EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário

A sentença homologatória de partilha constitui título executivo para os herdeiros a quem foi adjudicado determinado bem em processo de inventário exigirem a sua entrega ao herdeiro que estiver na detenção do mesmo bem, salvo se a partilha ressalvar a existência de outro direito inconciliável com a entrega.

Texto Integral

Reg. nº 220.
Apelação nº 4216/08.3TBVNG-A.P1
Tribunal recorrido: Juízo de Execução de Vila Nova de Gaia
Relatora: Maria Catarina Ramalho Gonçalves
Adjuntos: Dr. Filipe Manuel Nunes Caroço
Drª Teresa Maria dos Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, C…, D… e E… (representada pelos seus herdeiros), melhor identificados nos autos, intentaram execução para entrega de coisa certa contra F…, residente na Rua …, nº …, R/C Direito, Vila Nova de Gaia, pedindo a entrega de uma fracção que foi adjudicada aos Exequentes pela sentença que constitui o título executivo e onde, segundo alegam, a Executada reside, sem qualquer título.

A Executada veio deduzir oposição à execução, alegando que a sentença dada à execução não constitui título adequado para lhe exigir a entrega da fracção, porquanto essa sentença limitou-se a homologar a partilha efectuada em processo de inventário, processo este que não teve por objecto averiguar a que título a Executada ocupava o imóvel em causa e alegando ainda que ocupa a referida fracção ao abrigo de um contrato de arrendamento verbal que foi celebrado em 1982 com o seu avô, G….

Os Exequentes contestaram, alegando que: a Executada foi parte interessada no inventário onde foi proferida a sentença dada à execução e nunca aí suscitou a questão do arrendamento que agora vem invocar; conforme acordo constante de documento particular – que juntam aos autos – a Executada comprometeu-se a entregar a referida fracção aos Exequentes, caso não pretendesse adquiri-la até 16/08/2006; este documento constitui título executivo e, procedendo agora à sua junção, sanam a falta de título que foi invocada pela Executada; nunca existiu qualquer contrato de arrendamento, sendo certo que a Executada sempre ocupou a fracção em causa por mero favor e tolerância do seu avô, nunca tendo pago qualquer valor a título de rendas.
Com estes fundamentos, concluem pela improcedência da oposição.

Na sequência da apresentação da contestação, a Executada apresentou requerimento onde pede o desentranhamento do documento junto, como título executivo, na contestação (o que veio a ser indeferido).

Foi proferido despacho saneador e foi dispensada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando improcedente a oposição, determinou o prosseguimento da execução.

Inconformada com tal decisão, a Executada interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1) Por sentença proferida em 13.07.2010, o Tribunal a quo julgou improcedente a oposição à execução deduzida pela ora recorrente e, por conseguinte, mandou determinar o prosseguimento da execução, para entrega do imóvel indicado no requerimento executivo.
2) Com efeito, por acção executiva com data de entrada de 24.09.2008, os ora recorridos peticionaram a entrega do locado sito na Rua …, n.º …, rés-do-chão, direito, …, em Vila Nova de Gaia, tendo por base uma sentença proferida no âmbito do processo de inventário que correu termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 214/04.4TBVNG.
3) Para o efeito, alegaram os Exequentes que a Executada, aqui recorrente, ocupa o imóvel supra identificado sem qualquer título e que esta se comprometeu a entregar o mesmo livre de pessoas e bens, o que ainda não fez, razão pela qual intentaram a competente execução.

A) Da validade da sentença homologatória da partilha como título executivo
4) Resulta da decisão ora impugnada que a sentença homologatória vale como título executivo para pedir a entrega de bens contra o herdeiro que esteja na sua posse porque a adjudicação ao herdeiro ou ao legatário de determinado bem contém implícita a condenação do interessado que estiver na sua posse à entrega, do que não se concede.
5) A adjudicação dos bens em sede de inventário não se confunde com a posse dos bens em causa, pois que, por via da adjudicação, determina-se, tão-­somente, quem será o proprietário da fracção em causa a partir de determinada altura, não pondo em causa a posse que outros herdeiros possam ter sobre o imóvel, desde que titulada
6) A sentença que constitui o título executivo da presente acção executiva limitou-se a homologar "a partilha constante do mapa" - cfr. artigo 1382.º do Código Civil, não se fazendo qualquer referência ao facto de o imóvel se encontrar na posse de terceiros nem, muito menos, a que título se efectiva a mencionada posse.
7) Assim, com o devido respeito, mas considera a recorrente que mal andou o Tribunal a quo ao considerar que a sentença homologatória da partilha constitui título suficiente para lograr a entrega do imóvel supra melhor identificado aos exequentes, pelo que a decisão de que agora se recorre deverá, nesta parte, ser revogada.

B) Da legitimidade da detenção do imóvel por parte da executada
8) Pese embora a executada tenha alegado ser arrendatária do imóvel em causa, o Tribunal a quo considerou que tal facto não ter sido provado, sustentando a sua decisão na contradição de depoimentos das testemunhas.
9) Todavia, considerando a prova produzida em sede de audiência, é evidente que o Tribunal de que se recorre não ponderou, de forma correcta, a prova produzida em sede de audiência de julgamento.
10) A este respeito, deverão ter-se em atenção as transcrições dos depoimentos transcritos nas alegações supra e para as quais se remete na íntegra, e de que resulta, de forma cristalina, que a oponente, ora alegante, celebrou com o seu avô - proprietário originário do imóvel - um contrato de arrendamento.
11) Tudo reconhecido pela mulher do seu avô que afirmou, inclusivamente, que, por diversas vezes, recebeu rendas da ora alegante que entregou àquele.
12) Assim, deverá ser modificada a resposta dada ao facto 8) e, em conformidade, seja dado como provado ter sido celebrado entre a recorrente e o seu avô um contrato de arrendamento (entre os finais de 1985 e o início de 1986), respeitante ao locado sito na Rua …, n.º …, rés-do-chão, direito, …, em Vila Nova de Gaia.
13) Isto tudo apesar de não haver a emissão de recibos dada a relação familiar e de grande proximidade havida entre aqueles.

C) Da validade do contrato de arrendamento
14) Nenhuma dúvida pode restar de que, em relação aos contratos de arrendamento de pretérito (neste caso, celebrado entre 1985 e 1986), é perfeitamente admissível que os mesmos não fossem reduzidos a escrito, pelo que se poderia fazer prova da sua existência por qualquer das vias legalmente admitidas - cfr. os insignes Pinto Furtado, Pires de Lima, Antunes Varela e Pereira Coelho.
15) Tudo corroborado por abalizada jurisprudência de que se deu conta supra e aqui se dá como reproduzida.

Resumindo,
16) Deverá a sentença ser revogada na parte em que admite ser suficiente como título executivo a sentença homologatória da partilha para lograr a entrega do imóvel supra melhor identificado aos recorridos e, em conformidade, ser decretada como procedente a oposição à execução por inexistência de título executivo bastante,
17) Ou ser alterada a resposta dada ao facto 8) e, em conformidade, ser declarado existente, válido e vigente, o contrato de arrendamento celebrado entre a oponente e o seu avô (entre os finais de 1985 e o início de 1986), respeitante ao locado sito na Rua …, n.º …, rés-do-chão, direito, …, em Vila Nova de Gaia, pelo que deverá ser declarado improcedente o pretendido despejo por falta de fundamentos do mesmo.

Os Exequentes/Apelados apresentaram contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso e formulando as seguintes conclusões:
1. A executada, ora, recorrente, insurge-se contra a sentença proferida pelo Mmo. Juíz "a quo", que julgou improcedente a oposição à execução, absolvendo os exequentes e que determinou o prosseguimento da execução para entrega do imóvel indicado no requerimento executivo.
2. Fundamenta a Recorrente o seu recurso na Invalidade da sentença homologatória da partilha como título executivo; na sua legitimidade na detenção do imóvel e na validade de contrato de Arrendamento.
3. Todavia, sem qualquer razão ou fundamento legal, pois a douta sentença proferida pelo Mmo. Juiz "a quo", não é susceptível de qualquer reparo ou censura.
4. Andou bem o Mmo. Juiz "a quo" ao considerar a Sentença homologatória da partilha como título executivo contra a Executada, ora Recorrente, sendo desprovido de qualquer fundamento o alegado pela Recorrente no que a este aspecto concerne.
5. Apesar do Inventário não ser uma acção de condenação, o certo é que a sentença homologatória da partilha fixa, definitivamente, após o seu transito em Julgado, o direito dos interessados, nomeadamente quanto aos bens que lhe foram adjudicados.
6. Se houver recusa da entrega de tais bens por um interessado que esteja na posse dos bens aos herdeiros adjudicatários, a sentença homologatória de partilhas servirá de título executivo para obter tal entrega.
7. Neste sentido e para além dos acórdãos e referências doutrinárias a que o Mmo. Juiz "a quo" faz referência em sede de fundamentação de sentença, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.11.1992, disponível em texto integral na base de dados do ITIJ, in www.dgsi.pt 8. Como bem refere a sentença recorrida é hoje pacífico na doutrina e jurisprudência que a "sentença homologatória da partilha vale como título executivo para pedir a entrega dos bens contra o herdeiro que esteja na sua posse"
9. Se assim não fosse, não faria qualquer sentido o disposto no artigo 52.º do C.P.C., designadamente o disposto no nº l al. d) da referida disposição legal.
10. Ao considerar a sentença homologatória da partilha como titulo executivo válido contra a executada, ora recorrente, o Mmo. Juiz a quo, fez uma boa aplicação da lei, não se descortinando a violação de qualquer norma jurídica.
11. Talvez, por essa razão, a recorrente não cuidou de fazer menção às normas jurídicas violadas nas suas conclusões de recurso.
12. É pois, de improceder a pretensão da recorrente no que a este aspecto concerne, devendo ser mantida a sentença.
13. Andou bem o Mmo. Juiz "a quo" ao dar como não provado o contrato de arrendamento verbal a que a ora recorrente faz alusão no seu requerimento de oposição à execução, assim como, na apreciação dos factos e fundamentação da douta sentença, não se vislumbrando qualquer erro na apreciação das provas.
14. Ao longo do Julgamento denotaram-se manifestas contradições entre o depoimento de parte da executada e as testemunhas apresentadas pela mesma, pelo que, as passagens de depoimento transcritas pela recorrente, não são susceptíveis de abalar a boa apreciação da prova e decisão do Mmo. Juiz “a quo” na resposta dada à matéria de facto, nomeadamente no artigo 8.º da Petição Inicial.
15. Considerada a totalidade da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e particularmente, o documento junto aos autos a fls. 30 e 31, cuja letra e assinatura não foram impugnadas pela executada / recorrente, onde esta, se obrigou perante os recorridos a entregar devoluta a fracção autónoma dos autos, caso não procedesse à compra da referida fracção até 16/08/2006, ao Mmo. Juíz "a quo" não era possível responder de forma diferente ao artigo 8.º da matéria da Petição Inicial.
16. Isto porque, se a recorrente fosse realmente arrendatária da fracção, jamais teria assinado o referido documento, obrigando-se, pelo mesmo, a entregar a fracção livre e devoluta aos recorridos a partir de determinada data.
17. Em face da assinatura pela recorrente do documento de fls 30 e 31, a oposição à execução da executada com a alegação da existência de um contrato de arrendamento sob a fracção bem como o seu depoimento de parte prestado em audiência de discussão e julgamento, constitui um verdadeiro venire contra factum proprium, que consubstancia um nítido abuso de direito, que se invoca expressamente para todos os efeitos legais.
18. Acresce, que, a recorrente não fez prova da existência de qualquer recibo de renda que lhe tenha sido emitido pelo avô, G…;
19. Não fez prova do pagamento das rendas aos exequentes, ora, recorridos;
20. Não fez prova de ter depositado as rendas relativas ao invocado arrendamento na H… à ordem da herança aberta por óbito do Avô G… ou à ordem dos recorridos;
21. sendo parte interessada no processo de partilha e estando patrocinada por mandatário, jamais invocou ou alegou ser arrendatária da fracção adjudicada aos recorridos;
22. em sede de partilha, jamais mostrou interesse na fracção de que diz ser arrendatária, tendo acordado receber outros bens imóveis como quinhão.
23. Tudo factos que confirmam a inexistência de qualquer contrato de arrendamento da recorrente sobre a fracção dos recorridos e a ilegitimidade da mesma na detenção do imóvel.
24. São inócuas as alegações de direito da recorrida, quanto à validade do contrato de arrendamento.

/////
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
● Saber se a sentença homologatória de partilha constitui ou não título executivo para o efeito de um dos herdeiros exigir a outro a entrega dos bens que ali lhe foram adjudicados;
● Saber se existiu erro na apreciação da prova e se, em função disso, importa alterar, e em que termos, a decisão da matéria de facto;
● Saber se, em face da matéria de facto provada – eventualmente alterada na sequência da decisão da questão anterior – é possível concluir pela existência de um contrato de arrendamento válido que obste à entrega da fracção aos Exequentes.
/////
III.
Na 1ª instância foi considerada provada a seguinte matéria de facto:
1. Por sentença proferida a 4/7/2006 no inventário nº 214/04.4TBVNG, agora apenso a estes autos, pacificamente transitada em julgado, que homologou a partilha, foi adjudicada aos exequentes a verba relacionada como nº 16, composta por uma fracção autónoma designada pela letra "E", sita no rés do chão direito do edifício sito na Rua …, nº …, em …, concelho de Vila Nova de Gaia.
2. Nessa habitação reside a oponente.
3. Alguns meses após a morte do seu avô, G…, a executada tentou entregar à viúva daquele, I..., a quantia de € 50,00, mediante o envio de cheque.
4. Esse cheque foi devolvido, também por missiva, à executada.
5. A executada não tem pago a referida quantia aos exequentes, os quais também não lhe exigiram a realização de tal pagamento.
6. Exequentes e executada assinaram, com data de 16/2/2006, o que denominaram declaração de compromisso, na qual declararam os primeiros, na qualidade de comproprietários da fracção autónoma acima referida, comprometer-se a vender à segunda o referido imóvel, pelo valor de €37.500,00, até 16/8/2006, mais ficando mencionado que, findo tal prazo, sem que esteja efectivada a escritura de compra e venda, devendo nessa data a declarante compradora entregar devoluta a fracção autónoma.
/////
IV.
Apreciemos, pois, as questões suscitadas no recurso.

A presente execução fundamenta-se na sentença que homologou a partilha a que se procedeu por óbito de G…, no âmbito de um processo de inventário que correu termos no 2º Juízo Cível de Vila Nova de Gaia, sob o nº 214/04.4TBVNG, importando referir que essa partilha – por via da qual o imóvel em causa nos autos foi adjudicado aos Exequentes – foi efectuada por acordo de todos os interessados, onde também se incluía a Executada.
E a primeira questão suscitada pela Apelante resume-se a saber se essa sentença constitui ou não título executivo para efeitos de exigir à Executada/Apelante a entrega do imóvel que ali foi adjudicado aos Exequentes.
A aptidão da sentença homologatória de partilha para fundamentar o processo de execução tem vindo a ser admitida, em termos gerais, pela doutrina e pela jurisprudência, considerando-se para o efeito que essa sentença é uma sentença condenatória para os efeitos previstos no art. 46º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil[1].
Argumenta a Apelante que a adjudicação dos bens em sede de inventário determina apenas quem será o proprietário da fracção em causa a partir de determinada altura, não pondo em causa a posse que outros herdeiros possam ter sobre o imóvel, desde que titulada e, por essa razão, não constitui título executivo para obter a entrega dos bens adjudicados.
Não nos parece que lhe assista razão.
É verdade que a sentença homologatória de partilha não contém, em princípio, qualquer apreciação sobre a posse ou o direito que os demais herdeiros ou terceiros possam ter sobre os bens que fazem parte da herança, sendo que, através da partilha e subsequente sentença homologatória, o que se pretende é, acima de tudo, definir e repartir a propriedade dos bens.
Mas, não obstante esse facto, a adjudicação dos bens – homologada na sentença – contém implícita a condenação na entrega do bem – condenação essa a incidir sobre o cabeça de casal ou herdeiro que detiver a respectiva posse –, pelo menos nos casos em que não é feita qualquer menção (na relação de bens ou em qualquer acto do inventário) a qualquer outro direito que exclua a entrega do bem ao interessado a quem foi adjudicado.
Com efeito, a detenção dos bens da herança pelo cabeça de casal ou por qualquer um dos herdeiros encontra, em princípio e por regra, a sua justificação – assim se devendo presumir – no poder/dever de conservar e administrar os bens da herança até à sua liquidação e partilha. Por isso se faculta ao cabeça de casal o poder de pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e por isso se faculta ao cabeça de casal e aos herdeiros o exercício das acções possessórias com vista a manter a posse dos bens da herança (art. 2088º do Código Civil).
Efectuada a liquidação e partilha da herança, cessam esses poderes gerais de administração, gestão e conservação dos bens e, ficando definidos os direitos de cada um dos herdeiros, cada um deles tem o direito de obter dos demais a entrega dos bens que, na partilha, lhe ficaram a pertencer.
Assim, a sentença homologatória da partilha – ao definir os direitos de cada um dos herdeiros – constitui título bastante para que cada um deles possa exigir a entrega dos bens que lhe foram adjudicados e poderá, naturalmente, exigir essa entrega ao cabeça de casal ou ao herdeiro que tiver a detenção desses bens, a não ser que a própria partilha ressalve a existência de qualquer outro direito que, não obstante a adjudicação, seja inconciliável com a entrega do bem ao interessado a quem foi adjudicado.
Neste sentido, veja-se João António Lopes Cardoso[2], quando escreve:
“Com o trânsito em julgado da sentença que homologou as partilhas fica definitivamente fixado o direito dos intervenientes no processo de inventário (…)
Se os bens atribuídos aos interessados são entregues pelo cabeça de casal ou pela pessoa em cuja posse estiverem…não é necessário provocar de novo a actividade judiciária. Mas se o cabeça de casal ou o detentor se recusam a fazer a aludida entrega…podem os prejudicados forçá-los a cumprir as suas obrigações, a realizar o direito que a sentença de partilhas definiu (…)
Daí a execução da sentença.
O Cód. Proc. Civil actual não regula especialmente a execução das sentenças de partilhas. Mas é óbvio que tais sentenças se incluem no art. 46.º-a), pois são sentenças condenatórias e foi para abranger nesta designação as que impõem a alguém determinada responsabilidade, expressa ou tacitamente, e não só as proferidas em acção de condenação, que neste preceito se substituiu a expressão «sentenças de condenação» por a que nele hoje se contém”.
Naturalmente que – apesar de a partilha nada referir a esse propósito – o herdeiro que está na detenção do bem poderá ter o direito ao respectivo uso (eventualmente, por força de um contrato de arrendamento) e poderá, por isso, recusar a respectiva entrega.
Mas, nem por isso se poderá dizer que essa sentença não constitui título executivo.
A sentença homologatória da partilha constitui título executivo para o efeito de um dos herdeiros exigir ao cabeça de casal ou a qualquer outro herdeiro a entrega dos bens que aí lhe foram adjudicados, por se dever presumir – salvo menção em contrário que conste do próprio inventário – que o cabeça de casal ou o herdeiro que está na detenção do bem, apenas têm a sua detenção por força dessa qualidade e no âmbito dos seus poderes de administração e conservação dos bens da herança. Realizada a partilha e transitada em julgado a sentença que a homologou, cessam os poderes dos herdeiros relativamente aos bens da herança, o que determina a consequente obrigação de entregar esses bens ao herdeiro a quem foram adjudicados e para o qual se transferiram todos aqueles poderes.
Naturalmente que o herdeiro que detém o bem ou bens terá o direito de recusar a sua entrega desde que alegue e prove que a sua detenção não lhe advinha apenas da qualidade de herdeiro, antes lhe advindo de qualquer outro direito ou contrato que, não obstante a realização da partilha, lhe permite continuar na sua posse.
Mas este eventual direito não colide com a exequibilidade da sentença que homologa a partilha, podendo e devendo ser demonstrado em sede de oposição à execução onde, com base nessa sentença, lhe seja exigida a entrega do bem.
Concluímos, pois, em face do exposto, que, tal como se considerou na sentença recorrida, a sentença que homologou a partilha constitui título executivo bastante para o efeito de exigir a entrega do bem, improcedendo a primeira questão suscitada pela Apelante.

Resta saber – e essa é a segunda questão colocada no presente recurso – se a Apelante tem ou não o direito de recusar a entrega do bem aos Exequentes por força do contrato de arrendamento que alega ter celebrado com o então proprietário do imóvel.
A sentença recorrida considerou que não, na medida em que a Executada, ora Apelante, não logrou provar – como era seu ónus – a existência do contrato de arrendamento que invocou.
A Apelante insurge-se contra essa decisão, porquanto, na sua perspectiva, a existência desse contrato deveria ter sido considerada provada.
Ou seja, a Apelante impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto – no que respeita ao facto 8) – considerando que deveria ser dado como provado que, entre finais de 1985 e início de 1986, celebrou com o seu avô um contrato de arrendamento referente ao imóvel em causa nos autos, apoiando essa pretensão no seu depoimento de parte e nos depoimentos das testemunhas, I… e J….
Tal como resulta do disposto no art. 712º nº 1 do Código de Processo Civil, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nas seguintes situações:
“a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida”;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”.
Sendo certo que os depoimentos prestados foram gravados, seria possível alterar a decisão da matéria de facto, nos termos da citada alínea a).
Em tal situação, para que a decisão da matéria de facto possa ser alterada pela Relação é necessário ainda que a decisão proferida com base nos depoimentos gravados seja impugnada, nos termos do art. 685º-B do Código de Processo Civil.
Dispõe esta norma que:
“Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.
A Apelante deu cumprimento aos ónus impostos pelas citadas disposições legais, importando, por isso, reapreciar a prova produzida no que toca ao ponto da matéria de facto que foi impugnado: o facto alegado no 8º da sua oposição que foi considerado “não provado” e que, na perspectiva da Apelante deveria ser considerado provado.
Analisemos, pois, os depoimentos prestados.
A Executada, no seu depoimento de parte, declarou (como era previsível) ter celebrado com o avô um contrato de arrendamento verbal referente à fracção em causa nos autos e por força do qual ocupou essa fracção em finais de 1985 ou inícios de 1986; declara que a renda acordada foi de 10.000$00, nunca foi aumentada e que sempre pagou essa renda ao avô ou à esposa deste (D. I…); declara que o avô nunca lhe passou recibos e que, devidos às ausências frequentes do avô e esposa para o Brasil, juntava as rendas de vários meses e pagava quando eles vinham; declara que após o óbito do avô (em Agosto de 2002) continuou a pagar as rendas à D. I…, sendo certo que esta apenas não recebeu a renda que a depoente pretendeu pagar, por meio de cheque, em Dezembro de 2002; declara que sempre pagou as rendas em dinheiro, sendo que a renda de Dezembro de 2002 (que não foi aceite) foi a única que pretendeu pagar em cheque.
A testemunha, K… (ex-marido da Executada) confirma a existência do arrendamento e o pagamento da renda de 10.000$00. Mais declara – em contradição com o depoimento da Executada – que a renda era paga todos os meses, já que o avô da Executada não estava, em regra, mais de um mês no Brasil.
A testemunha, J… (prima da Executada) declara, no essencial, ter presenciado algumas vezes o pagamento da renda que era de 10.000$00, confirmando o depoimento da Executada e contrariando o depoimento da testemunha K… quando declara que o avô viajava muito e às vezes estava três ou quatro meses no Brasil, razão pela qual as rendas eram, por vezes, acumuladas e pagas após o regresso.
A testemunha, I… (esposa do avô da Executada) confirma a existência do arrendamento e o pagamento das rendas pela Executada, confirmando ainda que não eram emitidos recibos; apesar de confirmar que, em vida do marido, recebeu várias vezes a renda que era paga pela Executada, não conseguiu indicar o respectivo valor. Confirmando, de algum modo, o depoimento da Executada e contrariando o depoimento do ex-marido desta, esta testemunha declara ainda que residiam no Brasil, embora viessem todos os anos a Portugal, passando aqui dois ou três meses e era neste período que a Executada lhes pagava as rendas. Mais declara – contrariando o depoimento da Executada – que, após a morte do seu marido, a Executada não pagou quaisquer rendas e apenas lhe entregou um cheque em Dezembro de 2002, cheque este que a depoente devolveu por considerar que, não sendo dela a casa, não deveria receber a renda.
As demais testemunhas nada declararam de concreto sobre a questão do arrendamento, limitando-se a referir, em termos vagos e genéricos que lhes constava ou ouviam dizer (sem que tivessem conseguido explicar muito bem a quem o ouviam) que a Executada ocupava a casa, a título gratuito.
Que dizer então destes depoimentos?
No que toca ao depoimento da Executada, é evidente que o mesmo se destinava fundamentalmente a provocar a confissão de factos que lhe fossem desfavoráveis, o que não aconteceu. A valoração desse depoimento para efeitos de prova de factos favoráveis à depoente está sujeita à livre apreciação do tribunal, mas, como é evidente, o interesse directo da depoente nos factos que relatou condicionam e limitam fortemente a credibilidade do seu depoimento.
O mesmo se diga relativamente ao depoimento de K… que evidenciou igualmente um interesse directo no desfecho da causa, embora não se consiga perceber qual a razão desse interesse. Com efeito, a testemunha declara que está divorciado da Executada (embora esclareça que esse divórcio ocorreu por uma questão de interesses) e declara que não vive na casa desde 1996, sendo certo, porém, que não conseguimos perceber muito bem se ainda vive ou não com a Executada. De qualquer forma, este depoimento pareceu-nos demasiado interessado e tendencioso – afigurando-se-nos, por isso, pouco credível – quando afirma de forma categórica que nunca houve atrasos nos pagamentos das rendas e que a renda era paga todos os meses, referindo que o avô da Executada nunca estava ausente mais do que um mês, contrariando, nesta parte, os depoimentos da Executada, de I… e de J…, dos quais resulta que essas ausências eram bem mais prolongadas.
Relevante seria o depoimento de I… que, à partida, nos pareceria mais isento e credível (embora seja certo que a ausência de imediação pode viciar a nossa percepção acerca da sua credibilidade), apesar de a aparente credibilidade deste depoimento ser afectada pela circunstância – que não deixa de ser estranha – de esta testemunha não saber sequer indicar qual era o valor da renda, sendo certo que, como declara, várias vezes a recebeu.
De qualquer forma, sem esquecer as contradições existentes entre os vários depoimentos – contradições a que se faz alusão na fundamentação da decisão da matéria de facto e que determinaram a resposta negativa no que toca à existência do referido arrendamento – a verdade é que a existência deste arrendamento não se coaduna bem com outras circunstâncias.
Com efeito, não poderemos deixar de estranhar que, estando em causa um arrendamento que, alegadamente, se mantém há mais de vinte anos, não exista um único documento que o comprove ou que indicie, de alguma forma, a sua existência: não existe um único recibo, não existe um comprovativo de depósito bancário, não existe um cheque. Por outro lado, é no mínimo estranho que, declarando a Executada (e as demais testemunhas mencionadas) que o pagamento da renda sempre foi feito em dinheiro, exista um único pagamento (uns meses após a morte do autor da herança e alegado senhorio) feito em cheque, tendo sido esta precisamente a renda que não foi aceite. Se, durante quase vinte anos, a Executada sempre pagou a renda em dinheiro (e por isso não tem qualquer documento comprovativo desse pagamento), por que razão pagou em cheque a renda de Dezembro de 2002 (que veio a ser recusada)? Não podemos esquecer que, segundo declarou a Executada e a testemunha, I…, o avô da Executada passava, com frequência, alguns meses no Brasil e, nessas circunstâncias, o mais provável seria que as rendas fossem pagas por depósito ou transferência bancária. Mas, contrariando aquilo que, para nós, seria o mais provável, a Executada declara que sempre pagou todas as rendas em dinheiro, não tendo, por isso, qualquer documento que comprove um único pagamento que tenha efectuado durante os vinte anos em que habitou a fracção em causa.
Por outro lado, o comportamento da Executada também não foi o comportamento esperado de uma pessoa que é arrendatária e sempre pagou as rendas, quando é certo que, após a recusa da renda referente a Dezembro de 2002, se remeteu a uma situação passiva, sendo certo que não reagiu, de forma alguma, a tal recusa; não tentou proceder ao pagamento de outras rendas; não tentou proceder ao pagamento a qualquer um dos demais herdeiros e nem sequer procedeu ao depósito das rendas, como normalmente acontece em situações de recusa do senhorio na recepção das rendas.
Também o compromisso assumido pela Executada no documento junto aos autos a fls. 30 e 31 – que, curiosamente, a Executada não se recorda de ter assinado (cfr. depoimento de parte), apesar de não ter impugnado a sua assinatura, na ocasião em que tal documento foi junto aos autos – não se adequa à existência do arrendamento, na medida em que, se a Executada fosse efectivamente arrendatária da fracção em causa, dificilmente se comprometeria – como comprometeu – a entregar a fracção devoluta aos Exequentes, caso não a comprasse até ao dia 16/08/2006. Aliás, ainda que existisse qualquer arrendamento, o compromisso assumido pela Executada nesse documento (correspondente à entrega da fracção) sempre equivalia a uma cessação, por acordo, desse contrato.
Afigura-se-nos, pois, em face do exposto, que os depoimentos prestados – atendendo às contradições neles existentes e às incoerências acima relatadas – não são idóneos para convencer o Tribunal no que toca à efectiva existência do contrato de arrendamento, razão pela qual não nos merece censura a decisão do Sr. Juiz recorrido ao considerar esse facto como não provado.
Mantém-se, pois, a decisão da matéria de facto, improcedendo, nesta parte, as conclusões das alegações do Apelante.

Assim – e como bem se refere na sentença recorrida – não tendo a Executada feito a prova do contrato de arrendamento, teria que improceder a oposição.

Confirma-se, pois, a sentença recorrida
******
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
A sentença homologatória da partilha constitui título executivo para o efeito de um dos herdeiros exigir ao cabeça de casal ou a qualquer outro herdeiro a entrega dos bens que aí lhe foram adjudicados.
/////
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Porto, 2011/06/09
Maria Catarina Ramalho Gonçalves
Filipe Manuel Nunes Caroço
Teresa Maria dos Santos
__________________
[1] Cfr. Eurico Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, pág. 42; Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 2ª ed., pág. 92; Gonçalves Sampaio, A Acção Executiva e a Problemática das Execuções Injustas, 2ª ed., pág. 56 e Acórdãos da Relação do Porto de 09/03/2010, 10/04/2008 e 27/11/2003, com os nºs convencionais JTRP00043684, JTRP00041345 e JTRP00036321, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Partilhas Judiciais, Vol. II, 4ª ed., págs. 534 e 535.