CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE
POSSE PRECÁRIA
Sumário

I. Em sinalizadas promessas de compra e venda de prédios urbanos, a tradição material da coisa objecto mediato do negócio a favor do promitente-comprador, tanto pode determinar uma situação de posse precária, como de verdadeira posse.
II. Ocorrerá a 2ª hipótese quando, v.g., a traditio ocorrer, após o pagamento da totalidade do preço, acompanhada da intenção aos contraentes, de efectivação de uma transmissão em definitivo, o espírito que àquela preside sendo o da própria compra e venda, só não formalizada a fim de evitar despesas ou precludir o exercício de um direito de preferência, o promitente comprador passando, consequentemente, a actuar uti dominus da coisa imóvel entregue.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. a) "AA" intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário, contra BB e mulher CC, pedindo, nos termos e com os fundamentos vertidos a fls. 2 a 7, a declaração de nulidade de contrato-promessa de compra e venda de imóvel que identifica e a condenação dos demandados a restituirem-lhe tal bem.

b) Contestaram os réus, concluindo no sentido da:
1. Improcedência da acção.
2. Procedência da reconvenção, com:
A título principal, declaração de que "os reconvintes são proprietários do prédio dos autos, inscrito na matriz sob o art. 18447 da freguesia de Albufeira, edificado sob parte do descrito sob o nº 5200 na Conservatória do Registo Predial de Albufeira, por haverem adquirido tal propriedade por usucapião decorrente de uma posse pública permanente, continuada, desde 1984, sem oposição de ninguém, acompanhada da convicção da sua titularidade como proprietários do mesmo, com as legais consequências".
Subsidiariamente:
Declaração de que o contrato-promessa é válido, estando em vigor, e de que "a escritura pública de compra e venda relativamente ao mesmo só não foi outorgada por culpa exclusiva do A., que sempre se furtou à sua realização, não obstante as constantes solicitações dos RR. nesse sentido."
Decreto de "execução específica do contrato promessa de compra e venda nos termos permitidos pelo art. 830º nºs 1 e 3 do Código Civil, lavrando-se sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso".
Declaração de que os "RR. efectuaram no prédio obras da responsabilidade do A. no valor de 3.500.000$00, ou seja, o equivalente a 17457,93 EUR." e que se julgue "compensada com tal quantia o quantitativo que no âmbito do contrato promessa de compra e venda se mostra devido pelos RR. ao A."
Cancelamento, caso proceda o pedido principal ou subsidiário, "de todas as inscrições do prédio que se mostrem incompatíveis com a pretensão dos RR., na Conservatória do Registo Predial de Albufeira, relativas à respectiva descrição".

c) Replicou AA, defendendo não dever "ser aceite a reconvenção formulada pelos RR." e, caso tal se não considere, improceder o, reconvencionalmente, peticionado.

d) Foi proferido saneador-sentença, julgando:
1. Improcedente o pedido de declaração de nulidade do contrato-promessa, bem como o, em reconvenção, a título subsidiário, pedido, o mesmo valendo no tocante ao demais impetrado, citado em I. a).
2. Procedente o pedido de declaração de que os réus adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade "sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo 18447º."

e) Apelou o autor.

f) O TRE, por acórdão de 07-07-05, julgando parcialmente procedente a apelação, revogou "o saneador-sentença na parte em que declarou constituído, por usucapião, o direito de propriedade dos RR. sobre o imóvel dos autos", no mais confirmando a decisão impugnada.

g) É de tal acórdão que BB e mulher trazem revista, na alegação apresentada, em que propugnam, como decorrência da concessão de provimento ao recurso, a bondade da declaração de "que os factos configuram uma situação de posse nos termos do artigo 1251º do C.C. por parte dos RR., tendo estes adquirido por usucapião o direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo 18447", tendo formulado as seguintes conclusões:
"1ª. Por despacho saneador sentença do Tribunal de 1ª instância foi declarada a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre o prédio "sub judice" a favor dos RR.

2ª. Não se conformando com a douta decisão do Tribunal de 1ª instância vem o A. recorrer da mesma alegando que o contrato promessa não é um título de posse conducente à usucapião e que por não terem pago a totalidade do preço os RR. nunca poderiam estar de boa fé.
3ª. O Venerando Tribunal de 2ª instância perfilhou o entendimento de que o contrato promessa de compra e venda de um imóvel, com tradição do mesmo anterior à celebração da escritura não confere a posse daquele ao promitente comprador tal como é definida no art. 1251º, porque os seus poderes correspondem apenas a um direito de crédito sobre o promitente vendedor.
4ª. O Venerando Tribunal "a quo" apenas admite a hipótese do contrato promessa com tradição do imóvel gerar uma situação de posse por parte do promitente-comprador se ele tivesse pago a totalidade do preço o que não aconteceu no caso "sub judice".
5ª. Entende o Tribunal "a quo" que os RR. carecem de "animus possidendi", não sendo possível invocar a inversão do título de posse.
6ª. Ora, resulta dos autos que o R. apresentou a declaração para inscrição do prédio na Repartição de Finanças de Albufeira em 1989 -onde declarava estar na posse do prédio há mais de cinco anos, passando a pagar as contribuições autárquicas em seu nome.
7ª. E que os RR. fizeram várias obras de reparação, conservação e valorização da moradia: um quarto e casa de banho, construíram uma garagem dupla, fecharam um terraço para fazer um pequeno escritório com janela, construíram duas despensas, substituíram ladrilhos, portas e louças da casa de banho - obras feitas na convicção de que o prédio lhes pertencia.
8ª . Tratam-se de actos materiais próprios de quem considera o imóvel como sua propriedade e que demonstram de forma expressiva que os RR. actuaram, não em nome do promitente vendedor, mas em nome próprio com a intenção de exercerem sobre o prédio o direito de propriedade.
9ª. São actos públicos de oposição clara em relação ao anterior proprietário e que demonstram no caso em questão a inversão do título de posse.
10ª. Desta forma resulta provado no caso "sub judice" o preenchimento, quer do elemento material, quer o elemento psicológico por parte dos RR.
11ª. Daí que, sem qualquer, dúvida, sejam actualmente os RR. os proprietários do prédio urbano em questão, propriedade adquirida por usucapião e assente numa posse de boa fé, titulada, pública, pacífica e continuada desde 1984."
h) Contra-alegação inexistiu.
i) Apostos os vistos legais, importa apreciar e decidir.

II. Remete-se para a matéria de facto apurada, elencada na decisão impugnada, nos termos consentidos pelo art. 713º nº 6 do CPC, normativo este que joga "ex vi" do disposto no art. 726º de tal Corpo de Leis.

III. O DIREITO:
Atento o que baliza o âmbito do recurso (art.s 684º nº3 e 690º nº 1 do CPC), urge, liminarmente, deixar expresso o seguinte:

1. Não raro, tal tendo sido, outrossim, realidade, "in casu", as sinalizadas promessas de compra e venda de prédios urbanos são acompanhadas da tradição material da coisa objecto mediato do negócio a favor do promitente-comprador, numa antecipação dos efeitos práticos do contrato prometido.
A essa tradição material, consoante lembrado no Ac. deste Tribunal, de 27-05-04, in CJ/Acs. STJ-Ano XII-tomo II, págs. 77 e segs., cuja doutrina, quanto à questão nuclear a dissecar em sede recursória, a da usucapião pelo promitente-comprador, perfilhamos, sendo também a sufragada por Antunes Varela, in RLJ, Ano 124º, nº 3811, págs. 343 e segs., "não corresponde, em regra, a transmissão da posse correspondente ao direito de propriedade, porque a causa daquele acto translativo, que é o contrato-promessa e a convenção acessória de entrega antecipada da coisa, não se destina à constituição ou transferência de direitos reais, designadamente, o direito de propriedade, mas, tão só, à constituição de um direito de crédito a uma determinada declaração negocial."
O que se não deve, de harmonia com o sustentado em Acs. de 08-05-03 e 11-10-05 (in CJ/Acs. STJ-Ano XI-tomo II, págs. 46 e segs., e Ano XIII-tomo III, págs. 63 e segs.) é "partir do princípio dogmático" de que do contrato-promessa "resulta, necessariamente e sempre, a posse precária".
Efectivamente, assinala-o Antunes Varela, in Revista citada, pág. 348, admite-se que a posição do promitente-comprador se possa, em circunstâncias excepcionais, converter, havendo entrega da coisa, numa verdadeira situação possessória, sendo concebíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse, como ocorre, por exemplo quando, havendo sido paga já a totalidade do preço, as partes "não têm o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência", a coisa sendo entregue "ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse."
Ler se pode no à colação já chamado Ac. de 27-05-04 que, nas preditas hipóteses, nada impede que "se dê a aquisição derivada da posse por parte do promitente-comprador, visto que o espírito que preside à traditio não é o do contrato-promessa mas o da própria compra e venda, embora nula por falta de forma, e já que, por outro lado, a nulidade formal do negócio não constitui obstáculo à aquisição derivada da posse", como também ensinava Manuel Rodrigues, in "A Posse", 2ª edição revista e actualizada, págs. 259 e segs.

Mas se assim é, importa desde já deixar consignado que a hipótese em apreço, como, aliás, assinalado no acórdão impugnado, não constitui paradigma de situação em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche, pelo já dilucidado, todos os requisitos de uma verdadeira posse, uma vez que nem sequer foi paga, longe disso, a totalidade do preço.
Mais:
Nem os réus-reconvintes alegara, inclusive, factualidade donde decorresse, a provar-se, obviamente, que a entrega, a traditio, do prédio urbano prometido vender foi acompanhada da intenção, comum aos contraentes, de efectivação de uma transmissão, em definitivo, para que, desde logo, tal prédio passasse a ser dos demandados!...

Prosseguindo:
2. Não sofre dúvida que o CC de 66 adoptou a doutrina subjectivista de Savigny quanto ao conceito de posse, como decorre do plasmado no art. 1253º do CC.
Se a posse é derivada, ou seja, transferida por outrem, é à teoria da causa que se deve dar razão para prova do animus, enquanto na posse unilateral (a resultante de ocupação ou esbulho), para tal fim, à vontade concreta se deve atender - cfr. Oliveira Ascensão, in "Direitos Reais", 1971, págs.249 e segs.
Também Manuel Rodrigues, in obra citada, pág. 258, escrevia:
"Na aquisição bilateral da posse o animus resulta da natureza do acto jurídico por que se transferiu o direito susceptível de posse. É a teoria da causa.

E assim, se a tradição se realizou em consequência de um acto de alienação da propriedade a intenção que tem o adquirente é a de exercer o direito de propriedade. Se a tradição se realizou em consequência de um acto de locação, pelo qual se transferiu um determinado prédio, a intenção do locatário é a de exercer o direito pessoal de arrendatário.
Ao acto jurídico, quando existir, se há de recorrer sempre para averiguar qual o animus daquele que, em virtude dele, detém uma coisa.. E contra a vontade que da causa deriva, não é permitido alegar uma vontade concreta do detentor, salvo se este houver invertido o título."
Como ainda explanado no invocado Ac. de 27-05-04:
"...a reserva mental de qualquer uma das partes intervenientes no negócio causal nenhum relevo tem para a determinação do animus, de harmonia com a irrelevância que a lei atribui a esse vício da vontade (cfr. art. 244º, nº 2 do CC), por isso a reserva mental do beneficiário da traditio acrescenta nada ao animus que resulta da natureza do negócio causal!..."
A "reserva mental do beneficiário da traditio só tem possibilidades de influir no animus a partir do momento em que deixe de o ser e se exteriorize numa atitude de oposição face ao transmitente, por uma das formas previstas no art.1265º CC (inversão do título da posse)."

3. Isto dito, em retorno à hipótese "sub judice", temos, sempre não esquecendo, igualmente, o seguinte ensinamento de Antunes Varela, in RLJ, ano e nº aludidos, pág.347:
"A verdade, porém, é que a tradição da coisa, móvel ou imóvel, realizada a favor do promitente-comprador, no caso da promessa de compra e venda sinalizada, não investe o accipiens na qualidade de possuidor da coisa...
E os poderes que o promitente-comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, não são os correspondentes ao direito de proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente- adquirente perante o promitente-alienante ou transmitente."

Assim:
Para além do já expresso em III. 1., "in fine", censura não merece a decisão sob recurso, por, como no mesmo se refere, carecerem os ora recorrentes de animus possidendi, atenta a natureza do negócio causal, não se vendo que "possam invocar, no caso, a inversão do título de posse."
Aos actos referidos nas conclusões 6ª e 7ª da alegação, ainda que significativos de uma actuação jure proprio, de nada valem para efeitos de aquisição da posse, visto que lhes falta, ao arrepio do entendido pelos recorrentes, a característica de oposição necessária à inversão do título, por ter de o ser em relação ao autor, o proprietário, oposição aquela que tem de traduzir-se em actos positivos e inequívocos praticados pelo oponente, como jurisprudência seguramente firme - cfr. Acs. deste Tribunal, de 12-01-99 (Revista nº937/98-2ª Secção, in "Sumários de Acórdãos Cíveis - Edição Anual - 1999, pág.27) e os já chamados de 27-05-04 e 11-10-05.
Os réus-reconvintes nem sequer alegaram ter levado ao conhecimento do autor-reconvindo, antes da notificação do seu articulado, a apresentação do documento e efectivação dos pagamentos invocados na conclusão 6ª da sua alegação!...

Não havendo posse, não pode dar-se usucapião, como flui do art. 1287º do CC.

IV. CONCLUSÃO:
Termos em que se nega a revista, confirmando-se a decisão sob revista.
Custas pelos recorrentes (art. 446º nºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 11 de Maio de 2006
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos
Noronha do Nascimento.