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SOCIEDADE ANÓNIMA
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
Sumário
I - O art. 409, nº2, do C.S.C. veio consagrar a prevalência dos interesses da sociedade em relação terceiros, quanto aos actos praticados pelo administradores fora dos limites impostos pelo objecto societário .
II - Em tais situações, desde que se mostre registada a cláusula relativa ao objecto social, a sociedade não se considerará vinculada, se o terceiro conhecer que o administrador excedeu esses limites .
III - Mas semelhante cautela não foi expressa quanto à intervenção dos administradores, em representação da sociedade, resultando do mencionado art. 409, nº1, a vinculação da sociedade anónima pelos actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos limites que a lei lhes confere, não obstante as limitações constantes do pacto social que não se reportem ao objecto social .
IV- Aos interesses da sociedade ou dos titulares do respectivo capital sobrepõem-se os de terceiros que com a sociedade se relacionam, mantendo-se a validade dos efeitos jurídicos dos actos outorgados em nome da sociedade, dentro dos limites do objecto social, apenas por um dos administradores, ainda que sem a intervenção de outro ou outros, exigida pelos estatutos .
V- É claro que fica salvaguardado á sociedade o direito de responsabilizar o administrador que interveio sem os demais, pelos danos causados, nos termos do art. 72 da C.S.C., bem como o direito dos sócios agirem directamente, em conformidade com o disposto no art. 77 do mesmo diploma .
VI - Há união ou coligação de contratos com dependência, quando dois contratos, embora diferenciados, estão unidos exteriormente, porque há entre eles um laço de dependência, em que as partes querem a pluralidade desses contratos como um todo, como um conjunto económico, envolvendo um nexo funcional entre eles .
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :
Em 13-2-02, Empresa-A, instaurou a presente acção ordinária contra a ré Empresa-B (onde foi incorporada, por fusão, a primitiva ré Empresa-C), pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 34.915,85 euros, acrescida de juros legais, desde a citação .
Alega, em resumo, o incumprimento, pela ré, de um contrato de prestação de serviços, através do qual esta se obrigou a solicitar à autora um conjunto de serviços que esta lhe prestaria, durante os anos de 1997 e 1998, no mínimo de 2080 horas .
Ao não solicitar à autora os serviços que a ré se havia comprometido a solicitar, aquela sofreu prejuízos, no valor do pedido .
A ré contestou, dizendo que o compromisso por ela assumido ficou consagrado como uma simples faculdade e não como uma obrigação, tendo sido tacitamente revogado pelas partes.
Acrescenta que, de qualquer modo, o contrato não vincula a autora, pois os respectivos estatutos exigem a intervenção de dois administradores para que aquela vinculação ocorra e o contrato vertente só se encontra assinado por um dos administradores, o que conduz à ineficácia do negócio, por ser concluído por um administrador que actuou como representante sem poderes.
Houve réplica.
Na audiência preliminar, a ré declarou revogar o invocado negócio, por a autora não ter procedido à ratificação do mesmo contrato, no prazo que lhe foi concedido pela ré, na contestação .
Por despacho de fls 107, foi decidido não ser admissível a revogação do contrato, pretendida pela ré .
- quer pelo facto do contrato de prestação de serviços estar assinado apenas por um administrador não constituir, sem mais, representação sem poderes ;
- quer por não se verificarem os pressupostos de que o art. 268, nº4, do C.C. faz depender o direito potestativo de revogação do negócio,
- quer ainda porque a propositura desta acção implica a ratificação, pela autora, do mesmo negócio .
A ré recorreu deste despacho .
O recurso foi admitido como agravo, com subida diferida, tendo sido objecto de alegações, contra-alegações e despacho de sustentação .
Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou acção improcedente e absolveu a ré do pedido .
Apelou a autora, mas a sem êxito, pois a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 27-9-05, negou provimento à apelação e considerou prejudicado o conhecimento do agravo .
Continuando inconformada, a autora pede revista, onde resumidamente conclui:
1 - A ré não cumpriu o contrato, estando em situação de incumprimento culposo, por não ter solicitado à autora a prestação de serviços acordada.
2 - Não existe qualquer união de contratos entre os negócios de prestação de serviços e de compra e venda de acções, quer sob a forma de união interna, união alternativa ou união externa .
3 - Não existe nenhuma cláusula no contrato de prestação de serviços que mencione alguma relação com o contrato de compra e venda de acções, nomeadamente fazendo-o depender de alguma condição, requisito ou pressuposto .
4 - Uma sociedade e o seu administrador são pessoas jurídicas distintas.
5 - O ex-administrador da recorrente, aquando do contrato de compra e venda de acções, não actuou como seu administrador, mas sim a título pessoal .
6 - Mesmo que assim não fosse, estaríamos perante um acto nulo, na medida em que esta suposta união de contratos serve apenas para satisfazer os interesses do ex-administrador e não da sociedade.
A ré contra-alegou em defesa do julgado e, para a hipótese de procedência do recurso, pede a apreciação do agravo .
Corridos os vistos, cumpre decidir :
Com interesse para a decisão, foram considerados provados os factos seguintes :
1- No dia 20-12-96, a autora e a ré celebraram o contrato constante do documento escrito de fls 9 e 10, cujo teor aqui se dá por reproduzido, donde consta, além do mais, o seguinte :
" Considerando que :
a) - a Empresa-C necessita, para si própria, para disponibilização às suas participadas ou para empresas por si indicadas, de serviços de consultadoria, desenvolvimento, implementação e assistência técnica de soluções de comunicação interactiva, baseadas em tecnologias multimédia;
b) - a Empresa-A reúne os meios e as competências técnicas necessárias à prestação destes serviços ;
c) - a Empresa-C beneficiará destes serviços, mediante o pagamento de facturação emitida no âmbito deste contrato, em conformidade com a natureza, o grau de complexidade e o tempo despendido nos trabalhos efectuados,
é celebrado e reciprocamente aceite o presente contrato de prestação de serviços que se rege pelas cláusulas seguintes :
Cláusula primeira :
A autora Empresa-A prestará à Empresa-C, durante os anos de 1997 e 1998, um conjunto de serviços de desenvolvimento e consultadoria, tal como enumerados na cláusula segunda, mediante o pagamento de remuneração fixada na cláusula terceira.
Cláusula segunda:
1- A Empresa-C ou entidade por esta designada irá contratar à Empresa-A, no decurso dos anos de 1997 e 1998, um mínimo de 2080 horas, de trabalho de técnicos, com perfil de engenheiro licenciado com competência na área dos sistemas de informação .
O valor de 2080 horas é calculado com base no valor de 13 técnicos por mês, correspondendo um mês a 20 dias/ 8 horas /dia = 160 horas, o que perfaz um total de 13 técnicos/160 horas / mês = 2 080 horas.
Os serviços específicos a obter, sem prejuízo de outras tarefas que se inscrevam normalmente no objecto do presente contrato, poderão incluir :
...
2- A SII compromete-se adicionalmente a fazer deslocar às instalações da Empresa-C, ou de entidade por ela designada, todos os elementos dos seus quadros, especializados nas matérias acima descriminadas, que sejam necessários ao bom cumprimento do presente contrato .
Cláusula terceira :
1. A Empresa-C pagará à Empresa-A a quantia de 900.000$00 por cada período de 160 horas / mês, acrescida de IVA, à taxa legal em vigor .
2. As quantias indicadas no nº1 desta cláusula serão facturadas mensalmente, devendo o pagamento das mesmas ser efectuado no prazo de 30 dias, a contar da data da respectiva factura.
3. Todas as despesas referentes a deslocações e alojamento dentro da zona da Grande Lisboa ficam por conta da Empresa-A .
.. ".
2- Até 20 de Dezembro 1996, a sociedade autora foi participada pela anterior Empresa-C, tendo esta última 9.500 acções, com o valor nominal de 1.000$00 cada, representativas de 47,5% do capital social daquela ( à data fixado em 20.000.000$00 ) .
3 - Por contrato igualmente datado de 20-12-96, foi celebrado o contrato de compra e venda de acções, a que se refere o documento de fls 23 a 25, em que figura como vendedora a ré Empresa-C e como comprador AA, accionista da autora, donde consta o seguinte, na parte que agora interessa :
" Considerando que :
a) - A Empresa-C é dona e legítima possuidora de 9.500 acções nominativas, no valor nominal de 1 000$00 cada uma, representativas do capital da Empresa-A ...
b) O segundo outorgante, sendo o principal promotor da Empresa-A, está interessado em reforçar a sua participação no capital social desta e, pela referida qualidade, está em condições de garantir e efectivamente garante que esta sociedade celebrará com a Empresa-C um contrato de prestação de serviços, responsabilizando-se pessoalmente pelo incumprimento deste mesmo contrato ;
é celebrado e reciprocamente aceite o presente contrato nos termos das cláusulas seguintes :
Cláusula 1ª :
1- Pelo presente contrato, e pelo preço global de 11.750.000$00, a Empresa-C vende ao segundo outorgante e este compra à Empresa-C 9.500 acções nominativas, representativas do capital social da Empresa-A, no valor nominal de 1.000$00 cada uma .
2- ....
....
7- Qualquer alienação de acções objecto deste contrato por parte do 2º outorgante, que venha a ocorrer até 31 de Dezembro de 1998, a terceiros que não quadros da Empresa-A, obrigará à liquidação do remanescente valor em dívida, à data dessa transacção, por parte do 2º outorgante, sem prejuízo do disposto nos nºs 3 e 4 da cláusula 3ª do presente contrato .
Cláusula 2ª :
...
Cláusula 3ª :
1...
2...
3ª - Enquanto não estiver integralmente pago o preço destas mesmas acções, o 2º outorgante não poderá vendê-las ou por qualquer outra forma aliená-las, nem onerá-las, ou deliberar qualquer operação do aumento do capital social da Empresa-A, que resulte na perda da maioria absoluta do capital social da Empresa-A que o segundo outorgante irá deter, após a assinatura deste contrato, salvo prévio acordo escrito da Empresa-C, sem prejuízo do disposto no número seguinte .
4 - O previsto no número anterior não prejudica ainda a possibilidade do 2º outorgante poder vir a alienar a terceiros as acções que agora adquire, desde que estes terceiros assumam o cumprimento das obrigações resultantes do presente contrato e ofereçam garantias que sejam consideradas e aceites como idóneas pela Empresa-C para o perfeito e pontual cumprimento dessas mesmas obrigações, libertando-se, neste caso, a responsabilidade do accionista vendedor, relativamente à obrigação de pagamento do preço em falta respeitante a essas mesmas acções ".
4 - O preço da venda dessas acções, de acordo com o que ficou combinado, deveria ser pago por duas formas :
a) - uma primeira componente, no valor de 4.750.000$00, a liquidar pelo comprador em sete prestações, a primeira das quais se vencia em 30 de Junho de 1997 e a última em 30 de Dezembro de 1995:
b) - uma segunda componente, no valor remanescente de 7.000.000$00, seria liquidada, na proporção do recebimento pela sociedade Empresa-A, de 11.750.000$00, provenientes de trabalhos de prestação de serviços, a realizar por esta Empresa-C, num total de 2 080 horas.
5- Foi ainda estabelecido no nº5, da cláusula 1ª, do mesmo contrato de compra e venda que "fica expressamente consignado que a rescisão ou incumprimento por parte da Empresa-A, seja por que forma for, do contrato de prestação de serviços acima mencionado, legitimará a Empresa-C a exigir de imediato, o pagamento do preço proporcional, correspondente aos serviços ainda por prestar, ao abrigo do mesmo contrato, ficando o 2º outorgante expressa e pessoalmente responsável pelo cumprimento do mesmo e pelas consequências do seu incumprimento .
6 - O referido accionista AA também era um dos administradores da autora .
7- O contrato de prestação de serviços foi celebrado pela autora e pela ré como um recurso que permitiria ao administrador da autora o pagamento do preço devido por si, relativamente ao aludido contrato de compra e venda de acções .
8 - Desta forma e por contas que seriam acertadas entre a autora e o seu administrador, este pagaria à ré o remanescente do preço em função das verbas que a sociedade Empresa-A auferisse por virtude do contrato dos autos .
9 - Ficou entendido entre as partes do contrato de compra e venda de acções que a componente do valor remanescente do preço de 7.000.000$00 seria liquidada se e quando a Empresa-C contratasse à autora os serviços referidos em 1.
10 - De forma que, para a Empresa-C, essa operação representaria um simples acerto de contas entre a autora, o administrador desta e a ré .
11 - Tendo sempre, como suporte substantivo, a realização efectiva de serviços que tivessem sido prestados pela autora.
12 - Este contrato de prestação de serviços foi assinado apenas pelo dito administrador AA .
13 - Os estatutos da autora dispõe que o conselho de administração desta é composto por três elementos e que a sociedade se obriga pela assinatura de dois administradores .
14 - Apesar de no documento escrito que titula o contrato indicado no anterior nº1 se referir expressamente que a sociedade autora se encontrava representada por dois administradores, o certo é que apenas um deles ( o indicado AA) assinou e subscreveu tal contrato.
15 - As 2 080 horas de trabalho a que se reporta a cláusula 1ª do contrato indicado no anterior nº1 correspondiam a 11.750.000$00.
16 - A ré não solicitou serviços à autora, nomeadamente os referidos no contrato mencionado no nº 1.
17 - A autora teria obtido lucros, em montante que, em concreto, não foi possível apurar, se a ré lhe tivesse solicitado os mencionados serviços .
18 - O lucro desse serviços destinava-se a permitir ao administrador da autora pagar o remanescente da segunda componente do preço, no valor de 7.000.000$00, tendo sido com essa finalidade que foi celebrado o denominado contrato de prestação de serviços, outorgado entre a autora e a ré, naquele dia 20-12-96.
19 - A ré não indemnizou a autora .
20 - A autora tem vindo a reduzir a sua actividade, que é, agora, inexistente.
21 - A autora, directamente ou por intermédio do seu administrador, nunca solicitou à ré que encomendasse os serviços a que se reporta o denominado contrato de prestação de serviços .
22- Nunca mais a autora sequer solicitou à Empresa-C informação sobre o momento da encomenda de tais serviços.
23 - A falta de poderes de representação do administrador era conhecida da ré .
24 - O dito administrador não liquidou nenhuma das prestações a que se havia comprometido para com a Empresa-C, em resultado do negócio de compra e venda de acções, começando pela primeira delas, vencida em 30 de Junho de 1997.
25 - A Empresa-C instaurou contra o dito comprador AA uma acção declarativa de condenação no pagamento da citada quantia de 4.750.000$00, acrescida de juros .
26 - Nessa acção, que não foi contestada, o mencionado réu foi condenado no pedido .
Vejamos agora o mérito do recurso :
1.
Uma primeira questão que se suscita respeita à apreciação da validade e eficácia do ajuizado contrato de prestação de serviços, por ter sido subscrito apenas por um administrador da autora, quando o pacto social exigia a intervenção de dois administradores para vincular a sociedade.
O art. 409, nº1, do Código das Sociedades Comerciais dispõe o seguinte :
"Os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais deliberações estejam publicadas".
Assim, por este preceito, os poderes representativos dos administradores das sociedades anónimas ficam imunes às restrições ou limitações que os accionistas pretendam estabelecer, quer logo no contrato de sociedade, quer depois por meio de deliberações .
Todavia, apesar de ser esta a regra geral, o nº2, do mesmo art. 409, abre-lhe uma excepção, ao estabelecer:
" A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, de que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade não o assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos accionistas ".
Mas esta excepção abrange apenas as limitações dos poderes dos administradores resultantes do objecto social .
Como defende Raúl Ventura ( Sociedades por Quotas, III, págs 175/176), em comentário ao art. 260 do C.S.C. ( preceito equivalente ao do citado art. 409 para as sociedades por quotas), uma mais extensa inoponibilidade, por forma a abranger outras espécies de limitações que constem do contrato de sociedade ou resultem de deliberações dos accionistas, não decore daquele art. 409, nº2.
Tal significa que o art. 409, nº2, veio consagrar a prevalência dos interesses da sociedade em relação a terceiros, quanto aos actos praticados pelos administradores fora dos limites impostos pelo objecto societário .
Em tais situações, desde que se mostre registada a cláusula relativa ao objecto social, a sociedade não se considerará vinculada, se o terceiro conhecer que o administrador excedeu esses limites .
Mas semelhante cautela não foi expressa quanto à intervenção dos administradores, em representação da sociedade, resultando do mencionado art. 409, nº1, do C.S.C., a vinculação da sociedade anónima pelos actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos limites que a lei lhes confere, não obstante as limitações constantes do pacto social que não se reportem ao objecto social .
Verifica-se uma forte corrente doutrinal e jurisprudencial no sentido de atribuir primazia aos interesses de terceiros, relegando-se para as relações internas as consequências inerentes ao eventual desrespeito das regras da representatividade constantes do pacto social, assim se acolhendo o propósito do legislador expresso no parágrafo 23 do preâmbulo do dec-lei 262786, que aprovou o Código das Sociedades Comerciais ( Ilídio Rodrigues, Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas, 1990, pág. 69, nota 95; Ricardo Candeias, Os Gerentes e os Actos de mero expediente ; ROA, Ano 60-280, Pedro Albuquerque, Vinculação das Sociedades Comerciais por Garantias de Dívidas a Terceiros, R.O.A., Ano 55-389; Luís Serpa de Oliveira, ROA, Ano 59-389, Ac. S.T.J. de 3-5-95, Bol. 447-520; Ac. S.T.J. de 8-6-99, Bol. 488-371; Ac. S.T.J. de 17-2-00, Bol. 494- 367, Ac. S.T.J. de 23-11-00, proferido na rev. 2493/00, da 7ª Secção ; Ac. S.T.J. de 13-5-04, proferido na revista nº 1289/04- 6ª, este último relatado pelo ora relator ) .
A previsão da intervenção conjunta de vários administradores, para vinculação da sociedade, assegura melhor os interesses da sociedade e dos sócios .
Todavia, a violação desse dever por qualquer os gerentes apenas produz, em regra, efeitos internos .
O regime em vigor, assim interpretado, visa acautelar fundamentalmente os interesses de terceiros, atenuando o risco de serem confrontados com situações em que a representação aparente não coincide com as regras estatutárias ou com as deliberações entretanto tomadas pelos sócios .
Na composição abstracta dos conflitos de interesses que podem derivar do exercício ilegítimo de funções de representação, o legislador inclinou-se para a protecção de terceiros, por serem eles que se defrontam como maiores dificuldades no conhecimento concreto das regras de representatividade da sociedade .
Aos interesses da sociedade ou dos titulares do respectivo capital sobrepõem-se os de terceiros que com a sociedade se relacionam, mantendo-se a validade dos efeitos jurídicos dos actos outorgados em nome da sociedade, dentro dos limites do seu objecto social, apenas por um dos administradores, ainda que sem a intervenção de outro, exigida pelos estatutos .
É claro que fica salvaguardado à sociedade o direito de responsabilizar o administrador, que interveio sem os demais, pelos danos causados, nos termos do art. 72 do C.S.C., bem como o direito dos sócios agirem directamente, em conformidade com o disposto no art. 77 do mesmo diploma .
Tanto basta para se poder concluir que, não obstante a previsão estatutária da necessidade de intervenção de dois administradores para vincular a sociedade, aqui autora, a intervenção de apenas um deles em representação desta, como foi o caso, basta para vincular a autora e conferir validade e eficácia ao contrato de prestação de serviços que foi celebrado entre ela e a ré, pois o administrador moveu-se dentro dos limites impostos pelo respectivo objecto social .
2.
Questão diversa é a de saber se houve incumprimento culposo do invocado contrato de prestação de serviços, por parte da ré, e se tal incumprimento causou danos à autora, de que esta deva ser indemnizada .
Ora, os ajuizados contratos de compra e venda de acções e de prestação de serviços são contratos diferenciados, conservando cada um deles a sua individualidade .
Mas estão unidos exteriormente, porque há entre eles um laço de dependência .
As partes querem a pluralidade desses contratos como um todo, como um conjunto económico, que envolve um nexo funcional entre eles .
É o que se chama a união ou coligação de contratos, com dependência (Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 2002, pág. 475/476 ).
Esse nexo ou vínculo de dependência entre ambos os contratos, celebrados na mesma data, consiste no facto de uma parte do preço (7.000.000$00) das acções adquiridas à ré, pelo AA, dever ser pago através de serviços que a mesma ré iria solicitar à autora, de quem o indicado comprador das acções era accionista.
Com efeito, para além do que expressamente já consta do contrato de compra e venda de acções, quanto ao pagamento do preço, resultou provado o seguinte :
- o contrato de prestação de serviços foi celebrado pela autora e pela ré como um recurso que permitiria ao accionista da autora AA o pagamento do remanescente do preço por si devido (7.000.000$00), relativamente à aludida compra das acções ;
- dessa forma e por contas que seriam acertadas entre a autora e o comprador das acções ( que ao tempo também tinha a qualidade de administrador da autora), este pagaria à ré aquele remanescente do preço, em função das verbas que a mesma autora auferisse por virtude do contrato de prestação de serviços;
- ficou entendido entre as partes do contrato de compra e venda que essa componente do preço seria liquidada se e quando a ré contratasse à autora os mencionados serviços ;
- de forma que, para a ré, essa operação representaria um simples acerto de contas entre a autora, a ré e o comprador das acções, tendo sempre, como suporte substantivo, a realização efectiva de serviços que tivessem sido prestados pela autora.
Pois bem .
A ré incumpriu o contrato de prestação de serviços, por não ter contratado, nem solicitado à autora, no decurso dos anos de 1997 e 1998 as 2080 horas de trabalho de técnicos, com perfil de engenheiro licenciado, com competência técnica na área dos sistemas de informação, a que se refere a cláusula 2ª do mencionado contrato de prestação de serviços .
Pressuposto da obrigação da ré de indemnizar a autora por tal incumprimento contratual é que esta tenha sofrido qualquer dano .
Ora, a autora não suportou qualquer dano ou prejuízo, como consequência daquele incumprimento .
Com efeito, apenas se apurou que a autora teria obtido lucros, em montante não concretamente apurado, se a ré lhe tivesse solicitado os mencionados serviços, e que o lucro desses serviços se destinava a permitir ao comprador das acções pagar à ré o remanescente da segunda componente do preço das mesmas acções por ele adquiridas, no valor de 7.000.000$00, tendo sido com essa finalidade que foi celebrado o denominado contrato de prestação de serviços (pontos nºs 17 e 18 do elenco dos factos provados ).
Tendo as acções sido adquiridas pelo AA, em nome individual, para ingressarem no seu património pessoal, e não na qualidade de administrador da autora e em representação desta, é obvio que a responsabilidade do pagamento do preço é uma responsabilidade pessoal do comprador AA e não da sociedade autora.
Como os lucros dos serviços iam ser afectos nesse pagamento, a autora, enquanto sociedade, não retiraria, para si, qualquer proveito ou vantagem económica .
Só o comprador AA beneficiaria desse proveito, ao pagar com os lucros desses serviços a parte remanescente do preço das acções que adquiriu para si (7.000.000$00), preço esse que, assim, continua em dívida .
Daí que, embora com diversa fundamentação, o recurso não possa deixar de improceder .
Termos em que negam a revista .
Custas pela recorrente .
Lisboa, 14 de Março de 2006
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Afonso Correia