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CHEQUE
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
CAUSA DE PEDIR
Sumário
I - Ao determinar, no seu nº1º, que, desde que sobre o comissário recaia a obrigação de indemnizar, aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, o art.500º C.Civ. institui uma situação de responsabilidade objectiva do comitente.
II - Consoante art.500º, nº 2º, C.Civ., essa responsabilidade do comitente depende da verificação de três requisitos : a) - a existência de relação de comissão, que implica liberdade de escolha pelo comitente e se caracteriza pela subordinação do comissário ao comitente, que tem o poder de direcção, ou seja, de dar ordens ou instruções ; b) - a responsabilidade do comissário, já que, em princípio, o comitente só responde se tiver havido culpa do comissário ; c) - que o acto praticado pelo comissário o tenha sido no exercício da função que lhe foi confiada.
III - Com a fórmula restritiva adoptada nesse nº2º, a lei quis afastar da responsabilidade do comitente os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 3/6/98, AA e BB moveram à Empresa-A, acção declarativa com processo comum na forma ordinária, que foi distribuída à 1ª Secção do 6ª Juízo, depois Vara, Cível de Lisboa.
Pretendida nessa acção a condenação da demandada no pagamento de 2.543.288$00, com juros de mora, alegaram para tanto : - serem titulares da conta n°212562011, do Empresa-B e portadores de um cartão magnético de débito, vulgo Multibanco, que estava guardado no escritório em que a A. exerce a sua actividade profissional ; - que esse cartão foi dali retirado por uma empregada da Ré, CC, que fazia a limpeza dos escritórios ; - e que, na posse desse cartão, esta fez levantamentos e despesas no montante pedido.
A Ré contestou e deduziu o incidente de intervenção provocada da predita CC, que, citada, não interveio nos autos.
Os AA deduziram, por seu turno, incidente de intervenção principal provocada da Empresa-C, que, citada, requereu o incidente de intervenção principal provocada da Empresa-D, que apresentou contestação.
Saneado, condensado e instruído o processo, realizou-se o julgamento, vindo, depois, a ser proferida, em 19/3/2004, sentença que condenou a interveniente CC a pagar aos AA a quantia peticionada, absolvendo os restantes RR do pedido.
Por acórdão de 26/4/2005, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso de apelação que os AA interpuseram dessa sentença, que confirmou.
É dessa decisão que vem, agora, pedida revista.
Na alegação respectiva, os AA, recorrentes, formulam, com prejuízo da síntese imposta pelo art. 690º, nº1º, CPC, 17 conclusões, um tanto repetitivas ( v., v.g., conclusões 2ª a 4ª e 7ª a 9ª).
Delimitadas pelas mesmas as questões a apreciar ( arts.684º, nºs 2º a 4º, e 690º, nºs 1º e 3º, CPC ), são como segue :
1ª - A decisão recorrida deve ser revogada, uma vez que da matéria dada como provada, - designadamente do facto de a interveniente CC ter retirado um cartão Multibanco e o respectivo código do escritório dos AA quando procedia à limpeza do mesmo, por ordem e por conta da Ré, quando foi esta quem lhe proporcionou o ingresso nesse escritório de forma periódica, sem controlo à entrada e saída dos objectos que transportava consigo e sem obrigação de permanência nos escritórios em grupo, de forma a que existisse um controlo durante a permanência -, resulta que existe um vínculo de autoridade e subordinação correspectiva, uma relação de comissão entre a Ré e a sua funcionária CC e que o facto ilícito foi praticado no quadro da actividade definida e adoptada pela Ré para realização do fim da comissão.
2ª - A decisão recorrida deve ser revogada, uma vez que não retira as consequências legais dos factos dados como provados, de que resultam evidentes não apenas o vinculo de autoridade e subordinação correspectiva entre a Ré e a interveniente referida, como o dolo com que esta praticou o facto ilícito causador do dano.
3ª - A decisão recorrida deve ser revogada, pois dos factos dados como provados resulta que existe responsabilidade objectiva da Ré, já que o acto danoso constitui uma consequência previsível, ainda que abusiva, das funções de limpeza do escritório confiadas à comissária CC, por estas serem adequadas a proporcionar o dano ocorrido uma vez que, segundo um critério de experiência, favorecem ou aumentam o perigo de verificação de descaminho ou furto de bens.
4ª - A decisão recorrida deve ser revogada, pois a atribuição das funções de limpeza pela Ré a CC nas concretas condições dadas como provadas é juridicamente adequada à ocorrência do furto em causa, uma vez que essa atribuição de funções é idónea ou apta a aumentar o risco de furto ou descaminho de bens, tendo em consideração a natureza das coisas, o senso comum e as circunstâncias em que tal limpeza era feita, pois com a entrega das chaves se põe na disponibilidade da empregada da limpeza todo o recheio do escritório.
5ª - A decisão recorrida deve ser revogada, porque ao reter imediatamente o pagamento do vencimento de CC, como consta de fls.129 dos autos e está tacitamente aceite pela Ré, esta reconheceu que a actuação daquela se inseria no âmbito da relação laboral que existia entre ambas e que, portanto, o furto foi praticado no quadro da actividade que CC exercia por conta e no interesse da Ré.
6ª - A decisão recorrida deve ser revogada porque a tese nela defendida levaria a que se chegasse à situação imoral em que a Ré acabaria por lucrar com o furto, cobrando à Empresa-C o custo do serviço prestado, e, uma vez que se entendia que o comportamento de CC é alheio à sua entidade patronal, escusando-se, simultaneamente, como efectivamente se escusou, a pagar à sua funcionária por esta ter cumprido mal as suas funções.
7ª - A decisão recorrida deve ser revogada porque dos factos dados como provados resulta que existe responsabilidade objectiva da Ré, pois, ao permitir à comissária CC o livre acesso ao escritório dos AA, sozinha e sem qualquer controlo sobre os objectos que transportava à saída, a Ré a colocou numa posição particularmente adequada à prática de furtos dos bens que se encontravam no seu interior.
8ª - A decisão recorrida, ao não condenar a Ré Empresa-A solidariamente com a Ré CC, violou o disposto nos arts.165° e 500°, nº 2, C.Civ., uma vez que destas disposições decorre que a responsabilidade objectiva do comitente existe sempre que o acto danoso constitua uma consequência previsível das funções confiadas ao comissário e era objectivamente previsível que a funcionária da Empresa-A se apoderasse de bens que encontrasse nos escritórios dos AA, uma vez que as funções cometidas pela Ré Empresa-A à sua funcionária CC, nas condições em que esta as praticava, designadamente procedendo à limpeza do escritório dos AA a sós, em horas mortas e sem qualquer controlo por parte da Ré Empresa-A, eram adequadas a proporcionar o dano causado.
9ª - A decisão recorrida violou o art.500°, n°2º, C.Civ., uma vez que a responsabilidade da Ré Empresa-A resulta do facto de a Ré CC ter praticado o facto ilícito no exercício da função que aquela lhe confiou, já que, tanto pela natureza dos actos de que foi incumbida, das condições em que lhe ordenaram que procedesse à limpeza, como pela natureza dos objectos que lhe foram confiados e cujo acesso lhe foi possibilitado pela ré Empresa-A, se encontrava numa posição especialmente adequada à prática de tal facto.
10ª - A decisão recorrida violou o art.500º, n°2º, C.Civ., uma vez que a responsabilidade da Ré Empresa-A resulta do facto de se ter servido da colaboração da Ré CC para a realização da tarefa de que se encarregara por contrato, dela retirando as respectivas vantagens, pelo que deve suportar as consequências que lhe são inerentes (ubi commoda, ibi incommoda ).
11ª - A decisão recorrida violou o art. 500°, n° 2, C.Civ., uma vez que se encontram preenchidos os três requisitos para a sua aplicação: existe uma relação de comissão entre a Ré Empresa-A e CC, sobre esta recai a obrigação de indemnizar, e os prejuízos foram causados no quadro da relação, no exercício da função cometida pela Ré Empresa-A a CC.
12ª - A decisão recorrida violou o princípio da confiança pois, sendo a Ré Empresa-A quem seleccionava e dirigia o pessoal que, por sua conta e sob as suas ordens e direcção dos seus responsáveis, prestava os serviços de limpeza, e o vigiava, tanto através do seu corpo de inspectores como através dos encarregados das equipas de trabalhadores que a Ré Empresa-A entendia ser necessário enviar para as instalações, actuando com total autonomia e independência de meios e pessoal, o Tribunal desresponsabilizou-a das consequências negativas perante terceiros do mau exercício das suas competências.
13ª - Ao decidir que CC devia proceder à limpeza do escritório dos AA sozinha e sem qualquer controlo, a Ré Empresa-A deu um sinal àqueles a quem prestava o serviço de que podiam confiar na pessoa que autonomamente tinha escolhido, pelo que ao absolvê-la, a decisão recorrida violou o principio da confiança, que é um princípio ético e jurídico fundamentalíssimo, e não protegeu a confiança legítima que os AA depositaram na escolha e vigilância que a Ré Empresa-A devia exercer sobre a Ré CC.
14ª - A decisão recorrida violou o art.483°, n°1º, C.Civ. e os princípios da culpa in eligendo e in vigilando, pois, competindo à Ré Empresa-A montar um sistema de controlo eficaz, não foi alegada a existência de qualquer forma de controlo, nem de qualquer critério de selecção da funcionária.
15ª - A decisão recorrida deve ser revogada uma vez que existe responsabilidade subjectiva da Ré Empresa-A, por constar dos autos que, dispondo de total autonomia, omitiu o mínimo de diligência, de controlo e vigilância que era exigível a qualquer bom pai de família que tivesse proporcionado a terceiros o livre acesso aos escritórios que lhe tinham sido entregues para limpeza.
16ª - Dito de outra forma, a decisão recorrida deve ser revogada por ser exigível a uma empresa que se propõe proceder à limpeza de um centro de escritórios, que a mesma estabeleça um sistema mínimo de segurança e controlo dos funcionários a quem permite o acesso, o que a Ré efectivamente omitiu.
17ª - A decisão recorrida deve ser revogada, uma vez que a responsabilidade subjectiva da Ré Empresa-A decorre também do compromisso que assumiu, perante a Empresa-C, na condição 8ª do contrato celebrado com essa interveniente.
Houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Convenientemente ordenada, a matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue :
(a) - A sociedade administradora do empreendimento onde está instalado o escritório dos AA prestava-lhes serviço de recepção e encaminhamento dos clientes.
(b) - A Companhia Administradora Empresa-C, celebrou com a A. AA o acordo escrito junto por cópia a fls. 22 a 27 destes autos, que tinha como objecto a prestação dos serviços de apoio à actividade da A. identificados na cláusula 1ª desse acordo.
(c) - A Companhia Administradora Empresa-C. celebrou com a Empresa-D um contrato de seguro designado de " responsabilidade civil geral " titulado pela apólice n° 6553, e um contrato de seguro designado de " riscos múltiplos " titulado pela apólice n° 2502204, através dos quais transferiu para esta a responsabilidade civil que lhe pudesse ser imputada pelo exercício da sua actividade comercial.
(d) - A Empresa-A, celebrou com a Empresa-C, o acordo escrito junto por cópia a fls. 28 e 29 destes autos, que tinha por objecto a prestação de serviços de limpeza na Rua da Misericórdia, 76, entrada e sala de fotocópias no r/c, 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º.
(e) - No que respeitava às tarefas contratadas, a Empresa-A actuava com total autonomia e independência de meios e pessoal em relação àquela interveniente.
(f) - Era a Empresa-A que seleccionava e dirigia o pessoal que prestava, por sua conta e sob as suas ordens e direcção dos seus responsáveis, os serviços de limpeza contratados com a interveniente referida e que vigiava esse pessoal, quer através do seu corpo de inspectores, quer pelos encarregados das equipas de trabalhadores, que ela entendia necessário enviar para as instalações da interveniente.
(g) - A Ré CC era funcionária da Ré Empresa-A, com a categoria de trabalhadora de limpeza, tendo ficado encarregue da limpeza do escritório da Autora.
(h) - A Ré Empresa-A proporcionou àquela funcionária o ingresso nos escritórios de forma periódica, não controlando à entrada e saída os objectos que a mesma transportava consigo, nem a obrigando a permanecer nos escritórios em grupo, de forma a que existisse um controlo durante a permanência.
(i) - O acesso ao interior do escritório da Autora foi possibilitado à referida CC única e exclusivamente porque se tratava de uma funcionária da Ré Empresa-A.
(j) - Os AA são titulares da conta n° 212562011 do Empresa-B, sendo portadores de um cartão magnético de débito, que estava guardado dentro de uma gaveta no escritório em que a A. exerce a sua actividade profissional, na sala 502 do Centro Luxor, sito na Rua da Misericórdia, n° 76, em Lisboa.
(l) - Esse cartão foi retirado dessa gaveta pela empregada que fazia a limpeza do escritório, a Ré CC, que, agindo voluntariamente, se apoderou do cartão, bem sabendo que não podia abrir a gaveta, que o cartão não era seu, e que o seu comportamento não era permitido por lei.
(m) - Sabendo ( também ) que não devia mexer nos papéis, a mesma CC, empregada de limpeza, foi consultar uma agenda existente naquele escritório, procurando o código do referido cartão Multibanco, que efectivamente aí encontrou.
(n) - Estes factos foram praticados nas horas de serviço da CC.
(o) - Na posse do cartão e do respectivo código de acesso, a Ré CC efectuou movimentos para pagamento de compras e para levantamento de dinheiro, e, com o seu comportamento, retirou 2.543.288$00 da conta bancária que sabia ser dos AA.
(p) - Estes movimentos e levantamentos foram efectuados entre 19/12/97 e 7/1/98.
(q) - O cartão foi retido por uma máquina ATM.
(r) - Os AA emitiram e enviaram à Ré Empresa-A, que a recebeu, a carta junta por cópia a fls. 30 destes autos, de que consta no essencial: " ( ...) É pois nosso entendimento que, independentemente das consequências criminais que decorrem da queixa já apresentada contra aquela empregada, existe responsabilidade pecuniária dessa empresa pelas consequências do acto ilícito praticado por uma funcionária sua em exercício de funções. Solicitamos, assim, que com a maior brevidade possível e, no máximo, até ao final do corrente mês, procedam à regularização do referido prejuízo, no montante de 2.543.288$00, sendo que a ré nada pagou" ( D ).
Verificada a responsabilidade da interveniente CC, que foi condenada a pagar aos AA a quantia de 2.543.248$00, e afastada, sem oposição dos recorrentes, a responsabilidade civil das intervenientes Empresa-C, e Empresa-D, está agora em causa, apenas, a determinação da existência, ou não, de responsabilidade civil extracontratual da recorrida Empresa-A.
No acórdão recorrido considerou-se que, como geralmente reconhecido, a responsabilidade do comitente prevista no art.500º, nº 2º, C.Civ., depende da verificação de três requisitos :
a) - a existência de relação de comissão, que implica liberdade de escolha pelo comitente e se caracteriza pela subordinação do comissário ao comitente, que tem o poder de direcção, ou seja, de dar ordens ou instruções ;
b) - a responsabilidade do comissário, já que, em princípio, o comitente só responde se tiver havido culpa do comissário ;
c) - que o acto praticado pelo comissário o tenha sido no exercício da função que lhe foi confiada.
Demonstrados, no caso, os dois primeiros, a absolvição da Ré Empresa-A deveu-se ao não preenchimento do terceiro dos requisitos referidos, tendo-se julgado que o comportamento da interveniente CC não estava intrinsecamente ligado às funções que lhe estavam confiadas.
É contrário o entendimento dos recorrentes a esse respeito : segundo sustentam, a responsabilidade da Ré Empresa-A resulta do facto de a Ré CC ter praticado o facto ilícito no exercício da função que aquela lhe confiou, e tal assim por encontrar-se numa posição especialmente adequada à prática de tal facto, em vista da natureza dos actos de que foi incumbida e dos objectos que lhe foram confiados, cujo acesso lhe foi possibilitado pela Ré Empresa-A, nas condições em que lhe ordenou que procedesse à limpeza.
O art.500º C.Civ. institui uma situação de responsabilidade objectiva do comitente ao determinar, no seu nº1º, que, desde que sobre o comissário recaia a obrigação de indemnizar, aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar (1) .
Porém, de harmonia com o seu nº2º, a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada. Na verdade :
" Para efeitos do artigo 500º C. Civ., a comissão deve ser entendida como serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, gratuita ou onerosa, manual ou intelectual ".
" A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comitido no exercício da função que lhe é confiada" (2) .
No entender de Antunes Varela (3), " com a fórmula restritiva adoptada (no nº2º) a lei quis afastar da responsabilidade do comitente os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão. Mas, acentuando ao mesmo tempo que a responsabilidade do comitente subsiste, ainda que o comissário proceda intencionalmente contra as instruções dele, mostra-se que houve a intenção de abranger todos os actos compreendidos no quadro geral da competência ou dos poderes conferidos ao dito comissário. (...) Serão, assim, da responsabilidade do comitente os actos praticados pelo comissário com abuso de funções, ou seja, os actos formalmente compreendidos no âmbito da comissão, mas praticados com um fim estranho a ela ".
Preenchem, pois, o terceiro requisito referido os actos praticados pelo comissário " no quadro geral da competência ou dos poderes do dito comissário, que pertençam ao quadro da actividade adoptada para realizar o fim da comissão (Larenz) e que tenham sido praticados com o agente da sociedade agindo em tal veste ou qualidade, isto é, por causa das suas funções " (4) .
Já não assim os actos do comissário que, " praticados no lugar ou no tempo em que é executada a comissão, nada tenham com o desempenho desta, a não ser porventura a circunstância de o agente aproveitar as facilidades que o exercício da comissão lhe proporciona para consumar o acto" (5).
Deste modo, " deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário quando, quer pela natureza dos actos de que foi incumbido, quer pela dos instrumentos ou objectos que lhe foram confiados, ele se encontre numa posição especialmente adequada à prática de tal facto " (6).
Isto significa que " a lei abrange unicamente os actos ligados ao serviço, actividade ou cargo, embora exista apenas um nexo instrumental, excluindo os praticados por ocasião da comissão com um fim ou interesse que lhe seja estranho. E subsiste a responsabilidade do comitente, mesmo que o comissário, nesse quadro, tenha agido intencionalmente ou contra as suas instruções" (7) .
Os factos provados na acção revelam que :
- a Ré CC era funcionária da Ré Empresa-A, com a categoria de trabalhadora de limpeza, tendo ficado encarregada da limpeza do escritório da Autora no âmbito de acordo celebrado por aquela e que tinha por objecto a prestação de serviços de limpeza ;
- a Empresa-A proporcionou à CC o ingresso nos escritórios de forma periódica, única e exclusivamente porque se tratava de uma sua funcionária, não controlando à entrada e saída os objectos que a mesma transportava consigo, nem a obrigando a permanecer nos escritórios, em grupo, de forma a que existisse um controlo durante a permanência ;
- era a Empresa-A que seleccionava e dirigia o pessoal que prestava por sua conta, e sob as suas ordens e direcção dos seus responsáveis, os serviços de limpeza contratados com a interveniente e era a Empresa-A que vigiava esse pessoal, quer através do seu corpo de inspectores, quer pelos encarregados das equipas de trabalhadores, que ela entendia necessário enviar para as instalações da interveniente ;
- a Ré CC, que fazia a limpeza do aludido escritório, durante as horas de serviço de limpeza, apoderou-se de um cartão Multibanco que se encontrava guardado dentro de uma gaveta, e foi, depois, consultar uma agenda existente naquele escritório, procurando e encontrando o código do referido cartão ;
- na posse do cartão e do respectivo código de acesso, a CC efectuou movimentos para pagamento de compras e para levantamento de dinheiro, retirando da conta bancária, que sabia ser dos autores, 2.543.288$00.
É perante esta situação de facto que há que determinar se a actuação ilícita e dolosa da CC se situa ou não no âmbito do exercício das suas funções de comissária, com a consequência de a Ré Empresa-A, comitente, poder ser responsabilizada pelos actos praticados por essa sua emprega- da, conforme arts.165º e 500º C.Civ. Ora :
Não parece que se deva discordar das instâncias, levando os princípios e fundamentos da teoria do risco além do que a doutrina já adiantada refere (8) . Com efeito :
Esse tipo de responsabilidade, assente na ideia de que ubi commoda, ibi incommoda, nasceu da necessidade de reparar danos reconhecidamente indemnizáveis, mas produzidos sem culpa, antes resultantes da forma de organização do trabalho, da delegação de tarefas e da utilização de máquinas com a consequente diluição de responsabilidades. E também a responsabilidade sem culpa estimulará o empresário a aperfeiçoar a organização e a diminuir, por esse modo, a sinistralidade.
Por isso, " deve considerar-se justo que, alargadas por meio do concurso de terceiros as potencialidades do comitente de satisfação dos próprios interesses, lhes deva corresponder, numa espécie de equilíbrio jurídico, a responsabilidade pelos danos provenientes da actuação do comitido. (...) O comitente apresenta-se, deste modo, como garante da responsabilidade em que incorre a pessoa que actua sob a sua direcção. Porque tudo se passa, afinal, como se ele próprio agisse. E, sendo assim, o risco da insuficiência do património do comissário deve suportá-lo ele e não o lesado." (9).
A responsabilidade pelo risco prescinde da culpa e, por vezes, da própria ilicitude, como acontece na responsabilidade por factos naturais, de terceiro ou do próprio lesado.
Mas, por outro lado, a apreciação da questão está intrinsecamente ligada à autoridade do comitente sobre o comitido, ao poder de vigilância e direcção que a comissão importa e, sobretudo, à confiança que é, em princípio, transmitida aos terceiros com quem se relaciona, mormente através do comissário, de que os actos compreendidos na comissão serão efectuados adequadamente ( sem desvios ).
Em último termo, " será de responsabilizar a pessoa colectiva (comitente) pelos actos dos seus representantes, mandatários ou agentes que, da perspectiva do lesado, tenham com as funções destes uma conexão adequada, uma vez que foi a pessoa colectiva quem os escolheu ..." (10).
Por essas razões, considerou-se já que " o exercício da função que deve acompanhar a prática do acto pelo comissário, para que se considere verificada a responsabilidade do comitente, não exige o rigoroso cumprimento do encargo proposto ao comissário, bastando um certo nexo de causalidade adequada entre o facto praticado e a função do comissário " (811) .
Ou que "a responsabilidade do comitente pelos actos dos comitidos não deve existir apenas quando o acto seja praticado rigorosamente na execução do encargo, pois, se assim fosse, tal responsabilidade desaparecia praticamente ou, pelo menos, reduzir-se-ia a bem pouco, dado que os actos ilícitos dos comitidos constituem sempre ou em regra uma evasão das funções" (12).
Assim, " para que se verifique a responsabilidade do comitente nos termos do art.500º C. Civ. é preciso que o comissário - que pode ser um simples serviçal, um assalariado ou qualquer encarregado da prestação de um serviço - tenha sido escolhido pelo comitente e que o facto danoso haja sido praticado no exercício de função àquele confiada, bastando, para caracterizar este vínculo, que o facto esteja devidamente relacionado com o serviço executado " (13) .
A imputação ao comitente, nos termos do art.500º, nº 2º, C.Civ., mantem-se ainda que o comissário actue ilicitamente (voluntariamente) ou aja contra as instruções ou a vontade (explícitas ou mesmo implícitas) do comitente, desde, naturalmente, que tudo se passe no âmbito da competência material da incumbência feita ao comissário(14) . Desta sorte (15) :
No momento dos factos praticados, a Ré CC encontrava-se, de facto, no exercício das funções que lhe haviam sido confiadas de proceder à limpeza do escritório da autora, sendo, desse modo, utilizada pela Ré Empresa-A para cumprir o encargo que esta assumira.
Cometida a subtracção em seu proveito dum cartão Multibanco e respectivo código de acesso por ocasião do exercício das funções, é, no entanto, indiscutível que, ao fazê-lo, não actuou no exercício dessas funções, com o qual esse acto não tem qualquer relação de causalidade adequada, passando ao furto de objecto que se encontrava no local em que prestava o serviço.
É acto que só um nexo temporal e local liga à comissão, claramente fora do quadro geral da competência da comissária, que, designadamente, sabia bem, consoante ( l ) e (m), supra, que não podia abrir gavetas, nem devia mexer nos papéis - e ainda menos, apoderar-se do que lhe não pertencia.
Trata-se, enfim, de acto que, praticado no lugar e no tempo em que era executada a comissão, nada, no entanto, tinha a ver com o desempenho da função cometida, a não ser a circunstância de a comissária ter aproveitado as facilidades que o exercício da comissão lhe proporcionava para o consumar.
Esse desvio da actividade de que tinha sido incumbida - era para tal que lhe tinha sido proporcionado pela comitente o acesso ao escritório da Autora que, naturalmente, confiou na concretização, em situação de normalidade, dos serviços prestados -, não tem relação directa com o exercício das funções que lhe competiam.
Não existe nexo de causalidade adequada entre o facto praticado e a função da comissária.
Não obstante o falado nexo temporal e local, não parece que se possa dizer que se está efectivamente perante factos ilícitos praticados no exercício ou por causa do exercício das funções da empregada de limpeza aludida.
Não pode, por isso, a nosso ver, responsabilizar-se a comitente pelos actos da comissária.
Como notado no projecto primitivo, já, por exemplo, se julgou que "não é praticado no exercício de funções o acto do vigilante de empresa que participa na subtracção fraudulenta de cheques da própria empresa " (16).
Referível o disposto no art.500º ao nº2º do art.483º, adita-se o que segue, com referência ao outrossim invocado nº1º deste último, previsão relativamente à qual consabidamente vale o disposto no nº1º dos arts.342º e 487º (cfr. também nº2º deste último), todos do C.Civ. :
No plano da responsabilidade subjectiva por culpa in eligendo a que aparentemente se alude nas conclusões 12ª a 14ª (17) , bastará notar que, sem cabimento, nesse âmbito, sempre fácil juízo ex post facto, em todo o caso, não constam do elenco dos factos provados elementos susceptíveis de servir de base a fundado juízo ou conclusão a esse respeito. O mesmo vem, em último termo, a valer em relação à igualmente arguida omissão de cuidados que, ao contrário do que em geral sucede em relação à guarda dos cartões de débito e à reserva ou segredo do competente código, nada especialmente fazia prever que fossem necessários, por forma a justificar-se juízo de ou conclusão por culpa in vigilando, outrossim aludida nas conclusões 15ª e 16ª.
Presente o princípio da eficácia relativa dos contratos que decorre do art.406º, nº2º, C.Civ., nada, por fim, se vê que adiante ou atrase à resolução da causa a consideração de eventual responsabilidade contratual perante terceiro a que alude a conclusão 17ª.
Alcança-se, na conformidade do exposto, a decisão que segue :
Nega-se a revista, com custas pelos recorrentes.
Lisboa, 2 de Março de 2006
Oliveira Barros (relator por vencimento)
Araújo de Barros (voto de vencido) Revogaria o acórdão recorrido porque considero, como aliás defendi no projecto que, como relator, tinha elaborado que deve entender-se que a funcionária da ré, com a categoria de trabalhadora de limpeza, encarregada da limpeza do escritório da autora, e a quem aquela proporcionou o ingresso no referido escritório de forma periódica, que, durante as horas de serviço de limpeza, se apoderou de um cartão Multibanco que se encontrava guardado dentro de uma gaveta e do código do referido cartão, utilizando-o para efectuar movimentos para pagamento de compras e para levantamento de dinheiro, retirando da conta bancária, praticou tais factos ilícitos no exercício ou por causa do exercício das suas funções, ocorrendo, pois, em tal caso, a responsabilização da comitente, nos termos do art. 500º, nº 2, do C.Civil.
Salvador da Costa
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(1) Se a actividade do comissário lhe aproveita in utilibus, deve também sofrer-lhe as consequências in damnosis. Trata-se, afinal, de uma aplicação do princípio fundamental de justiça que se exprime na máxima ubi commoda, ibi incommoda.
(2) Ac. STJ de 12/7/2001, no Proc.nº 1981/01 da 6ª Secção (relator Silva Salazar ).
3) " Das Obrigações em Geral ", I, 6ª ed. (1989), 611 e 612.
(4)Mota Pinto, " Teoria Geral do Direito Civil " (1980), 207 e 208.
(5) Antunes Varela, ob., vol., e ed.cits, 611, nota 2.
(6) Pires de Lima e Antunes Varela, " Código Civil Anotado ", I, 4ª ed. (1987), com a colaboração de M. Henrique Mesquita, 509.
(7) Almeida Costa, " Direito das Obrigações ", 5ª ed. (1991), 500.
(8) Face ao regime instituído pelo art. 500º do C.Civil, que afastou a doutrina da culpa in eligendo, o comitente não é visado por qualquer presunção de culpa : ele é, pura e simplesmente, responsável. Cfr. Menezes Cordeiro, " Direito das Obrigações ", 2º ( 1990 ), 377.
(9) Jorge Ribeiro de Faria, " Direito das Obrigações ", II ( 1990 ), 11 e 19/20.
(10) Heinrich Hörster, " A Parte Geral do Código Civil Português " ( 1992 ), 395.
(11) Ac. STJ de 25/02/93, no Proc.nº 82071 da 1ª Secção (relator Dionísio Pinho ).
(12) Ac. STJ de 19/10/76, BMJ 260/155 ( relator Ferreira da Costa ).
(13) Ac. STJ de 25/11/75, BMJ 251/167 ( relator Acácio de Carvalho ).
(14) Ut Menezes Cordeiro, ob., vol. e ed,cits,. 372 e 373.
(15) Ligeiras, no geral, de mera forma ou estilo, as alterações introduzidas, só daqui em diante se deixa de praticamente transcrever o adiantado no projecto do primitivo relator.
(16) Ac. STJ de 31/1/2002, no Proc.nº 701/01 da 2ª Secção (relator Moura Cruz ).
(17) E que, como visto - cfr. nota 8, não se presume.