CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO
NOTIFICAÇÃO ADMONITÓRIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
SENTENÇA
Sumário

1. Para que o credor possa resolver o contrato promessa, desonerando-se da sua prestação, torna-se necessário, em princípio, que a prestação da outra parte se tenha tornado impossível, por facto imputável ao devedor (artigo 801º, nº1, do Código Civil), ou seja, quando haja incumprimento definitivo imputável ao devedor".
2. Só no caso de o credor perder o interesse na prestação ou de esta não ser realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, é que se considera para todos os efeitos não cumprida a obrigação, com o consequente direito potestativo de resolução, por impossibilidade culposa (artigo 801º, nº 1, e 808º, nº 1, do Código Civil)".
3. Verificada esta perda de interesse na prestação por parte de um dos promitentes, considera-se que o outro faltou definitivamente à promessa, ficando o promitente cumpridor na titularidade de um poder potestativo à resolução do contrato (artigo 808º), com as consequências estabelecidas no artigo 442º, nº 2, em termos de restituição ou perda do sinal -que será em dobro se o faltoso for o promitente vendedor e em singelo se for o promitente comprador.
4. Com efeito, desde que um dos promitentes esteja em mora relativamente à celebração do contrato definitivo, o outro poderá notificá-lo, concedendo-lhe um prazo razoável para o cumprimento, sob pena de considerar definitivamente não cumprido o contrato -notificação admonitória (artigo 808º, nº 1).
5. Traduz jurisprudência firme que o S.T.J., como tribunal de revista, apenas controla a decisão de direito, não lhe competindo reexaminar a decisão de facto, salvo nos casos previstos no nº 2 do art. 722º do C.P.C., entendimento que, aliás, decorre expressamente do disposto no art. 26º da L.O.F.T.J..
Se a Relação entendeu tirar, ou não tirar, dos factos assentes, as ilações que, no dizer da recorrente, deles deveriam, ou não, extraídas, tal entendimento, porque situado no âmbito dos factos materiais da causa, escapa à censura do Supremo, que tem de o aceitar.
6. A antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em causa matéria de direito ou de facto, deva o juiz atalhar imediatamente e optar pela prolação de um despacho saneador-sentença, quando o estado do processo possibilitar tal decisão, sem necessidade de mais provas, e, independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. "Empresa-A" interpôs acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra AA e BB e marido CC, pedindo se declare resolvido o contrato-promessa celebrado com os RR., por culpa destes, e se condenem os RR. a pagar à A. a quantia de € 249.398,94, correspondente à restituição do sinal em dobro, ou, subsidiariamente, a pagar-lhe a quantia de € 124.699,47, a título de devolução do sinal em singelo, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação.
Alegou, resumidamente, que em Novembro de 1999 celebrou um contrato promessa de compra e venda de um imóvel com os RR., o qual foi anulado, tendo sido substituído por outro que foi celebrado em 16.03.2000. Neste último, a A. prometeu comprar e os RR. prometeram vender um prédio urbano, pelo preço de € 922.776,10, tendo entregue estes, a título de sinal, a quantia global de € 124.699,47. A A. visava construir cinco blocos individuais de edifícios no terreno prometido adquirir. No contrato promessa em causa ficou estabelecido que os RR. se comprometiam a, no prazo de 90 dias a contar da emissão do certificado de viabilidade de construção, entregar à A. toda a documentação necessária para a realização da escritura, o que não sucedeu.
Ao impossibilitarem desta forma a realização da escritura dentro do prazo certo estipulado no contrato, incorreram os réus em incumprimento contratual definitivo. Sem prescindir, durante a mora dos RR., verificou-se a alteração dos pressupostos impostos pela Câmara Municipal, com a consequente inadequação do projecto de arquitectura aos novos requisitos. A Câmara exige agora o loteamento do terreno, o que implica custos acrescidos, não previstos aquando da celebração do contrato promessa. Assim, estas novas exigências conduzem a uma alteração do equilíbrio contratual e como tal atribuem à A. o direito de resolver o contrato e receber o valor do sinal entregue.

Os RR. contestaram, suscitando a ilegitimidade do 2º R. marido e impugnando a matéria alegada pela A., alegando que cumpriram com o clausulado do contrato promessa, tendo entregue à A. toda a documentação necessária, logo quando da celebração do contrato. Além disso, nunca a A. os interpelou para apresentarem qualquer documento ou para outorgarem a escritura. Negam que tenha havido alteração das circunstâncias, uma vez que a lei é a mesma e como tal, a A. já deveria saber que a construção que pretendia estava sujeita a loteamento.
Deduziram ainda pedido reconvencional, pedindo o reconhecimento do direito a fazer sua a quantia entregue pela A. a título de sinal. Invocam, como fundamento, que a A. se recusou a cumprir o contrato promessa.

A A. replicou, reafirmado o já dito na p. i. e contestando o pedido reconvencional, alegando que o incumprimento contratual é imputável aos RR., e ainda que os RR., se não opuseram à resolução do contrato por alteração das circunstâncias.

Os RR., ainda treplicaram, mantendo a sua versão dos factos.

Foi admitido o pedido reconvencional.
O 2º R. marido foi julgado parte legítima.

Foi proferida sentença que julgou a acção e a reconvenção improcedentes, absolvendo os RR. do pedido e a A. do pedido reconvencional.
Inconformados, quer a Autora, quer os Réus interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que, por Acórdão de 21.4.2005, julgou a apelação da A. improcedente e confirmou, nessa parte, a sentença. Por sua vez, julgou a apelação dos Réus procedente e revogando, parcialmente, a sentença, julgou a reconvenção procedente e reconheceu que as Rés tinham direito a fazer sua a quantia de 25.000.000$00 recebida a título de sinal e princípio de pagamento, por via do contrato promessa em causa nos autos.

De novo inconformada, veio a Autora interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua alegação pela seguinte forma:

1. Entende a Recorrente que os autos dispunham ainda na fase em que se encontravam de elementos bastantes quer permitissem, sem recurso à produção de prova, a prolacção de uma decisão segura sobre o mérito da causa.

2. Atendendo à fundamentação da sentença da 1ª instância e do douto acórdão ora recorrido e analisada a matéria fáctica alegada nos articulados das partes por confrontação aos pedidos neles formulados, resulta que emergem várias soluções plausíveis de direito aplicáveis à causa, as quais eram susceptíveis de reconduzirem a uma solução diferente, acaso o Dign.º Tribunal ponderasse pela produção de prova.

3. A matéria fáctica constante dos autos não se coadunava com uma simplicidade tal que arvorasse, na fase do saneador, a formulação de um juízo sem que fossem discutidos em audiência de julgamento aspectos que se pretendiam com a questão de aferir dos actos praticados pelas partes, e sua relevância, conducentes à resolução do contrato promessa que as vinculava.

4. O Dign.º Tribunal da Relação ao confirmar a sentença de 1ª instância conformou-se com a omissão de factos relevantes e olvidou outros que foram alegados, limitando-se a apreciar o mérito da causa com base em deduções correntes das peças processuais, suprimindo a indagação fáctica que poderia sustentar a resposta a questões relevantes conectadas directamente com a (im)procedência da resolução do contrato.

5. O douto acórdão violou os art.s 508º, nº1, al. b) e nº3 e art. 510º, nº 1, al. b) e 513º do C.P.C. quando não revogou a sentença recorrida em ordem a determinar a remessa dos autos à primeira instância para prosseguimento dos seus ulteriores trâmites, designadamente, para fixação da matéria assente e da base instrutória ou para determinação de um despacho liminar de aperfeiçoamento.

SEM PRESCINDIR

6. Ainda que assim não se entenda, o que apenas por dever de patrocínio se equaciona, sempre decorre, com o devido respeito, que também o Tribunal da Relação não ponderou devidamente a matéria de facto que lhe foi apresentada, tendo feito uma equivocada interpretação e incorrendo em errada subsunção dos factos ao direito.

7. Pois, os RR. constituíram-se em mora por não terem fornecido à A. os documentos de que esta necessitava para proceder à marcação da escritura, inviabilizando a realização desta dentro do prazo certo estipulado no contrato promessa; prazo este limite e absoluto, pois que, o prazo de 90 dias consubstancia um prazo absoluto e essencial para que se tivesse celebrado o contrato de compra e venda do imóvel.

8. E a mora dos RR. motivou a perda de interesse na prestação, havendo, assim, incumprimento definitivo, com o consequente direito potestativo de resolução do contrato-promessa, nos termos do art. 808º do C.C., com a consequente prestação do dobro do sinal entregue (art.442º do C.C.).

9. Quanto à perda de interesse há que reiterar que tal critério, avaliado objectivamente, apresenta conteúdo essencialmente variável, pois reporta-se às utilidades concretas que a prestação proporciona, o que importava apurar, designadamente, aferindo das influências da mora repercutidas na alteração das circunstâncias que fundaram a vontade de contratar, factos este, descurado pelo Dign.º Tribunal que, também, quanto a este aspecto, aluiu em incorrecta subsunção dos factos ao direito.

10. Pois, foi justificada uma alteração anormal das circunstâncias em virtude da Autora para concretizar o seu Projecto de construção imobiliária ter de, obrigatoriamente, proceder a loteamento do terreno, à realização de infra-estruturas autónomas com instalação de pontos de iluminação, arruamentos e cedências ao domínio público, em função dos diversos lotes que pretendesse construir, circunstâncias, que não eram previsíveis aquando da outorga do contrato promessa.

11. Tais circunstâncias implicam para a A. avultados custos e prejuízos que , a obrigar-se ao cumprimento do contrato, conduziriam de forma gravosa a uma alteração do equilíbrio contratual e à excessiva e desmedida onerosidade da prestação da Recorrente, revelando-se ofensivo da boa-fé que deve pautar as relações contratuais.

12. Em suma, existindo insuficiências da matéria de facto que não foram colmatadas com recurso a um aperfeiçoamento de articulados, importava aferir de melhor prova para apreciação dos pedidos deduzidos.

13. Que conduziria a outra solução de direito, mormente, à declaração de resolução de um contrato-promessa que ambas as partes em litígio reconhecem como estando prejudicado o seu cumprimento.

14. Impondo-se, tão só, averiguar das sanções/efeitos derivados de tal resolução e contrapô-los aos pedidos formulados, determinando a procedência/improcedência dos mesmos de acordo com a ingerência das partes para o incumprimento do contrato em discussão nos autos, dirimindo o conflito existente entre os litigantes.

15. O Dign.º Tribunal incorre ainda em errada interpretação do espírito da norma do art. 236º do C.C, quanto expressa o entendimento de que a A. destruiu a relação negocial quanto dirigiu à R. a carta de 7.11.2001;

16. Não se extrai do teor das cartas de fls. 39/40 e 41/42 dos autos, qualquer declaração da parte da A. de proceder à resolução do contrato e, muito menos, se manifesta a recusa peremptória a cumprir, mas sim, a intenção de, em conjunto, equacionarem uma solução satisfatória para ambas as partes, ponderando as graves consequências resultantes da alteração das circunstâncias em que se fundou a vontade de contratar.

17. De forma que, o Dign.º Tribunal da Relação do Porto ao condenar a A. nos termos consignados na douta decisão que ora se recorre, incorreu em errada interpretação do direito aplicável, cuja fundamentação, aliás, se encontra em oposição com os demais elementos dos autos que reclamavam produção de prova para um cabal esclarecimento do mérito da causa.

18. Assim, o douto acórdão sob recurso violou os artigos 508º, nº 1, al.b) e nº3 e art.510º, nº1, al. b) e 513º todos do C.P.Civ. e ainda os artigos 236º, 437º, 804º, 805º, e 808º, todos do Código Civil.

Nas contra alegações, as recorridas defendem a manutenção do julgado.

Foram colhidos os vistos.

Decidindo.

2. Foi considerada provada, pelas Instâncias, a seguinte factualidade:

1º. A A. é uma sociedade comercial que se dedica à construção civil.
2º. No âmbito da sua actividade, a A. tem por objectivo proceder à compra de terrenos com vista à construção de prédios urbanos em regime de propriedade horizontal e vertical, para posteriormente vender.
3º. A A. celebrou com os RR. um acordo escrito, em 16.03.2000, nele prometendo comprar e estes últimos prometendo vender o prédio sito na Rua da Igreja, nº 413, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 37006 a folhas 98 do Livro B- 95 e inscrito na matriz sob o artigo 159 urbano e omisso à matriz com participação efectuada em 30 de Novembro de 1998, a parte do terreno que se encontrava inscrita sob o artigo 1647º rústico pelo preço de € 922.776,10, conforme o teor do documento de fls. 24 a 29 que aqui se dá por reproduzido.
4º. A título de sinal, a A. entregou aos RR. a quantia global de € 124.699,47.
5º. Nesse contrato estipulou-se que a celebração da escritura definitiva de compra e venda seria efectuada após a emissão da certidão de viabilidade de construção passada pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia e antes de se submeter à mesma Câmara o projecto de arquitectura dos cinco blocos previstos. O prazo máximo entre a emissão da viabilidade de construção e a entrega do projecto de arquitectura, seria de noventa dias, período em que os RR. teriam de entregar toda a documentação necessária para a realização da escritura, cabendo à A. informar do local, data e hora onde a mesma se realizaria, com a antecedência de oito dias.
6º. Por carta de 07.11.2001, a A. comunicou aos RR. o que consta dos documentos de fls. 39 a 42, que aqui se dão por reproduzidos.
7º. Por carta de 28.8.2002, a A. comunicou aos RR. o que consta dos documentos de fls. 43 a 46, que aqui se dão por reproduzidos.

3. - Análise do objecto da revista -

É sabido que a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto representem corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal "ad quem" possa ou deva conhecer ex offício.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal "a quo", além de que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas - e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito - de todas as "questões" suscitadas com relevância para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Posto isto, vejamos.

São, fundamentalmente, cinco as questões levantadas na alegação de recurso, a saber:
- necessidade do prosseguimento dos autos, a fim de permitir uma decisão de mérito conscienciosa, face às várias soluções plausíveis da questão de direito e não a prolação de uma decisão de fundo no despacho saneador;
- a essencialidade do prazo fixado pelas partes, no contrato-promessa;
- a temática relativa à objectividade da perda do interesse;
- a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a vontade de contratar; e
- a reacção da recorrente à procedência do pedido dos Réus reconvintes.

No que se refere à primeira questão que vem levantada, os recorrentes não têm razão na sua arguição, mas, de forma idêntica à exarada no Acórdão recorrido, só, a final, isto é, depois de apreciados os restantes pontos elencados, é que será oportuno o seu conhecimento.

No que se refere à temática do cumprimento ou incumprimento do contrato promessa e consequente perda de interesse na prestação, procedendo a um enquadramento, necessariamente sintético, diga-se, numa primeira abordagem, que é pacífico na doutrina e na jurisprudência que o incumprimento do contrato-promessa tem de ser aferido pelas regras gerais do não cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 808º do C.Civil.
Assim sendo, não basta que, havendo sido estipulado um prazo para a celebração do contrato prometido, um dos promitentes não o tenha respeitado e não haja, por isso, outorgado o contrato definitivo. Num caso desses, sendo a prestação ainda possível, entrar-se-à apenas numa situação de mora ou atraso no cumprimento da prestação , prevista nos artigos 804º, nº2, e 805º, nº 2. Tal incumprimento ainda não definitivo basta para que possa haver lugar a execução específica do contrato-promessa (artigo 830º, nº 1), mas é insuficiente para fundamentar a sua resolução contratual.
Com efeito, (1) para constituir fundamento de resolução do contrato e poder servir de justificação à reposição do sinal em dobro, o incumprimento culposo, equiparável à impossibilidade da prestação imputável ao devedor, tem de ser definitivo. Como se escreve no Acórdão do S.T.J., 2ª Secção, de 13-02-97 (Recurso nº457/96), "para que o credor possa resolver o contrato, desonerando-se da sua prestação, torna-se necessário, em princípio, que a prestação da outra parte se tenha tornado impossível, por facto imputável ao devedor (artigo 801º, nº 1, do Código Civil) ou seja, quando haja incumprimento definitivo imputável ao devedor".
Também já se decidira no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 2 de Novembro de 1989, no B.M.J., nº 391, págs. 538 e segs., que "só no caso de o credor perder o interesse na prestação ou de esta não ser realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, é que se considera para todos os efeitos não cumprida a obrigação, com o consequente direito potestativo de resolução, por impossibilidade culposa (artigo 801º, nº1, e 808º, nº 1, do Código Civil)".
Na verdade, para além das situações de não observância de prazo fixo absoluto, contratualmente estipulado, o carácter definitivo do incumprimento do contrato-promessa verifica-se nas três hipóteses seguintes (2):
a) se, em consequência de mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação;
b) se, estando o devedor em mora, o credor lhe fixar um prazo razoável para cumprir e, apesar disso, aquele não realizar a prestação em falta;
c) se o devedor declarar inequívoca e peremptoriamente ao credor que não cumprirá o contrato.
No que se refere à primeira situação, a perda do interesse não pode resultar de um simples capricho do credor. Dir-se-à apenas que a superveniente falta de utilidade da prestação, ou até eventual prejuízo para o "accipiens" terá que resultar objectivamente das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio - (artigo 808º, nº 2), bem como das que, posteriormente, venham a condicionar a sua execução. Não bastando, no entanto, a simples diminuição do interesse do credor, exigindo-se, antes, uma perda efectiva desse interesse. Ou seja, impõe-se "uma perda subjectiva do interesse com justificação objectiva" (3).
Verificada esta perda de interesse na prestação por parte de um dos promitentes, considera-se que o outro faltou definitivamente à promessa, ficando o promitente cumpridor na titularidade de um poder potestativo à resolução do contrato (artigo 808º), com as consequências estabelecidas no artigo 442º, nº 2, em termos de restituição ou perda do sinal -que será em dobro se o faltoso for o promitente vendedor e em singelo se for o promitente comprador.
No que se refere, agora, à segunda situação apontada, nesse caso, e desde que um dos promitentes esteja em mora relativamente à celebração do contrato definitivo, o outro poderá notificá-lo, concedendo-lhe um prazo razoável para o cumprimento, sob pena de considerar definitivamente não cumprido o contrato- notificação admonitória (artigo 808º, nº1. Interpelação admonitória que deve conter três elementos: (a) Intimação para o cumprimento; (b) Fixação de um termo peremptório com dilação razoável para o cumprimento; (c) Cominação de que a obrigação se terá como definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.
Trata-se de uma solução que melhor se ajusta àqueles casos em que o credor ainda não perdeu de todo o interesse na prestação, mas tal interesse já diminuiu em parte. Esta interpelação cominatória terá de ser feita em termos claros e peremptórios - normalmente por carta registada com aviso de recepção ou por notificação judicial avulsa - de modo a que o interpelado fique bem ciente do sentido dessa declaração e das consequências resultantes no caso de não vir a ser atendida.

Finalmente, a terceira situação em que pode ocorrer incumprimento definitivo independentemente de mora ou de interpelação, é aquele em que um dos promitentes, mantendo-se a prestação ainda possível, declara ao outro, inequívoca e categoricamente, que não cumprirá o contrato. Em face de uma intenção tão claramente expressa por um dos contraentes no sentido de que não vai honrar o compromisso, a jurisprudência tem entendido não se justificar a fixação de um prazo razoável para cumprir. O recurso à notificação admonitória representaria, então, um acto inútil e uma pura perda de tempo, motivo por que se considera tal notificação substituída por aquela declaração antecipada de não cumprimento.

Apreciemos a situação em apreço, à luz dos princípios enunciados.

Resulta da factualidade assente que:

"Nesse contrato estipulou-se que a celebração da escritura definitiva de compra e venda seria efectuada após a emissão da certidão de viabilidade de construção passada pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia e antes de se submeter à mesma Câmara o projecto de arquitectura dos cinco blocos previstos. O prazo máximo entre a emissão da viabilidade de construção e a entrega do projecto de arquitectura, seria de noventa dias, período em que os RR. teriam de entregar toda a documentação necessária para a realização da escritura, cabendo à A. informar do local, data e hora onde a mesma se realizaria, com a antecedência de oito dias".
Pelo que acabou de ser referido "supra", mesmo considerando que os recorridos não tinham entregue à ora recorrente a necessária documentação à efectivação da escritura pública, e que aqueles, face ao clausulado no contrato, se encontrassem numa situação de mora, para que esse retardamento da prestação, se convertesse em incumprimento definitivo, nos termos do citado art. 808º, nº1 do C.Civil, necessário se tornava que a promitente compradora tivesse fixado aos promitentes vendedores um prazo admonitório.
Com efeito, desde que um dos promitentes esteja em mora relativamente à celebração do contrato definitivo, o outro poderá notificá-lo, concedendo-lhe um prazo razoável para o cumprimento, sob pena de considerar definitivamente não cumprido o contrato - notificação admonitória (artigo 808º, nº1).
Só, então, verificada essa perda de interesse na prestação por parte de um dos promitentes, se pode considerar que o outro faltou definitivamente à promessa, ficando o promitente cumpridor na titularidade de um poder potestativo à resolução do contrato (artigo 808º), com as consequências estabelecidas no artigo 442º, nº 2, em termos de restituição ou perda do sinal -que será em dobro se o faltoso for o promitente vendedor e em singelo se for o promitente comprador.
Ora, na situação em apreço, não resultou provado, porquanto não foi alegado, que a Autora, ora recorrente, fixasse aos Réus um prazo adicional, admonitório, que convertesse a (eventual) mora em incumprimento definitivo, não podendo consequentemente o mesmo recorrente resolver o contrato.
Como, de resto, conforme, igualmente se salienta na decisão recorrida e se referiu, também, "supra", a perda do interesse não pode resultar de um simples capricho do credor. Dir-se-à apenas que a superveniente falta de utilidade da prestação, ou até eventual prejuízo, para o "accipiens" terá que resultar objectivamente das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio - (artigo 808º, nº 2), bem como das que, posteriormente, venham a condicionar a sua execução. Não bastando, no entanto, a simples diminuição do interesse do credor, exigindo-se, antes, uma perda efectiva desse interesse. Ou seja, impõe-se "uma perda subjectiva do interesse com justificação objectiva".
Ora, os factos alegados pela Autora, ora recorrente, apenas conduzem à invocação da eventual mora dos Réus, pela não entrega da documentação para a outorga da escritura, jamais levaria à alegação de quaisquer factos que nos conduzissem à perda do interesse na prestação, por banda do recorrente, e, como tal, não ocorreria a possibilidade de poder vir a resolver o contrato promessa, com esse fundamento.
Com efeito, é, conforme bem referem os recorridos, na sua contra alegação, a recorrente "não factualiza o interesse".
No que ora se refere à eventual alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a vontade de contratar, mais nada há a acrescentar ao constante no douto Acórdão recorrido e para aí se remete:

"A este propósito a A. alude à necessidade posterior de loteamento e de realização de infra-estruturas, com o que não contava, o que implica custos acrescidos e não era previsível quando da outorga do contrato promessa.
(...)
Para justificar a imprevisibilidade da obrigatoriedade do loteamento, a A. afirma no art. 29º da réplica que «o projecto arquitectónico consistia na edificação de apenas um único edifício o qual seria composto por cinco entradas ou blocos ligados entre si e uma cave comum para aparcamento automóvel».
No entanto, a mesma A., na p.i., no art.34º, afirmou que «o presente contrato previa uma área de construção acima de 8.480m2 para cinco blocos individuais sendo dois blocos de r/c e dois andares e três blocos de r/c e três andares».
A convergência de vontades das partes foi feita com base na realidade retratada na p.i.. No 1º. contrato promessa, de Novembro de 1999, fez-se constar sob o nº 3 que o preço estipulado era de 220.000.000$00, tendo em vista uma área de construção acima do solo de 10.472 m2 que, se viesse a ser substancialmente alterada por exigência da CMVNG, levaria a uma correcção do valor apurado mediante a diferença de áreas, ao preço de 22.000$00/m2 (cfr. nº 4).
No contrato subsequente, de 16.3.2000, já se fez constar sob o nº3 que o preço estipulado era de 185.000.000$00, valor que prevê uma área de construção acima do (solo) de 8.480 m2 para cinco blocos individuais, (...), conforme planta topográfica (que) fica anexa a este contrato com implantação dos referidos blocos, planta esta que fará parte integrante deste contrato, (...) (cfr. nº 4).
A planta topográfica em causa, junta a fls. 29 é fotocópia do original de fls. 33, tendo sido emitida pelo Departamento de Planeamento Urbanístico da CMVNG em 7.2.00, ao pronunciar-se sobre a viabilidade de construção, tendo sido nela que as partes estabeleceram a vontade de contratar, tendo até, por via dela, alterado o preço da compra e venda em relação ao primitivo contrato promessa.
Sob a menção de 'Destino' aí se refere 'Loteamento - P.I.P.'
E não e só pela referida menção que isso se revela. Também pelo desenho propriamente dito, no qual os edifícios não aparecem num único bloco, a dispensar o loteamento, mas devidamente individualizados, cada um em seu lote, com cedência de área para arruamento, atentos os limites da propriedade devidamente assinalados.
Essa planta foi junta pela A., que nela se baseou para o 2º contrato promessa, conforme expressamente nele refere, mencionando-se a área de construção admitida pela autarquia e os blocos individuais.
Ora, em vez de se confinar nos limites da capacidade - cfr. ofício do director do Departamento de Urbanismo de fls. 32, que remete para a planta topográfica - fazendo um projecto com 8.480 m2 acima do solo, a A. propôs uma área de 9.400m2, isto é praticamente, mais 1.000m2: E não respeitou outros requisitos legais e já decorrentes da planta que lhe fora fornecida contendo o estudo urbanístico pelo qual tinha de se pautar - cfr comunicação de fls. 34 e 35 do mesmo Departamento de Urbanismo. Terá querido, em consonância com o que alegou na réplica e atrás se transcreveu, construir um só edifício com cinco entradas e cave comum, assim ultrapassando aquilo que a Câmara assumira ser possível e a que, ela própria, estava vinculada, em termos de capacidade construtiva para o terreno em causa.
Podemos, pois, concluir, que não houve alteração das circunstâncias em que as partes estabeleceram a vontade de contratar. Antes houve a vontade da A. de não observar a capacidade construtiva que lhe tinha sido fixada no parecer de viabilidade, pretendendo aumentar a volumetria, como também de não respeitar as exigências legais, nomeadamente a que impõe o loteamento, o que devia saber que lhe não seria permitido".

Concorda-se, pois, por inteiro, com a decisão recorrida, já que pode ser imputado aos recorridos o facto da Autora, ora recorrente, ter incumprido as directrizes que sobre a capacidade construtiva do imóvel estão legalmente consignadas, conforme resulta do supra referenciado ofício do director do Departamento de Urbanismo de fls.32.
No atinente à reacção da recorrente à procedência do pedido dos Réus reconvintes, temos a considerar que as Instâncias consideraram como provado que as cartas dirigidas pela Autora à Ré em 7.11.2001 (fls.39 a 42) manifestaram a vontade de não contratar, de não cumprir o contrato promessa, invocando a alteração de circunstâncias como razão para o incumprimento.
A recorrente discorda que das cartas de 7.11.2001 se tenha retirado a conclusão de que a Autora se recusara a cumprir o contrato promessa.
Trata-se, na perspectiva da ora recorrente, de um erro na apreciação da prova dos documentos juntos de fls. 39 a 42.

Ora, traduz jurisprudência firme que o S.T.J., como tribunal de revista, apenas controla a decisão de direito, não lhe competindo reexaminar a decisão de facto, salvo nos casos previstos no nº 2 do art. 722º do C.P.C., entendimento que, aliás, decorre expressamente do disposto no art. 26º da L.O.F.T.J..
Se a Relação entendeu tirar, ou não tirar, dos factos assentes, as ilações que, no dizer da recorrente, deles deveriam, ou não, ser extraídas, tal entendimento, porque situado no âmbito dos factos materiais da causa, escapa à censura do Supremo, que tem de o aceitar (4).
Não pode, assim, o S.T.J. sindicar o entendimento feito pela relação, segundo o qual as cartas dirigidas pela Autora às Rés em 7.1.2001 (fls. 39 a 42), dadas como provadas pelas Instâncias, manifestam a vontade de não contratar, isto é, de não cumprir o contrato promessa, invocando tão somente, a alteração das circunstâncias como motivo para o incumprimento.
Assim, a conclusão ou a ilação retirada pela Relação a partir de determinada factualidade dada como provada, não pode, consequentemente ser apreciada na revista, razão pela qual não se pode censurar que tenha procedido a reconvenção, a partir do momento que se decidiu e cita-se:
"Com efeito, nas cartas de fls. 39/40 e 41/42, datadas de 7.11.2001, a A. afirma que face à exigência de loteamento pela câmara, não está interessada no imóvel, apesar de estar na disposição de, em conjunto solucionarmos de forma consensual o assunto, 'que passará pela devolução do sinal já entregue'.
Naturalmente que quis dizer que tudo voltava à situação anterior ao contrato, tendo os RR. que lhe devolver o sinal (art. 236º do CC), embora os termos em que isso havia de suceder fossem passíveis de negociação.
Entendemos, pois, que a A. destruiu a relação negocial".

Uma nota final para referenciar que, face ao que vem ser sustentado, é, por demais evidente que não havia qualquer razão que levasse a que ocorresse a instrução do processo, com a precedente fase da organização da factualidade assente e base instrutória, já que, considerando a forma como foi deduzida a petição inicial jamais poderia proceder a acção pelo que o Ex.mo Juiz da 1ª Instância tinha todos os elementos para proferir uma decisão conscienciosa.
A decisão no despacho saneador, com base no normativo constante da al. b) do nº1 do art. 510º do C.P.C., tem como substrato a forma como foi gizada a acção, nomeadamente como foi redigida a petição inicial e a reacção que os demandados empreenderam face ao então alegado, nos restantes articulados de oposição.
Já a consideração que o julgador deve ter com as várias soluções plausíveis da questão de direito reporta-se, de harmonia com a lei, para a selecção da matéria de facto relevante (art. 511º nº 1 do C.P.C.).
Assim não assiste razão à recorrente, quando sustenta que a tomada de decisão não deveria ter sido ocorrido no despacho saneador, pois que a acção poderia conduzir a que o pleito pudesse ser decidido de diversas maneiras, já que também seriam as diferentes formas de decidir a questão de direito.
Seria assim se o processo não estivesse apto para que pudesse ser tomada uma decisão conscienciosa, mas estando-o, face à maneira como as partes desenharam a acção, o juiz tinha de decidir no despacho saneador, pois que, na perspectiva em que a acção foi decidida, mais nenhum facto com relevância se mostraria necessário que fosse trazido aos autos.

Ou, no dizer de Abrantes Geraldes (5), à semelhança do que decorria da anterior redacção do preceito (hoje, art. 510º nº1, al. b) ), a antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em causa matéria de direito ou de facto, deva o juiz atalhar imediatamente e optar pela prolação de um despacho saneador-sentença, quando o estado do processo possibilitar tal decisão, sem necessidade de mais provas, e, independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes.
Não havia, consequentemente razão para que o processo tivesse prosseguido, quando, repete-se, se encontrava já preparado para que fosse proferida a decisão final.
Improcede, pois, o recurso.

4. Nestes termos, acordam, no Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando o Acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 7 de Março de 2006
Borges Soeiro
Pinto Monteiro
Faria Antunes
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(1) Vide, o Ac. do S.T.J. de 27.11.2001 (Relator Cons. Garcia Marques), in "WWW.dgsi.pt JSTJJ00001978, que seguiremos muito de perto.
(2) Ac. do S.T.J. de 27.11.2001, já citado.
(3) Vide, neste sentido, ac. do S.T.J. de 15.10.2002, in "C.J./S.T.J.", III, pag. 92 e segs.
(4) Ac. do S.T.J. de 4.12.2003, Proc. 03B2742/ITIJ/Net.
(5) In, "Temas da Reforma do Processo Civil", 2ª. ed., vol.II, pag.134.