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BOA-FÉ
DESISTÊNCIA
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
1. A vertente de compras em grupo é essencialmente o sistema de aquisição de bens ou serviços pelo qual um conjunto determinado de pessoas, designadas participantes, constitui um fundo comum, mediante a entrega de prestações pecuniárias, com vista à aquisição, por cada um deles, daqueles bens ou serviços ao longo de um período de tempo previamente estabelecido. 2. Integra o referido sistema relações contratuais complexas, em que há elementos de vários tipos contratuais, designadamente do contrato de compra e venda, prestação de serviços propriamente dito e de mandato com e sem representação. 3. Convencionado entre os participantes e a administradora dos grupos, em quadro de boa fé desta última, que os primeiros, no caso de desistirem da sua participação no consórcio, teriam direito, após o encerramento do respectivo grupo, à restituição do que pagaram, não podem os primeiros exigir da última a aludida restituição sem que ocorra o referido encerramento. 4. Não revelando os factos provados que a administradora dos grupos, através dos seus agentes ou representantes, tenha praticado, por acção ou omissão, no confronto com os participantes, algum ilícito contratual, não podem estes exigir daquela qualquer indemnização.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
"AA" e BB intentaram, no dia 19 de Janeiro de 2004, contra Empresa-A acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 14.559,38 e juros de mora, à taxa legal, desde Junho de 1992.
Fundamentaram a sua pretensão na adesão ao Socionimo-A por via da celebração de contratos destinados à aquisição de habitação sob o sistema de compra em grupo, terem sido admitidos num Grupo e subscrito cada um uma quota-parte e desistido em 1992 por virtude de o referido Grupo se não mostrar estabilizado nem normalizado no seu funcionamento, e na negação do reembolso pela ré.
A ré, em contestação, afirmou que por incumprimento de alguns dos participantes do Grupo, o seu fundo comum não tem saldo suficiente para adquirir bens e entregá-los aos participantes contemplados e que o Grupo ainda não foi liquidado, inviabilizando desse modo a devolução das quantias reclamadas pelos autores, e estes replicaram, afirmando ser irrelevante a afirmação da ré de não existirem fundos suficientes para o pagamento por virtude de o Consórcio haver constituído um fundo de reserva com o fim único e específico de cobrir eventuais insuficiências das receitas dos grupos.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 28 de Janeiro de 2005, por via da qual a ré foi absolvida do pedido, da qual ela apelou, e o relator da Relação, por sentença proferida no dia 27 de Abril de 2005, declarou a procedência do pedido formulado pelos autores com juros de mora contados sobre o capital a liquidar segundo a regra final do artigo 28º, nº 1, da Portaria nº 317/88, de 18 de Maio, a partir de 26 de Setembro de 2000.
Os apelados interpuseram recurso da sentença proferida pelo relator para o Supremo Tribunal de Justiça, aquele fez seguir o processo para decisão pela conferência, e a Relação, por acórdão proferido no dia 7 de Novembro de 2005, manteve a sentença reclamada.
Interpuseram os apelados recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o reembolso aos desistentes das quantias por eles entregues só pode ocorrer nos termos do artigo 28º da Portaria nº 942/92, de 28 de Setembro:
- os factos provados não revelam a má gestão do Grupo pela recorrente em termos de a responsabilizar, e não há acordo ou lei que imponha o seu encerramento no prazo de 150 meses;
- os factos provados revelam que a liquidação do grupo não aconteceu por factos estranhos à sua vontade ou comportamento, e que lhe não cabia a prova da sua falta de culpa pela não liquidação do Grupo;
- o acórdão recorrido violou o artigo 28º da Portaria nº 942/92, de 28 de Setembro.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. O Socionimo-A tem como finalidade proporcionar aos participantes a aquisição de determinados bens, conjuntos de bens, designados bens ou bens objecto, um por cada contrato de participação subscrito, através da sistemática de compra em grupo.
2. Em 26 de Fevereiro de 1988, os autores aderiram ao Socionimo-A, através dos contratos de participação nºs. 007690 e 007691 e respectivos regulamentos anexos, nos termos constantes de folhas 20 a 25, contratos que se destinavam à aquisição de produtos imobiliários - habitação - a qual era realizada através da sistemática de compra em grupo.
3. Decididos os bens objecto a adquirir e escolhido o plano de pagamento mais conveniente, os autores foram admitidos no Grupo 032 / Imobiliária, tendo subscrito as quotas - parte nºs 195 e 208, respectivamente
4. O preço de venda ao público relativamente aos bens objecto era, inicialmente, de € 13 472,31, que deveria ser liquidado em 150 mensalidades, sendo o valor de cada de € 120,06 com imposto sobre o valor acrescentado, e aquelas mensalidades actualizáveis de acordo com o aumento/ variação do preço de venda ao público relativamente ao bem objecto.
5. A cláusula VIII, nº 1, do Regulamento prescreve que com o fim único e específico de constituição de um fundo de reserva destinado a cobrir eventuais insuficiências de receitas dos grupos, a administradora receberá mensalmente de cada participante, juntamente com o pagamento das mensalidades, uma quantia correspondente a uma percentagem não superior a 0,06% do valor actualizado do preço de venda ao público do respectivo bem objecto, valor exacto que constaria do contrato de participação.
6. A sua cláusula XVIII, nº 1, alínea a), expressa que o participante ainda não contemplado, que tenha os seus pagamentos rigorosamente em dia e que não deseje continuar no consórcio, poderá solicitar a sua desistência à administradora, a qual lhe fornecerá um formulário próprio para a formulação desse pedido, e a alínea b) que, após a aceitação do pedido de desistência e a consequente resolução do contrato de participação, ou após ter sido formalizada a exclusão, de acordo com o prescrito na cláusula XVII, o participante, desistente ou excluído terá direito à restituição, após o encerramento do grupo a que pertence, das quantias pagas ao consórcio, deduzidas as taxas de inscrição e de administração, prémios de seguro, multas e juros moratórios e outros eventuais gastos da sua responsabilidade que tenha pago ou de que seja devedor até à data da oficialização da sua desistência ou exclusão, sem quaisquer compensações.
7. A cláusula XIX, nº 2, alínea a), expressa que cada Grupo de participantes do consórcio encerrará oficialmente as suas operações 30 dias após a data em que ocorra o último dos três eventos seguintes: última assembleia do grupo, entrega do último bem objecto atribuído a participante, último pagamento das mensalidades de participantes do grupo.
8. Datada de 13 de Abril de 1989, a ré enviou aos autores, que a receberam, a carta junta a folhas 26, em que lhe expressou: em todos os grupos, qualquer que seja o seu plano de pagamento, há sempre algum tempo que é necessário decorrer para que se verifique a sua estabilização e um funcionamento normal"; tivemos grupos" que estiveram com saldos muito negativos e hoje estão recuperados e a regularizar as entregas, havendo meses com 3 e 4 contemplados"; podemos garantidamente afirmar-lhe que o grupo 032 vai, a breve prazo, e tal como se verificou nos restantes, normalizar o seu funcionamento: não decorrerá muito tempo
para que comece a recuperar os bens em atraso"; "pensamos ser justo solicitar a Vexa. que se mantenha no grupo, tanto mais que dificilmente poderíamos concretizar a transferência por falta de vagas, na certeza de que o seu normal funcionamento, que repetimos ser do interesse de ambas as partes, se verificará a curto prazo.
9. Decorridos três anos sobre a data do envio da carta mencionada sob 8, o Grupo 032 / Imobiliária continuava ainda sem qualquer estabilização e o seu funcionamento também não se encontrava normalizado
10. Na sequência do referido na segunda parte de 5, em 10 de Abril de 1992, os autores informaram a ré de que pretendiam "desistir" das quotas-partes subscritas, nºs. 195 e 208, no Grupo/Imobiliária, enviando-lhe a carta junta a folhas 28, solicitando, então, à demandada o reembolso das quantias pagas ao Socionimo-A relativamente às duas quotas-partes, no valor total de € 14.559,38.
11. Na data referida sob 10, os autores tinham já efectuado, relativamente a cada quota- parte, o pagamento de 49 mensalidades, e, no dia 1 de Junho de 1992, por carta, a ré informou os autores de que tinha procedido à formalização das suas "desistências" relativamente ao Grupo 32 - partes 195 e 208, e que a devolução dos valores pagos seria feita de acordo com a Portaria nº 317/88, de 18 de Maio.
12. A ré ainda não procedeu à restituição das quantias liquidadas pelos autores, e o Grupo 032 ainda não foi liquidado, o que se deve ao facto de haver participantes que não procederam ao pagamento das mensalidades devidas.
13. Ainda não foram entregues todos os bens, e não existem fundos para pagamento total ou parcial da quantia referida sob 10.
III
A questão essencial decidenda é de saber se os recorridos já têm ou não direito e exigir da recorrente o reembolso das quantias com que participaram no sistema de compras em grupo e juros.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- regime legal específico do sistema de compras em grupo;
- natureza e efeitos dos contratos celebrados entre a recorrente os recorridos;
- regime contratual e legal da ruptura das relações contratuais desenvolvidas entre a recorrente e os recorridos;
- têm ou não os recorridos direito a exigir da recorrente a quantia em causa ?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.
1.
Comecemos pela análise sintética do regime legal específico do sistema de compras em grupo.
Quando ocorreu a contratação entre a recorrente e os recorridos regia sobre esta matéria o Decreto-Lei nº 393/87, de 3 de Dezembro.
O referido regime assentava fundamentalmente nos conceitos de compras em grupo e fundos de grupo (artigos 1º e 2º).
A compra em grupo era definida como o sistema pelo qual um conjunto determinado de Pessoas, designadas por participantes, constituía um fundo comum, mediante a entrega de prestações periódicas de natureza pecuniária, obrigando-se a sociedade administradora a gerir esse fundo por forma a que cada um dos participantes viesse a adquirir os bens ou serviços a que se reportar o contrato (artigos 1º e 2º).
Eram requisitos fundamentais do mencionado sistema que os bens ou serviços fossem os compreendidos no respectivo contrato, que as prestações periódicas dos participantes fossem equivalentes ao preço dos bens a atribuir dividido pelo número dos períodos correspondentes aos dos respectivos planos de pagamento, limitarem-se os encargos para a sociedade administradora a uma quota de inscrição e a outra de administração em função do preço dos bens a atribuir, a pormenorização do modo de adjudicação dos bens, a formalização do ingresso dos participantes em grupos mediante contratos individuais reduzidos a escrito cujas cláusulas tivessem sido, nos aspectos essenciais, objecto de aprovação prévia, a previsão nos contratos a celebrar da possibilidade de os participantes desistirem da sua posição no grupo e de recuperarem as prestações efectuadas a título de amortização, designadamente no caso de impossibilidade objectiva de atribuição, e a garantia àqueles da efectiva entrega dos bens (artigo 3º).
Os referidos contratos deveriam ser reduzidos a escrito sob pena de nulidade e na sua feitura deviam ser utilizados impressos padronizados, dos quais constassem, em letra bem legível e de forma explícita, os direitos e obrigações de ambas as partes, modelos esses a submeter previamente à prévia aprovação ministerial (artigo 12º).
O referido diploma foi regulamentado pela Portaria nº 317/88, de 18 de Maio, ou seja, já depois de os recorridos haverem aderido ao sistema de compras em grupo em análise.
Dir-se-á, no entanto, resultar do mencionado regulamento, por um lado, que os participantes não adjudicatários poderiam renunciar à sua participação no grupo desde que estivessem no pleno gozo dos seus direitos e não se encontrassem em mora (artigo 25º, nº 1).
E, por outro, que o renunciante seria reembolsado das quantias liquidadas, sem acréscimo de juros, dentro do prazo de 30 dias após a liquidação do grupo, depois de deduzidas as importâncias correspondentes às quotas de inscrição e de administração já vencidas e outras contratualmente em dívida à data da comunicação da renúncia ou exclusão (artigo 28º, nº 1).
Entretanto, cerca de três anos e meio depois, foram os referidos diplomas substituídos pelo Decreto-Lei nº 237/91, de 2 de Julho, alterado pelo Decreto-Lei nº 22/94, de 27 de Janeiro, e pela Portaria nº 942/92, de 28 de Setembro.
Como o primeiro dos referidos diplomas dispõe sobre o conteúdo das concernentes relações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem, é de aplicação imediata, salvo quanto às cláusulas relativas à própria estrutura dos contratos em causa (artigo 12º, nº 2, do Código Civil).
Portanto, aquele diploma é aplicável às relações jurídicas decorrentes dos contratos celebrados entre a recorrente e os recorridos, o que ocorreu cerca de três anos e meio antes da sua entrada em vigor.
Todavia, tendo em conta que a ruptura das relações negociais em causa ocorreu antes da entrada em vigor da Portaria nº 942/92, de 28 de Setembro, dir-se-á, porventura, dever aplicar-se a propósito da desistência pelos participantes o que estava estabelecido na Portaria nº 317/88, de 18 de Maio.
Todavia, a Portaria nº 317/88, de 18 de Maio, constituía o regulamento do Decreto-Lei nº 393/87, de 31 de Dezembro, que entretanto havia sido revogado, pelo que não pode servir de regulamento ao Decreto-Lei nº 237/91, de 2 de Julho (artigo 112º, nº 7, da Constituição).
Em consequência, quanto ao regime legal relativo ao reembolso dos participantes nos grupos derivado de renúncia contratual deve aplicar-se o que a propósito foi convencionado pelas partes, antes do início da vigência da Portaria nº 317/88, de 18 de Maio.
Vejamos, então, o regime jurídico que decorre do Decreto-Lei nº 237/91, de 2 de Julho, que assenta fundamentalmente, tal como o anterior, nos conceitos de compras em grupo e fundos de grupo (artigos 1º e 2º).
A vertente de compras em grupo é essencialmente o sistema de aquisição de bens ou serviços pelo qual um conjunto determinado de pessoas, designadas participantes, constitui um fundo comum, mediante a entrega de prestações pecuniárias, com vista à aquisição, por cada um deles, daqueles bens ou serviços ao longo de um período de tempo previamente estabelecido (artigo 2º, alínea a)).
Os fundos de grupo são, por seu turno, o conjunto formado pelo fundo comum e por outros fundos previstos no contrato ou no regulamento interno, constituído por contribuições dos participantes ou por outros recursos a que o grupo tenha direito (artigo 2º, alínea b)).
As prestações periódicas de cada um dos participantes para o aludido fundo correspondem ao preço do bem ou serviço a adquirir dividido pelo número de períodos previstos no respectivo plano de pagamento, sendo que em cada um desses períodos o valor global das prestações de todos equivalerá ao preço do bem ou do serviço que se pretende adquirir (artigo 4º, alíneas a) e b)).
As prestações periódicas dos participantes não são fixas, certo que, se ocorrer a alteração do preço dos bens ou serviços, serão ajustadas na respectiva proporção, independentemente da atribuição a algum deles (artigo 4º, alínea c)).
Aos participantes é assegurada, com as garantias adequadas, a aquisição do bem ou do serviço objecto do contrato, e a sua atribuição é feita pelo sistema único do sorteio ou por via do sistema misto de sorteio e licitação, conforme o previsto no respectivo regulamento (artigo 4º, alíneas d) e e)).
Os referidos grupos não gozam de personalidade jurídica, e é a sociedade administradora de compras em grupo que representa os diversos participantes nas relações externas, isto é, no exercício dos seus direitos em relação a terceiros (artigo 14º, nº 2)).
Às sociedades administradoras de compras em grupo incumbe especialmente, por um lado receber e manter em boa ordem os fundos que lhes são confiados, cumprir as obrigações decorrentes do regulamento geral de funcionamento dos grupos, efectuar as operações necessárias e adequadas ao recebimento dos bens e serviços pelos participantes contemplados nos prazos previstos, designadamente contratando tudo o que for apropriado com os fornecedores daqueles bens e serviços (artigo 14º, nº 1, alíneas a) a c)).
E, por outro, certificar-se de que os planos de pagamento contratados com os participantes se harmonizam com o valor do bem ou do serviço objecto do contrato, contribuir para o Fundo de Garantia do Sistema de Compras em Grupo, manter permanentemente actualizada a contabilidade dos grupos e contratar em nome dos participantes um seguro contra o risco de incumprimento pelos mesmos das suas obrigações, uma vez que tenham sido contemplados com o respectivo bem ou serviço, se não tiverem sido constituídas outras garantias adequadas (artigo 14º, nº 1, alíneas d) e g)).
Como a compra dos bens ou serviços convencionados é realizada por via do fundo comum de aquisição, autónomo, e este é formado pelos montantes pecuniários mensalmente pagos pelos participantes, se estes se atrasarem nos pagamentos pode frustrar-se o fim previsto de aquisição de bens ou serviços.
No que concerne às relações entre os participantes e as sociedades administradoras das compras em grupo, quanto ao que não estiver previsto nos mencionados diplomas, rege o estabelecido na lei civil sobre o mandato sem representação (artigo 22º, alínea b), do Decreto-Lei nº 237/91, de 2 de Julho).
2.
Atentemos agora na natureza e nos efeitos dos contratos celebrados entre a recorrente os recorridos, verificando, em breve síntese, a estrutura dos tipos contratuais que de algum modo apresentam elementos integrantes dos referidos contratos, e que são os seguintes.
O contrato de compra e venda é aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa mediante um preço, que pode ocorrer em prestações (artigos 874º e 934º do Código Civil).
O contrato de prestação de serviços é, por seu turno, aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (artigo 1154º do Código Civil).
Entre as modalidades do contrato de prestação de serviços conta-se o mandato, ou seja, aquele pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra (artigos 1155º e 1157º do Código Civil).
No que concerne ao mandato, a lei distingue o que envolve e o que não envolve representação, neste último caso se o mandatário agir em nome próprio, por isso adquirindo os direitos e assumindo as obrigações decorrentes dos actos que celebre e vinculando-se a transmitir para o mandante os direitos adquiridos na sua execução (artigos 1180º e 1181º, nº 1, do Código Civil).
As disposições sobre o mandato são extensivas, com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de serviços que a lei não regule especialmente (artigo 1156º do Código Civil).
Resulta da factualidade provada, por um lado, que a recorrente é uma sociedade comercial que se dedica à administração de compras em sistema de grupo, tendo por escopo principal a aquisição de bens ou serviços pelos participantes no grupo.
E, por outro, que os recorridos lhe propuseram o próprio ingresso num grupo sem personalidade jurídica, por ela administrado, a fim de adquirirem determinada casa de habitação, mediante o pagamento de cento e cinquenta prestações monetárias mensais, tendencialmente variáveis, com o valor unitário equivalente a € 120,06, correspondentes ao valor da almejada unidade habitacional.
A referida contratação envolveu relações entre os recorridos e a recorrente, entre esta e os vendedores dos bens imobiliários e entre os primeiros e os restantes participantes do grupo onde se integravam.
Com efeito, no que concerne às relações entre os vários participantes, temos o referido fundo comum autónomo decorrente das participações monetárias de cada um deles ao longo do tempo.
Estamos, por isso, perante relações contratuais complexas, em que há elementos de vários tipos contratuais, designadamente do contrato de compra e venda, prestação de serviços propriamente dito e de mandato com e sem representação.
Por força do referido contrato misto, a recorrente vinculou-se a administrar o fundo comum e a representar os recorridos perante os terceiros, designadamente os vendedores das unidades habitacionais pretendidas, e estes entregarem mensalmente, durante o período previsto de cento e cinquenta meses, a quantia convencionada.
3.
Vejamos agora a vertente ruptura das relações contratuais entre a recorrente e os recorridos.
Em 13 de Abril de 1989, pouco mais de um ano depois da celebração dos contratos em causa, a recorrente, reconhecendo a não estabilização nem o não funcionamento, manifestou aos recorridos que se mantivessem no grupo, afirmando que o seu funcionamento iria normalizar-se a curto prazo.
Três anos depois, porém, aquela normalização ainda não tinha acontecido, quadro em que, em 10 de Abril de 1992, os recorridos comunicaram à recorrente a sua intenção de desistência das suas quotas-partes e pediram-lhe o reembolso do valor das respectivas entradas.
A recorrente não objectou algo à declaração de renúncia dos recorridos, assim ficando denunciado o contrato em relação a eles, nos termos do artigo 224º, nº 1, do Código Civil, mas quanto ao solicitado reembolso respondeu-lhes que seria feito de harmonia com a Portaria nº 317/88, de 18 de Maio.
Todavia, a mencionada Portaria já havia cessado a sua vigência em virtude da cessação da vigência do diploma de que era mero regulamento, pelo que o regime a considerar, conforme já se referiu, é o que resulta das declarações negociais produzidas pelos recorridos e pelos representantes da recorrente.
Saliente-se, porém, que as normas do artigo 28º, nº 1, da Portaria nº 317/88, de 18 de Maio, não inserem conteúdo essencialmente diverso do que constava da referida proposta contratual, certo que dela consta que o renunciante será reembolsado das quantias liquidadas, sem acréscimo de juros, dentro do prazo de 30 dias após a liquidação do grupo, depois de deduzidas as importâncias correspondentes às quotas de inscrição e de administração já vencidas e outras contratualmente em dívida à data da comunicação da renúncia ou exclusão.
Com efeito, dele consta ser o renunciante reembolsado das quantias liquidadas sem acréscimo de juros, deduzidas as despesas do contrato, no prazo de 30 dias após a liquidação do grupo.
4.
Com base nos fundamentos que invocaram, verifiquemos agora se os recorridos, ao tempo da propositura da acção, tinham ou não direito a exigir da recorrente a devolução da quantia em causa.
A este propósito importa analisar o conteúdo das cláusulas contratuais gerais XVIII, nº 1, alínea a) e XIX, nº 2, alínea a), que os recorridos subscreveram tal como a recorrente, esta através dos seus representantes.
Eles declararam, por um lado, que o desistente teria direito à restituição, após o encerramento do grupo a que pertence, das quantias pagas ao consórcio, deduzidas as taxas de inscrição e de administração, prémios de seguro, multas e juros moratórios e outros eventuais gastos da sua responsabilidade que tenha pago ou de que seja devedor até à data da oficialização da sua desistência ou exclusão, sem quaisquer compensações.
E, por outro, que cada grupo de participantes do consórcio encerraria oficialmente as suas operações 30 dias após a data em que ocorra o último dos três eventos seguintes: última assembleia do grupo, entrega do último bem objecto atribuído a participante, último pagamento das mensalidades de participantes do grupo.
Os recorridos, a propósito destas cláusulas contratuais, afirmaram que elas limitavam flagrantemente as obrigações assumidas pela recorrente e punham em causa o seu direito de reembolso, e que haviam confiado em que lhes era concedida a possibilidade de desistência e de reembolso em tempo útil dos montantes liquidados, violam o princípio da boa fé, eram proibidas e, por isso, nulas.
Na realidade, no cumprimento das obrigações, assim como no exercido dos direitos correspondentes, devem as partes proceder de boa fé (artigo 762º, nº 2, do Código Civil).
O regime legal das cláusulas contratuais gerais, invocado pelos recorridos, consta no Decreto-Lei nº 446/85, de 27 de Outubro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 220/95, de 31 de Agosto, 249/99, de 7 de Julho, e 323/2001, de 17 de Dezembro, na espécie aplicável a sua redacção inicial, a data em que os contratos em análise foram celebrados e se extinguiram (artigo 12º, nº 1, do Código Civil).
As normas dos 15º, 20º, 21º, alínea a), do referido diploma, que vigoravam ao tempo da celebração dos contratos em causa, que os recorridos invocaram no recurso de apelação, expressam, respectivamente, serem proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé, que nas relações com os consumidores finais e, genericamente em todas as que se não estabelecessem entre empresários ou entidades equiparadas se aplicavam as proibições a que se reportava, bem como as que limitassem ou de algum modo alterassem as obrigações assumidas, na contratação, directamente por quem as predisponha ou pelo seus representantes.
Os factos provados não revelam minimamente que os recorridos confiaram razoavelmente, por virtude de algum comportamento dos representantes da recorrente, que podiam desistir do contrato e efectivar o reembolso antes da liquidação do grupo.
Ademais, relevam nesta matéria a natureza e os fins dos contratos em causa, nos quais são interessados, além da recorrente, vários participantes, e a circunstância de o conteúdo das mencionadas cláusulas serem praticamente similares a conteúdos normativos dos sucessivos regulamentos sobre a matéria.
Acresce que se não vislumbra dos factos provados que a recorrente, através dos seus representantes, no confronto dos recorridos, tenha agido de má fé na celebração dos contratos em causa ou durante a sua execução.
Em consequência, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que o vício de nulidade invocado pelos recorridos se não verifica.
Resulta dos factos provados que o grupo de integração dos recorridos ainda não foi liquidado ou encerrado, condição suspensiva de que dependia o efeito jurídico em causa (artigo 270º do Código Civil).
Assim, a obrigação de reembolsar por parte da recorrente no confronto dos recorridos só se constitui, naturalmente em razão do regime e finalidade do fundo comum em causa, no momento em que ocorrer o encerramento do referido grupo.
Trata-se, na realidade, de uma situação em que a relação contratual em causa em relação aos recorridos já se extinguiu, mas que ainda tem reflexo no futuro da dinâmica do grupo em que se integravam.
Em consequência, como ainda não está verificada a condição de que dependia o direito dos recorridos de exigir da recorrente, o mencionado reembolso, não pode proceder a sua pretensão a esse título.
5.
Atentemos agora na sub-questão de saber se os recorridos têm ou não direito a exigir da recorrente alguma indemnização a título de responsabilidade civil contratual, equivalente ou não
ao que prestaram para o fundo comum por ela administrado.
O acórdão da Relação revogou a sentença absolutória proferida no tribunal da 1ª instância, com base, por um lado, na circunstância de a recorrente ter incumprido os contratos celebrados com os recorridos, com a consequência prevista no artigo 798º do Código Civil.
E, por outro, por ela não haver ilidido a presunção de culpa a que se reporta o artigo 799º, nº 1, daquele diploma, ou seja, na responsabilidade civil contratual da primeira, e de o reembolso pedido pelos últimos lhes ser devido desde a data em que o contrato devia terminar.
Considerou ser a administradora responsável pela boa gestão que a lei pressupõe e, neste sentido, dever tomar todas as disposições necessárias e suficientes para a liquidação do grupo no prazo contratual, doze anos e meio a partir da data da sua celebração, ou seja, até 26 de Setembro de 2000.
Ora, o contrato celebrado entre os recorridos e a recorrente cessou, por iniciativa dos primeiros na altura em que os primeiros à última manifestaram relevantemente a vontade de renúncia.
A regra base é a de que contratos devem ser cumpridos nos precisos termos do convencionado, só podendo modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos legalmente previstos (artigo 406º, n.º 1, do Código Civil).
A obrigação de indemnização depende do cometimento por algum dos contraentes de algum ilícito contratual envolvido de culpa, gerador de prejuízo, desde que entre este e aquele exista um nexo de causalidade adequada (artigos 562º, 563º e 798º do Código Civil).
É ao credor que incumbe alegar e provar os factos integrantes do incumprimento ou do cumprimento defeituoso da obrigação pelo devedor, bem como do prejuízo reparável deles decorrentes em termos de causalidade adequada.
Verificados estes factos, a alegação e a prova dos factos reveladores de que tal não depende de culpa sua, apreciável nos termos aplicáveis à responsabilidade civil, incumbe ao devedor (artigo 799º do Código Civil).
A culpa stricto sensu ou mera negligência traduz-se, grosso modo, na omissão, pelo agente, da diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo, por seu turno, as vertentes consciente e inconsciente.
No primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação; no segundo, embora o pudesse e devesse prever, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não o previu.
A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, ou seja, o critério legal da sua apreciação em abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias do incumprimento contratual em causa, por referência a alguém medianamente diligente, isto é, normal, representando um juízo de reprovação, de censura ético-jurídica, por poder agir de outro modo (artigo 487º, nº 2, do Código Civil).
Os factos provados não revelam a vinculação da recorrente a diligenciar pela extinção do grupo em causa no prazo de dois anos e meio, certo que este era o prazo de pagamento pelos recorridos das mensalidades convencionadas.
Acresce estar provado que o grupo não foi liquidado e as quantias em causa restituídas à recorrente por virtude de haver participantes que não procederam ao pagamento das mensalidades devidas.
Ademais, não resulta dos factos provados que a recorrente, por acção ou omissão dos seus agentes ou representantes, haja incumprido alguma das obrigações de mandatária a que se
reportam os artigos 1161º, 1180º ou 1181º do Código Civil.
Por outro lado, os recorridos não invocaram algum dano na sua esfera jurídica decorrente da actuação ou omissão ilícita por parte da recorrente através dos respectivos agentes ou representantes.
Por isso, inexiste fundamento legal para analisar a perspectiva da existência de culpa de agentes ou representantes da recorrente, efectiva ou presumida, o mesmo é dizer para a sua condenação em pagamento no quadro da responsabilidade civil contratual em causa.
6.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
É aplicável à relação jurídica decorrente do contrato relativo à compra de unidades prediais em grupo, celebrado entre a recorrente e os recorridos, o Decreto-Lei nº 237/91, de 2 de Julho, e no que concerne à renúncia do referido contrato e ao inerente reembolso das prestações monetárias em causa, o clausulado geral predisposto pela primeira e aceite pelos últimos.
As referidas cláusulas, que se conformam com segmentos normativos de regulamentos posteriores sobre a matéria, tendo em conta os interesses envolvidos, não são proibidas nem afectadas de nulidade, designadamente por não infringirem o princípio da boa-fé.
Os recorridos, que denunciaram o referido contrato, não têm direito a exigir da recorrente o valor das mensalidades àquela entregues, porque ainda se não verificou a condição consubstanciada na liquidação do contrato de grupo.
Os factos provados não revelam que a recorrente, através dos seus agentes ou representantes, tenha praticado, por acção ou omissão, no confronto dos recorridos, algum ilícito contratual.
Inexiste, por isso, fundamento legal, para que a recorrente indemnize os recorridos nos termos delineados no acórdão recorrido.
Procede, por isso, o recurso, com a consequência da revogação do acórdão recorrido e de absolvição da recorrente do pedido.
Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas, no recurso de revista e no de apelação (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, revoga-se o acórdão recorrido, absolve-se a recorrente do pedido, e condenam-se os recorridos no pagamento das custas respectivas, incluindo as do recurso de apelação.
Lisboa, 20 de Abril de 2006
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís