ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
NOTIFICAÇÃO PARA PREFERÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PREÇO
CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO
Sumário

1. Tal como acontece no caso de notificação judicial para preferência, também no caso da notificação extrajudicial se torna irrevogável a proposta de venda.
2. Neste caso, constitui-se um contra promessa entre o proponente e o aceitante, susceptível de execução específica.
3. No entanto, para proceder a preferência, o aceitante tem que requerer a consignação em depósito do respectivo preço.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Relatório

"A" - Urbanizações, Lda

Intentou contra B, Lda acção declarativa de condenação com processo ordinário

pedindo

. se condene a R. a ver declarada sentença que produza os efeitos da declaração negocial em falta, executando especificamente o contrato promessa de trespasse do estabelecimento comercial, sito na Av. Sacadura Cabral, n.º ..., Lisboa, pelo valor de 3.500.000$00

. e a pagar à autora a quantia de 42.600.000$00, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a citação, acrescida da quantia mensal de 600.000$00, por cada mês decorrido, desde Novembro de 1997, até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, bem como o valor decorrente das actualizações anuais da renda, a liquidar em execução de sentença.

Alega que a R. lhe ofereceu a preferência do trespasse do referido estabelecimento comercial, por ser sua senhoria, através de carta escrita e que a A. lhe respondeu tempestivamente a aceitar o negócio, que ela se tem recusado a outorgar; alega ainda factos tendentes a justificar o prejuízo invocado.

A R. contestou, referindo, no essencial, que, após lhe ter oferecido a preferência, desistiu de efectuar o trespasse, ao que a A. se não opôs.

A A. respondeu.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção.

Inconformada, a R. interpôs recurso de apelação, que, embora por razões diferentes, confirmou a sentença.

Novamente inconformada, a R. interpôs recurso de revista, terminando as suas alegações com as seguintes

Conclusões

1. Na convergência da comunicação para preferir feita pela recorrida, com a resposta afirmativa da recorrente, nasceu um contrato promessa, e com ele todos os direitos inerentes, designadamente o direito à celebração do contrato prometido - o de trespasse.

2. A notificação extrajudicial, desde que contenha os elementos necessários à decisão do preferente, deve ser qualificada como uma proposta de contrato.

3. Se este não estiver sujeito a forma (ou depender de formalidades a que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente obedeçam), deve entender-se que a declaração de querer preferir feita pelo preferente aperfeiçoa o contrato.

4. A aplicação do art. 410, n ° 3, do C. Civil aos factos assentes nos presentes autos não tem o menor significado já que o caso sub júdice refere-se a um contrato promessa de trespasse, concluindo-se necessariamente que o preceito aplicável no caso sub judice é o art. 410, nº 2, do C. Civil.

5. Nos termos do disposto no art. 1118.º, nº 3, do C. Civil, outrora vigente, o trespasse " só é válido se for celebrado por escritura pública" e hoje, rege o art. 115.º, nº 3, do R.A.U. que dispõe: o "trespasse deve ser celebrado por escrito, sob pena de nulidade";

6. No presente caso em análise, a comunicação para preferir no trespasse foi feita por escrito e a sua aceitação também, pelo que o contrato promessa de trespasse é perfeitamente válido à luz dos requisitos do art. ° 410, n ° 2, do C. Civil.

7. O promitente não cumpriu a sua obrigação de celebrar o contrato prometido (o trespasse) e, nos termos do art. 830 do C. Civil "se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza" os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida";

8. O preferente desmobilizou 3.500.000$00 na expectativa de concretização do contrato de trespasse prometido e que até hoje não se verificou, causando danos à Requerente.

9. Nos termos do art. o 562 do C.C"Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. "

10. Deve haver lugar à liquidação em execução de sentença.

11. Caso assim não se entenda, sempre sem conceder, o recorrente teria sempre nos termos do art. 227 e 562 do C.C, direito a uma indemnização com fundamento em culpa in contrahendo do promitente faltoso.

Termina, pedindo se revogue o acórdão recorrido e se reconheça o direito da A. à execução específica do contrato-promessa de trespasse nas condições propostas pela recorrida e aceites pela recorrente, bem como o direito á indemnização peticionada.

Contra alegou a recorrida, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, referindo que o prometido contrato promessa de trespasse foi resolvido por ambas as partes.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

Factos provados:

1. A autora é proprietária do prédio urbano sito na v. Sacadura Cabral, nºs ... a..., freguesia de São Sebastião da Pedreira, descrito na 8.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº 9263, inscrito na matriz sob o art. 2172, em Lisboa;

2. A R. é arrendatária da fracção designada pela letra " A " que corresponde à loja que faz parte do prédio referido em A, com entrada pelo nº 35-A, qualidade que adquiriu mediante escritura pública de trespasse, celebrada no dia 19.01.43, no Cartório do Notário Dr. C, com o anterior dono;

3. Através de carta datada de 28.01.91, a R. notificou a A. para o exercício do direito de preferência no trespasse que pretendia efectuar do estabelecimento comercial instalado na loja;

4. O trespasse seria efectuado pelo montante de 3.500.000$00, devendo a autora pronunciar-se no prazo de 15 dias quanto ao exercício desse direito de preferência.

5. Por carta datada de 06.02.91 a autora comunicou à ré: "Preferimos no trespasse do estabelecimento... conforme proposta de v. Exas". Aguardamos a V. Comunicação sobre a data da escritura e também o consequente pagamento da nossa parte;

6. A ré recebeu esta carta, tendo o perfeito conhecimento do teor respectivo, pelo menos desde o dia 10.02.91. 7- A ré enviou à autora a carta de fls. 30;

8. Ao longo dos anos a autora continuou a exigir à ré a celebração da escritura de trespasse;

9. A autora contactou diversas entidades, no sentido de arrendar ou vender o espaço ocupado pela ré.

10. A ré é uma sociedade familiar que explora um pequeno comércio de drogaria no estabelecimento situado no prédio da autora.

11. E em 1991 dependia havia alguns anos do trabalho do sócio D.

12. Desde 1991 a filha do sócio D, trabalhava no estabelecimento a que se refere o trespasse.

13. A ré desistiu de realizar o trespasse do estabelecimento, o que comunicou a autora.

14. A autora disse que sofreu prejuízos por ter desbloqueado imediatamente o valor de 3.500.000$00 referente ao trespasse que ficou disponível.

15. A loja tem cerca de 40m2.

O direito

A questão fundamental que se suscita nas conclusões da recorrente é a de saber como qualificar o convite da recorrida à recorrente para preferir pelo preço de 3.500.000$00, juntamente com a resposta desta a aceitar esse convite.

Na doutrina defende-se, una voce, que esse circunstancialismo integra um contrato promessa, com as respectivas consequências. (1)


O convite feito pela recorrida à preferente não é verdadeiramente um convite para preferir, porque este pressupõe que haja um projecto de venda a terceiro com as respectivas cláusulas (2) ; é, antes, um convite a contratar (3) e se o beneficiário da preferência responde que aceita, conclui-se um contrato promessa.

Efectuado este percurso, e cumprindo as partes o acordado, já não se torna necessário recorrer ao mecanismos do art. 1410.º, 1 do CC, que permite o exercício do direito de preferência a quem o tenha e ao qual se não tenha dado "conhecimento da venda...."

Efectuada a proposta pelo obrigado a oferecer a preferência e aceite pelo respectivo beneficiário, não pode aquele dar o dito por não dito, alegando que já não pretende vender, ou, como no caso dos autos, trespassar o estabelecimento comercial.

É que o art. 230.º do CC impõe-lhe a irrevogabilidade da proposta (4) .

É isso mesmo que se estatui no art. 1458.º, 2 do CPC, quando ocorre notificação para a preferência judicial, em que a resposta positiva do notificado vincula à celebração do contrato.

Se assim acontece na notificação judicial, nada impede que concluamos da mesma forma no caso da notificação extrajudicial porque tanto naquela como nesta estamos em presença de semelhante circunstancialismo fáctico: em ambos os casos se comunica ao notificado o preço e as restantes cláusulas do contrato projectado. (5)

Para além da doutrina, também a jurisprudência maioritária segue este entendimento. (6)

O acórdão recorrido não segue esta jurisprudência, defendendo que "comunicação para preferir é apenas isso: dar conhecimento do projecto de venda e respectivas cláusulas- promessa de contratar é a convenção, o acordo de vontades, pela qual se obriga a celebrar certo contrato".

Seguiu o acórdão a doutrina expendida no ac. da RP de 11.3.96 (7) que doutrina que o direito de preferência só se radica no seu titular por causa e no momento da alienação e, por isso, tal direito não ocorre se o obrigado à preferência não efectuar a venda.

Contudo, este acórdão, embora muito bem fundamentado, veio a ser revogado pelo Ac. do STJ de 7.10.97, proferido na revista 246/97, que seguiu o entendimento maioritário acima referido.

Por outro lado, o direito que nasce para o notificado, após lhe ter sido feita a comunicação a que alude o art. 416.º, 1 do CC, à qual ele respondeu afirmativamente, não constitui o exercício do direito de preferência a que alude o art. 1410.º do CC, base do raciocínio imanente ao citado Acórdão.

Este normativo pressupõe, para ser intentada a acção de preferência, que não se dê conhecimento do projecto da venda ao beneficiário e, no caso dos autos, tem-se em vista a comunicação do projectado negócio, indicando-se o seu valor e convidando-se o preferente a "pronunciar-se" em 15 dias.

Estamos, portanto, em face de uma proposta aceite, qualificando assim tais declarações de vontade; não estamos a apreciar o exercício do direito de preferência do titular a quem se não deu conhecimento do negócio.

Embora, não seja o lugar próprio para a confissão da parte, foi isto que entendeu a recorrida, ao considerar que tinha estado na intenção das partes a celebração de um contrato promessa.

Acrescenta que, posteriormente, a recorrida desistiu do trespasse e que, comunicando-o à recorrente, esta aceitou essa desistência.

Mas isso não é verdade porque a questão foi submetida a julgamento e o respectivo facto foi dado como não provado. (8)

Por isso, nada mais haveria a fazer do que declarar, por via judicial, o referido trespasse.

Sucede, no entanto, que o preço do trespasse não está consignado em depósito, o que determina a improcedência da acção.

Com efeito, dispõe o art. 830.º, 5 (9) : "no caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento,(10) a acção improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal."

É certo que o tribunal não fixou prazo à requerente para consignar em depósito o preço do trespasse, mas, para tal efeito, deveria a recorrente ter requerido esse depósito.

No caso do art. 1410.º 1 do CC, o A. deve depositar o preço devido nos quinze dias seguintes à propositura da acção e, no caso da notificação judicial avulsa, (11) "feita a declaração, se nos 20 dias seguintes não for celebrado o contrato, deve o preferente requerer, nos 10 dias subsequentes, que se designe dia e hora para a parte contrária receber o preço por termo no processo...."

E, no caso dos autos, face ao disposto no art. 830.º, 5 citado, deveria a A. ter requerido a consignação em depósito dos 3.500.000$00 do trespasse.

Não o tendo feito, a acção tem que improceder.

Mesmo que se entendesse que deveria ser o tribunal a notificar a A. para tal efeito, a nulidade derivada dessa omissão, deveria ter sido suprida a requerimento da A. na primeira intervenção que tivesse no processo, como resulta do disposto no art. 205, 1 do CPC.

Do exposto, resulta também que os 3.500.000$00 deveriam ter sido consignados em depósito e não "desmobilizados ...na expectativa da concretização do contrato de trespasse...".

Não pode, por isso, julgar-se procedente a acção sem haver consignação em depósito do preço do trespasse.

Acrescente-se, também que a "desmobilização" dos 3.500.000$00 não é consequência adequada da acção da R. nem daí resultam provados quaisquer danos para a A., como se refere no Acórdão sob recurso.

Por isso, nenhuma indemnização lhe cabe por essa razão.

Do decidido resulta ainda prejudicado o pedido subsidiário de indemnização por culpa in contrahendo.

Confirma-se, por isso, o Acórdão recorrido, embora por fundamento diverso.

Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista e, embora por outros motivos, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2006
Custódio Montes
Mota Miranda
Araújo Barros
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(1) P. L. e A. Varela, CC Anot. 2.ª ed., pág. 342 ensinam que, nesse caso, se deve entender "que se conclui um contrato promessa (cf. art. 410.º, n.º 2) , com as respectivas consequências"; ver também os AA. citados nas alegações da recorrente: H. Mesquita, RDES XXVII e Obrigações Reais e ónus Reais, págs. 210 a 213; Inocêncio Galvão Telles, Direito das obrigações, pág. 168; Carlos Lacerda Barata, Da Obrigação de Preferência, pág.144; Abel Delgado, Do Contrato - Promessa, pág. 24; e até mesmo para o caso do pacto de preferência, Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 501, nota 956; Aragão Seia, Arrendamento Urbano, pág. 223, citando o Ac. do STJ de 15.6.89, referido na nota 7 infra.
Ver também Vaz Serra, RLJ 101, 233 e 234: "quando a comunicação e a declaração do preferente tenham sido feitas em documento assinado, qualquer das partes contraiu a obrigação de celebrar o contrato...."
(2) No convite a preferir, diz a lei que "o obrigado deve comunicar ao titular ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato"- art. 416.º, 1 do CC.
(3)A. Varela, RLJ 121, 363.
(4) "A proposta de contrato é irrevogável depois de ser recebida pelo destinatário ou dele ser conhecida".
(5) No caso dos autos, a recorrida comunicou à recorrente que pretendia trespassar o estabelecimento comercial pelo montante de 3.500.000$00 e instou a que o destinatário se pronunciasse em 15 dias.
(6) Ac.s do STJ de 15.6.98, BMJ 388, 479; de 11.5.93, BMJ 427, 491; 9.7.98, itij doc. n.º sj99807090005171; de 5.7.01, itij doc. n.º sj200107050017657 (do aqui Ex.mº Conselheiro, 1.º adjunto: "a notificação para o exercício do direito de preferência constitui uma verdadeira declaração negocial, por ser proposta correspondente ao projecto de venda que o obrigado leva ao conhecimento do preferente, nas fronteiras do art. 416.º, 1 do CC"; de 2.3.99, itij doc. n.º sj199903020000691; de 3.2.99, itij doc. n.º sj19990230007422; RP de 5.1.84, CJ Ano XI, tomo I, pág. 205.
(7) CJ Ano XXI, tomo II, pág. 188.
(8) Resposta ao quesito 15.º: "a autora aceitou a desistência do negócio por parte da ré?" . Resposta: "não provado".
(9) Do CC.
(10) E no caso é - art. 428.º, , 1 do CC.
(11) Art. 1458.º, 1 do CPC.