhe foi diagnosticado esfacelo do pé esquerdo e o estudo radiológico revelou fractura do colo dos 1º e 3º metatarsianos e arrancamento da base do 5º - 27;
30º- Nesse mesmo dia foi submetido a cirurgia para correcção do esfacelo e redução e fixação da fractura do colo do 1º meta com dois fios de Kirschener, tendo sido imobilizado com aparelho gessado – 28;
31º- Ficou internado desde o dia do embate até ao dia 18 de Fevereiro de 2005 – 29;
32º- Data em que teve alta do internamento, tendo continuado tratamento em regime de consulta externa de ortopedia – 30;
33º- Manteve a imobilização gessada até Maio de 2005 e os fios de Kirschener foram retirados em Abril de 2005 – 31;
34º- Teve alta da consulta externa em 20 de Maio de 2005, tendo estado com incapacidade total permanente para o trabalho até 2 de Julho de 2005 – 32;
35º- Actualmente o autor apresenta as seguintes sequelas:
- dor no antepé esquerdo, agravada com a marcha;
- alterações da sensibilidade, com anestesia na região distal às cicatrizes plantares, nomeadamente região plantar e externa do 1° raio do pé esquerdo;
- rigidez grave da articulação metatarso-flônquica do hallux esquerdo;
- Cicatrizes: i) plantar sob o primeiro raio com 8 cm de comprimento, dolorosa; ii) dorsal na região da metatarso-flângica do hallux, arqueada, com 5 cm de comprimento – 33;
36º- As sequelas implicaram para o autor uma IPG de 3 pontos, implicando esforços suplementares para o exercício da actividade profissional – 34;
37º- As lesões sofridas provocaram-lhe dores físicas intensas, quer no momento do acidente, quer no decorrer dos tratamentos – 35;
38º- E angústias provocadas pelo receio de perder a mobilidade do seu pé esquerdo – 36;
39º- As sequelas de que ficou a padecer definitivamente continuam a provocar-lhe dores físicas intensas, incómodos e mal-estar – 37;
40º- Que se agravam com as mudanças de tempo – 38;
41º- E que o vão acompanhar durante toda a vida – 39;
42º- As sequelas de que ficou a padecer exigem do B… esforços acrescidos, quer nas actividades da vida diária, quer na sua actividade profissional – 41;
43º- Em resultado das sequelas acima referidas, o B… ficou impedido de praticar desporto, nomeadamente futebol, que praticou desde sempre ao fim de semana com os seus amigos – 42;
44º- Em resultado das sequelas de que ficou a padecer, o B… vê-se impossibilitado de praticar todos os desportos que impliquem corrida ou saltos – 43;
45º- Passou igualmente a ter necessidade de usar sandálias para poder tomar banho em rios, pois não suporta as dores que sente no local onde sofreu a lesão no pé esquerdo, provocadas pelas pedras existentes no fundo dos rios – 44;
46º- E quando se encontra a trabalhar, tem que ter sempre muito cuidado para não apoiar o pé no local da lesão, pois não suporta as dores que isso lhe provoca – 45;
47º- Todos os dias de manhã quando acorda sente muitas dificuldades em descer as escadas – 46;
48º- As cicatrizes que apresenta no pé esquerdo causam ao B… grandes constrangimentos sempre que se desloca até à praia, piscinas ou rios – 47;
49º- O autor nasceu em 1/3/1986 – F;
50º- Era [ao tempo do embate] fisicamente bem constituído e saudável – 48;
51º- Enérgico e trabalhador, cheio de vida e vontade de viver – 49;
52º- Presta trabalho a tempo parcial como distribuidor – 50;
53º- Por causa dos ferimentos sofridos no embate esteve totalmente incapaz para o trabalho desde a data do embate até 2 de Julho de 2005, o que perfaz um total de 4 meses e 3 semanas – 51;
54º- Durante este período não recebeu qualquer remuneração ou subsídio – 52;
55º- Pelo que, tendo em conta que à data do acidente auferia a quantia de 290,28€, deixou de auferir a quantia de 1.378,83€ – 53;
56º- O autor aufere o salário mensal de 554,59€, acrescido dos subsídios de férias e de natal – 55;
57º- Possui como habilitações académicas o 10º ano de escolaridade – 56;
58º- Durante os quatro meses de tratamento necessitou de acompanhamento de terceira pessoa, acompanhamento este que foi efectuado pela sua mãe – 57;
59º- A qual viu o seu vencimento ser descontado em 115,24€, durante este período – 58;
60º- O autor teve ainda as seguintes despesas:
- participação de Acidente de Viação 10,00€,
- consultas no Centro de Saúde 6,00€,
- taxas moderadoras 34,90€ - 59;
61º- O autor teve ainda despesas com deslocações para consultas e tratamentos – 61;
62º- O autor teve necessidade de se deslocar de viatura automóvel acompanhado da sua mãe, da sua residência (…) até ao Hospital … no Porto, nos seguintes dias: 04-03-2005; 07-03-2005; 11-03-2005; 14-03-2005; 18-03-2005; 23-03-2005; 28-03-2005; 31-03-2005; 04-04-2004; 06-04-2005; 08-04-2005; 13-04-2005; 16-04-2005; 22-04-2005; 29-04-2005; 02-05-2005; 05-05-2005; 11-05-2005; 20-05-2005 – 62;
63º- O percurso de ida e volta de sua casa para o hospital perfaz um total de 43 km, pelo que nas 19 deslocações que efectuou percorreu 817 km – 63;
64º- Para ressarcir o autor em todas as despesas que teve com estas deslocações, nomeadamente combustível e estacionamento, é adequada a quantia de 150,00€ – 64;
65º- A ADSE pagou ao Hospital …, E.P., o montante de 2.407,91€ a título de despesas de internamento de B… entre os dias 13 e 18 de Fevereiro de 2005 – G;
66º- Por via do contrato de seguro titulado pela apólice n.º …….., a Ré C…, S.A. assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros ..-..-RI, propriedade de M… – H.
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Fundamentação de direito
Abordaremos a apelação começando pela suscitada impugnação da decisão da matéria de facto.
Como resulta do art. 712º, nº 1, a) do C.P.C., a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida (sendo certo que, neste último caso, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos de facto impugnados).
A impugnação mostra-se feita no âmbito da referida norma, constando do processo os elementos em que se baseou o despacho que na primeira instância respondeu à matéria controvertida – a participação de acidente de viação junta a fls. 9 e 10, fotografias do local onde o embate ocorreu (elementos documentais) e os depoimentos das testemunhas, registados em suporte sonoro.
Cumpriu o autor o ónus imposto no art. 690º-A ao recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto – não só especificou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, como identifica os concretos meios probatórios que impunham, sobre eles, decisão diversa da recorrida.
A impugnação da matéria de facto não importa a realização de um novo julgamento integral em segunda instância[2], consistindo antes num meio de sindicar a decisão da primeira instância quanto à decisão da matéria de facto.
A decisão sobre a matéria de facto deve dar cumprimento ao dever de fundamentação das decisões judiciais que afectem os interessados, impondo o dever de obediência à lei (designadamente o art. 654º, nº 2 do C.P.C.) um esforço na racionalização do processo de formação da convicção. O cumprimento destes deveres não se basta com a seriedade na forma como os tribunais decidem a matéria de facto; é necessário que o desempenho sério da actividade jurisdicional transpareça inequivocamente da forma pela qual se exprimam as decisões[3].
A motivação ou justificação da decisão sobre a matéria de facto, enquanto elemento verdadeiramente estruturante da legitimidade (e de legitimação) da decisão mais não siginifica do que a explicação da convicção do juiz.
Esta (convicção do julgador) não se traduz em qualquer convicção subjectiva, numa mera opção ‘voluntarista’ por uma versão ou outra dos factos discutidos na lide (uma convicção emotiva e puramente subjectiva, fundada na sinceridade do julgador), mas antes numa convicção objectivável e motivável, fruto de processo que só se completa e alcança por via racionalizável, pois que fundada nas regras comuns da lógica, da experiência, do bom senso e, quando for o caso, dos ensinamentos da ciência.
A explicação da convicação do julgador destina-se, mais do que a obter o convencimento das partes, a permitir que a análise crítica dos elementos probatórios produzidos no processo seja sindicada, também de forma racionalmente fundada, pelas partes e pelo tribunal superior.
O juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (art. 655º, nº 1 do CPC). Nesta actividade não está o tribunal submetido a critérios ou regras pré-estabelecidas (salvo quando a lei exige, para prova do facto, certo meio de prova – p. ex., documento ou confissão); deve considerá-las a todas, apreciá-las em conjunto, fazer a sua análise crítica, tendo em conta as regras da ciência, da lógica e da experiência comum a todo o homem médio, e, por fim, especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 653º, nº 2 do CPC), assim permitindo que se ‘possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado’[4] e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.
O processo de formação da convicção do julgador decorre na dinâmica da audiência, com intervenção activa dos membros do tribunal, pelo que é sempre defeituosa a percepção formada fora desse condicionalismo[5]. Na verdade, ‘existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como, no primeiro, se formou a convicção dos julgadores’, sendo que ‘a simples leitura de secas e inertes laudas de argumentação fáctica jamais se pode comparar à vivacidade proporcionada ao juiz da primeira instância, quando este, empenhado, como deve estar, no efectivo apuramento da verdade material, procura encontrar, na floresta integrada pelos diversos meios probatórios (firmes ou imprecisos, convincentes ou contraditórios, serenos ou interessados), a vereda que lhe permite ir de encontro à justa composição do litígio, arrimado nos instrumentos que lhe são proporcionados pelos princípio da imediação e oralidade’[6].
Nos casos em que a reapreciação da decisão da matéria de facto pela Relação envolve, além da ponderação dos demais elementos probatórios, a valoração da prova testemunhal produzida, é de ter presente que tal actividade ‘envolve “risco de valoração” de grau bem mais elevado que na primeira instância, em que se efectivam os princípios da imediação, concentração e oralidade, ao contrário daquela que não tem essa possibilidade do contacto directo com as testemunhas. E é do conhecimento comum que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também, e porventura com maior relevo, por outras formas de comunicação, que permitem informação decisiva na valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação’[7]. Isto evidencia que o julgador da 1ª instância está melhor situado para apreciar os elementos probatórios produzidos perante si, ao alcance de toda a sua vasta percepção sensorial – miríade de elementos tão díspares que uma simples gravação não permite captar.
As provas, di-lo o art. 342º do C.C., têm por função a demonstração da realidade dos factos. Porém, através delas não se busca criar no espírito do julgador a certeza absoluta da realidade dos ‘factos’ – ‘se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação de justiça’[8], o que implica que tem a justiça de bastar-se com um grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso, às regras da experiência da vida e aos ensinamentos da ciência.
A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto ‘não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)[9]’.
Feitos estes considerandos, importa sindicar a decisão da matéria de facto, averiguando se as respostas impugnadas foram proferidas de acordo com as regras e princípios do direito probatório (averiguação esta que tem de obedecer a essas mesmas regras e princípios).
Recorde-se que o apelante se insurge contra as respostas dadas aos factos 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º, 18º, 20º, 22º, 23º, 34º, 67º, 69º, 70º, 72º, 75º e 78º da base instrutória, nos quais se quesitava:
8º- Com uma velocidade moderada, não ultrapassando os 30 km por hora? (relativo à velocidade do motociclo)
9º- Sinalizou devidamente a manobra que pretendia realizar com o sinal luminoso, pisca-pisca?
10º- E imobilizou o veículo que tripulava à entrada do entroncamento, em obediência ao sinal de STOP existente no local?
11º- Após verificar que não circulavam veículos na Rua …, em qualquer dos sentidos?
12º- E que da sua manobra não resultava qualquer perigo, reiniciou a marcha, passando a circular na Rua …?
13º- Encostado ao limite direito da faixa de rodagem, sentido …/…?
15º- O condutor do veículo ..-..-RI circulava com uma velocidade superior a 80 km por hora?
16º- Ao chegar junto do entroncamento referido, o condutor do ..-..-RI não reduziu a velocidade que imprimia no seu veículo?
17º- Invadiu a faixa de rodagem destinada à circulação em sentido contrário, de forma repentina e inopinada?
18º- Sem verificar se circulavam veículos em sentido contrário?
20º- O condutor do ..-..-RI acabou por embater com a parte da frente do veículo que conduzia na parte da frente do ..-..-ZL?
22º- Sensivelmente a 1,5 metros do limite esquerdo da faixa de rodagem?
23º- Local onde o ..-..-ZL ficou caído (junto ao poste dos TLP)?
34º- Sequelas que implicam para o autor uma incapacidade permanente parcial (para o trabalho) de pelo menos 15 %?
67º- Ao aproximar-se do entroncamento formado pelas artérias referidas, o condutor do RI reduziu a marcha e verificou que não era visível qualquer veículo a circular em sentido oposto e que nenhum veículo era proveniente da …?
69º- Tendo a estrada livre, porque nenhum veículo a ocupava, o condutor do RI manobrou este de forma a prosseguir a sua marcha, contornando os veículos estacionados e passando a circular ocupando uns 30 a 50 cms do lado esquerdo da estrada, pois, sem ocupar essa parte da estrada o RI não dispunha de espaço suficiente para passar?
70º- O RI circulava tão próximo quanto possível do limite direito da estrada, pois deixou entre a sua parte lateral direita e a parte lateral esquerda dos veículos estacionados apenas um espaço de segurança da ordem dos 40 a 50 cms?
72º- Os condutores de tais veículos [os dois motociclos referidos no anterior quesito], entre os quais o autor, não pararam ou abrandaram a marcha ao aproximar-se do entroncamento dos autos, nem se preocuparam de verificar se da sua direita era proveniente qualquer veículo?
75º- Mal se apercebeu da entrada dos motociclos o condutor do RI accionou os travões do RI, tendo imobilizado este no espaço de cerca de 8,5 metros, sendo certo que não era possível ao RI circular mais próximo da sua direita?
78º- Após ter embatido no RI o motociclo conduzido pelo autor continuou a sua marcha, caiu ao pavimento, nele deixando marcado um rasgo a cerca de 3,10 metros do lado direito da via, atento o seu sentido de marcha, indo imobilizar-se junto a um posto da EDP, existente a cerca de 14 metros do local do embate?
Os factos 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 18º e 22º foram julgados não provados pela decisão recorrida.
O facto 20º foi respondido restritivamente, sendo julgado provado que o ZL embateu na parte lateral esquerda, junto ao canto dianteiro, do RI.
O facto 23º foi respondido conjuntamente com o número 24º, sendo apenas julgado provado que o autor ficou caído e imóvel junto do poste de madeira (suporte de cabos aéreos) que se vê nas fotos de fls. 12 e 13 dos autos (não tendo sido, pois, julgado provado que o motociclo tenha ficado caído no local quesitado).
Quanto ao facto 34º foi julgado provado que as sequelas implicaram para o autor uma IPG de 3 pontos, implicando esforços suplementares para o exercício da actividade profissional.
Relativamente ao facto 67º, julgou-se provado que ao aproximar-se do entroncamento, o condutor do RI verificou que em sentido oposto ao seu não era visível qualquer veículo.
No que concerne ao facto 72º considerou-se provado que o motociclo do autor e o outro veículo de duas rodas não pararam no entroncamento e quanto ao facto 75º considerou-se que, quando se encontrava a ultrapassar os veículos estacionados, o condutor do RI viu o motociclo e outro veículo de duas rodas, accionou os travões e parou 8,5 metros à frente.
Os factos 69º e 70º foram também respondidos restritivamente, julgando-se provado que o condutor do RI, não cabendo todo na sua hemi-faixa, manobrou-o de forma a contornar os veículos estacionados e a prosseguir a sua marcha, tendo, por efeito disso, uma parte desse veículo transposto a linha divisória e ocupado assim idêntica parte da hemi-faixa de rodagem contrária à sua (a esquerda), pelo menos em 50 cm (69º) e que o RI deixou entre a sua parte lateral direita e a parte lateral esquerda dos veículos estacionados um espaço de 40 a 50 cm (70º).
Por fim, julgou-se provado (facto 78º) que depois de ter embatido no RI, o ZL continuou em deslocação no mesmo sentido, deixou um sulco marcado no chão a cerca de 3,10 m do lado direito da via (considerando esse seu sentido) e imobilizou-se junto ao poste referido na resposta aos factos 23º e 24º.
O apelante defende:
- deverem ser julgados provados os factos quesitados nos números 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 18º e 22º;
- dever ser julgado provado, quanto ao quesito 17º, que o RI invadiu a faixa de rodagem contrária de forma repentina;
- deverem ser julgados integralmente provados os facto 20º e 23º;
- dever ser julgado provado, quanto ao facto 34º, que o autor ficou a padecer de uma IPG de 5,4 pontos;
- deverem ser julgados não provados os factos 67º, 72º e 75º;
- deverem ser alteradas as medidas constantes das respostas aos factos 69º e 70º para, pelo menos, 1,5 metros e 1 metro, respectivamente;
- dever o facto 78º limitar-se a referir a existência de uma marca na via, sem qualquer referência ao veículo que a originou.
Apreciaremos, em primeiro lugar, a impugnação da resposta ao facto 34º, relativo à IPG de que ficou a padecer o autor em consequência das lesões sofridas no embate e depois a impugnação das restantes, respeitantes à concreta dinâmica do embate.
O tribunal recorrido fundou a sua convicção quanto à resposta ao facto 34º no relatório pericial elaborado pelo IML do Porto (cfr. fls. 204 a 207) e esclarecimentos complementares (fls. 290 e 291), em detrimento de parecer médico junto pelo autor a fls. 225 e 226, complementado pelo depoimento do médico que o elaborou em audiência de discussão e julgamento.
O apelante sustenta dever ser considerada a IPG arbitrada no parecer médico que juntou aos autos a fls. 225 e 226, argumentando que a cicatriz de que ficou a padecer é dolorosa conferindo, para além do dano estético, desvalorização a título de IPG.
Porque estamos perante realidade que respeita a lesões físicas e consequências delas resultantes, a sua comprovação demanda especiais conhecimentos científicos na área da medicina. Em casos tais, a comprovação do facto só será conseguida, em princípio, com recurso a prova pericial (cfr. art. 388º do C.C. e arts. 568º e seguintes do C.P.C.) ou, pelo menos, através de depoimento de quem demonstre conhecimento científicos ou técnicos sobre a matéria em causa.
Se é certo que a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (art. 389º do C.C.), não é menos certo que um determinado parecer científico só pode ser contrariado com argumentos de valia relevo científicos.
Existindo pareceres periciais divergentes sobre determinado aspecto, deverá o tribunal acolher aquele que se mostrar melhor justificado ou, em caso de igual justificação, deverá ser seguido o parecer maioritário.
No caso dos autos, a perícia elaborada pelo IML do Porto (subscrita por dois peritos médicos), entendeu atribuir ao autor uma IPG de 3 pontos. O autor fez juntar aos autos relatório elaborado pelo Dr. K…, médico ortopedista, com curso superior de medicina legal (que presta também serviço no IML de Penafiel), que defende dever ser atribuída ao autor uma IPG de 5,92 pontos.
Os senhores peritos do IML, a solicitação do tribunal, esclareceram o seu relatório e mantiveram as suas conclusões, respondendo às críticas deduzidas pelos autor no sentido de dever ser valorizado ao nível da IPG o facto da cicatriz que padece ser dolorosa, tendo por sua vez o médico subscritor do relatório apresentado pelo autor sido ouvido em audiência de julgamento, sustentando o seu parecer.
Uns e outros justificaram o diverso entendimento sobre a questão – sobre a IPG que afecta o autor –, os primeiros referindo valorizar a metatarsalgia que o autor padece à luz da Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil, atribuindo a pontuação máxima prevista no código correspondente à lesão em causa, e o segundo valorizando a rigidez da articulação metatarso-falângica, a rigidez dolorosa da articulação metatarso-társica do 5º dedo e as cicatrizes, uma dolorosa, à luz da mesma tabela.
Da análise dos relatórios escritos (e esclarecimentos prestados por escrito pelos peritos do IML e oralmente pelo médico que subscreveu o relatório junto pelo autor) não se concluiu, minimamente, que o parecer apresentado pelo Dr. K… se mostre melhor justificado que o relatório elaborado pelo IML – ou seja, que o relatório médico de fls. 224 a 226 se mostre sustentado em argumentos (científicos) inabaláveis e susceptíveis de infirmar os argumentos expendidos pelos senhores peritos do IML (e muito menos resulta que o relatório pericial elaborado pelo IML do Porto se mostre falho de justificação que sustente as respectivas conclusões).
Assim sendo, mostra-se curial atender à valorização pericial elaborada pelo IML, considerando não só a preferência que a lei concede aos serviços médico-legais (art. 568º, nº 3 do C.P.C.), como também o facto de se tratar de perícia elaborada por dois peritos.
Improcede, pois, a impugnação da resposta ao facto 34º da base instrutória, mantendo-se a resposta que a tal facto foi dada pelo tribunal recorrido.
Apreciando agora da impugnação relativa à matéria concernente à concreta dinâmica do embate.
Como se disse, analisar criticamente os elementos probatórios significa apreciá-los e valorizá-los de forma conjugada, relacionando-os reversivamente (testando a compatibilidade entre uns e outros), tudo isto à luz das regras da normalidade, da experiência da vida e dos ensinamentos da ciência (designadamente das leis da física).
Da participação de acidente de viação (cfr. fls. 9 e 10) colhem-se os seguintes elementos objectivos (e realce-se que nenhum dos que vai referir-se foi minimamente infirmado por qualquer outra prova produzida em audiência):
- no local do embate a faixa de rodagem tem a largura de 6,30 metros, desenvolvendo-se a via em dois sentidos de trânsito;
- a largura da valeta para escoamento de águas existente do lado direito da via, considerando o sentido de marcha …/…, tem a largura de 60 cm;
- estavam marcados no pavimento rastos de travagem do veículo automóvel com 8,50 metros, medidos desde o seu início até ao seu termo (termo correspondente à roda da frente do veículo);
- o veículo automóvel estava imobilizado na via, estando a sua parte da frente lateral direita à distância de 2 metros berma direita, considerando o sentido de marcha …/…, sendo que a sua parte traseira lateral direita se encontrava à distância de 2,10 metros da referida berma;
- o motociclo encontrava-se caído junto a um poste dos TLP;
- o veículo automóvel estava imobilizado para além do referido poste dos TLP em distância superior a 6,30 (considerando que o ponto do embate assinalado pelo condutor do veículo automóvel ao cabo da GNR que tomou conta da ocorrência se situava a essa distância do referido poste e que a frente do veículo, imobilizado, se encontrava para a frente de tal indicado ‘local provável do embate’);
- foi assinalada marca deixada no pavimento pelo motociclo, a uma distância de 3,10 metros do muro do lado esquerdo (considerando o sentido …/…), sendo certo que o muro não corresponde, no ponto em questão, ao limite da faixa de rodagem (a via apresentada no local traçado recto, entroncando na Rua …, pela esquerda, considerando o sentido de marcha …/…, a …, efectuando o muro no local uma trajectória curva, que se afasta do limite esquerdo da faixa de rodagem, considerando o referido sentido).
Estes elementos foram corroborados em audiência de discussão e julgamento pelo Cabo da G.N.R. que tomou conta da ocorrência e elaborou o croquis (N…). A testemunha confirmou-o, afirmando ter mencionado no croquis a posição dos veículos tal qual estes se encontravam no local; referiu também que a marca que assinalou como tendo sido deixada pelo motociclo (assinalada no croquis sobre a letra G) não lhe foi indicada por ninguém no local, tendo sido constatada por si e pelo colega que então o acompanhava (afirmou estar seguro que tal marca foi produzida pelos ‘pedais’ do motociclo ou por outra parte dele); reconheceu também não ter determinado qualquer ponto fixo para se apurar o ponto do muro onde se inicia a medida assinalada no croquis sobre a letra ‘G’ – tão só mediu essa marca ao muro do lado existente do lado esquerdo da estrada (assegurando porém que ela se encontrava inteiramente dentro da metade direita da via, considerando o sentido …/…).
A propósito da dinâmica do embate, as testemunhas inquiridas em audiência referiram:
- o D… seguia como passageiro do motociclo conduzido pelo autor; que saíram dum café sito na …, juntamente com o E…, que conduzia outro motociclo; que no cruzamento dessa … com a Rua … pararam para combinar para que lado seguiriam, porque o autor precisava de abastecer o seu motociclo de combustível; que o E… arrancou primeiro em direcção à … e que quando o autor arrancou (no mesmo sentido) se aproximou o veículo automóvel (Opel …), que encontrou carros estacionados do lado direito, passou o motociclo conduzido pelo E…, travou, derrapou e embateu no motociclo do autor (no qual a testemunha seguia); que o veículo automóvel, quando viu o primeiro motociclo, se assustou, travou e despistou-se; que no momento do embate o veículo automóvel já tinha passado o carro estacionado; que o carro embateu com o canto da frente esquerdo nas bainhas da mota (lado esquerdo), patim e pé do autor; que o motociclo, aquando do embate, caiu, tendo o veículo circulado ainda cerca de 4/5 metros; que no momento em que entraram na Rua … não se aproximava qualquer veículo, sendo que ‘só depois de entrar é que veio logo o carro embater’; que o motociclo seguia a cerca de 1,5 metros do muro do lado direito (considerando o sentido de marcha que havia tomado no cruzamento); que o motociclo não travou, tendo ficado caída no ponto onde foi embatido; que o motociclo do autor circulava mais próximo do muro do lado direito que do eixo da via, considerando o sentido de marcha que prosseguia; referiu ainda que os veículos permaneceram no local onde ficaram imobilizados após o embate até à chegada da GNR;
- o E… conduzia outro motociclo; afirmou que saíram do café para ir abastecer combustível; que ele circulava na dianteira e o autor circulava mais atrás; que parou no cruzamento, olhou e não viu qualquer veículo a circular; que não estiveram parados no cruzamento a combinar para onde se iriam dirigir porque isso foi tratado quando saíram do café; que no momento em que ele (depoente) arrancou o autor ainda não tinha chegado ao cruzamento; que o B… também (‘supostamente’) deve ter parado no cruzamento (admitindo não ter visto se o B… parou ou não no cruzamento); que reiniciou a sua marcha, no sentido da …; que circulava encostado à sua direita, junto ao muro e de ‘repente, do nada apareceu um carro’ na sua ‘mão’, tendo conseguido passar ‘por sorte, instinto’; que reparou na expressão do condutor do carro, aflito; que, depois de se ter cruzado com o carro, ouviu um barulho, parou o motociclo e veio para trás, vendo o motociclo do autor encostado ao muro, o autor ferido e o carro na faixa de rodagem destinada ao sentido de circulação …/…. Esclareceu que o veículo automóvel apareceu de repente – que só o viu depois dele ter passado a lomba (‘a velocidade era tanta…’); que o veículo automóvel tinha espaço suficiente para circular na sua faixa de rodagem (que ‘passava entre os carros estacionados e o eixo da via’); que o veículo já circulava fora de mão antes de ultrapassar os carros estacionados; que a mota ficou caída no pondo do embate; que não ouviu qualquer ruído de travagem, mas tão só o ruído do embate; por fim referiu que os veículos permaneceram no ponto onde se imobilizaram após o embate até à chegada da GNR.
- o F… afirmou circular atrás do veículo automóvel interveniente no embate, pois tinha sido ultrapassado por ele momentos antes (antes da lomba que precede o local do embate); que se apercebeu do cruzamento do veículo com um motociclo, e vendo o condutor do motociclo a olhar para trás, olhou em frente e viu o veículo a embater no autor; que o autor circulava no lado direito da faixa de rodagem (sentido …/…) e ainda se tentou desviar, não tendo conseguido; que circulava (ele, depoente) num BMW alterado (‘todo tunning’) a cerca de 40/50 km/h e que o condutor do veículo interveniente no embate se deve ter distraído a olhar para a frente do ‘seu’ carro (porque este tem ‘alterações’) e que quando olhou de novo para a frente já tinha o primeiro motociclo a cruzar-se com ele, e logo a seguir já estava em ‘cima’ do motociclo do autor – estava a desviar-se dos carros estacionados à sua direita e bateu no motociclo do autor; que o veículo interveniente no embate circulava a uma velocidade entre os 65 e os 70 km/h; que um motociclo vinha à frente e outro (o do autor) vinha mais atrás; que o motociclo do autor circulava junto à berma (a menos de 1,5 metros da berma) e, após o embate, não se moveu mais que dois/três metros; que o veículo automóvel, logo quando circulava na lomba existente no local, circulava já a ocupar a faixa de rodagem esquerda (os rodados do lado esquerdo já passavam o eixo da via) e quando se lhe depararam os veículos estacionados do lado direito da via ainda se desviou mais para o lado esquerdo (apesar de não ser necessário); que o veículo automóvel travou, tendo derrapado e que ficou imobilizado quase totalmente no lado esquerdo da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha que prosseguia; que parou o seu (depoente) veículo exactamente atrás do veículo automóvel interveniente no embate e foi prestar ajuda ao autor, tendo-se entretanto ido embora, conseguindo passar entre o veículo automóvel e os carros estacionados;
- o O… referiu que se encontrava com o autor, o E… e o D… no café, tendo presenciado o momento em que estes dali saíram nos motociclos; que o E… saiu primeiro, saindo depois o autor e o D…, este como passageiro do motociclo do autor; que o E… parou no cruzamento e arrancou; que o B… ia atrás e também parou no cruzamento; que os condutores e ocupante do veículo não estiveram parados na conversa no cruzamento; que o local onde se encontrava não permite avistar o local onde o acidente ocorreu, não se tendo apercebido da sua ocorrência;
- o G… (condutor do veículo automóvel interveniente no embate – Opel …) afirmou que se encontrava com a sua namorada (a também testemunha H…), circulando no sentido …/…; que se deparou com carros estacionados do lado direito, considerando o sentido de marcha que prosseguia, a ocupar a faixa de rodagem (ocupavam a faixa de rodagem exactamente na medida da respectiva largura de cada um – um era um Volkswagem …, outro um Corolla, segundo recorda); que se lhe depararam tais veículos estacionados depois de descrever a lomba existente na estrada; que se desviou dos veículos estacionados logo lhe aparecendo o primeiro motociclo (conduzido pelo E…); que travou, o motociclo passou e logo se lhe deparou o motociclo conduzido pelo autor; admitiu ter passado para o lado esquerdo da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha que prosseguia (que ocupava mais o lado esquerdo que o lado direito da faixa de rodagem – admite que mais de metade do veículo ocupasse o lado esquerdo da faixa de rodagem); que não viu as motas a parar no cruzamento – a sua impressão é a de que elas surgiram em andamento; que o primeiro motociclo circulava próximo da berma do lado direito correspondente ao sentido de circulação …/… (1 a 2 metros; 1,5 metros) e o outro circulava mais próximo do eixo da via; que travou por se ter assustado mal surgiu o primeiro motociclo e não mais tirou o pé do travão; que ainda ia em travagem quando ocorreu o embate com o segundo motociclo, sendo certo que após o embate só circulou mais um ‘bocadinho’; que circulava a cerca de 40/50 km/h e a cerca de 1 metro dos veículos estacionados do lado direito da via; que desconhece a velocidade a que circulavam os motociclos, sendo que os motociclos apareceram de repente, ‘sem contar’; que os motociclos circulavam com uma distância um do outro que não pode precisar, mas que situa em cerca de 2/3 (um à frente do outro); que primeiro se deparou com os veículos estacionados, desviando-se deles, sendo que só depois se deparou com os motociclos (mais referindo que no momento em que ultrapassava o primeiro carro estacionado passou por si o primeiro motociclo); que o veículo ficou imobilizado até chegar a GNR; que entre o seu veículo e o veículo estacionado à sua direita não havia espaço para a passagem de qualquer outro veículo automóvel; não se apercebeu de qualquer veículo (designadamente um BMW) que tivesse parado atrás do seu veículo, após o embate;
- a H…, que seguia no lugar do passageiro da frente do veículo automóvel interveniente no embate (Opel …), namorada do respectivo condutor, afirmou que circulavam no sentido …/…, pela metade direita da faixa de rodagem, e quando chegavam próximo do cruzamento apareceram de repente duas motas, lado a lado, ocorrendo o embate; que existiam veículos estacionados no lado direito a ocupar parte da faixa de rodagem (considerando o sentido em que seguiam) e tiveram de se desviar deles; que o veículo em que seguiam (a cerca de 40 km/h), se ocupou a faixa de rodagem esquerda, ao ultrapassar os veículos estacionados, ‘foi pouco’; que os motociclos não pararam no STOP e saíram da via donde provinham lado a lado, paralelos; que um dos motociclos passou sem bater e o outro bateu no pneu do lado da frente esquerdo do veículo; que o condutor do veículo, ao aperceber-se dos motociclos, travou; o veículo ficou imobilizado, praticamente colado ao carro estacionado do lado direito; o motociclo caiu junto a um muro; que saiu do carro e foi prestar assistência ao ferido, não tendo visto qualquer veículo parado atrás do Opel …; que o carro estacionado do lado direito da via era mais largo que o …; que não haviam ultrapassado antes do embate qualquer outro veículo em andamento; que não viu no local qualquer BMW, com modificações ‘tunning’;
- o I… afirmou encontrar-se num café, visível nas fotografias juntas a fls. 12 e 13 e situado no lado direito da estrada, considerando o sentido de marcha do veículo automóvel, alguns metros após o local do embate e no enfiamento da passadeira mencionada na matéria provada; que se encontrava no interior do café, mas o local onde se encontrava proporcionava inteira visibilidade para a estrada (o café tem janelas a toda a largura da parede exterior); que estava virado para a estrada, apreciando a sua tia (a também testemunha J…) a atravessar a passadeira; que viu os motociclos em circulação pela …, em direcção à Rua …; que circulavam ao lado um do outro (a par), a cerca de 50 km/h e que chegados ao cruzamento não pararam e entraram na Rua …, seguindo sempre a par; que não viu o embate, por entretanto estar a olhar para a sua tia (viu os motociclos a entrar na rua mas deixou de olhar para eles); que se apercebeu do embate por ouvir o barulho e que se dirigiu ao local; que estavam dois carros estacionados no lado direito da via (um Volkswagen … e um outro cuja marca e modelo não recorda), considerando o sentido …/… (cerca de 30/40 cm desviados da parede); o Opel … estava parado (com outro carro já parado atrás – cuja marca e modelo já não recorda) e o B… estava no chão, com a mota; o Opel … estava a cerca de 50/60/70 cm de distância dos carros estacionados do lado direito da via; que o Opel … ocupava parte do lado esquerdo da faixa de rodagem – do lado esquerdo do … até ao muro do lado esquerdo distariam cerca de dois metros; que os veículos intervenientes no embate não foram retirados do local onde se imobilizaram até à chegada da GNR;
- a J… (tia da testemunha anteriormente referida) referiu circular, apeada, na via onde ocorreu o embate, no sentido de marcha …/…; que caminhava próximo do café (deslocava-se a casa dos seus pais), do lado do café (não atravessava a passadeira); que se apercebeu dos motociclos a circular ainda na … e que no cruzamento não pararam nem olharam para se inteirarem do trânsito existente; que os dois motociclos seguiam um ligeiramente à frente do outro, mas quase a par; que o que circulava mais próximo do muro passou pelo veículo automóvel que circulava no sentido …/… e o outro bateu no carro; que existiam carros estacionados no lado direito da via, considerando o sentido de marcha do veículo automóvel, que ocupavam parte da faixa de rodagem; que o veículo automóvel ocupou a faixa de rodagem esquerda (considerando o seu sentido de marcha) para passar os carros estacionados; não se apercebeu de que no local tivesse parado qualquer BMW.
Conjugando todos estes elementos pode concluir-se, numa primeira abordagem, que as posições dos veículos assinaladas no croquis correspondem àquelas em que os veículos ficaram imobilizados após o embate – as testemunhas, de forma unânime, referiram que os veículos permaneceram no local onde se imobilizaram até à chegada da autoridade policial.
Assente esse dado, analisando os elementos resultantes do croquis, e conjugando-os com o depoimento prestado em audiência pelo cabo da GNR que o elaborou após tomar conta da ocorrência, pode também concluir-se, com a necessária segurança, que a marca nele assinalada sobre a letra ‘G’, foi produzida pelo motociclo do autor (na queda consequente ao embate) – o cabo da GNR foi eloquente a esse propósito no depoimento prestado, referindo que tanto ele como o seu colega constataram que se tratava de uma marca proveniente do patim ou doutro elemento do motociclo, no embate com o solo.
Todavia – e isto tem importância para apreciar da justeza da resposta ao facto 78º e ainda para servir de base aos demais factos impugnados –, não pode já considerar-se que tal marca se situe a cerca de 3,10 metros do lado direito da via, atento o sentido de marcha …/… (como julgado provado na decisão recorrida). Na verdade, no croquis, a distância de 3,10 dessa marca é medida ao muro existente no lado direito da estrada, e não já ao lado direito da via (ao termo da faixa de rodagem, considerando o referido sentido), sendo certo que não pode desprezar-se a distância que vai do termo da faixa de rodagem, considerandos os seus 6,30 m de largura, até ao muro – como referido pela testemunha, como se constata do próprio croquis e como é corroborado pelas fotografias juntas a fls. 12 e 13, o muro no local não segue o limite da faixa de rodagem da Rua …, antes descreve uma trajectória curva, afastando-se gradualmente do limite direito da faixa de rodagem da Rua … (sendo certo que esta, no local, descreve um trajecto recto); o muro descreve trajectória curva correspondente à configuração física do entroncamento (a …, no ponto em que entronca com a Rua …, alarga-se e descreve, em ambos os lados – esquerdo e direito – trajectória curva – para a direita, do lado direito, e para a esquerda, no lado esquerdo). Assim, enquanto a largura da faixa de rodagem da via onde ocorreu o embate é de 6,30 metros, certo é que a marca deixada no pavimento pelo motociclo do autor não foi medida ao termo da faixa de rodagem (até ao limite desta), mas antes até ao referido muro, sendo certo que não se sabe a distância que vai do ponto do muro considerado na medição do croquis até ao limite da faixa de rodagem da Rua … – e assim fica sem se saber a distância daquela marca até ao lado direito da via (sendo certo que também não foi medida a distância dessa marca até ao eixo da via ou até ao outro lado da estrada). Pode tão só concluir-se que tal marca se situava completamente dentro da metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido …/….
Ainda com base nos elementos resultantes do croquis pode considerar-se seguro que a velocidade imprimida ao veículo automóvel não é a velocidade alegada pelo autor e quesitada sob o número 15º da base instrutória (velocidade superior a 80 km/h). Efectivamente, valorizando os quadros de distância teórica de paragem dos veículos[10] e considerando que o veículo se imobilizou depois de deixar marcados rastos de travagem de 8,50 metros, tem de concluir-se que o veículo circularia a cerca de 40/50 km/h – e sendo certo que o facto de o veículo dispor ou não de ABS não invalida tais cálculos, pois que esse sistema implica tão só impedimento ao bloqueio das rodas na travagem e, por isso, obsta a que na travagem o veículo deixe rastos no pavimento. Esta conclusão não é minimamente infirmada pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelo autor (quer pelo E…, D… ou sequer o F… – este último referiu que o veículo automóvel o ultrapassou, seguindo a uma velocidade de cerca de 65/70 km/h, enquanto os outros aludiram à rapidez com que surgiu o automóvel a circular), pois que as testemunhas que se referiram à travagem do veículo foram unânimes no sentido de afirmar que a travagem do veículo foi contínua até à sua imobilização, tendo sido iniciada logo que o veículo se deparou com o primeiro motociclo – e daí que se tenha de considerar que o condutor logo que se apercebeu da circulação dos motociclos encetou a manobra de imobilização do seu veículo, manobra essa da qual resultaram os rastos de travagem de 8,5 metros (rastos esses que indiciam a velocidade de cerca de 40/50 km/h).
Também com base nestes elementos – os rastos de travagem de 8,5 metros do veículo automóvel assinalados no croquis – podemos considerar que a resposta do tribunal recorrido ao número 75º da base instrutória tem de ser corrigida. Na verdade, se os rastos de travagem têm a extensão de 8,5 metros, tem de concluir-se forçosamente que essa foi a distância percorrida pelo veículo depois dos órgãos de travagem terem bloqueado as rodas do veículo, sendo certo que entre o momento em que o autor carregou no pedal do travão (e as rodas do veículo bloquearam, deixando o assinalado rasto) e o momento em que o autor sentiu necessidade de levar o pé ao travão o veículo ainda percorreu a distância correspondente ao tempo de reacção. Assim, importará deixar perfeitamente claro (na resposta a tal facto) que a distância de imobilização de 8,5 metros corresponde tão só à distância percorrida pelo veículo após o accionamento dos travões (isto é, à distância de travagem, que não corresponde à distância total da travagem – esta última corresponde à soma da distância de travagem com a distância percorrida pelo veículo no decurso do tempo de reflexão do condutor desde que avista o obstáculo até que acciona o travão).
Importa também realçar um outro aspecto que ressalta da análise do croquis – a distância do veículo automóvel à berma do lado direito, considerando o seu sentido de marcha. Revela o referido croquis que a frente lateral direita do veículo ficou à distância de dois metros da berma direita (considerando o seu sentido de marcha), enquanto a sua parte traseira lateral direita ficou à distância de dois metros e dez centímetros da mesma berma. Se considerarmos que os rastos de travagem deixados pelo veículo no pavimento terminavam no seu rodado dianteiro (como expressamente referido no croquis), que o comprimento do veículo Opel … é de cerca de 4 metros e que os rastos de travagem têm uma progressão uniforme (como referido pelo cabo da GNR que tomou conta da ocorrência), conclui-se facilmente que a trajectória do veículo flectia da esquerda para a direita da faixa de rodagem (considerando o sentido que prosseguia) em dez centímetros a cada 4 metros e que, por isso, no momento em que se iniciaram os rastos de travagem, esse veículo estaria com a sua parte lateral direita a cerca de dois metros e vinte centímetros da berma direita (os rastos de travagem têm pouco mais de oito metros). Se se levar ainda em linha de conta que progressão do veículo foi uniforme desde o momento em que o seu condutor percepcionou a necessidade de travar (ou seja, que nesse momento dirigiu o volante para a sua direita no grau necessário para fazer o veículo flectir nessa direcção na proporção de 10 cm por cada quatro metros) e que o veículo teria percorrido, desde esse momento, até ao início do bloqueio das rodas e consequente início dos rastos de travagem, não menos de oito a dez metros (considera-se um tempo de reacção médio de ¾ de segundo[11]), atendendo à velocidade de 40/50 km/h que o animava, podemos então apurar que no momento em que o seu condutor se deparou com o obstáculo que o fez iniciar a manobra de travagem o veículo se encontrava com a sua parte frontal lateral direita a cerca de dois metros e quarenta centímetros da berma do lado direito da estrada. Atendendo a que a largura do Opel … é de cerca de um metro e sessenta centímetros, conclui-se então que o veículo ocupava cerca de oitenta e cinco centímetros da faixa de rodagem esquerda (considerando o seu sentido de marcha) no momento em que o seu condutor sentiu necessidade de levar a cabo a manobra de imobilização do veículo e que, depois de imobilizado, ocupava ainda quarenta e cinco centímetros da faixa de rodagem esquerda.
Estas considerações são corroboradas pelo depoimento do condutor do veículo automóvel – ele referiu que circulava a ocupar o lado esquerdo da estrada, para se afastar dos veículos estacionados do seu lado direito, admitindo que ocupava mais o lado esquerdo que o lado direito da faixa de rodagem, circulando a cerca de um metro dos veículos estacionados. Se se atender a que os veículos estacionados ocupavam em quase toda a sua largura a faixa de rodagem (a berma no local é uma valeta para condução de águas com sessenta centímetros de largura, existindo logo a seguir um muro) – o condutor do veículo referiu que os veículos estacionados ocupavam, em toda a sua respectiva largura, a faixa de rodagem, tendo por sua vez a testemunha I… afirmado que os veículos estavam estacionados a cerca de 30 cm do muro – e considerando uma largura média dos veículos estacionados de 1,80 metros (eram veículos de maior porte que o Opel …, como referido pelas testemunhas – aludiram a um Volkswagen … ou Volkswagen … e outro que não conseguiam recordar-se), pode considerar-se que ocupariam a faixa de rodagem em cerca de 1,50 metros, pelo que circulando (inicialmente, após encetar a ultrapassagem a eles) com a sua lateral direita a 2,40 metros da berma direita, o veículo automóvel circularia a cerca de um metro (mais propriamente a 90 cm) dos veículos estacionados.
Estas considerações não são minimamente infirmadas pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelo autor quanto à medida da invasão da faixa de rodagem esquerda pelo veículo automóvel – desde logo porque a percepção das pessoas relativamente às distâncias é muito variável, tanto mais quando relativas a corpos em movimento.
Seguro é, face ao acima exposto, que se mostra impossível que a testemunha F…, como afirmou, tenha passado com o seu carro entre a lateral direita do veículo interveniente no embate e a lateral esquerda dos veículos estacionados quando se foi embora do local – considerando a largura do seu veículo (um BMW, que não tem menos de 1,60 metros – terá até mais), a distância a que se encontrava o veículo interveniente do embate da berma (a 2 metros da berma, considerando a parte da frente direita) e a largura do veículo estacionado (entre 1,60 e 1,80 metros), fácil é concluir que o elefante não teria passado pelo buraco da agulha (um veículo automóvel não poderia passar no espaço de cerca de 50 cm entre o veículo interveniente no embate e os veículos estacionados).
Do que vem de se dizer resulta também – e considerando como ponto inquestionado e inquestionável a existência do embate entre o veículo e o motociclo – que o motociclo conduzido pelo autor não poderia seguir encostado ao limite direito da faixa de rodagem da Rua … (sentido …/…), como quesitado no número 13º da base instrutória, assim como resulta que o embate não ocorreu a 1,5 metros do limite esquerdo da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha do veículo automóvel (sentido …/…), como quesitado no número 22º da base instrutória. Na verdade, se o veículo automóvel, no momento em que o seu condutor sentiu necessidade de executar a manobra de travagem e de flectir à direita (correspondente ao momento em que se apercebeu da circulação dos motociclos), ocupava cerca de oitenta e cinco centímetros da faixa de rodagem esquerda, considerando o seu sentido de marcha, e se no final da travagem, no momento em que se imobilizou (já depois da ocorrência do embate), ocupava cerca de quarenta e cinco centímetros da faixa de rodagem esquerda, forçoso é concluir que o embate ocorreu em ponto situado do eixo da via a distância não superior a oitenta e cinco centímetros (ponto situado à esquerda do eixo da via, considerando o sentido de marcha do automóvel) – e logo, a uma distância não inferior a 2,30 metros do limite direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha do motociclo (a largura da faixa de rodagem é de 6,30 metros, dividida equitativamente pelos dois sentidos e assim, 3,15m - 0,85 = 2,30 metros), ou melhor, a uma distância situada entre 2,30 e 2,70 metros do limite direito da faixa de rodagem, atento o sentido do motociclo.
O que vem de se explanar concerne ao ponto de vista da circulação do veículo automóvel. Interessa agora focalizar a atenção na análise da circulação dos motociclos.
Pode dizer-se, perfunctoriamente, que as testemunhas arroladas pelo autor referiram que os motociclos imobilizaram a marcha no local onde a … (rua da qual provinham) entronca na Rua … (a rua onde passaram a circular e na qual ocorreu o embate discutido nos autos) e se asseguraram da ausência de tráfego que impedisse o reinício da marcha.
Porém, analisados tais depoimentos mais pormenorizadamente, encontra-se neles, a propósito de tal matéria, uma discrepância – o D… (passageiro do motociclo conduzido pelo autor) afirmou que os motociclos iniciaram a marcha provindos de um café e que no referido entroncamento ambos pararam, tendo os ocupantes combinado então o sentido de marcha que deveriam prosseguir, tendo sido o E… quem primeiro reiniciou a marcha; já o E… (condutor do outro motociclo) referiu que saiu primeiro do café, seguindo o autor mais atrás, sendo certo que parou (ele, testemunha) no entroncamento e assegurou-se de que não havia trânsito que o impedisse de reiniciar a marcha, o que fez antes do autor aí chegar (negando que tivessem estado parados todos no cruzamento a combinar o destino), tendo o O… (afirmando que ficou no local donde os motociclos partiram), referido ter visto os motociclos a partirem, primeiro o E… e depois o autor, avistando ambos (um após o outro) a imobilizar a marcha no entroncamento e a reiniciar a marcha (negando também que os ocupantes dos referidos motociclos tivessem estado parados no entroncamento a conversar). Evidente, pois, a discrepância – uma das testemunhas afirmou que os ocupantes dos motociclos estiveram parados no entroncamento a combinar o sentido de marcha que tomariam, enquanto as outras negam que os motociclos tivessem estado parados em simultâneo no entroncamento e que tivesse sido nesse local que foi combinado o sentido de marcha a seguir.
Esta discrepância poderia ser considerada desprezível (sem influência) se essa versão apresentada pelas testemunhas não se mostrasse também inconsistente com outros elementos de prova que importa ter em atenção.
Analisada a fotografia de fls. 13 junta pelo autor com a sua petição (que retrata o local do embate e revela os rastos de travagem do veículo automóvel) – fotografia que as testemunhas, com ela confrontadas em audiência, referiram documentar o local onde ocorreu o embate – constata-se que o embate terá ocorrido muito próximo do enfiamento do local onde a … (via donde provinham os motociclos) entronca na Rua … (via onde circulava o veículo automóvel e à qual acederam os motociclos). Tal fotografia permite concluir que o embate ocorreu quase no enfiamento do entroncamento referido – ocorreu a uma curta distância da linha imaginária de projecção do limite direito da … em perpendicular à Rua … –, ou seja, que o motociclo do autor terá percorrido na Rua … uma distância muito curta até ao embate (e quando referimos curta distância queremos significar não mais que meia dúzia de metros).
O croquis já referido corrobora e complementa inteiramente o que vem de dizer-se, pois a distância da frente esquerda do veículo automóvel ao lado esquerdo da via foi medida, em perpendicular, não até ao limite esquerdo da faixa de rodagem (considerando o sentido de marcha …/… – o sentido de marcha do automóvel) mas antes até ao muro já acima referido a propósito da marca assinalada no croquis sobre a letra ‘G’. Na verdade, também essa distância, assinalada no croquis sobre a letra ‘D’, é medida da frente lateral esquerda do veículo até ao muro situado à esquerda – sendo certo que no croquis, o ponto em questão do muro descreve a já aludida trajectória curva (afastando-se gradualmente do limite esquerdo da Rua …, considerando o sentido …/…).
O facto da frente do veículo (depois de imobilizado, após o embate) estar já muito próximo da linha imaginária de projecção do limite direito da … em perpendicular à Rua …, assim como a marca deixada no pavimento pelo motociclo após a queda consequente ao embate (note-se que também essa marca é medida em perpendicular até ao referido muro, sendo certo que nesse ponto já o muro apresenta a referida trajectória curva), permite concluir que o embate ocorreu a pouca distância do entroncamento (a alguns metros do entroncamento – não mais que meia dúzia de metros).
Tendo o autor percorrido na Rua … tão curta distância (a referida meia dúzia de metros), há que considerar que se tivesse imobilizado a sua marcha no cruzamento e a tivesse reiniciado depois de se assegurar do tráfego que circulava na via à qual pretendia aceder (num e noutro sentido de circulação), teria forçosamente avistado o veículo automóvel em circulação e a ocupar a faixa esquerda de rodagem (ou, do ponto de visto do autor, a ocupar a faixa de rodagem direita da via à qual pretendia aceder).
Para demonstrar que assim é basta atentar que o veículo automóvel, como referido, circularia a cerca de 40/50 km/h e necessitou de cerca de 16/18 metros para imobilizar a sua marcha (considerando a distância total de travagem – distância de travagem adicionada da distância de pensamento) – sendo que dessa distância total 8,5 metros foram de travagem.
Das leis da física resulta que um qualquer corpo em movimento percorre, a uma velocidade de 10/km por hora uma distância de 2,77 metros por segundo (10.000 metros : 3.600 segundos = 2,77 m/s). Circulando a 50 km/h, o veículo automóvel percorria, por segundo, uma distância de 13,89 metros, e uma velocidade de 40 km/h percorria, por segundo, 8,33 metros. Porém, considerando que o condutor do veículo diligenciou por imobilizá-lo, accionado os travões, temos de atender a que a referida distância de 16/18 metros foi percorrida em cerca de dois segundos (se a primeira metade dessa distância foi percorrida a 40/50 km/h, já a última metade foi percorrida a velocidade cada vez menor, até à total imobilização).
Acresce que o veículo automóvel iniciou a travagem no momento em que o condutor avistou o primeiro motociclo, que seguia na dianteira do que era conduzido pelo autor – circunstância referida não só pelo D… (passageiro do motociclo conduzido pelo autor) e pelo E… (condutor do motociclo que seguia na dianteira do conduzido pelo autor), como também pelo G… (condutor do veículo automóvel).
Assim, se acaso tivesse parado no entroncamento e observado o trânsito que se processava na via na qual pretendia entrar no sentido de marcha …/…, teria o autor avistado o veículo automóvel em circulação e a ocupar parcialmente a faixa de rodagem esquerda da via (considerando o referido sentido de marcha) – o que, em termos de juízo de normalidade e verosimilhança, significaria que deteria o seu propósito de reiniciar a marcha ou, no mínimo, se a reiniciasse, certamente que o faria por forma a conduzir o seu veículo mais afastado do eixo da via.
As mesmas considerações valem para o motociclo que seguia na dianteira. Atente-se que o veículo automóvel se imobilizou já muito próximo do entroncamento, depois de deixar marcados rastos de travagem de 8,5 metros (donde se retira a referida distância total de travagem de cerca de 16/18 metros). Ou seja, o veículo automóvel apercebeu-se da circulação do primeiro motociclo quando se encontrava a cerca de 20 metros do entroncamento – e a essa distância, quando efectuava a ultrapassagem dos veículos situados à sua direita, seria ele perfeitamente avistável ao condutor do motociclo. Por isso, também o condutor do primeiro motociclo, se tivesse parado no entroncamento e observado o trânsito que se processava na via, certamente não teria reiniciado a marcha (ou, no mínimo, tê-lo-ia feito de forma a não necessitar de efectuar a manobra que referiu ter conseguido efectuar por sorte ou instinto para não embater no veículo).
Estes elementos de análise mostram-se conformes com os depoimentos das testemunhas arroladas pela ré, na parte em que afirmaram que os motociclos não se imobilizaram no entroncamento, entrando na via onde viria a ocorrer o embate sem terem parado – afirmaram-no não só as testemunhas I… e J… (o primeiro estava num café situado alguns metros depois do local do embate e a segunda caminhava na rua onde ocorreu o embate), como também a testemunha H… (passageira do veículo interveniente no embate) – o condutor do veículo automóvel afirmou tão só que só se apercebeu dos motociclos em circulação, não os tendo visto parados.
Face a tudo o que vem de se dizer, devem ser mantidas as respostas negativas aos números 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º e 18º da base instrutória.
Relativamente ao facto 20º da base instrutória, deve considerar-se provado que o embate ocorreu entre a parte lateral esquerda, junto ao canto dianteiro, do RI com o motociclo ZL.
A resposta ao facto 22º da base instrutória deve ser alterada. Efectivamente, o embate ocorreu dentro da metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha …/…; não à distância de 1,5 metros da berma direita, considerando tal sentido, mas a uma distância situada entre 2,30 e 2,70 metros do limite direito da faixa de rodagem, atento o sentido do motociclo. Pode a resposta ao facto 22º traduzir essa realidade sem que possa ser assacada como excessiva, desde logo porque ela traduz um ‘minus’ relativamente ao alegado por cada uma das partes – o autor alegava a ocorrência do embate a 1,5 metros da berma direita da via, considerando o seu sentido de circulação e a ré alegava a ocorrência do embate junto ao eixo da via (veja-se o facto 74 da base instrutória). Desta forma, julgar-se-á provado, quanto a este facto 22º da base instrutória, que o embate ocorreu a uma distância situada no intervalo de 2,30 a 2,70 metros do limite direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha …/….
As respostas aos factos 23º, 67º e 72º devem manter-se nos termos julgados na decisão recorrida.
Do facto 69º da base instrutória deve considerar-se tão só provado que o condutor do veículo RI o manobrou de forma a contornar os veículos estacionados e a prosseguir a sua marcha, tendo, por efeito disso, uma parte desse veículo transposto a linha divisória e ocupado parte da faixa de rodagem esquerda (considerando o seu sentido de marcha) em cerca de oitenta e cinco (85) centímetros.
Quanto ao facto 70º da base instrutória deve considerar-se provado que o veículo RI deixou entre a sua parte lateral direita e a parte lateral esquerda dos veículos estacionados um espaço de noventa (90) centímetros.
No que concerne ao facto 75º da base instrutória, deve considerar-se provado que quando o veículo automóvel se encontrava a ultrapassar os veículos estacionados (nos termos referidos na resposta ao facto 69º), o seu condutor apercebeu-se da circulação dos ciclomotores referidos na resposta ao facto 71º, accionando os travões, deixando, até se imobilizar, rastos de travagem de 8,5 metros.
Por fim, quanto ao facto 78º da base instrutória, considera-se provado que após o embate, o motociclo deixou uma marca no pavimento, situada na metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido …/….
Procede assim, nestes termos (parcialmente), a impugnação da matéria de facto.
Importa ainda considerar, a propósito da matéria de facto elencada na fundamentação de facto da sentença recorrida, que nela não pode figurar a que foi vazada sobre o número 20 (contendo a resposta à matéria do facto 73 da base instrutória).
É inquestionável que tal número da fundamentação de facto contém, exclusivamente, juízos conclusivos – e como é sabido, na fundamentação de facto das sentenças só figura matéria de facto.
Na verdade, o despacho sobre a base instrutória só pode conter factos e não já matéria conclusiva ou de direito, a instrução da causa refere-se exclusivamente à demonstração de factos, o despacho a que alude o art. 653º, nº 2 do C.P.C. refere-se exclusivamente à matéria de facto, e a fundamentação de facto das decisões só pode conter matéria de facto (arts. 511º, 513º, 646º, nº 4, 653º, nº 2 e 659º, nº 3, todos do C.P.C.), sendo de notar que se devem ter por não escritas as respostas do colectivo sobre questões de direito (art. 646º, nº 4 do C.P.C.).
Assim, se na fundamentação de facto da sentença for vazada matéria de direito ou matéria conclusiva, deve o tribunal da Relação, mesmo oficiosamente, considerá-la não escrita, expurgando-a do elenco da matéria de facto (art. 646º, nº 4, 1ª parte do C.P.C., aplicado analogicamente)[12].
Como decorre do art. 659º, nº 2 do C.P.C. devem na sentença discriminar-se os factos considerados provados – que, como resulta do nº 3 do preceito, são os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão e os que o tribunal deu por provados.
Importa precisar que a lei se refere apenas a factos, excluindo assim dessa parte da fundamentação da decisão a matéria de direito (reservada para a fundamentação jurídica – a interpretação e aplicação das normas jurídicas cabíveis ao caso) e a matéria conclusiva, que contém em si juízos de valor.
São os factos produtores ou desencadeadores do efeito jurídico pretendido pela parte (ou das excepções deduzidas) que devem ter assento na fundamentação de facto da decisão.
Factos são as ocorrências concretas da vida real (bem como o estado, a qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas – o sexo ou idade das pessoas, a área de certo prédio, a altitude de um local), respeitem eles aos acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, directamente captável pelas percepções do homem) ou antes aos eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo[13].
Constituem ainda matéria de facto os juízos de facto, enquanto realidade empírica integradora de pressupostos de facto de certas normas e não do cerne do juízo de valor legal, como é o caso dos juízos periciais de facto (a percentagem da diminuição da capacidade de trabalho provocada por determinada lesão sofrida em consequência de acidente)[14].
Fora da matéria de facto ficam já os juízos conclusivos referidos a determinada valoração normativa – os que encerram em si um juízo de valor, uma apreciação que é resultado de uma análise crítica efectuada sobre determinada realidade, por referência a uma valoração jurídica.
Constitui mero juízo conclusivo a afirmação adjectivante que não seja susceptível de permitir a percepção da realidade concreta a valorizar juridicamente, porque se não traduz a realidade concreta que lhe é subjacente.
É o que ocorre com a matéria vazada no número 20º da fundamentação de facto acima elencada e julgada provada na decisão recorrida.
A afirmação de que o autor tinha pelo seu lado direito da via e até ao limite respectivo, espaço livre e que se o tivesse utilizado, teria evitado o embate ocorrido apresenta-se, indubitavelmente, como um juízo de censura dirigido ao autor, imputando-lhe já, ao nível do facto, uma responsabilidade que só pode ser apurada ao nível da fundamentação jurídica. Tal afirmação não traduz qualquer realidade concreta que possa ser juridicamente valorizada – ela contém a valorização jurídica e é omissa quanto à materialidade concreta que a permitirá sustentar na fundamentação jurídica.
A afirmação contida em tal número da fundamentação de facto respeita a juízo de valor subjectivo, efectuado com recurso a factores alheios à própria percepção da concreta ocorrência.
Tem, por isso, de considerar-se não escrito o número 20º da fundamentação de facto (sendo certo que a matéria nesse facto contida não devia ter sido vazada na base instrutória nem devia ter sido respondida pelo tribunal).
Face às decididas alterações à matéria de facto (art. 712º, nº 1, a) do C.P.C.) e à não consideração do facto 20 (que deve ter-se por não escrito), os factos provados relativos à matéria do embate são os seguintes:
1º- Cerca das 17,15h do dia 13 de Fevereiro de 2005 ocorreu um embate na Rua …, em …, Gondomar – A;
2º- Nele foram intervenientes o motociclo de matrícula ..-..-ZL, propriedade de L…, conduzido pelo autor, B…, e o veículo ligeiro de passageiros e matrícula ..-..-RI, propriedade de M… e conduzido por G… – B;
3º- O motociclo ..-..-ZL procedia da … em direcção à Rua … – 7;
4º- Por sua vez, o veículo ..-..-RI circulava na Rua … mas em sentido inverso, ou seja, …/… – E;
5º- Atento o sentido …/…, a … entronca com a Rua …, pelo lado esquerdo desta – 1 e 65;
6º- Atento aquele sentido (…/…), após mas junto do entroncamento, existe uma travessia para peões marcada a tinta no pavimento, conforme se vê na foto de fls. 13 – 3;
7º- O condutor do motociclo ZL pretendia, ao chegar ao entroncamento referido no facto 5, passar a circular na Rua …, no sentido …/… – D;
8º- A faixa de rodagem tem 6,30 metros de largura e é composta por duas vias de trânsito afectas a sentidos opostos – C;
9º- A via encontra-se marginada por edificações – 2;
10º- As duas hemi-faixas de rodagem da Rua … estão delimitadas, até ao entroncamento, por uma linha longitudinal contínua pintada no pavimento mas com a tinta parcialmente apagada – 5;
11º- Existindo, antes do local onde o embate ocorreu, uma lomba – 6;
12º- No local, o limite máximo de velocidade é de 50 km/hora – 15-A;
13º- O RI seguia pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido – 66;
14º- Ao aproximar-se do entroncamento referido, o condutor do RI verificou que, em sentido oposto ao seu, não era visível qualquer veículo – 67;
15º- No lado direito da estrada (sentido do RI) estavam estacionados pelo menos dois veículos ocupando uma parte da sua hemi-faixa de rodagem – 68;
16º- O condutor do RI manobrou-o de forma a contornar os veículos estacionados e a prosseguir a sua marcha, tendo, por efeito disso, uma parte desse veículo transposto a linha divisória e ocupado parte da faixa de rodagem esquerda (considerando o seu sentido de marcha) em cerca de oitenta e cinco (85) centímetros – 69;
17º- O RI deixou entre a sua parte lateral direita e a parte lateral esquerda dos veículos estacionados um espaço de noventa (90) cm – 70;
18º- Quando se encontrava a ultrapassar conforme referido em 16, surgiram pela sua esquerda, procedentes da …, o motociclo do autor e um outro veículo de duas rodas que entraram na Rua …, nesta tomando o sentido oposto ao do RI – 71;
19º- O motociclo do autor e o outro veículo de duas rodas não pararam no entroncamento – 72;
20º- Na … e para os condutores que daí pretendam ingressar na Rua …, há um sinal STOP – 74;
21º- Quando, no momento referido no anterior facto 18, o condutor do RI viu o motociclo e o outro veículo de duas rodas, accionou os travões, deixando até se imobilizar rastos de travagem de 8,5 m – 75;
22º- O condutor do veículo ..-..-RI transpôs a linha longitudinal contínua e parte da faixa de rodagem destinada à circulação em sentido contrário – 17 e 19;
23º- O embate ocorreu entre a parte lateral esquerda, junto ao canto dianteiro, do RI com o motociclo ZL – 20;
24º- Quando aquele (o ZL) já se encontrava a circular na Rua …, sentido …/… – 21;
25º- O embate ocorreu a uma distância situada no intervalo de 2,30 a 2,70 metros do limite direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha …/… – 20;
26º- O autor ficou caído e imóvel junto do poste de madeira (suporte de cabos aéreos) que se vê nas fotos de fls. 12 e 13 – 23 e 24;
27º- Após o embate, o motociclo deixou uma marca no pavimento situada na metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido …/… – 78º.
Apreciando agora se, face à alteração da matéria de facto, deve ou não a acção proceder.
Insere-se a demanda no instituto da responsabilidade civil extracontratual como fonte da obrigação de indemnizar.
Nas acções emergentes de acidente de viação a causa de pedir é complexa, sendo constituída pelo conjunto dos factos exigidos pela lei para que surja o direito à indemnização e correlativa obrigação, ou dito de outro modo, pelo facto constitutivo da responsabilidade, ou seja, pelos pressupostos integradores da responsabilidade civil por facto ilícito e que são, de acordo com o artigo 483º, nº 1 do C.C., o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
A decisão recorrida julgou improcedente a acção por considerar não existir nexo de imputação subjectivo do facto ao lesante – ou seja, por não poder o evento lesivo (o acidente) ser imputado ao condutor do veículo seguro a título de culpa – e por estar excluída a responsabilidade objectiva, nos termos do art. 505º do C.C., entendendo ser o evento exclusivamente imputável ao lesado/autor, a título de culpa.
Cumpre apreciar se esta conclusão pode manter-se.
Sendo no caso inquestionável a existência do facto humano (o acto de conduzir é controlável e dominável pela vontade) e da ilicitude (na sua primeira modalidade, pois o autor foi lesado em direito absoluto – no seu direito de personalidade, pois foi atingido na sua integridade física), mostra-se decisivo apurar da imputação do facto ao lesante a título de culpa (apurar se o condutor do veículo segurado na ré, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o acidente ocorreu podia e devia ter agido de outro modo, isto é, se actuou com a diligência que um bom pai de família - o condutor normal - teria em face do condicionalismo do caso concreto, como prescreve o art. 487º, nº 2 do C.C. e, assim, se omitiu ou não regras e deveres de cuidado impostos no caso pelas regras da circulação rodoviária, se actuou ou não com a diligência exigível a um condutor normalmente prudente e diligente, respeitador das normas estradais), análise esta que se impõe também fazer relativamente à conduta do autor, na condução do motociclo.
A culpa representa um juízo de reprovação ou censura ético-jurídica. Culpa, numa palavra, é a imputação de um acto ilícito ao seu autor, traduzida no juízo segundo o qual este devia ter-se abstido desse acto[15].
Porque se refere à inteligência e à vontade, em maior ou menor grau, a culpa constitui um vínculo de natureza psicológica, ligando o facto ao agente e implica, ao mesmo tempo, um juízo normativo de reprovação ou censura – podendo e devendo fazer coisa diferente, o agente fez o que não devia[16] (ou não fez o que devia).
Actuar com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito, sendo uma conduta reprovável quando, pela capacidade do agente e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter actuado de outro modo[17].
À economia da decisão não interessa apreciar do dolo (em qualquer das suas modalidades), colocando-se a questão no âmbito da negligência.
A negligência assenta na ‘omissão de um dever de diligência (o dever de não confiar leviana ou precipitadamente na não verificação do facto ou o dever de o ter previsto e ter tomado as providências necessárias para o evitar)’[18], sendo a diligência relevante apurada em face da que teria um homem normal em face das circunstâncias do caso (cfr. a expressão final do art. 487º, nº 2 do C.C.) – o padrão de conduta exigível a considerar é o do condutor normalmente cumpridor do ordenamento estradal ao qual se depara a situação e condicionalismo concreto com que se deparou o agente.
Tal dever de diligência é configurado pelo ordenamento jurídico, pelas ‘normas jurídicas vigentes; é um dever exigível ’ – a lei ‘tutela os interesses ou direitos fundamentais da vida social; e enquanto regula assim directamente o que deve ou não deve fazer-se, com respeito à protecção desses interesses ou direitos, regula também, implícita ou indirectamente, o comportamento dos destinatários da norma, exigindo direcções programáticas da conduta, de tal sorte que não venha a haver violação, consciente ou inconsciente, dos direitos ou interesses juridicamente protegidos’, desempenhando assim a norma função valorativa e imperativa, sendo desta força imperativa que nasce o ‘dever de diligência ou de cautela, destinado a evitar todos os actos (ou omissões) susceptíveis de violar aqueles interesses ou direitos alheios, como consequência em geral idónea ou adequada’[19].
A negligência radica na omissão do dever de diligência, de cuidado ou de cautela adequado e idóneo, no caso (em face das circunstâncias especiais da situação concreta), a evitar a produção do resultado lesivo – e daí que a imputação do resultado danoso ao agente só possa afirmar-se quando se puder concluir que tal resultado era previsível como consequência da conduta por ele observada.
Para lá da previsibilidade (do dever de prever) não há negligência; é o reino do infortúnio, não tutelado pela ordem jurídica.
A negligência (e logo a imputação do evento ao agente, a título de culpa) ocorrerá quando, por força de inconsideração, precipitação ou leviandade, o agente não observa o dever de cuidado que no caso se lhe impunha e cuja observância era adequada a evitar a ocorrência do evento lesivo.
Resulta apurado a propósito da dinâmica do embate que o veículo automóvel circulava na Rua …, no sentido …/…, via na qual entronca, pelo lado esquerdo, considerando esse sentido, a …: Na … existe, para os condutores que dela pretendam ingressar na Rua …, um sinal de Stop.
O motociclo do autor procedia dessa … em direcção à Rua … e pretendia passar a circular nesta no sentido …/….
Considerando o sentido …/…, após o entroncamento referido mas junto dele, existe uma travessia para peões marcada a tinta no pavimento.
A faixa de rodagem da Rua … tem a largura de 6,30 metros e é composta por duas vias de trânsito afectas a sentidos opostos.
As duas hemi-faixas de rodagem da Rua … estão delimitadas, até ao entroncamento (considerando o sentido de marcha …/…), por uma linha longitudinal contínua pintada no pavimento mas com a tinta parcialmente apagada, existindo antes do local onde viria a ocorrer o embate uma lomba.
No local a via encontra-se marginada por edificações, estando a velocidade limitada a 50 km/h.
O veículo automóvel seguia pela metade direita da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha, verificando o seu condutor que no sentido de trânsito contrário não era visível qualquer veículo. No lado direito da via, considerando o sentido de marcha do automóvel, estavam estacionados pelo menos dois veículos, ocupando parcialmente a hemi-faixa de rodagem, tendo o seu condutor manobrado o automóvel de forma a contornar tais veículos estacionados e a prosseguir a sua marcha, tendo, por efeito disso, uma parte desse veículo transposto a linha divisória e ocupado parte da faixa de rodagem esquerda (considerando o seu sentido de marcha) em cerca de oitenta e cinco (85) centímetros, deixando entre a sua parte lateral direita e a parte lateral esquerda dos veículos estacionados um espaço de noventa (90) centímetros.
Quando se encontrava a ultrapassar os veículos estacionados, surgiram pela esquerda, procedentes da …, e sem parar no entroncamento, o motociclo do autor e um outro veículo de duas rodas, que entraram na Rua …, nesta tomando o sentido oposto ao do veículo automóvel.
No momento em que os motociclos entraram na Rua …, provenientes da …, o condutor do automóvel avistou-os e accionou os travões, deixando até se imobilizar rastos de travagem de 8,5 m.
O embate (entre a parte lateral esquerda, junto ao canto dianteiro, do veículo e o motociclo) ocorreu a uma distância situada no intervalo de 2,30 a 2,70 metros do limite direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha …/….
A apreciação das condutas observadas pelos condutores dos veículos intervenientes no embate (em vista da averiguação da imputação subjectiva do evento a qualquer um deles ou aos dois, em termos de conculpabilidade) impõe se tenham em conta outros factos, retirados dos factos provados por presunção judicial (arts. 349º e 351º do C.C.).
Atentem-se nos seguintes factos provados:
- o condutor do veículo automóvel, ao aproximar-se do entroncamento (na via por onde seguia entronca, pelo lado esquerdo, e considerando o seu sentido de marcha, a …), verificou que em sentido oposto ao seu não era visível qualquer veículo (facto provado com o número 14);
- quando o veículo automóvel se encontrava a ultrapassar os veículos estacionados do lado direito da via, surgiram pela esquerda, procedentes da …, o motociclo do autor e um outro, que entraram na Rua … (rua por onde circulava o veículo automóvel) sem parar no entroncamento, tomando o sentido oposto ao do veículo automóvel (factos provados com os números 18 e 19);
- quando avistou os motociclos, no momento anteriormente referido em que estes entraram na Rua onde circulava o veículo automóvel, o condutor deste diligenciou por realizar a manobra de travagem do veículo (facto provado com o número 21);
- o veículo deixou rastos de travagem, até se imobilizar, com o comprimento de 8,5 metros (facto provado com o número 21).
A ilação que destes factos se retira é a de que os motociclos entraram na rua por onde circulava o veículo automóvel quando este se encontrava a uma distância de cerca de vinte metros – e por isso, que o veículo automóvel se encontrava a essa distância (cerca de vinte metros) do entroncamento donde foram provenientes os motociclos.
Justificando estas presunções – e sem pretender repetir as considerações já expendidas a propósito da apreciação da impugnação da matéria de facto.
A distância dos rastos de travagem traduz, na ciência física, a distância de travagem – a distância percorrida pelo veículo desde que o sistema de travagem é accionado até à sua completa imobilização.
Para se obter a distância total de travagem (espaço percorrido pelo veículo desde o momento em que é sentida pelo respectivo condutor a necessidade de o imobilizar até que se imobiliza efectivamente), há que adicionar àquela distância de travagem a distância de pensamento – a distância percorrida pelo veículo no decurso do tempo de reflexão do condutor desde que avista o obstáculo até que acciona o travão (distância esta que, considerando um condutor normal, circulando com normal diligência e perícia, corresponde à distância percorrida pelo veículo em ¾ de segundo à velocidade que lhe é imprimida).
As leis da física demonstram que uma travagem com a extensão de 8,5 metros é produzida por veículo que circula a uma velocidade entre os 40/50 km/h[20].
Assim, pode concluir-se que a distância total de travagem do veículo automóvel foi de cerca de 16/18 metros – aos 8,5 metros da distância de travagem (rastos de travagem) há que adicionar a distância de cerca de 10 metros correspondente à distância de pensamento (o tempo de reacção do condutor, desde o momento em que este consciencializou o obstáculo até que accionou o pedal do travão). A distância de pensamento considerada é também sustentada pelas leis da física – um veículo que circule a 50 km/h percorre, em ¾ de segundo (o tempo médio de reacção de um condutor normal), 10,41 metros; um veículo que circule a 40 km/h percorre, em ¾ de segundo, 8,33 metros.
Tal distância total de travagem (16/18 metros) significa que o condutor do veículo automóvel avistou os motociclos a cerca de 18/20 metros – o avistar dos motociclos, saídos do entroncamento do seu lado esquerdo, foi a circunstância que o determinou a encetar a manobra de travagem.
Porque assim é, isso significa também que era a essa distância que o veículo se encontrava do entroncamento quando os motociclos entraram na via por onde circulava.
Além do dever geral de cuidado imposto a todos os utentes das vias públicas – o art. 3º, nº 2 do Código da Estrada, vigente ao tempo do embate, aprovado pelo DL 114/94, de 3/5, com as alterações introduzidas pelos DL 2/98, de 3/01 e DL 265-A/2001, de 28/09, prescreve que as pessoas se devem abster de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias –, o art. 13º, nº 1 do C.E. determina que o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes, acrescentando o nº 2 do preceito que pode ser utilizado o lado esquerda da faixa de rodagem, quando necessário, para ultrapassar ou mudar de direcção.
Dispõe o art. 29º, nº 1 do C.E. que o condutor sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha e se necessário parar ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem do outro veículo, sem alteração da velocidade ou direcção deste, sendo certo (nº 2 do mesmo artigo) que o condutor com prioridade de passagem deve observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito (e sendo certo que a regra geral de prioridade de passagem, nos cruzamentos e entroncamentos – art. 30º, nº 1 do C.E. – é a de que o condutor deve ceder a passagem aos veículos que se lhe apresentem pela direita).
Relativamente ao cruzamento entre veículos que circulem em sentidos opostos, determina o art. 33º, nº 1 do C.E. que se não for possível o seu cruzamento por a faixa de rodagem estar parcialmente obstruída, deve ceder a passagem o condutor que tiver de utilizar a parte esquerda da faixa de rodagem para contornar o obstáculo, sendo que estando obstruídos ambos os lados (ou sendo a faixa de rodagem demasiado estreita) deve ceder a passagem o condutor do veículo que chegar depois ao troço (ou, se se tratar de via de forte inclinação, o condutor do veículo que desce).
O art. 7º, nº 1 do C.E. determina que as regras resultantes dos sinais de trânsito prevalecem sobre as regras gerais de trânsito.
Entre os sinais de trânsito figuram os sinais verticais e as marcas rodoviárias – art. 2º, a) e b) do Regulamento de Sinalização do Trânsito (Decreto Regulamentar 22-A/98, de /10).
O sinal B2 (vulgo STOP) significa a paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento, indicando que o condutor é obrigado a parar antes de entrar no cruzamento ou entroncamento junto do qual o sinal se encontra colocado e ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar (art. 21º do Regulamento).
A marca longitudinal contínua aposta na faixa de rodagem significa para o condutor a proibição de a pisar ou transpor e, bem assim, o dever de transitar à sua direita, quando aquela fizer a separação de sentidos de trânsito (art. 60º do Regulamento).
Face à matéria de facto a ponderar, não pode afirmar-se que o condutor do veículo automóvel tenha omitido dever de diligência ou cuidado (resultante das regras da circulação rodoviária) que, no caso, fosse adequado a evitar o embate – e de cuja omissão fosse previsível, em termos de causalidade adequada, a produção do evento lesivo.
Efectivamente, mesmo considerando que o condutor do veículo automóvel desrespeitou a sinalização existente no local, pois não só pisou como transpôs a linha longitudinal contínua pintada no pavimento, ocupando parcialmente a metade esquerda da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha, certo é que no momento em que ele realizou tal manobra não era previsível que dela pudesse resultar o embate com veículos que circulassem em sentido contrário.
Tal imprevisibilidade afirma-se pela circunstância do condutor do veículo automóvel ter iniciado a manobra de ultrapassagem aos veículos estacionados no lado direito da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha (veículos que ocupavam parcialmente a metade direita da faixa de rodagem), depois de verificar que no sentido de marcha contrário ao seu não era visível qualquer veículo.
No momento em que iniciou a referida manobra, os motociclos (entre os quais o do autor) ainda não era visíveis – donde se pode presumir judicialmente que ainda não tinham entrado a circular na via onde circulava o veículo automóvel nem tinham sequer chegado à embocadura do entroncamento donde eram procedentes (pois que, como resulta provado, os motociclos entraram na via onde ocorreu o embate sem terem detido a sua marcha no entroncamento).
Face à ausência de previsibilidade do embate, não pode afirmar-se que a conduta do condutor do veículo automóvel, ao desrespeitar os comandos estradais que determinam a impossibilidade de pisar e/ou transpor as linhas longitudinais contínuas que separam os diferentes sentidos de trânsito e que impõem a circulação pelo lado direito da faixa de rodagem, tenha sido adequada a causar o embate.
As referidas regras (quer a regra geral de circulação pelo lado direito da faixa de rodagem, quer a imposição de circulação à direita da linha contínua separadora dos sentidos de trânsito) impõem a qualquer condutor o dever de prever que do seu desrespeito e não observância possa resultar um embate com veículo que se encontre a circular em sentido contrário (que seja visível) ou, no mínimo, que da sua inobservância possa vir a resultar o embate com veículo que possa vir a circular em sentido contrário no espaço de tempo/distância em que se processe a manobra que implica a transposição da linha contínua e ocupação da faixa de rodagem contrária.
Considerando as circunstâncias do caso não se afigurava como previsível a ocorrência de qualquer embate com veículo que transitasse em sentido contrário (nenhum veículo circulava no sentido de marcha contrário ao prosseguido pelo veículo automóvel) ou com qualquer veículo que, em termos de juízo de normalidade e verosimilhança, se apresentasse aí a circular no espaço de tempo/distância necessário à realização da manobra (ultrapassagem dos veículos estacionados no lado direito, a ocupar parcialmente a faixa de rodagem). Por um lado, nenhum veículo circulava na via no sentido de marcha contrário ao prosseguido pelo veículo automóvel (antes de iniciar a manobra, o condutor do veículo automóvel verificou que não era visível qualquer veículo a circular em sentido contrário); por outro lado, os motociclos ainda não eram avistáveis por não terem chegado à embocadura do entroncamento, não sendo expectável ou conjecturável que os motociclos entrassem na via sem parar nesse entroncamento, tomando o sentido de marcha contrário ao prosseguido pelo veículo automóvel (não sendo por isso exigível ao condutor do veículo automóvel que contasse com o seu surgimento, nas referidas circunstâncias de tempo e espaço).
A manobra realizada pelos motociclos – designadamente, no que ao caso interessa, pelo motociclo conduzido pelo autor – apresentou-se como imprevista e inesperada para o condutor do veículo automóvel, já que não era expectável que estes entrassem na rua onde circulava (passando a circular nela em sentido contrário ao por si prosseguido) sem que imobilizassem a sua marcha no entroncamento.
Tem assim de concluir-se que o condutor do veículo automóvel não omitiu qualquer dever que fosse adequado, nas circunstâncias concretas do caso, a evitar o embate, isto é, não se pode afirmar que o acidente se ficou a dever (ou se ficou também a dever, em termos de concausalidade) à omissão de qualquer dever de cuidado que sobre ele impendesse e cuja observância fosse adequada a evitar o embate.
Diferentemente se tem de concluir valorizando a conduta do autor. Impunha-se a este – ademais do referido dever geral de cuidado (abstenção de actos comprometedores da segurança própria e dos demais utentes da via) – o dever de imobilizar a marcha do motociclo que conduzia no local onde a via donde provinha entronca na via pela qual pretendia passar a circular (atento o sinal Stop que se lhe deparava).
Mais importante, impunha-se-lhe que verificasse o trânsito que se processava na via na qual pretendia passar a circular, atentando na circulação do veículo automóvel, o qual ocupava, parcialmente, a faixa de rodagem esquerda (a faixa de rodagem correspondente ao sentido que o autor pretendia, na referida via, tomar) na realização de manobra de ultrapassagem a veículos estacionados no lado direito da via.
Ademais, sobre o autor impendia o dever de observar as regras relativas ao cruzamento de veículos. Não obstante ser a faixa de rodagem adstrita ao sentido de circulação do veículo automóvel que se encontrava parcialmente obstruída pelos veículos estacionados (e de o dever de ceder passagem incumbir ao condutor do automóvel - art. 33º, nº 1, a) do C.E.), certo é que o condutor do veículo automóvel iniciou a manobra em questão quando nenhum outro veículo circulava em sentido contrário ao seu, respeitando por isso esse dever. Tendo o condutor do veículo automóvel iniciado a manobra em momento em que o podia fazer (nenhum veículo circulava em sentido contrário ao seu), e sem que, por isso, tenha desrespeitado o dever de ceder a passagem, passou esse dever de ceder a passagem a impender sobre o autor, porquanto se apresentou a circular na via (a ela acedendo provindo do referido entroncamento) quando o veículo automóvel já realizava a manobra (adicionando-se esse dever de ceder a passagem resultante das regras do cruzamento de veículos, ao dever de ceder a passagem oriundo da sinalização vertical – Stop – e até das regras de circulação rodoviária – o dever de ceder passagem, nos entroncamentos, ao trânsito que se apresenta pela direita, nos termos do art. 30º, nº 1 do C.E.).
Ao entrar na rua onde nas referidas circunstâncias de tempo e espaço circulava o veículo automóvel, sem deter a sua marcha no entroncamento e sem adequar a sua posição na metade direita da via de forma a não tomar uma trajectória convergente com a do veículo automóvel para um ponto comum, o autor violou deveres de diligência que sobre si impendiam e que eram adequados a evitar o embate – quer o dever de parar no entroncamento e ceder a passagem aos veículos que circulavam na via pela qual pretendia passar a circular, quer o dever de ceder a passagem ao veículo automóvel resultante das regras de cruzamento de veículos, sendo certo que as regras estradais lhe impunham o dever de prever a ocorrência do embate no caso de serem desrespeitadas.
Não foi a manobra do veículo que se apresentou ao autor como repentina, inesperada, não expectável – o veículo automóvel já circulava a ocupar a metade esquerda da faixa de rodagem, em ultrapassagem aos veículos estacionados do seu lado direito, antes do autor entrar na via onde o embate ocorreu (e na qual o veículo automóvel circulava); pelo contrário, foi a manobra do autor que se apresentou ao condutor do veículo automóvel como imprevista e desconforme às elementares regras de trânsito, pois provindo dum entroncamento, desrespeitou a sinalização vertical que impunha a paragem e entrou na via quando o veículo automóvel se encontrava a cerca de vinte metros de distância, tomando o sentido de marcha convergente com o veículo automóvel.
É o autor merecedor de juízo de censura por haver omitido os deveres de cuidado e diligência impostos pelas normas de circulação rodoviária e cuja observância, imposta pelas concretas circunstâncias do caso, lhe teria permitido evitar o embate (embate que se não previu estava obrigado a prever – as referidas regras estradais impunham-lhe prever que da sua inobservância poderia resultar o embate) – tivesse ele detido a marcha do seu veículo no entroncamento e tivesse ele respeitado as regras relativas à prioridade de passagem e ao cruzamento de veículos e teria evitado o embate.
Face ao exposto, tem-se por seguro que o embate que está na origem dos autos ficou a dever-se a facto imputável ao autor (mais que naturalisticamente imputável ao autor, o embate é imputável ao autor a título de negligência).
Assim, além de não se poder afirmar ser o evento imputável a facto culposo do condutor do veículo seguro na ré, tem também de concluir-se estar afastada a responsabilidade objectiva ou a título de risco – a responsabilidade pelo risco, fixada no art. 503º, nº 1 do C.C., é excluída, nos termos do art. 505º do C.C., quando o acidente for imputável ao lesado (e note-se que, em face do disposto no art. 505º do C.C., para efeitos da exclusão da responsabilidade objectiva, o que releva é que o acidente tenha sido causado por facto da autoria do lesado, não estando aqui presente um problema de culpa, mas apenas um problema de causalidade[21]).
A culpa do lesado afasta a responsabilidade objectiva, não sendo admissível, à face da nossa lei, a concorrência entre o risco do veículo e a culpa do lesado[22].
Faltando um dos pressupostos exigidos para o surgimento da obrigação de indemnizar (impossibilidade de imputar o evento ao lesante, subjectiva ou objectivamente), está excluída a obrigação de indemnizar (quer com base na culpa, quer com base no risco), o que determina a improcedência da pretensão indemnizatória do autor.
Sustenta o apelante – e passamos já a analisar a última das questões suscitadas pelo apelante – a necessidade de determinar a ampliação da base instrutória, nela incluindo a matéria desconsiderada nesse despacho e por si alegada nos artigos 6º e 8º da réplica – neles alegou o apelante que os rastos de travagem de 8,5 metros deixados pelo veículo automóvel não foram superiores devido ao facto do veículo possuir sistema de travagem com ‘ABS’ (artigo 6º) e que, embora a linha longitudinal contínua existente no local a separar o sentidos de trânsito se encontrasse pouco visível, certo é que a mesma era do conhecimento do condutor do veículo automóvel, que reside perto do local e nele passa frequentemente.
É indubitável que o despacho sobre a base instrutória constitui simples projecto parcelar de julgamento e de selecção de matéria de facto, alterável até decisão final da causa, quer sobre ele tenha incidido reclamação, quer não tenha[23].
A matéria seleccionada na base instrutória, não conduzindo à formação de caso julgado formal, pode ser alterada por motivos vários – reclamação, dedução de articulado superveniente, ampliação da base instrutória no decurso do julgamento, no julgamento da apelação e até no da revista (arts. 511º, nº 2, 506º, nº 6, 650º, nº 2, f), 712º, nº 4 e 729º, nº 3 do C.P.C.) –, revelando essa permitida modificação a preocupação de adequação da verdade processual à verdade material[24].
Ao caso interessa a possibilidade de ampliação da base instrutória estabelecida no na primeira parte do nº 4 do art. 712º do C.P.C..
A fase do saneamento e condensação do processo, que tem lugar findos os articulados, destina-se à fixação dos termos essenciais da causa (se bem que não de forma definitiva, como já se assinalou), ou seja, a expurgar do processo todas as questões inúteis à decisão da causa (e decisão das questões úteis que possam desde logo ser apreciadas e julgadas), com eliminação indirecta das questões inúteis pela sua não inclusão nas peças que irão servir de base à instrução e julgamento da causa.
Isto demonstra a importância do despacho sobre a base instrutória na boa decisão do litígio e, por contraponto, permite constatar que a selecção da matéria de facto controvertida pode comprometer o resultado da acção. Com vista a evitar que, por razões de ordem puramente formal, seja prejudicada a justiça material, a lei atribui à Relação o poder-dever de determinar a ampliação da matéria de facto, com vista a assegurar enquadramentos jurídicos diversos dos supostos pelo Tribunal a quo, sendo uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma objectiva falta de selecção de factos relevantes[25].
Tal possibilidade da Relação determinar a ampliação da matéria de facto deve ser encarada com rigor acrescido e reservada para casos em que se revele indispensável, não bastando já que os factos tenham conexão com alguma das ‘soluções plausíveis da questão de direito’, nos termos que dimanam do art. 511º, nº 1 do C.P.C. para a elaboração da base instrutória; considerando a fase do processo em que é legalmente prevista tal possibilidade, mais do que atentar no leque de possibilidades com que, em abstracto, numa fase recuada do processo, se confronta o juiz de 1ª instância, a Relação deve ponderar o enquadramento jurídico, em face do objecto do recurso ou de outros elementos a que oficiosamente puder atender, contando também com o que possa esperar-se de uma eventual intervenção do S.T.J. ao abrigo do disposto no art. 729º, nº 3 do C.P.C.[26].
Pode dizer-se, grosso modo, que a ampliação da matéria de facto se imporá quando a matéria desconsiderada seja susceptível de determinar decisão diversa da recorrida, mas apenas em tais casos a ampliação se justifica e é possível, não havendo já lugar a ela relativamente a factos que, apesar de serem relevantes se reportados a uma fase anterior do processo (designadamente à fase da organização do despacho sobre a base instrutória), se mostrem entretanto, considerando a demais matéria já apurada, o enquadramento jurídico aplicável e o objecto do recurso, indiferentes à decisão da causa.
A matéria alegada pelo apelante nos artigos 6º e 8º da réplica não foi vazada na base instrutória, mas ela apresenta-se, considerando a demais matéria apurada e o enquadramento jurídico dela resultante, irrelevante para a apreciação da causa (designadamente para que, a ser provada, possa solucionar-se a causa favoravelmente ao autor).
No que concerne à alegação de que os rastos de travagem deixados pelo veículo automóvel não foram superiores devido ao facto do veículo automóvel possuir sistema de travagem ‘ABS’ importa atentar que tal não constitui, verdadeiramente, matéria de facto, mas antes circunstância a valorizar em ordem à demonstração da realidade de facto – relativo, por exemplo, à velocidade do veículo ou, pelo menos, à distância de travagem. Ora, como já acima se notou, só os factos devem ser vazados na base instrutória (e na fundamentação de facto da decisão), e não já os meios de prova de factos ou as circunstâncias a que o julgador deve atender na motivação da decisão de facto. Acresce que, como também acima se referiu (ao apreciar a impugnação da matéria de facto) – e como, aliás, o próprio apelante reconhece – o sistema de ABS determina tão só impedimento ao bloqueio das rodas do veículo na travagem, obstando a que na travagem sejam deixados rastos no pavimento pelo arrastamento dos pneus (bloqueados no seu movimento circular). Uma vez que no caso dos autos a travagem produziu rastos provenientes do arrastamento dos pneus, devem eles ser valorizados naquilo que significam, à luz das leis da física – e valorizados no âmbito da motivação da matéria de facto.
Tanto basta para demonstrar a desnecessidade da pretendida ampliação da matéria de facto, no que ao alegado no artigo 6º da réplica concerne
Também a matéria alegada no artigo 8º da réplica se mostra irrelevante.
Como resulta provado, no local do embate os dois sentidos de marcha estavam separados por por uma linha longitudinal contínua pintada no pavimento, mas com a tinta parcialmente apagada.
Porém, além de não ter resultado provado que tal marca rodoviária estivesse invisível (resposta ao facto 76º da base instrutória), na análise jurídica da questão considerou-se a sua existência – pois apesar da tinta estar parcialmente apagada, ela existia no local – e, por via disso, entendeu-se impender sobre o condutor do veículo o dever de observar as regras resultantes dessa linha contínua. Note-se que se não pode presumir judicialmente da matéria provada que a referida marca rodoviária não fosse visível, já que a falta de prova de um facto (a invisibilidade dessa marca foi levada à base instrutória e a decisão recorrida, nessa parte não impugnada, não julgou provada tal matéria) não pode ser colmatada ou suprida por presunção judicial, pois se um facto concreto é submetido a discussão probatória e o julgador o não dá como provado, seria contraditório tê-lo como provado com base em simples presunção[27] (as presunções são admissíveis para integração ou complemento da factualidade apurada nas respostas do tribunal à matéria controvertida e não já para contrariar ou modificar a matéria de facto ou mesmo suprir a falta de prova[28]).
Por tal razão, constata-se facilmente que ainda que a matéria alegada pelo autor no artigo 8º da réplica viesse a ser julgada provada, sempre a solução da causa seria a mesma – mesmo que o condutor do veículo automóvel conhecesse o local e a existência da linha contínua, sempre se teria de concluir que o embate não lhe pode ser imputável subjectivamente, por não ter desrespeitado qualquer dever de cuidado e diligência adequado a evitá-lo (e bem assim que o embate é exclusivamente imputável a conduta negligente do autor).
Considerando tudo o exposto, é evidente a improcedência da apelação, com a consequente manutenção da decião recorrida – falta um dos pressupostos exigidos pela lei para o surgimento da obrigação de indemnizar com fundamento em responsabilidade civil extra-contratual, qual seja o nexo de imputação (subjectivo – culpa – ou objectivo – risco) ao lesante.
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
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Porto, 7/06/2011
João Manuel Araújo Ramos Lopes
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
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[1] Anote-se que se ordenará a matéria de facto seguindo método diferente do adoptado na sentença recorrida, com vista a observar maior coerência cronológica e sistemática das matérias.
[2] Cfr., a título de exemplo, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol. (2ª edição revista e ampliada), pp. 263 e 264, e, entre muita outra jurisprudência, os Ac. R. Porto de 5/05/2003 e de 7/12/2006, ambos no sítio www.dgsi.pt.
[3] Abrantes Geraldes, obra citada, p. 254.
[4] Cfr. M. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348.
[5] Cfr. J. Lebre de Freitas, C. P. Civil Anotado, II, p. 633.
[6] Abrantes Geraldes, obra citada, pags. 271 e 272.
[7] Ac. R. Porto de 7/12/2006, no sítio www.dgsi.pt.
[8] A. Varela, RLJ, Ano 116, p. 339.
[9] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 191.
[10] Cfr. Serge Plumelle e Gérard Defrance, Infracode, Précis schématique de responsabilité em matiére d’accidents de la circulation, 1991, 8ª edition, pp. 834 a 836 e também Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, pp. 548 a 550.
[11] Cfr., a este propósito, autores, obras e locais citados na anterior nota.
[12] M. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 312.
[13] A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 406 e 407.
[14] Autores e obra citados na nota anterior, pp. 408 e 409.
[15] Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª edição revista e actualizada, p. 341.
[16] Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, p. 62.
[17] A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, p. 562.
[18] A. Varela, obra citada, p. 574.
[19] Dario Martins de Almeida, obra citada, pp. 68 e 69.
[20] Ver autores e obras citados na anterior nota 11 e o que acima se expôs quando, a propósito da impugnação da matéria de facto, se apreciou da velocidade a que circularia o veículo automóvel.
[21] Cfr. P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição revista e actualizada, pp. 490/491.
[22] Cfr. Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, pp. 153 e seguintes, maxime, 163. Cfr., contudo, o Ac. do S.T.J. de 4/10/07, in www.dgsi.pt/jstj, onde se defende que pode haver concorrência do risco próprio do veículo com a culpa do lesado, quando esta não é exclusiva – doutrina com a qual, salvo o devido respeito, não concordamos, por perfilharmos a tese aí expendida no voto de vencido do Sr. Conselheiro Pereira da Silva; todavia, no caso dos autos, mesmo à face de tal doutrina sempre a solução seria a mesma, pois que a culpa do autor é exclusiva.
[23] A questão é absolutamente pacífica. Cfr. A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 427 a 429; Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol., 2ª edição revista e ampliada, p. 155, referindo que se ‘a questão anteriormente debatida acerca da formação do caso julgado formal relativo à especificação ou ao questionário já se deveria considerar resolvida, no sentido negativo, com a doutrina do Assento nº 14/94, in D.R. de 4/10/94, está neste momento, definitivamente afastada pela revisão do CPC, que veio realçar a função instrumental das normas processuais civis, para, em princípio, não prejudicarem a correspondência entre a decisão final e o direito substantivo adequado ao litígio efectivamente estabelecido entre as partes’; e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 314, ensinando que a selecção da matéria de facto, mesmo quando contra ela não seja deduzida qualquer reclamação, não transita em julgado e, por isso, não se torna vinculativa no processo.
[24] Sumário do Acórdão do S.T.J. de 12/05/2005, Revista n.º 1068/05 - 7.ª Secção, relatado pelo Sr. Conselheiro Ferreira de Sousa, consultado no sítio www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurel/stj.
[25] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, p. 295.
[26] Abrantes Geraldes, Recursos …, p. 296.
[27] Cfr., v.g., o Ac. S.T.J. de 9/06/2009 (relatado pelo Exmº Sr. Conselheiro Moreira Camilo), no sítio www.dgsi.pt/jstj.
[28] Cfr., v.g., Ac. R. Porto de 17/09/2009 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador José Ferraz), no sítio www.dgsi.pt/jrtp.