ARRENDAMENTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário

1 ) A possibilidade de celebração de contratos de arrendamento de duração limitada para fins não habitacionais só foi introduzida na RAU pelo Decreto - Lei nº 257/95. A nova redacção do artigo 117º é inaplicável aos arrendamentos de pretérito.

2) A revogação unilateral dos contratos de arrendamento só é permitida quando o contrato é de duração limitada.

3) A revogação bilateral (mutuo dissenso, acordo revogatório ou distrate) é um negócio consensual e deve ser reduzido a escrito se não for executado de imediato ou contiver qualquer outra cláusula, compensatória ou não.

4) Se o acordo é seguido de entrega imediata - ou abandono - do locado pelo arrendatário e nada mais é clausulado, o distrate é nominado de revogação real.

5) Da simples entrega das chaves do locatário ao senhorio só poderia concluir se pelo acordo revogatório por apelo ás regras de experiência comum, aos juízos correntes de probabilidade, em termos de normalidade de vida e do senso comum.

6) Tal implicaria o lançar mão de presunção judicial, que, sendo uma ilação de facto, é da exclusiva competência das instâncias e está fora dos poderes de cognição do STJ em sede de recurso de revista.

7) Tendo sido alegados outros factos relevantes para alcançar aquela convicção e não seleccionados para base instrutória, justifica se o uso da faculdade do nº 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"AA", que residia na Local-A do Local-B - Santa Marinha - na Comarca de Vila Nova de Gaia, hoje substituído, na sequência de incidente de habilitação de herdeiros, por BB, CC e DD, intentou acção, com processo ordinário, contra EE e sua mulher Dr.ª FF, residentes no Porto.

Pediu a resolução do contrato de arrendamento comercial do prédio de rés do chão e dois pisos, com a área coberta de 187 m2, situado no Local-D, na Freguesia de Santa Marinha do Município de Vila Nova de Gaia, formalizado por escritura publica entre o Autor e o Réu marido.

Mais pediu a condenação dos Réus a despejarem o locado e no pagamento das rendas vencidas, no montante de 3337639$00 e as vincendas até à entrega, acrescidas de juros. Alegou que o demandado deixou de pagar as rendas que se venceram a partir de Setembro de 1998 e que a responsabilidade de pagamento é também da Ré, por se tratar de divida comercial, contraída na pendência do casamento.

Contestou o Réu excepcionando a sua ilegitimidade por o contrato ter sido denunciado, com entrega das chaves ao Autor em Abril de 1997, estando o prédio a ser ocupado por uma sociedade.

A 1ª instância julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido.

Os Autores apelaram para a Relação do Porto que confirmou o julgado.

Inconformados pedem revista, assim concluindo:

- Os Réus deixaram de pagar as rendas do locado, desde Outubro de 1998;

- Não se provou que tivessem ficado impedidos da fruição do prédio e que os Autores tenham a plena posse do locado;

- A denúncia só podia ser feita por comunicação escrita, o que não aconteceu (artigos 52º e seguintes do RAU);

- A prova do facto extintivo cabia aos Réus;

- Na dúvida deve decidir - contra quem o facto aproveita (artigo 516º do CPC);

-Apenas se provou a entrega das chaves mas não que o senhorio não tivesse proporcionado o gozo da coisa;

- Apenas seria de contemplar a hipótese de revogação unilateral, que é ilegal;

- Foram violados os artigos 9º, nºs 1 e 2, 342, nºs 1 e 2, 406º nº1 do Código Civil.

Contra alegou o Réu pedindo a improcedência do recurso.

Está definitivamente assente a seguinte matéria de facto:

- Por escritura pública outorgada em 27 de Junho de 1991, o Autor deu de arrendamento ao Réu - marido, o prédio acima identificado;

- Pela renda mensal de 100000$00, a vencer se no primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito, a pagar no domicílio dos senhorios ou do seu representante;

- O Réu - marido dedica - se ao comercio e armazenamento de produtos químicos;

- Celebrou o contrato para o exercício dessa actividade;

- A sociedade de que é sócio - "Empresa-A" - utilizou o prédio, para o exercício da sua actividade entre 1995 e 1996,

- Em Abril de 1997, o Réu fez a entrega das chaves do prédio ao Autor.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1 - Subsistência do arrendamento.
2 - Matéria de facto.
3 - Conclusões.

1 - Subsistência do arrendamento

A única questão suscitada é a da subsistência, ou não, do contrato de arrendamento.

A 1ª instância julgou no sentido de ter havido revogação real unilateral pelo Réu, enquanto a Relação decidiu pela vigência do contrato, embora sem que o inquilino pudesse fruir o locado.

Vejamos.

O contrato de arrendamento foi celebrado em 27 de Junho de 1991.
Ao tempo, a celebração de contratos de arrendamento de duração limitada só era admitida para os arrendamentos habitacionais (artigo 98º do Regime de Arrendamento Urbano, na redacção do Decreto - lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro).

A celebração destes contratos só passou a ser admitida para os outros tipos de arrendamento urbano com as alterações ao RAU introduzidas pelo Decreto - lei nº 257/95, de 30 de Setembro, ao artigo 117º.

Trata se de um preceito novo, sem eficácia retroactiva e, por conseguinte, inaplicável aos arrendamentos de pretérito.

O RAU só permite a revogação unilateral para os contratos de duração limitada - nº 4 do artigo 100º - mediante comunicação ao senhorio, formulada por escrito e com antecedência mínima de 90 dias sobre a data em que deve operar o seu efeito, ou seja, exige uma inequívoca declaração de vontade.

Os artigos 50º e 62º nº 1 do RAU (de 1990) prevêem a cessação do arrendamento por acordo das partes (mútuo dissenso, revogação bilateral ou distrate).

Trata - se, para usar a terminologia do Acórdão do STJ de 4 de Dezembro de 1997 - 98B304 - de "um contrato consensual mediante o qual as partes revogam um contrato anterior, com ou sem eficácia retroactiva, consoante o que as partes estipulem." (cf. ainda o Prof. Vaz Serra, in RLJ 112º - 30).

Também a revogação bilateral só teve consagração legal com o RAU.

Anteriormente era vagamente referido o "contrato de revogação", sem que, contudo, a sua disciplina no arrendamento fosse pacífica (Cons. Pinto Furtado, in "Manual do Arrendamento Urbano, 3ª ed, 738).

O artigo 62º da lei vigente veio regular o instituto, pondo termo à " vexata quaestia" relativa à forma.

Sabido é que, em regra, o distrate é meramente consensual (artigo 219º do Código Civil) podendo, inclusivamente, inferir - se da conduta dos contraentes, ou seja de factos que, com toda a probabilidade, o revelem (artigo 217º).

O Prof. Vaz Serra (ob. cit. 32) já entendia que a exigência de forma do mútuo dissenso só seria aplicável nos contratos formais se as razoes de exigência de forma também lhe fossem aplicáveis; tratando se de contrato não sujeito legalmente a documento, o distrate só seria formal se a lei lhe impusesse o escrito. Tal resultaria da disciplina dos artigos 221º nº 2 e 222º nº 1 da lei civil. Então, o Dr. Henrique Mesquita (RLJ 125º -102 e 103) defendia a mera consensualidade da revogação bilateral mesmo nos casos de contratos formais e o Cons. Pinto Furtado ("Curso de Arrendamentos Vinculisticos"392) sustentava que só podia ser verbal o distrate de contratos para cuja celebração se não exigia forma especial.

A lei em vigor impõe a forma escrita sempre que o acordo " não seja imediatamente executado ou sempre que contenha clausulas compensatórias ou quaisquer outras clausulas acessórias".

Se o acordo não contem quaisquer cláusulas e é cumprido de imediato - revogação real - não tem de ser observada a forma escrita. Isto é, para que o escrito seja desnecessário é essencial que o locatário entregue - ou abandone - imediatamente o locado.

Há, então, um acordo das partes em porem termo ao contrato seguindo - se logo a desocupação material do prédio. (cf. Cons. Aragão Seia - "Arrendamento Urbano", 7ª ed, 403; Cons. Pais de Sousa - "Extinção do Arrendamento Urbano", 65-70 e, a propósito, o Acórdão do STJ de 29 de Abril de 1992, com anotação concordante do Dr. Henrique Mesquita, RLJ, 125, 86 e ss).

2 - Matéria de facto

2.1 - "In casu", resulta da factualidade assente que em Abril de 1997 o Réu entregou ao Autor as chaves do prédio.

Já vimos que tal acto não teria relevo como revogação unilateral, por não se tratar de contrato de duração limitada, ao tempo não legalmente admissível, para os arrendamentos comerciais anteriores à entrada em vigor do Decreto - lei nº 257/95.

Mas poderá considerar - se distrate, na modalidade de revogação real.

A revogação real assenta num acordo entre o senhorio e o arrendatário, a que acresce a execução imediata, com dispensa de escrito, mesmo que o contrato exija essa forma. (Ac. STJ de 13 de Março de 1997 - 97A 858).

Incumbe ao Réu o "ónus probandi" por ter alegado essa forma de extinção que terá de resultar de factos concludentes.

O facto tal como resulta provado - simples entrega das chaves - só poderia, eventualmente, conduzir a uma conclusão de existência de consenso pela via da presunção judicial. O "id quod plerumque accidit" resultante da experiência comum.

É a prova "prima facie", baseada "no simples raciocínio de quem julga" e "nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana." (in "Código Civil Anotado" I, 310, 4ª ed.).

O uso destas presunções simples é geralmente admitido como conclusões logicamente necessárias por já compreendidas nas premissas em termos de normalidade de vida, do conhecimento geral e do senso comum. (cf. ainda o Prof. Manuel Andrade, in "Noções Elementares de Processo Civil", 191).

Ora, na repartição do ónus da prova, nos termos do artigo 342º do Código Civil, há que apelar para o critério da normalidade. ("Aquele que invoca um determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contraria terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos." - apud Prof. P. Lima e A. Varela, ob.cit. I, 304 e Cons. Mário de Brito in "Código Civil Anotado" I 453;cf. ainda o Prof. Vaz Serra, "Provas", BMJ, 112-29).

Acontece, porem, que este Supremo Tribunal não pode extrair aquele tipo de ilações por se tratar de pura matéria de facto e, em consequência, da exclusiva competência das instâncias (vide, neste sentido, os Acórdãos do STJ de 7 de Dezembro de 2005 - 05B3853; de 6 de Janeiro de 2006 - 05 A3517; de 26 de Janeiro de 2006 - 05B4252 - entre muitos outros) - artigo 26º da LOFTJ (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro), 729º nº 2 e 722 nº 2 do Código de Processo Civil.

2.2 - Para alem daquele facto, o Réu alegou, ainda, na sua contestação que procedeu à entrega das chaves por já não necessitar do locado (artigo 11º) e que, desde a data da entrega das chaves, o Autor vem tendo plena posse do prédio, sendo que o Réu jamais lá se deslocou ou o utilizou, por si ou por interposta pessoa (artigo 12º).

Estes factos que relevam para a decisão da causa, nos termos descritos, não foram seleccionados para a base instrutória.

E a respectiva ampliação importa para constituir base suficiente para poder aferir - se da existência da revogação real bilateral.

É, em consequência, caso de utilização do nº 3 do artigo 729 do CPC.

3 - Conclusões

É de concluir que:

a) A possibilidade de celebração de contratos de arrendamento de duração limitada para fins não habitacionais só foi introduzida na RAU pelo Decreto - lei nº 257/95. A nova redacção do artigo 117º é inaplicável aos arrendamentos de pretérito.
b) A revogação unilateral dos contratos de arrendamento só é permitida quando o contrato é de duração limitada.
c) A revogação bilateral (mútuo dissenso, acordo revogatório ou distrate) é um negócio consensual e deve ser reduzido a escrito se não for executado de imediato ou contiver qualquer outra cláusula, compensatória ou não.
d) Se o acordo é seguido de entrega imediata - ou abandono - do locado pelo arrendatário e nada mais é clausulado, o distrate é nominado de revogação real.
e) Da simples entrega das chaves do locatário ao senhorio só poderia concluir se pelo acordo revogatório por apelo ás regras de experiência comum, aos juízos correntes de probabilidade, em termos de normalidade de vida e do senso comum.
f) Tal implicaria o lançar mão de presunção judicial, que, sendo uma ilação de facto, é da exclusiva competência das instâncias e está fora dos poderes de cognição do STJ em sede de recurso de revista.
g) Tendo sido alegados outros factos relevantes para alcançar aquela convicção e não seleccionados para base instrutória, justifica se o uso da faculdade do nº 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil.

Destarte, acordam reenviar os autos ao Tribunal recorrido, para ampliação da matéria de facto nos termos referidos.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 9 de Maio de 2006
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho