NULIDADE DO CONTRATO
TRESPASSE
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
VALOR
Sumário

I - A questão do cumprimento ou incumprimento dum contrato só se coloca quando assente a validade desse negócio jurídico.

II - Nulo o contrato, não resulta dele qualquer obrigação de cujo cumprimento ou incumprimento se possa falar, a não ser a que decorre do disposto no art.289º, nº1º, C.Civ.

III - Os arts.660º, nº2º, e 668º, nº1º, al.d), CPC referem-se a questões e não a meios de prova, co-mo é o caso dos documentos ( cfr. art.341º C.Civ.).

IV - Entendido como a transmissão definitiva inter vivos, gratuita ou onerosa, da titularidade de estabelecimento comercial, o trespasse importa, em princípio, a transferência, em conjunto, das instalações, mercadorias, utensílios e direitos inerentes à organização empresarial que constitui.

V - O estabelecimento comercial constitui, segundo doutrina tradicional, uma universalidade de direito ( universitas iuris ), um complexo ou unidade económica que integra vários elementos, corpóreos e incorpóreos - bens móveis e imóveis, direito ao arrendamento ou à utilização do espaço, direito de uso do nome do estabelecimento, marcas, patentes de invenção, etc.- organizados para a produção, e uma vez que, como se diz no art 202º, nº1º, C.Civ., " pode ser objecto de relações jurídicas", deve, na realidade, ser entendido como uma coisa.

VI - Enquanto universalidade, o estabelecimento comercial não pode ser decomposto, atomizado, nos seus elementos componentes, mas pode existir desde que haja um núcleo essencial organizativo apto a gerar lucros.

VII - É pressuposto da existência de trespasse a existência de um estabelecimento comercial ou industrial, ou seja, de uma empresa, isto é, de uma estrutura, de um complexo organizado de meios ou factores com um mínimo de autonomia funcional e financeira tal que lhe permita assegurar um processo produtivo ( concebida a produção em sentido amplo, de modo a abranger a produção, não só de bens ou de serviços, mas de qualquer valor acrescentado em termos de circuito económico ) e emergir no mercado enquanto organização técnica e económica autónoma.

VIII - Em caso de trespasse, o direito ao arrendamento - ou, dum modo geral, à ocupação do local - é, em regra, um dos elementos da universalidade transmitida, mas nem por isso, no entanto, pode afirmar-se que a inexistência de um contrato de arrendamento válido faz com que inexista estabelecimento comercial.

IX - O estabelecimento comercial não se confunde com os elementos que o constituem, constituindo uma realidade jurídica distinta da simples soma desses elementos, e daí que o seu valor não seja pura e simplesmente igual à soma dos valores do seu activo considerados à margem da organização, antes implicando o simples facto dessa organização uma valorização especial para cada um desses bens, de tal modo que, enquanto elementos do estabelecimento, valem alguma coisa mais do que valeriam consideradas isoladamente, e também o valor do todo sendo superior ao da soma das suas partes.

X - O excesso do pedido não torna a dívida ilíquida para efeitos do disposto na 1ª parte do nº3º do art.805º C.Civ., em que se contém princípio ( in illiquidis non fit mora ) só exacto para a iliquidez objectiva, isto é, para a que deriva de o devedor não estar em condições de saber quanto deve.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


Em 28/3/2001, AA e mulher BB intentaram na comarca de Armamar acção declarativa com processo comum na forma ordinária contra CC e DD.

Alegaram, em suma, ter celebrado com estes contrato verbal de trespasse dum estabelecimento comercial de vestuário, na convicção de que pertencia em comum aos RR, e de que estes eram casados, e ter-lhes entregue, a título de sinal e início de pagamento, a quantia de 4. 500.000$00, mas que os mesmos se escusaram sempre à outorga de escritura pública desse contrato, tendo os AA tomado então conhecimento de que o contrato de arrendamento do estabelecimento não estava reduzido a escritura pública e de que o trespasse não tinha sido comunicado ao senhorio.

Pretendem que o predito contrato de trespasse celebrado com os RR, nulo por vício de forma, fique sem efeito, reavendo a quantia que lhes entregaram e que estes se recusam a devolver, apesar de instados para esse efeito.

Com estes fundamentos, pediram a condenação dos RR no pagamento da quantia de 4.500.000$ 00, com juros legais desde o dia da interpelação que efectuaram.

Contestando, os demandados excepcionaram a ilegitimidade do Réu por não ser parte no contrato de trespasse firmado com os AA, não sendo os RR, na altura, casados, e sendo o estabelecimento propriedade exclusiva da Ré. Em impugnação, ainda, dos factos aduzidos pelos AA, sustentaram ter-lhes sido mostrada uma cópia do contrato-promessa de arrendamento comercial, por período limitado, do estabelecimento, e que foram estes que se recusaram a outorgar a escritura pública de trespasse. Por outro lado, os AA venderam toda a mercadoria existente no estabelecimento e entregaram o espaço ao senhorio.

Assim, aceitando a nulidade do falado contrato de trespasse e a devolução da quantia recebida, pretendeu a Ré receber, por sua vez, 8.469.473$00 da mercadoria ( incluindo uma margem de lucro de 80% e IVA a 17% ), e 2.472.913$00, do mobiliário, que deixou na loja, e, ainda, o valor do direito ao arrendamento e ao trespasse, que avaliou em 1.500.000$00, montantes esses acrescidos de juros moratórios.

Excepcionou, nessa base, a compensação desses valores até ao montante de 4.500.000$00, e, em reconvenção, pediu a condenação dos AA no pagamento do valor sobrante de 7.942.386$00, com juros moratórios, à taxa legal, desde a data da notificação da contestação.

A título subsidiário, e para o caso de improcedência da excepção peremptória de compensação, pediu a condenação dos AA no pagamento da quantia global de 12.442.386$00, com os juros moratórios já referidos.

Houve réplica.

Em audiência preliminar, admitiu-se o pedido reconvencional e proferiu-se despacho saneador em que se julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva invocada e se afirmou a validade e a regularidade da instância.

Indicados os factos assentes e organizada a base instrutória, veio, após julgamento, a ser proferida, em 11/3/2005, sentença do Círculo Judicial de Lamego que julgou parcialmente procedentes tanto a acção, como a reconvenção.

Em consequência, o Réu foi absolvido do pedido deduzido contra ele.

Absolvidos uns e outra do mais pedido, a Ré foi condenada a pagar aos AA a quantia de 4.500. 000$00, correspondente a € 22.445,91, e estes foram condenados a pagar àquela a de 8.500.000$ 00, correspondente a € 42.397,82, mas, operada compensação entre essas quantias, os AA ficaram condenados a pagar à Ré a importância de 4.000.000$00, correspondente a € 19.951,92, acrescida de juros de mora, à taxa legal sucessivamente vigente, desde o dia 13/5/ 2001 até efectivo e integral pagamento.

A Relação do Porto negou provimento ao recurso de apelação que os AA interpuseram dessa sentença ; e é dessa decisão que vem, agora, pedida revista.

Em remate da alegação respectiva, os AA deduzem as conclusões que seguem, decalcadas, algumas, das oferecidas no recurso de apelação :

1ª - Como permitem os arts.646º, nº4º, e 660º, nº2º, CPC, e em vista, ainda do Acórdão Uniformizador nº14/84, a resposta ao quesito 1º deve ser alterada em conformidade com a alegação dos RR plasmada nos artigos 16º, 17º e 18º da contestação - este último reportando-se a confissão aceite pelos AA.

2ª - Deram-se, ainda, por assentes, - e por isso, à luz dos normativos citados, devem ter-se por não escritos -, factos não alegados, nem queridos, pelas partes, o mesmo se dizendo da valoração atribuída a negociações totalmente nulas entre a Ré e a EE e, por isso, como res inter alios acta, inoponíveis aos recorrentes, pelo menos ao A.

3ª - Na verdade, nenhuma prova se fez de que o preço do " trespasse " fosse de 8.500.000$00 ou, tendo em conta que a forma a que o mandato obedece é a prescrita na lei para o contrato a que se destina, de que os AA tivessem mandatado a EE com poderes para esta se obrigar por eles na fixação desse valor, tendo-se apenas alegado que aquela fora incumbida de entabular negociações com os RR no sentido de adquirir a dita loja e, ainda, que estes lhes pagaram 4.500.00$00 ( cfr. resposta ao quesito 2º).

3ª bis - As negociações contaram sempre com a presença de ambos os RR, sendo com ambos que todas as cláusulas foram acordadas, e sendo sempre o Réu quem pôs e dispôs, como se vê da confissão levada ao artigo 8°, da resposta ao quesito 2° e, ainda, do cheque não impugnado junto aos autos, comprovativo de que este recebera na sua conta 3.250.000$00. Tal questão foi silenciada, ao arrepio dos arts.660°, nº2º, e 668°, nº1º, al.d), CPC, não a tendo o Tribunal levado em conta, nem valorado devidamente.

4ª - Em sede de responsabilidade contratual, importa, ainda valorar - o que não se fez, com desrespeito pelo disposto nos arts.217º e 288º, nºs 3º e 4º, C.Civ. - que o Réu actuou antes e durante a execução do contrato, fazendo seu o preço, de modo a inculcar nos recorrentes a ideia de que assumira também o negócio como seu, vindo tal corroborado no artigo 8° da contestação e devidamente comprovado na resposta ao quesito 2°.

5ª - Os AA só ajuizaram os RR in extremis, após se terem proposto restituir-lhes o espaço físico antes de o entregarem ao senhorio, obrigando-se ainda a reporem o valor das peças já vendidas, tendo-se aqueles recusado a aceitar tal solução, não aceitando receber as instalações e exigindo-lhes o pagamento duma quantia medonha e desproporcionada.

6ª - Não sendo os RR legítimos titulares do estabelecimento, como uma universalidade, essa recusa é injustificada, o que faz, desde logo, afastar a aplicação literal do art.289°, com referência aos arts.289°, nº3º, e 1269º, C.Civ., pois a nulidade aí prevista só geraria a obrigação de restituírem aos RR o que deles tivessem recebido, nada se tendo provado que aponte os AA como culposa ou negligentemente responsáveis pelo incumprimento do negócio.

7ª - Acresce que ao recusarem-se a aceitar a restitutio in integrum proposta pelos AA, os RR incorreram em incumprimento definitivo, e não em simples mora accipiendi, pelo que a solução a adoptar não pode ser aquela de que se lançou mão na 1ª instância e que o acórdão recorrido sufragou.

8ª - De facto, seria de todo injusto condenarem-se os AA a ficarem sem o dinheiro que entregaram, a pagarem aos RR, e com juros, o resto do valor que tinha sido acordado, como se o negócio tivesse sido integralmente cumprido, reconhecendo-se-lhes um direito que nem sequer tinham reclamado.

9ª - As instâncias incorreram, assim, na nulidade prevista no art.668°, nº1º, al.d), CPC, com referência ao disposto nos arts.798°, 801° e 809° C.Civ., na medida em que os RR estão em mora desde 3/10/2000, data em que foram interpelados, sendo certo que se recusou aos AA o mesmo tratamento, quando, afinal de contas, nenhuma culpa lhes é assacável pela frustração do negócio.

10ª - Injustiça tanto mais notória quanto é certo que, ficando o pedido contra os RR muito aquém do disposto no art.442°, nº2º, 2ª parte, C.Civ., os AA acabaram por ser condenados a pagar-lhes na íntegra o valor de um contrato nulo e que, apesar disso, só não foi cumprido por sua própria culpa, quando é certo que se fossem legítimos titulares do estabelecimento, sempre poderiam exigir do senhorio a restituição da loja, pois a decretada nulidade do contrato retroagiria em relação às partes e ao próprio senhorio.

Houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões que importa resolver são as seguintes :- pretendida alteração da resposta dada ao quesito 1º ( três primeiras conclusões ); - indicada omissão de pronúncia em sede de apreciação da responsabilidade do Réu (duas conclusões seguintes, isto é, 3ª bis e 4ª) ; - não titularidade por parte dos RR do estabelecimento como uma universalidade, com efeitos na obrigação de restituição decorrente da nulidade do contrato de trespasse por inobservância da forma legal ( como melhor explicado no recurso de apelação, por não haver contrato de arrendamento validamente celebrado , quando acordado o trespasse da loja - conclusões 5ª e 6ª ) ; - nulidade prevenida no art.668°, nº1º, al.d), CPC, em vista da não condenação dos RR em juros sobre a quantia que lhes foi entregue (conclusões 7ª a 10ª).

Convenientemente ordenada, a matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue ( indicando-se, entre parênteses as correspondentes alíneas e quesitos ) :

( a ) - A fls. 24 encontra-se junta uma cópia de escrito particular intitulado "contrato promessa de arrendamento comercial em período limitado ( 5 anos )", outorgado em 20/11/97 entre FF e esposa GG e a Ré ( como promitente-arrendatária ) (C).

( b ) - A Ré mostrou esse documento a EE , irmã da A ( A e 12º ).

( c ) - Em Março de 2000, a A. e a irmã referida acordaram verbalmente com a Ré a cedência por esta da exploração do estabelecimento de venda de vestuário, lingerie, perfumaria, bijutaria e produtos similares, que a Ré vinha exercendo no r/c-centro - loja comercial nº 2, do prédio sito na Rua Dr. Lima Gomes, em Moimenta da Beira, incluindo a transmissão do mobiliário e das mercadorias existentes na loja, e a entrega do espaço físico desta, mediante o pagamento da respectiva renda ao seu dono, fixando-se como contrapartida de tal cedência a quantia global de 8.500.000$00 ( 1º, 13º, e 14º).

( d ) - Na sequência desse acordo, os AA pensando que os RR eram casados e que ambos exploravam o estabelecimento mencionado, entregaram-lhes, como parte da contrapartida da cedência de exploração, a quantia global de 4.500.000$00 ( 2º).

( e ) - Os RR elaboraram, na presença da A. e irmã a relação junta a fls.26 a 43, de que constam todas as mercadorias então existentes na loja ( 15º).

( f ) - As peças de roupa, de lingerie, de bijutaria e de perfumaria que se encontravam na loja quando a A. e irmã começaram a vender roupas tinham determinado valor, cuja grandeza concreta não foi possível apurar ( 9º).

( g ) - O mobiliário foi adquirido e colocado na loja pela Ré (21º).

( h ) - A A. e irmã venderam parte das mercadorias existentes na loja quando a ocuparam, em medida que não foi possível precisar em concreto ( 19º).

( i ) - Os AA informaram os RR, verbalmente e por carta registada em 3/10/2001, que consideravam sem efeito o negócio referido em ( c ), supra, e que pretendiam reaver aquela importância e entregar-lhes a loja de novo ( B ).

( j ) - O mandatário dos AA enviou à Ré a carta de que há cópia a fls.4 ( 7º).

( l ) - Os RR recusaram-se a entregar os 4.500.000$00, e o representante da Ré enviou ao mandatário dos AA as cartas de que há cópia a fls.45/46 e 48 ( B e 8º).

( m ) - Os AA fizeram a entrega das chaves ao dono da loja, que as aceitou ( 10º ).

( n ) - O dono da loja vendeu-a a uma empresa pertencente a HH ( 20º).

A intervenção deste Tribunal no tocante à decisão sobre a matéria de facto está limitada pelo disposto no nº2º dos art.722º e 729º CPC. Presente a parte final de 7. da alegação dos recorrentes, recorda-se, à partida, o disposto no nº1º deste último (1). São do C.Civ. os preceitos citados ao diante sem outra indicação :

Em, por assim dizer, sumário ponto de ordem relativo às conclusões 6ª, 8ª e 10ª, convém registar também que a questão do cumprimento ou incumprimento dum contrato só, com evidência, se coloca quando assente a validade desse negócio jurídico.

Ao tempo do contrato em questão, este teria de ser celebrado por escritura pública, sob pena de nulidade, conforme art.220º. Com efeito :

O contrato que os AA. invocam como causa de pedir é um contrato de trespasse celebrado verbalmente em Março de 2000, antes da entrada em vigor do DL.64-A/2000, de 22/4, e na vigência do nº3º do art.115º do RAU na versão anterior a esse DL, que estabelecia que o trespasse devia ser celebrado por escritura pública.

Como notado no acórdão recorrido, quando a lei exige como formalidade ad substantiam a solenização do contrato, a preterição da forma legal implica a nulidade do mesmo - art.220º.

Caracterizando-se a formalidade referida como ad substantiam ( cfr. art.364º, nº1º), e não tendo sido observada pelas partes, o contrato em referência é, por força daquela disposição legal, nulo, por falta da forma legal.

Nulo, como vem de ver-se, o contrato em causa, por força do disposto nos arts.115º, nº3º, RAU - no caso aplicável na redacção anterior ao DL 64-A/2000, de 22/4 - e 220º, por inobservância da forma legal, não há vinculação, nem, portanto, no que se lhe refere, pode haver desvinculação alguma. O mesmo valeria, aliás, face ao disposto no nº2º do art.410º, se de simples promessa se tratasse.

Resulta, como assim, sem sentido a invocação dos arts.442º, nº2º, 798º, 801º e 809º, que só têm cabimento em relação a negócios jurídicos válidos.

O mesmo vale, com evidência, também em relação à ora arguida responsabilidade contratual (ponto 3. da alegação dos recorrentes neste recurso de revista) : nulo o contrato, não resulta dele qualquer obrigação de cujo cumprimento ou incumprimento se possa falar, a não ser que decorra do disposto no art.289º, nº1º. Isto arredado :

1ª questão : Da resposta dada ao quesito 1º :

Os AA disseram, no artigo 1º da petição inicial, que, em Março de 2000, " na altura representados por uma irmã da A., celebraram com ambos os RR, verbalmente, um contrato de trespasse de um estabelecimento comercial de vestuário, instalado no r/c centro - Loja Comercial nº...- de um prédio urbano, sito em Moimenta da Beira". Tal assim, conforme subsequente artigo 3º, " na convicção de que os RR. eram casados e de que os mesmos seriam legítimos titulares desse estabelecimento ". Mais disseram ter fechado o negócio, entregando aos RR " como sinal e princípio de pagamento, a quantia de 4.500.000$000 ".

No artigo 17º da contestação, os RR. alegaram que a Ré exibiu à irmã da A. um exemplar do contrato-promessa de arrendamento comercial de que era titular, e que as mesmas " acabaram por acertar o trespasse do estabelecimento pelo preço de 8.500.000$00, que incluía a transmissão do arrendamento do r/c, o mobiliário e as mercadorias existentes ".

No artigo 6º da réplica, os AA. impugnaram essa alegação, mas sem êxito quanto ao preço e âmbito do contrato, como resulta da resposta dada ao quesito 13º, dada em conjunto com a relativa aos quesitos 1º e 14º.

No artigo 6º da réplica, ainda, aceitaram o alegado pelos RR nos arts.18º, 19º e 21º da contestação.

Consta do artigo 18º que, decorrido algum tempo, a irmã da A. comunicou à Ré que, afinal, o trespasse seria efectuado não para si, mas para os AA, ao que aquela não colocou qualquer objecção.

Dos subsequentes artigos 19º e 21º, os AA. aceitaram que, em princípios de Julho de 2000, entregaram à Ré a importância de 1.000.000$00, e em Agosto de 2000, a de 3.500.000$00, " (...) postergando-se a liquidação do restante do preço - 4.000.000$00 - para a data da redução a escrito do contrato de trespasse".

Relacionados os quesitos 1º, 13º e 14º com o mais impugnado pelos AA. no que respeita à celebração do contrato, contêm, afinal, parte de matéria que tinha sido aceite pelos AA.

Esses quesitos obtiveram resposta conjunta, segundo a qual, em Março de 2000, a A. e a irmã acordaram verbalmente com a Ré " a cedência, por parte desta, da exploração do estabelecimento de venda de vestuário, lingerie, perfumaria, bijutaria e produtos similares que esta vinha exercendo no r/c-centro - loja comercial n°2 -,do prédio sito na Rua Dr. Lima Gomes, em Moimenta da Beira, incluindo a transmissão do mobiliário e mercadorias existentes na loja, e a entrega do espaço físico desta, mediante o pagamento da respectiva renda ao seu dono, fixando-se em contrapartida de tal cedência a quantia global de 8.500.000$00 ".

O que bem de tudo isto se vê, é, singelamente, que não é verdade que - como os recorrentes, no entanto, insistem em alegar - se deram por assentes " factos não alegados ( , ) nem queridos pelas partes ", e se valoraram " negociações nulas ", impondo-lhes acordos celebrados entre a Ré e a irmã da A., " a prefigurarem verdadeiras res inter alios acta, na esfera jurídica dos recorrentes sobretudo do A. marido ".

Designadamente, e como vem de ver-se, deram-se, no artigo 1º da petição inicial, por representados pela irmã da A. ; e, aceite no artigo 6º da réplica o alegado nos artigos 19º e 21º da contestação, aceite ficou ser de 8.500.000$00 o preço do negócio ajuizado.

Uma vez que o mandato representativo ou com representação é um contrato consensual, ter-se-á na conclusão 3ª da alegação dos recorrentes confundido mandato e procuração - a esta e não àquele se aplicando o disposto no art.262º, nº2º (2) .

2ª questão - Da alegada omissão de pronúncia e consequente nulidade por não considerado que o Réu recebeu, por causa do negócio, um cheque de 3.250.000$00 :

Os AA afirmaram, mas os RR negaram, que negociaram com estes na convicção de que os mesmos eram casados e na qualidade de trespassantes, tendo o Réu, até, arguido a sua ilegitimidade, por não ser casado com a Ré e não ser parte no negócio.

O quesito 23º, em que se perguntava se tinha sido o Réu quem fixou as cláusulas alegadas, tendo estipulado o preço e forma de pagamento, recebeu resposta negativa.

Na sentença apelada considerou-se que o Réu, além, de não ser casado com a Ré, não era trespassante, e que, não tendo intervindo no negócio, não podia ser condenado no pedido.

No acórdão ora em recurso julgou-se, mais, provado ter o Réu recebido dos AA. o cheque de 3. 250.000$00 de que há fotocópia a fls.308, sacado, a favor dele, por II, que depôs em audiência de julgamento identificando-se como filha dos AA (cfr. fls. 311 ), sobre conta de que era titular a falada irmã da A., EE.

Recusou-se, porém, que o facto da sentença apelada não se ter pronunciado a esse respeito importasse efectivamente a nulidade da mesma, por omissão de pronúncia, prevista no art.668º, nº1º, al.d), CPC, então arguida.

É essa arguição que se vem agora repetir, quando, como decorre manifesto do que vem de dizer-se, de modo nenhum dela enferma o acórdão recorrido, que, a esse respeito, decidiu, também obviamente, bem.

Importa, com efeito, notar, a um tempo, que os arts.660º, nº2º, e 668º, nº1º, al.d), CPC se referem a questões e não a meios de prova, como é o caso dos documentos ( cfr. art.341º C.Civ.), e a outro, não passar, com evidência, esse facto, não impugnado, de facto instrumental relativamente ao essencial quesitado no item 23º da base instrutória, acima referido.

De harmonia com o considerado no acórdão sob recurso, o Réu interveio nos preliminares do negócio, favorecendo eventualmente a aparência de que era interessado, tal como a Ré, na sua celebração - cfr. ( d ) ( parte final ) e ( e ), supra. Pese, embora, essa aparência, porventura favorecida também por viver em união de facto com ela e dispor das quantias ingressadas no património da mesma, não menos certo vem a ser que, mesmo que tenha tirado vantagem económica do negócio, isso não significa, por si só, que seja parte contratante, não sendo, na realidade, parte no contrato celebrado entre os AA e a Ré.

A declaração na sentença de que o Réu teria de ser absolvido do pedido, como foi, por não ser parte no contrato dispensava o julgador de se pronunciar sobre o falado recebimento do cheque, uma vez que o que estava em indagação era se interveio ou não como trespassante, tal como a Ré, - o que, como já visto, não se provou, e não é decisivamente contrariado pelo facto do cheque ter sido passado em seu nome -, importando, isso sim, realçar que não foi outorgante no trespasse.

E também nenhuma confirmação tácita, referível aos arts.217º e 288º, nºs 3º e 4º, se mostra efectivamente configurada na matéria de facto apurada.

3ª questão : Da não titularidade do estabelecimento como universalidade, com efeitos na obrigação de restituição decorrente da nulidade do contrato de trespasse por inobservância da forma legal :

Entende-se por trespasse " a transmissão definitiva inter vivos, gratuita ou onerosa, da titularidade do estabelecimento comercial " (3).

Essa transmissão não carece, consoante nº1º do art.115º RAU, da autorização do senhorio.

Tal como a cessão de exploração de estabelecimento comercial, também dita locação de estabelecimento, o trespasse importa a transferência, em conjunto, das instalações, mercadorias, utensílios e direitos inerentes à organização empresarial que o estabelecimento constitui, obrigando a que nele se continue a exercer o mesmo ramo industrial ou comercial ( idem, al.b) do nº 2º).

Na tese dos recorrentes, os RR, ora recorridos, não eram donos de qualquer estabelecimento comercial porquanto não se pode considerar que a Ré trespassante fosse titular de arrendamento válido da loja onde era exercida a actividade comercial.

Por isso, nunca poderia o Tribunal condenar na sua restituição, enquanto consequência jurídica da nulidade do contrato. Ora :

Consoante ( a ) e ( c ) supra, a Ré ( trespassante ) figurava como promitente-arrendatária num contrato-promessa de arrendamento pelo prazo de 5 anos, celebrado, por escrito particular, em 20/ 11/97, tendo-se a A. comprometido a efectuar o pagamento da renda respectiva.

Está-se, parece, perante encapotado arrendamento para comércio, nulo por falta da forma legal imposta pelo art.7º, nº2º, al.b), RAU.

Apesar, porém, de nunca ter sido celebrado o contrato prometido, a legitimidade da ocupação da loja em questão, assente em tradição, não sofre dúvida.

A estar-se, antes, perante contrato atípico, paralelo ( ainda quando conste do mesmo documento ) ao contrato-promessa propriamente dito ( de que, conforme art.410º, nº1º, tipicamente resulta apenas a obrigação de celebrar o contrato prometido ), e análogo ao de comodato, sempre também as-sim se mostraria assegurado direito pessoal de gozo com termo, apenas, na celebração do contrato definitivo (4).
Continuando, para além disso, a acompanhar o discurso das instâncias :

O estabelecimento comercial constitui, segundo doutrina tradicional, uma universalidade de direito ( universitas iuri) (5), um complexo ou unidade económica que integra vários elementos, corpóreos e incorpóreos - bens móveis e imóveis, direito ao arrendamento ou à utilização do espaço, direito de uso do nome do estabelecimento, marcas, patentes de invenção, etc.- organizados para a produção. Porque, como se diz no art 202º, nº1º, " pode ser objecto de relações jurídicas", deve, na realidade, ser entendido como uma coisa.

Enquanto universalidade, não pode ser decomposto, atomizado, nos seus elementos componentes ; mas pode, mesmo, existir desde que haja um núcleo essencial organizativo apto a gerar lucros (6).

Em caso de trespasse, o direito ao arrendamento - ou, dum modo geral, à ocupação do local - é, em regra, um dos elementos da universalidade transmitida (7) . Nem por isso, no entanto, pode afirmar-se que a inexistência de um contrato de arrendamento válido faz com que inexista estabelecimento comercial.

É, de facto, pressuposto da existência de trespasse a existência de um estabelecimento comercial ou industrial, ou seja, de uma empresa, isto é, de uma estrutura, de um complexo organizado de meios ou de factores com um mínimo de autonomia funcional e financeira tal que lhe permita assegurar um processo produtivo ( concebida a produção em sentido amplo, de modo a abranger a produção, não só de bens ou de serviços, mas de qualquer valor acrescentado em termos de circuito económico) e emergir no mercado enquanto organização técnica e económica autónoma (8) .

Embora do núcleo essencial da organização do estabelecimento comercial possa fazer parte contrato de arrendamento, o facto de não existir, validamente celebrado, não implica necessariamente que deva considerar-se não se estar perante um estabelecimento comercial. Sempre, então, com as instâncias :

Tendo os AA pedido a restituição da parte do preço adiantada - 4.500.000$00 -, o desacordo das partes adveio do facto dos RR considerarem que, operando a restituição, teriam direito a invocar a compensação de créditos pelo facto dos AA., durante o tempo em que estiveram à frente do estabelecimento, terem alienado os bens que o integravam e pretenderem ser ressarcidos por equivalente monetário.

Essa pretensão dos RR. tem, efectivamente, razão de ser, porquanto, implicando a nulidade negocial a restituição de tudo o que tenha sido prestado - a destruição retroactiva dos efeitos do negócio - conforme art.289º, nº1º, não sendo, no caso, possível, pela natureza das coisas, a restituição em espécie, dado o estabelecimento ser uma coisa mutável, um complexo sempre renovado e renovável, integrando bens corpóreos e incorpóreos, ela terá de fazer-se pelo valor correspondente, como previsto na parte final desse preceito.

A sobredita tese dos AA, de que não se está perante um estabelecimento, e de que ocorre nulidade da decisão na ordem da sua restituição não merece, na realidade, acolhimento.
.
Os AA consideraram que apenas têm que devolver aquilo que efectivamente receberam, não podendo os RR exigir-lhes a restituição de um imóvel " que, de todo, e comprovadamente, não lhes pertencia ".

O imóvel não pertencia, realmente, à Ré, mas nem tal obstava à existência de trespasse.

O que estava incluído no contrato de trespasse era o uso, que já se viu ser, no que à Ré se refere, legítimo, do imóvel - a cuja devolução tinha, por conseguinte, direito.

A discórdia sub judicio surge com a exigência pela Ré de valores por fim alcandorados a 8.469. 473$00, da mercadoria que deixara na loja - incluindo uma margem de lucro de 80% e IVA a 17º, de 2.472.913$00, do mobiliário da mesma, e de 1.500.000$00, relativo, este, ao direito ao arrenda-mento e ao trespasse.

O acórdão recorrido assinala a exorbitância do primeiro : ronda, de facto, se bem parece, o absurdo a pretensão, em - " na pacata " , na expressão do acórdão recorrido - Moimenta da Beira, dum lucro de 80% na venda de vestuário, lingerie, perfumaria e similares.

Justificava-se, parece, imediato recurso a juízo. No entanto :

A devolução das instalações acabou por ser indevidamente feita pelos AA. ao senhorio da Ré, que a aceitou, o que tornou impossível a devolução do local em que o estabelecimento estava instalado. Daí o direito a valor equivalente ao seu uso.

E tendo os AA. também, enquanto exploraram o estabelecimento, alienado as mercadorias que receberam sem que tivessem reposto stock equivalente aquando da devolução, não era viável, ou, sequer, possível a restauração natural. Daí, igualmente, terem de restituir o equivalente.

É claro que o que está em causa não é, apenas, a restituição da loja (com, até, o mobiliário respectivo), mas a do estabelecimento, em que se incluía o direito ao uso da mesma (9) .

Como observado na sentença apelada, a declaração de nulidade do negócio implica obrigação dos AA de restituírem à Ré o próprio estabelecimento comercial dela recebido. Esse estabelecimento comercial, porém, já não existia, tendo os AA alienado parte da mercadoria e entregue as chaves da loja ao senhorio, que entretanto a vendeu a outrem - cfr. ( h ) , ( m ), e ( n ), supra.

Impossível a restituição em espécie, deverá recorrer-se à restituição por equivalente, como determina o art.289º, nº1º.

Importando, portanto, avaliar o estabelecimento comercial em questão, por forma a determinar o valor dessa restituição, a forma de avaliação adoptada pela Ré, acima referida. é incorrecta, pois o estabelecimento comercial não se confunde com os elementos que o constituem, constituindo uma realidade jurídica distinta da simples soma desses elementos.

Como afirma Ferrer Correia (10), "o valor do estabelecimento não é puramente igual à soma dos valores do seu activo considerados à margem da organização - antes o simples facto dessa organização implica para cada um desses bens uma valorização especial. As máquinas, as mercadorias, olhadas como elementos do estabelecimento, valem alguma coisa mais do que valeriam consideradas isoladamente ", ou seja, " o valor do todo é também superior ao da soma das suas partes ".

Daí que, e ainda segundo este autor, " em caso de trespasse (...), essa mais valia resultante da organização (...) será naturalmente levada em conta na determinação do montante da contraprestação ".

A declaração da nulidade tem efeito retroactivo ( ex tunc ), pelo que a medida da obrigação de restituição deve reportar-se ao momento de celebração do negócio. Ora, no próprio negócio ( contrato de trespasse ), ambas as partes, por acordo, determinaram o valor do estabelecimento comercial, fixando-o em 8.500.000$00, conforme ( c ), supra. Daí ser esse o valor considerado na sentença apelada, de que, nesta parte, se reproduziu o discurso. O acórdão ora em revista acompanhou essa conclusão.

Na impossibilidade de determinar o valor dos activos do estabelecimento desmantelado pelos AA - cfr. ( e ), ( f ), e ( m ), supra -, a restituir mesmo que mutilado dum seu componente, a loja, ou o respectivo uso, as instâncias fizeram equivaler o valor da restituição ao atribuído como preço do trespasse - valor que as partes convencionaram livremente, ao tempo, como preço da transmissão do estabelecimento.

É solução que não se vê que mereça censura.

A sentença apelada fez operar a compensação, conforme art.847º, nº1º, e 848º, nº1º, dos créditos recíprocos e condenou os AA. a pagarem aos RR a diferença, acrescida dos juros de mora também
reconvencionalmente pedidos.

4ª questão : Da reclamada nulidade prevenida no art.668°, nº1º, al.d), CPC, por falta de condenação em juros sobre a quantia entregue pelos AA aos RR :

Finalmente invocada na apelação a nulidade da sentença, nos termos do art.668º, nº1, d), CPC pelo facto de não ter condenado os RR nos juros relativos à quantia paga, considerados devidos desde a interpelação para a restituição constante da carta de 3/10/2000 referida em ( i ), supra, as instâncias não lhes reconheceram razão, porquanto, segundo se julgou, pedidos juros compensatórios, não podiam atribuir-se juros moratórios.

Assim, se bem se crê, convocado o disposto no art.661º, n1º, CPC, em que se estabelece o princípio do pedido ( ne eat judex ultra, vel extra, petita partium ) (11), invoca-se agora a este propósito, bem que entre parênteses e em tipo menor, o disposto no art.664º CPC, de que, conquanto não nomeado, se refere a estatuição. Desta - iura novit curia, ou la cour sait le droit - resulta a irrelevância de eventual erro da parte relativo à qualificação jurídica cogente.

Encurtando razões, adianta-se que, fundada a obrigação de juros a que esse pedido acessório se reporta na recusa, após interpelação para esse efeito, da devolução dos 4.500.000$00 passados e nessa base arguido " incumprimento definitivo " da obrigação de restituição impendente sobre a Ré, crê-se, afinal, não haver neste caso lugar a nenhuma das espécies de juros referidas.

Com efeito, recíproca e concomitante a restituição a efectuar, por uma das partes, da falada quantia e, pela outra, do estabelecimento na sua globalidade, como um todo, incluindo o valor do stock alienado ( e que se não disse substituído por equivalente ), era, consoante art.763º, inexigível a aceitação da restituição incompleta proposta, resumida ao local ( e mobiliário ) e ao resto do recheio ( ou, ainda, a valor insuficiente do vendido ).

Como assim justificada a recusa invocada, inexiste, com evidência, a reclamada obrigação de juros, designadamente moratórios, face ao disposto no nº2º do art.804º .

Nem, por outro lado, se trataria efectivamente da nulidade formal prevenida no art.668°, nº1º, al. d), CPC (12), - visto que as instâncias, ambas, se pronunciaram a este respeito -, mas sim de, afinal reclamado, substancial erro de julgamento, por não aplicação do falado art.664º. Sobra nem esse erro poder julgar-se realmente verificado, bem que pelas razões - diversas, é certo - ora adiantadas.

Por impossível a restituição em espécie, visto que restituída a loja ao senhorio e diminuído o stock de mercadorias pelas vendas efectuadas, o preço acordado foi tido em consideração para restituição por equivalente do estabelecimento em questão. Pedidos na reconvenção juros sobre o que se entendia haver a restituir, é ponto de há muito assente que o excesso do pedido não torna a dívida ilíquida para efeitos do disposto na 1ª parte do nº3º do art.805º, em que se contem princípio ( in illiquidis non fit mora ) só exacto para a iliquidez objectiva, isto é, para a que deriva de o devedor não estar em condições de saber quanto deve - o que não era o caso (13).


Chega-se, finalmente, à decisão que segue :

Nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 6 de Abril de 2006
Oliveira Barros, relator
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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(1) E observa-se que se realmente entraram num negócio ruinoso, a si próprios, antes de mais, o devem : sendo o trespasse, por antonomásia, a venda do estabelecimento, sempre em relação aos trespassários valerá a máxima caveat emptor.
(2) V., para melhor desenvolvimento, Manuel Januário da Costa Gomes, " Contrato de Mandato ", no 3º vol. do "Direito das Obrigações" sob a coordenação de Menezes Cordeiro, ed.AAFDL ( 1991 ), 288 ss ( 3.2.)
(3) Antunes Varela, RLJ,115º/253, citado no acórdão recorrido.

(4) V. Acs.STJ de 29/6/95, BMJ 448/314-II, e de 11/3/99, BMJ 485/404-I e II, com apoio, nomeadamente, em Antunes Varela, RLJ, 128º/146. A tese de que os RR eram " detentores precários " da loja referida no contrato-promessa (cfr. 9. da alegação dos recorrentes ) revela-se, de há muito anacrónica. De todo em todo inexiste, por conseguinte, o invocado paralelismo com a venda de carro furtado, referida na alegação oferecida na apelação, ou desviado, em abuso de confiança, com subsequente burla, a que se alude agora. Há confusão, digamos assim, também quanto à história do moleiro de Sans Souci que redarguiu a Frederico II da Prússia que ainda havia juízes em Berlim. Que de moleiro se faça camponês, do moinho, casa, e de Berlim, Alemanha, tanto, por certo, valerá ; mas que - tudo isto em duas linhas, em tipo menor - ao monarca prussiano falecido em 1786 se substitua, ainda, o chanceler do III Reich, que a tal chegou em 1933, é que será porventura menos compreensível. Sobre o episódio aludido, v. Alberto Sousa Lamy, " Advogados e Juízes na Literatura e na Sabedoria Popular" ( 2001 ; edição comemorativa do 75º aniversário da Ordem dos Advogados ), 2º vol., pág.83.

(5) Como se diz no acórdão recorrido, os tratadistas divergem quanto a considerar o estabelecimento como universalidade de facto, de direito, ou mista. Os mais relevantes juristas portugueses, acrescenta, têm considerado o estabelecimento como " unidade jurídica "- v. Pinto Coelho, " O Trespasse do Estabelecimento e a Transmissão das Letras ", Coimbra, 1946, pp. 11-12, 19-23, Barbosa de Magalhães, " Reivindicação do Estabelecimento ...", 206 ss, e Ferrer Correia, , "Lições de Direito Comercial ", I, 229 ss. Menciona ainda que Coutinho de Abreu, em " Da Empresarialidade ", 69 a 74, pondera sobre se o estabelecimento é universalidade de facto ou de direito, parecendo discordar das teses dominantes, e que aborda depois o conceito, relacionando-o com o de " coisa ", para indagar se pode ser objecto do direito de propriedade ou doutros direitos reais.

(6) Como dizem Ferrer Correia e Ângela Coelho, na RDE X/XI, 282 e 283, citados no acórdão recorrido : "Para se qualificar como estabelecimento determinada organização não é forçoso que estejam presentes todos os elementos que hão-de concorrer para o seu eficaz e perfeito funcionamento. Bastará que se encontrem reunidos os elementos essenciais que individualizam e dão consistência ao estabelecimento - que seja reconhecível o núcleo essencial do estabelecimento mercantil, o qual traduz a sua capacidade lucrativa ou o seu aviamento.Para saber quais são esses elementos fundamentais, não é viável formular um critério geral pela variedade de estabelecimento que a prática oferece".

(7) V. acórdãos destes mesmos juízes de 14/4 e de 6/7/2005, nos Procs.nºs 404/05 e 1784/05-7ª, com sumários, respectivamente, nos nºs 90 e 93 dos Sumários de Acórdãos deste Tribunal organizados pelo gabinete dos Juízes Assessores do mesmo, pp.57-IV e VI e 24-I e II, também respectivamente. Segundo Aragão Seia ," Arrendamento Urbano " (1995), 432, citado na sentença apelada, " trespasse é o contrato pelo qual se transmite definitiva, e, em princípio, onerosamente, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado ". Na definição de ARP de 13/1/97, CJ, XXIV, 1º, 200-I ( v. também 201), é toda a forma de trans-missão global e unitária, dum estabelecimento comercial como empresa ou organização económica, com carácter definitivo, por acto entre vivos, a título oneroso ou a título gratuito.
(8) O acórdão recorrido refere a este propósito texto de Orlando Carvalho denominado "Empresa e Lógica Empresarial", publicado nos " Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Ferrer Correia ", 5. Em desenvolvimento desse conceito ou noção, cita Paulo Tarso Domingues, RDE, anos XVI a XIX ( 1990 a 1993 ), 547, segundo o qual a empresa é uma organização ( enquanto reunião, combinação e coordenação ) concreta, realizada, de factores produtivos que, subpondo normalmente um conjunto de elementos (mobiliário, máquinas, etc.) que a corporizam, não têm necessariamente de ser bens corpóreos. Incorrecto concebê-la " num puro plano organizatório " como um bem incorpóreo puro, a empresa/organização supõe normalmente um lastro corpóreo, maior ou menor, i.e., um certo número de bens que têm ou podem ter autonomia económica e jurídica, por isso susceptíveis de serem negociados isoladamente. Mas não se confunde, nem identifica com esses bens, ou, sequer, com a soma deles. Tem "outros elementos, despidos de autonomia jurídico-económica, como sejam o crédito, o bom nome, etc., que são valores novos, sui generis, próprios da empresa, que resultam da complementaridade e da combinação dos diversos factores que a constituem, que se impõem, no mercado, como valores de acreditamento diferencial - valor de acreditamento enquanto valor de confiança pública, de confiança do público naquela empresa ; diferencial, porque marca a diferença e diferencia aquela empresa relativamente a outras - e que, nesta medida, afirmam a empresa como um valor de posição no mercado. ( ... ) O estabelecimento, que no plano jurídico é também designado, em sinonímia, como empresa, é, pois, um complexo organizado de bens ou serviços, juridicamente uma universalidade, actuante ou apta a entrar em movimento, relacionando-se com o público, a sua clientela, apta a gerar lucros".
(9) No acórdão recorrido cita-se, em nota ( 4 ), a lição de Antunes Varela, na RLJ, 115º/ 252, nota 1, que esclarece : " O termo "estabelecimento" tem um duplo significado : na linguagem corrente ou popular, significa a loja, o imóvel, as instalações materiais em que as mercadorias são colocadas para venda ao público ; quando usada no seu sentido técnico-jurídico, aquela palavra designa a unidade ideal, complexa e abstracta, inserida em qualquer sector da actividade industrial ou comercial que abrange, além da sede, muitos outros elementos, corpóreos e incorpóreos, as mercadorias, os utensílios e equipamentos que, em cada momento se encontrem nas instalações próprias ou arrendadas ".

(10) Nas "Lições de Direito Comercial ", I (1973 ), 204, assim citado na sentença apelada.
(11) A este respeito, discorre-se no acórdão recorrido como segue : Como resulta dos arts. 14º a 16º da petição inicial e, também, do pedido dos AA, estes pediram não juros de mora, mas juros compensatórios, desde aquela data. Os juros compensatórios têm natureza diversa dos juros de mora ; estes são consequência do incumprimento culposo de prestações de índole pecuniária - art.806º, nº1, C. Civ., e devem ser pedidos pelo credor. Os juros compensatórios destinam-se a completar a indemnização devida, visando o ressarcimento do credor até que o seu crédito seja reintegrado, e não dependem de taxa legalmente estipulada, tendo fundamento legal ou convencional. A sentença apelada pronunciou-se sobre tal pretensão dos então apelantes, recusando-a, por entender que tinham impetrado juros compensatórios, mas sem que se invocasse fundamento legal ou contratual. Decidiu, segundo se julgou, com acerto, inexistindo a nulidade por omissão de pronúncia arguida.
(12) Apesar de reclamada nulidade também do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto ordenou-se, nesse Tribunal, sem mais, a subida dos autos. Assim desrespeitado o disposto nos arts.668º, nº4º, e 716º, nem de tal, porém, houve reclamação, pelo que a nulidade secundária assim configurada se encontra sanada, consoante arts.153º, 201º, nº 1º, 202º, 2ª parte, 203º, e 205º, nº1º, todos do CPC.

(13) Que não é pelo facto de ser controvertido o seu montante que uma dívida se torna ilíquida, isto é, de montante incerto e por isso desconhecido do devedor, disse-se em ARP de 30/1/90, BMJ 393/662-1º-I ; e como explicado em ARE de 29/2/80, CJ, V, 1º, 172 ( 2ª col.), que cita Assento do STJ de 20/12/ 66, BM J 162/172 ss ( v. 177, 8º par. ) e anotações de Vaz Serra e de Pires de Lima na RLJ, 100º /217 ss e 233 e 234, respectivamente, o princípio in illiquidis non fit mora constante da 1ª parte do nº3º do art.805º só é exacto para a iliquidez objectiva, isto é, para a que deriva de o devedor não estar em condições de saber quanto deve, e não, como é o caso, quando, dispondo o devedor dos elementos necessários para saber o montante do seu débito. Era também nesse sentido Ac.STJ de 22/1/81, BMJ 303/203 ss ( v. 207 - II, 7º e 8º par.) ; e essa doutrina foi, nomeadamente, reafirmada em ARP de 26/9/94, CJ, XIX, 4º, 195, 2ª col., em que se esclareceu que o facto de a quantia da condenação ser inferior à pedida não prejudica a condenação em juros de mora, assente em culpa no atraso do pagamento. Como tudo se disse em acórdão destes mesmos juízes de 29/11/2005, no Proc.nº 3287/05-7ª ( 4ª questão ), em cujo sumário se lê : III - Para efeito da aplicação do princípio in illiquidis non fit mora constante da 1ª parte do nº3º do art.805º C.Civ. só releva a iliquidez objectiva, e esta só se verifica quando o devedor não estiver em condições de saber quanto deve. IV - O princípio referido não tem cabimento quando, dispondo o devedor dos elementos necessários para saber o montante do seu débito, ocorra, afinal, iliquidez tão só aparente ou subjectiva