HOMICÍDIO QUALIFICADO
CULPA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
FRIEZA DE ÂNIMO
CRIMES CONTRA O RESPEITO DEVIDO AOS MORTOS
PROFANAÇÃO DE CADÁVER
Sumário

I - O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132.° do CP, é uma forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n.º 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 do art. 132.°.
II - O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.
III - Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.
IV - Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado
«desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado.
V - A frieza de ânimo, a que se refere a al. i) do n.º 2 do art. 132.° do CP, traduz a formação da vontade de praticar o facto de modo frio, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo
reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão ou sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.
VI - Resultando da factualidade provada que:
- após ter efectuado um segundo disparo que (tal como o primeiro) atingiu o G na zona do tronco, o arguido J, através do vidro da porta traseira do lado do condutor, que se encontrava embaciado e fechado, apercebeu-se de um vulto, desconhecendo quem fosse;
- de imediato efectuou um disparo através do vidro da referida porta, o qual atingiu tal pessoa na zona do tronco;
- foi nessa altura que se apercebeu de que se tratava de A, nascido a 20-11-1989, filho do G, que não morrera e se encontrava em agonia;
- o arguido J pediu ao arguido L, que entretanto saíra do interior da viatura, mais um cartucho;
- o L deslocou-se à viatura, muniu-se de um cartucho que, de seguida, entregou ao arguido J;
- este colocou-o na caçadeira, aproximou o cano da cabeça do A e, a menos de um metro de distância, desferiu um tiro que entrou pelo olho esquerdo; tais factos revelam, impressivamente, que o recorrente actuou de modo intenso, resoluto, decidido, persistente, pensado e frio, em total e absoluta indiferença pela vítima, insistindo na sua intenção de concretizar, sem falhas, a eliminação física, nas circunstâncias concretas, de um indivíduo, presença inesperada no local, que tinha assistido à prática, pelo
recorrente e outro co-arguido, dos factos imediatamente antecedentes na execução de um outro crime de homicídio na pessoa do pai da vítima, integrando a dimensão qualificativa da al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP, por revelarem no facto uma projecção de especial censurabilidade e perversidade na execução do crime, adensando exponencialmente a culpa
do recorrente.
VII - O tipo legal do art. 254.º, n.º 1, do CP (profanação de cadáver ou de lugar fúnebre) visa a protecção de um sentimento moral colectivo de respeito pelos defuntos, independentemente de qualquer conotação religiosa ou de fé, protegendo um bem jurídico imaterial (cf., v. g.,
Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 532).
VIII - Cadáver, enquanto objecto do facto tipificado na al. a) do n.º 1 do aludido preceito, é o corpo de uma pessoa falecida, enquanto se possa dizer que ele representa essa mesma pessoa - portanto quando não se tenha verificado o processo total de decomposição ou 17 quando não se tenha quebrado, por uma qualquer razão, a conexão simbólica entre os despojos e a pessoa falecida; o cadáver tem de ser uma espécie de representação do corpo.
IX - A acção deve consistir em subtracção ou destruição de tal modo que impeça que se dê ao cadáver o destino normal com a consequente manifestação de sentimentos (sociais ou religiosos) para com as pessoas falecidas - ou mais especificamente, para com uma concreta pessoa falecida.
X - Em geral, destruir significa alterar a substância, deixando a coisa de manter a sua individualidade anterior: constitui materialmente um plus em relação à danificação (em que não existe perda total da identidade), ou à desfiguração (em que se afecta irremediavelmente a projecção física externa). No caso de cadáver, destruir significa «reduzir a nada» - por exemplo quando se lança fogo ao cadáver ou se faz desaparecer as
cinzas. A destruição significa, assim, enquanto impeditiva da manifestação de sentimentos sociais, a desintegração de modo a que o cadáver peca a sua essência específica de espécie de representação do corpo.
XI - Evidenciando os factos provados (tanto pela referência directa - «destruírem», como pela descrição das consequências nos cadáveres das vítimas) que ocorreu destruição, no sentido físico (desintegração ou desaparecimento dos elementos físicos, afectando, irremediavelmente, a conexão simbólica entre os despojos e a pessoa falecida), e deles resultando também que a destruição não autorizada exterioriza, in re ipsa, a quebra do sentimento de respeito e piedade devido aos mortos enquanto bem jurídico protegido pela incriminação (sendo que, em diverso das als. b) e c) da mesma disposição, a al. a) do n.º 1 do art. 254.º não exige específica intenção como elemento do tipo de ilicitude), mostra-se
verificada a prática pelo recorrente de dois crimes p. e p. pelo mencionado preceito legal.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Em processo comum, com a intervenção do Tribunal Colectivo, o Ministério Público acusou AA, solteiro, trabalhador rural, nascido a 12 de Agosto de 1985 , na freguesia da Ribeira Seca , concelho da Calheta , filho de BB e de CC , residente no ... , .. , Lajes do Pico e actualmente detido preventivamente no Estabelecimento Prisional de Apoio da Horta
DD, casado, agricultor , nascido a 19 de Março de 1965 , na freguesia e concelho de Lajes do Pico , filho de EE e de FF , residente na rua do ...,..., ....., Lajes, imputando-lhes a prática dos factos que integram, em co-autoria material e em concurso real :
- um crime de homicídio qualificado , p. p. pelos artºs 132° , n° 2 , al.s d) e i) , com referência ao artº 131° , todos do Código Penal (diploma a que se reportam os demais preceitos legais referidos sem menção de origem) ;
- um crime de furto , p. p. pelo artº 203° , n°s 1 e 3 e
- um crime de dano , p. p. pelo artº 212° , n°s 1 e 3 ;
- o arguido AA , em concurso real , um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal , p. p. pelo artº 3° , n° 2 , do Dec. Lei n° 2/98 , de 3 de Janeiro , com referência aos artºs 121° , 122° e 123° , do Código da Estrada .
Efectuado o julgamento, e com os procedimento do artigo 358º, nº 3 do Código de Processo Penal, o tribunal colectivo julgou o arguido AA co-autor da prática, em concurso real, de:
- um crime de homicídio qualificado , p. p. pelos artºs 4º , do Dec. Lei 401/82 , de 23.09 , 73º , nº 1 , 131º e 132º , nºs 1 e 2 , al. i) ;
- um crime de furto simples , p. p. pelos artºs 4º do Dec. Lei 401/82 , 73º nº 1 e 203º , nº 1 ;
- um crime de dano , p. p. pelos artºs 4º , do Dec. Lei 401/82 , t3º , nº 1 e 212º , nº 1 ;
- dois crimes de profanação de cadáver , p. p. pelos artºs 4º , do Dec. Lei 401/82 , 73º , nº 1 e 254º , nº 1 , al. a) ;
- cúmplice da prática de um crime de homicídio , p. p. pelos artºs 4º , do Dec. Lei 401/82 , 27º , 73º , nº 1 , 131º e 132º , nº 1 . al. i) e
- autor material da prática de um crime de condução sem habilitação legal , p. p. pelos artºs 4º , do Dec. Lei 401/82 , 3º , nº 2 , do Dec. Lei 2/98 , de 03.01 , e 73º , nº 1 e , consequentemente , condená-lo nas penas de dez (10) anos de prisão ; seis (6) meses de prisão ; seis (6) meses de prisão ; oito (8) meses de prisão ; oito (8) meses de prisão ; dois (2) anos e seis (6) meses de prisão e três (3) meses de prisão , respectivamente ;em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de onze (11) anos de prisão ;
E julgou o arguido DD co-autor da prática, em concurso real de:
- um crime de homicídio qualificado , p. p. pelos artºs 131º e 132º , nºs 1 e 2 , alínea i) ;
- um crime de furto simples , p. p. pelo artº 203º , nº 1 ;
- um crime de dano , p. p. pelo artº 212º , nº 1 ;
- dois crimes de profanação de cadáver , p. p. pelo artº 254º , nº 1 , al. a) e
- autor material da prática de um crime de homicídio qualificado , p. p. pelos artºs 131º e 132º , nº 1 , al. i) e , consequentemente , condená-lo nas penas de dezassete (17) anos de prisão ; dez (10) meses de prisão; dez (10) meses de prisão, doze (12) meses de prisão; doze (12) meses de prisão e dezasseis (16) anos de prisão, respectivamente; em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de vinte e cinco (25) anos de prisão.

2. Não se conformando com a decisão, o arguido DD recorre para o Supremo Tribunal com os fundamentos constantes da motivação que apresenta, e que condensou com a formulação das seguintes conclusões:
1ª O que permitiu identificar os autores dos factos, o seu modo de proceder e as suas motivações foram as declarações dos arguidos, sendo que os demais elementos de prova, apenas permitiram certificar a coerência daquelas declarações;
2ª. A colaboração do recorrente e do seu co-autor foi insuprível e decisiva e, por isso, há-de ter reflexos na determinação da pena, de forma superlativa;
3ª. Não valorando o carácter decisivo dessa colaboração, e o que ela diz da personalidade do arguido e do seu arrependimento, o acórdão violou o disposto no n.° l e 2 do art. 71.° do Cód. Penal.
4ª.Um segundo tiro desferido sobre uma vítima (GG) que se sabe ferida de morte por um primeiro tiro e que, em qualquer caso, morreria por acção do fogo posto na viatura em que seguia, só pode ser considerado como de "misericórdia", para lhe evitar o sofrimento;
5ª. A especial censurabilidade necessária à caracterização de um homicídio como qualificado, há-de ser retirada dos elementos de prova que constem dos autos;
6ª. Os elementos de prova decisivos foram as declarações dos arguidos e elas vão no sentido de que o segundo tiro foi dado com a exclusiva intenção de evitar mais sofrimento à vítima,
7ª. Corrobora essa interpretação o facto de a vítima estar agonizante, em sofrimento e de a sua morte ser inevitável, por força de um primeiro disparo, não havendo, nos autos, qualquer elemento que deponha em sentido diferente;
8ª. Qualificando a morte de GG, o douto acórdão violou, por erro de interpretação, a alínea i) do art. 132° do C.P.
9ª. Para que se verifique o crime de profanação de cadáver, necessário é que esse crime seja um fim em si mesmo; já não quando seja instrumento de um outro crime;
10ª. Ficou provado que a única intenção dos agentes, ao destruírem os cadáveres, era a de ocultar a prática do homicídio, tudo fazendo parte do mesmo plano para matar HH, ou seja, tudo dentro da mesma resolução criminosa - de homicídio.
11ª. Caso assim não se entenda, como se justifica, então, a punição de AA como co-autor de um crime de homicídio qualificado na pessoa de HH, já que ficou, também, provado que a sua participação nos factos foi a de, precisamente, auxiliar o recorrente na destruição, pelo fogo, dos cadáveres de HH e GG?
12ª. Concluindo da forma como fez, condenado o recorrente por dois crimes de profanação de cadáver, violou, mais uma vez por erro de interpretação os art. 254.°, n.° l, ai. a), art. 14.°, 26.° e 29.°, todos do Cód. Penal.
Termina pedindo que o acórdão recorrido seja «parcialmente revogado», e em consequência:
«a) Ser o recorrente condenado pela prática um crime de homicídio simples, e não de homicídio qualificado, na pessoa de GG;
b) Ser anulada a condenação do recorrente no que respeita aos dois crimes de profanação de cadáver,
c) Ser a confissão tida como elemento relevante na descoberta da verdade material e pressuposto do arrependimento sincero, procedendo à revisão das penas parcelares aplicáveis a cada um dos crimes;
d) Ser a pena concretamente aplicada ao recorrente revista, nos termos supra expostos, diminuindo-se a sua medida».
O magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu à motivação, entendendo, em conclusão, que «s deve dar-se provimento parcial ao recurso revogando-se o douto acórdão na parte em que condena os arguidos pela prática, em co-autoria material, de dois crimes de profanação de cadáver, p. e p., pelo artigo 254°, n.° l, alínea a) do CP, mantendo-se, porém, o mesmo nos seus precisos termos quanto ao restante, nomeadamente na penas de 25 anos e 11 anos de prisão em que foram condenados os arguidos DD e AA».

3. Neste Supremo Tribunal, a Exmªa Procuradora-Geral Adjunta considera que nada impede o conhecimento do recurso.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, com a produção de alegações, cumprindo apreciar e decidir:

4. O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos:
1 - O arguido AA começou a consumir produtos estupefacientes , nomeadamente , heroína , a partir de Julho de 2004 , data em que foi trabalhar para o café denominado "..." , sito na rua do ... , .... , S. Roque do Pico , o qual era explorado pelo HH , a quem passou a adquirir tal produto para consumir .
2 - Trabalhou para o HH durante cerca de três meses, de Julho a meados de Outubro de 2004.
Durante tal período de tempo manteve com ele uma boa relação , ao ponto do HH lhe confidenciar onde guardava o estupefaciente utilizado para o tráfico , actividade a que também se dedicava .
3 - Ficou acordado entre ambos que o vencimento do AA seria de € 600 mensais.
Contudo, durante o período de tempo que ali trabalhou o arguido apenas recebeu € 200 .
4 - Cerca de duas semanas após ter deixado de trabalhar para o HH , como forma de se ressarcir dos salários não pagos , o arguido dirigiu-se ao local denominado por Mistério , no concelho das Lajes do Pico , ao local onde sabia que o HH guardava o produto estupefaciente que transaccionava (heroína e cocaína) e , da totalidade que ali se encontrava , retirou cerca de sete gramas de heroína , deixando lá o resto .
Da heroína que de lá retirou consumiu parte e a outra parte cedeu a terceiros com o que auferiu a quantia de € 80 .
5 - Nesse mesmo dia, no parque de campismo das Lajes do Pico , o HH , já sabedor que tinha sido o arguido AA quem lhe tinha tirado a heroína , exigiu-lhe o pagamento da quantia de € 1.900 , tendo-lhe então apontado uma pistola e efectuado um disparo que passou tão perto da sua cabeça que chegou a queimar-lhe alguns cabelos .
6 - Na realidade, em Agosto de 2004 , o arguido AA foi detido na ilha de S. Jorge na posse de produtos estupefacientes que estava a transaccionar por conta do HH .
Foi presente a primeiro interrogatório judicial e restituído à liberdade com obrigação de apresentações periódicas .
Contudo , o HH alegava que lhe tinha pago uma caução de € 1.900 para que ele aguardasse o julgamento em liberdade , quantia essa que agora reclamava .
7 - Exigiu-lhe também o HH naquela ocasião a devolução do produto estupefaciente que lhe havia tirado caso contrário "iria tratar-lhe da saúde" .
8 - Alguns dias depois , o HH apossou-se do motociclo da marca "Peugeot" , modelo "Zenith" , com a matrícula 1 LGP , que o arguido AA havia adquirido em finais de 2004 .
9 - Foi também por estes dias que o arguido o AA , com medo de represálias por parte do HH , foi para S. Jorge , onde esteve a viver em casa da mãe , de onde apenas regressou ao Pico em Fevereiro de 2005 .
10 - Durante a ausência do arguido AA , o HH , sem autorização e conhecimento daquele , vendeu o referido motociclo e ficou com o dinheiro .
11 - Em Março de 2005 , o arguido AA comprou um veículo da marca "Fiat" , cuja matrícula se desconhece , negócio que fez contra a vontade do HH que continuava a exigir-lhe o pagamento de € 1.900 , pelas razões já acima referidas .
12 - Cerca de um mês e meio depois , o arguido AA bateu com o referido veículo , o qual ficou imobilizado na estrada longitudinal , na recta da Madalena .
Algum tempo depois , o veículo apareceu queimado , acto que o arguido atribuía ao HH .
13 - O arguido DD é consumidor de heroína desde 1999 e , desde 2003 , passou a adquirir tal produto ao HH .
14 - Este , nesta sua actividade de venda de produtos estupefacientes , tinha por hábito fazer esperar os consumidores horas a fio nos locais previamente combinados para as transacções de heroína e , por vezes , nem chegava a aparecer .
Também muitas das vezes , a heroína que o HH transaccionava era de muito má qualidade , "cortada" com comprimidos .
15 - Esta actuação do HH desagradava sobremaneira aos arguidos .
16 - Os arguidos passaram a relacionar-se de forma mais próxima a partir Julho de 2004 e , a partir de tal ocasião , tornaram-se amigos e passaram a consumir heroína juntos .
17 - Em meados de Maio de 2005 , os arguidos , a II , companheira do arguido AA e o DD "..." , dirigiram-se ao café ".." , onde o arguido DD adquiriu ao HH € 75 de heroína , que foi consumida por todos .
18 - Na sequência deste consumo ficaram todos com mau estar físico , o que atribuíram à má qualidade da heroína .
Esta ocorrência irritou o arguido DD que , dias depois mas não mais de uma semana antes da morte do HH , no café "..." , sito na Madalena , disse em voz alta e audível por todos quantos ali se encontravam que "ele (HH) iria pagar por todo o mal que fez às pessoas e que ainda ficava queimado no carro" .
19 - Esta actuação do HH cimentou o sentimento de ódio do arguido DD e de temor do arguido AA para com ele , de tal forma , que decidiram matá-lo .
20 - Já anteriormente o arguido DD , num café , tinha tido uma briga com o HH e , numa outra ocasião , o HH tinha ameaçado a sobrinha/afilhada do arguido DD que ela "pagava com o corpo" se o pai dela não pagasse a dívida de fornecimento de produto estupefaciente que tinha para com o HH .
21 - O arguido DD tinha um telemóvel com o nº 912802191 e o HH tinha também um com o nº 963986560 .
22 - Havia já , pelo menos , mais de quinze dias que entre estes dois números de telefone não era estabelecida qualquer ligação .
23 - No dia 18 de Maio de 2005 , no período compreendido entre as 22.01 horas e as 00.21 horas , entre os dois acima referidos números de telefone foram estabelecidas cinco ligações .
24 - As pessoas que se relacionavam com o HH sabiam que ele andava armado com uma caçadeira , que trazia sempre no carro , e com uma pistola , o que também era do conhecimento dos arguidos .
25 - Com o propósito de porem termo à vida do HH , os arguidos acordaram em atrai-lo durante a noite a um local ermo , a pretexto de lhe adquirirem heroína , local onde o matariam a tiro , após o que simulariam um acidente de viação seguido de incêndio , por forma a ocultar tal acto .
26 - Um ou dois dias antes da morte do HH , os arguidos deslocaram-se ao local onde pretendiam simular o acidente a fim de testarem a velocidade que um veículo automóvel atingiria , destravado e desengatado , ao longo dessa estrada , tendo apurado que atingiria uma velocidade de 120 Km/hora .
27 - No dia 21 de Maio de 2005 , pelas 19.31 horas , o arguido DD ligou do seu telemóvel para o do HH , com a finalidade de combinarem um encontro para que este lhe fornecesse heroína e acordaram que o encontro teria lugar no Mistério , cerca das 23.00 horas .
28 - No mesmo dia , sábado , pelas 22.30 horas , a II saiu da pizaria "..." , seu local de trabalho , nas Lajes do Pico .
29 - À sua espera estava o arguido AA e dirigiram-se ambos para o café "..." , localizado ao lado da pizaria , onde se encontraram com o arguido DD , que estava acompanhado da mulher e dos dois filhos do casal .
30 - Ali permaneceram até cerca das 23.00 horas , momento em que o arguido DD , que se fazia transportar no veículo ligeiro de mercadorias , de caixa aberta , marca "Toyota" , modelo "Hilux" , com a matrícula GX , foi deixar o arguido AA e a companheira a casa deles , após o que se dirigiu para sua casa , onde deixou a mulher e os filhos e regressou a casa do arguido AA para o levar consigo , a fim concretizarem o plano de porem termo à vida do HH .
31 - Na caixa de carga da viatura o arguido DD trazia duas embalagens de plástico , uma contendo gasolina e a outra gasóleo e , no interior da cabina , uma arma caçadeira , do tipo "pump-action" , da marca "Remington" , com capacidade para cinco cartuchos .
32 - Dirigiram-se de seguida à vila das Lajes onde , de uma cabina pública , telefonaram para o HH , tendo este dito que já ia ao encontro deles no local previamente combinado , no Mistério .
33 - Os arguidos deslocaram-se para o local e aguardaram pela chegada do HH .
34 - Pelas 02.31 horas , pelas 02.41 horas e pelas 02.48 , já da madrugada do dia 22 de Maio , os arguidos , através do telemóvel do DD , telefonaram para o telemóvel do HH , para averiguar da razão da sua demora , mas sem sucesso .
35 - Às 02.57 horas , o HH recebeu um telefonema do arguido DD e respondeu a este que não se demorava .
36 - Na madrugada do dia 22 de Maio de 2005 , o HH fechou o café "..." cerca das 03.00/03.15 horas , depois de para tanto ter sido interpelado por agentes da PSP da esquadra de S. Roque do Pico , face ao adiantado da hora .
37 - Fechado o estabelecimento , o HH , juntamente com a sua empregada JJ , dirigiu-se ao seu veiculo ligeiro de passageiros , marca "Toyota" , modelo "Corolla" , com a matrícula HO , onde já se encontrava o seu filho GG , com a finalidade de ir deixar a JJ a casa , nas Bandeiras .
38 - O GG passou para o banco traseiro , onde se deitou a dormir , com a cabeça virada para o lado do condutor .
39 - Antes de deixar a JJ em casa , já cerca das 04.00 horas , ainda foram à Madalena , passear .
40 - O HH , depois de se despedir , seguiu em frente , no sentido oposto ao da estrada principal .
41 - Às 4.13 horas do dia 22 de Maio , o HH efectuou um telefonema para o arguido DD , a fim de saber onde eles (arguidos) se encontravam pois já tinha passado no local do encontro e não os tinha visto .
42 - Às 04.14 horas , o HH recebeu uma mensagem SMS enviada pelo arguido DD .
43 - Os arguidos encontravam-se no interior da carrinha conduzida pelo arguido DD , estacionada a cerca de 20 a 30 metros do entroncamento entre a estrada regional e o caminho da britadeira , zona conhecida por Meio Mistério , que dá acesso ao Cabeço de Fogo , concelho e comarca de S. Roque do Pico .
44 - O arguido DD , momentos depois do envio da mensagem , ao aperceber-se do aproximar das luzes do carro do HH , avançou cerca de 150 a 200 metros para cima , no mencionado caminho e colocou a caçadeira sobre as suas pernas , pronta a disparar , permanecendo o arguido AA no banco da frente , ao lado do condutor .
45 - O HH aproximou-se pela retaguarda da carrinha , passou-a e , alguns metros à frente , fez inversão de marcha , imobilizando o veículo paralelamente àquela , por forma que os dois condutores ficaram quase lado a lado .
46 - O HH tinha o vidro da porta da frente do seu lado aberto , bem como o arguido DD , dirigiu-se a este , sem sair da viatura , e disse-lhe que se tinha atrasado por causa da JJ .
47 - Nessa altura o DD saiu da viatura em que se fazia transportar , empunhando a caçadeira e , a cerca de um metro de distância do HH , desferiu-lhe um tiro à queima roupa , atingindo-o no tronco .
48 - O HH , ao sentir-se ferido , disse "... , mataste-me" e , logo de seguida , o arguido DD efectuou um segundo disparo que atingiu o HH na mesma zona do corpo .
49 - Após este disparo , o arguido DD , através do vidro da porta traseira do lado do condutor , que se encontrava embaciado e fechado , apercebeu-se de um vulto , desconhecendo quem fosse .
50 - De imediato efectuou um disparou através do vidro da referida porta , o qual atingiu tal pessoa na zona do tronco .
51 - Foi nessa altura que se apercebeu que se tratava de GG , nascido a 20.11.89 , filho do HH , que não morrera e se encontrava em agonia .
52 - O arguido DD pediu ao arguido AA , que entretanto saíra do interior da viatura , mais um cartucho .
O AA deslocou-se à viatura , muniu-se de um cartucho que , de seguida , entregou ao arguido DD .
Este colocou-o na caçadeira , aproximou o cano da cabeça do GG e , a menos de um metro de distância , desferiu um tiro que entrou pelo olho esquerdo .
53 - De seguida , os arguidos retiraram o corpo do HH , que era pessoa de compleição física forte , do banco do condutor , onde se encontrava , e colocaram-no no banco ao lado .
54 - O AA colocou um impermeável sobre o assento do condutor do veículo do HH , para evitar que se sujassem de sangue .
55 - O DD dirigiu-se à viatura em que se tinham feito transportar , o AA sentou-se ao volante da viatura em que o HH se deslocara até àquele local e seguiram ambos , cada um em sua viatura , até um local situado cerca de 200 a 300 metros mais acima , onde existe uma entrada de terra que dá acesso a um espaço aberto e não visível da estrada .
56 - Ali chegados , revistaram o HH , tendo o DD retirado do pescoço da vítima um fio em ouro que estava rebentado e arremessou-o para o mato ali existente .
Tiraram-lhe a carteira do bolso das calças e apropriaram-se de cerca de € 1.000 que estavam no seu interior , quantia que dividiram igualmente entre os dois .
57 - Apoderaram-se ainda de uma embalagem metálica que se encontrava também num dos bolsos das calças do HH , no interior da qual se encontravam cerca de 2 gramas de cocaína , 1 grama de heroína e uma "língua" de haxixe , produto que foi consumido por ambos os arguidos .
58 - Seguidamente , com o DD ao volante da viatura que vinha conduzindo e o AA ao volante da utilizada pelo HH , dirigiram-se para o local previamente combinado para atearem fogo a este último automóvel , local esse que se situa perto do km 8 da estrada Longitudinal , perto da estrada que dá para a Madalena , a cerca de 27 quilómetros de distância do local onde tinham tirado a vida ao HH e ao filho .
59 - Ali chegados , imobilizaram as viaturas .
Do interior do veículo conduzido pelo DD retiraram dois recipientes com gasolina e gasóleo , combustíveis que espalharam pelo interior da viatura do HH , nomeadamente sobre os cadáveres .
60 - Destravaram e desengataram o "Toyota" , o DD , com um isqueiro , ateou fogo ao veículo e deixaram a viatura deslizar pela estrada (recta) que dá acesso à Madalena .
Alguns metros mais à frente o veículo guinou para a berma do lado esquerdo e foi embater num muro ali existente , imobilizando-se .
Esta viatura ficou completamente destruída pelo fogo .
61 - De seguida os arguidos abandonaram o local , tendo o AA regressado a casa cerca das 08.30 horas .
Despiu a roupa que trazia vestida , que estava suja de sangue , e colocou tudo na máquina a lavar .
62 - Num dos dias imediatos , o arguido DD deslocou-se sozinho para umas pastagens sitas junto da Lagoa dos Peixinhos e atirou a caçadeira com que tinha morto o HH e o GG , juntamente com os cartuchos que ele e o AA haviam apanhado do chão após os disparos , para um poço muito fundo onde são colocadas carcaças de animais mortos .
63 - Em consequência da actuação dos arguidos as vítimas sofreram lesões , umas ocasionadas pelos disparos e outras por acção do fogo .
Assim , o HH , beneficiário da Segurança Social com o n° 112300669594 , em consequência dos disparos sofreu destruição de quase toda a cabeça , encontrando-se uma bucha plástica com restos de sangue e tecidos moles aderidos localizada junto ao ângulo esquerdo da mandíbula , com infiltração sanguínea dos tecidos moles circundantes , fractura do ramo ascendente da mandíbula , hematoma epidural artefactual , presença de zagalote no tecido celular subcutâneo da face posterior do pescoço , presença de um zagalote na região escapular esquerda , em zona rodeada de infiltração sanguínea abundante , solução de continuidade superficial na face posterior do ventrículo direito , intensa infiltração sanguínea do mediastino posterior , presença de zagalote no mediastino anterior ao nível dos grandes vasos , zagalote incrustado no processo transverso da 5ª vértebra cervical , destruição das lâminas esquerdas C2 e C7 , com exposição do terso proximal da medula .
Em consequência do fogo sofreu carbonização generalizada , nomeadamente a massa encefálica cozida , pescoço , mãos , perna esquerda e ambos os pés carbonizados , fracturas dos úmeros e antebraços e fracturas cominutivas bilaterais dos arcos costais , deixando à vista os órgãos torácicos e abdominais .
A traqueia não apresentava qualquer resíduo de fuligem .
64 - A morte do HH ocorreu em consequência directa e necessária das lesões traumáticas da face , pescoço e tórax acima referidas , provocadas pelos disparos .
65 - O GG , beneficiário da Segurança Social com o nº 11230397992 , que se encontrava sem a metade superior da cabeça , apresentava carbonização extrema , com o corpo reduzindo ao tronco , com as raízes dos membros ainda apensos .
Em consequência dos disparos sofreu solução de continuidade circular na zona média do dorso esquerdo , medindo cerca de dois centímetros de diâmetro , com zagalotes nos músculos à frente da omoplata direita , chumbo no grande peitoral esquerdo , perfuração dos tecidos moles a nível da metade esquerda do dorso , rodeada de infiltração sanguínea , perfuração de costela do arco posterior esquerdo por projéctil de arma de fogo , com infiltração sanguínea do tecidos moles circundantes , perfuração de outra costela , não identificada , por zagalote , perfuração do ventrículo esquerdo , solução de continuidade circular na face costal do lobo inferior do pulmão esquerdo , com perfuração do parênquima , rodeada de infiltração sanguínea , presença de bucha plástica incrustada entre os lobos pulmonares esquerdo , a nível da cisura oblíqua e zagalote no lobo esquerdo do fígado
Em consequência do fogo , como já acima se referiu , o corpo ficou reduzido ao tronco , com encéfalo cozido , pescoço parcialmente carbonizado , bordos das costelas calcinados , saco pericárdio queimado , expondo a metade inferior do coração , incluindo o apex , face anterior do coração cozida , extensa queimadura do bordo medial e face costal de todo os lobos do pulmão direito , lobo superior do pulmão esquerdo cozido , paredes anterior e posterior do abdómen destruídas por carbonização , fígado com algumas partes em carvão e restantes órgãos da cavidade abdominal carbonizados , vértebras lombares carbonizadas , fractura dos úmeros e fémures devido à carbonização .
Traqueia e brônquios sem negro de fumo ou sinais de queimadura .
66 - A morte do GG ocorreu em consequência directa e necessária das lesões traumáticas torácicas acima descritas , provocadas pelos disparos .
67 - A viatura "Toyota" propriedade do HH tinha o valor de € 1.500 .
68 - Os arguidos agiram em conjugação de esforços e de intenções , com o propósito concretizado de matarem o HH , planeando a sua morte com antecedência .
69 - O arguido DD agiu com o propósito concretizado de matar o GG , levando a cabo tal actuação de forma fria e calculista .
70 - Também o arguido AA agiu com o propósito de ajudar o arguido DD a matar o GG .
71 - Agiram também os arguidos em comunhão de esforços e intenções ao atearem fogo ao veículo com a matrícula HO , com a finalidade de eliminarem os vestígios dos actos que tinham acabado de praticar , bem sabendo que , em consequência de tal conduta , destruíam a viatura , que sabiam não ser deles .
72 - Ambos os arguidos , ao incendiarem e destruírem os cadáveres das vítimas , actuaram com o propósito de ocultarem os seus actos , representando como consequência necessária de tal conduta que faltavam ao respeito devido aos mortos .
73 - Apropriaram-se de dinheiro que sabiam não lhes pertencer .
74 - O arguido AA não é possuidor de licença de condução que o habilite a conduzir veículos automóveis , sabia não o poder fazer e , ainda assim , não se coibiu de actuar pela forma descrita .
75 - Ambos os arguidos actuaram sempre de forma deliberada . livre e consciente , bem sabendo da ilicitude de todas as suas condutas , que sabiam serem punidas pela lei penal .
Mais se provou que o arguido AA é oriundo de uma família numerosa - é o 14º filho de uma frataria de 15 - e de condição sócio-económica e cultural indiferenciada .
O pai morreu quando o arguido tinha 2 anos de idade , a mãe apresentava problemas de alcoolismo e eram graves as carências materiais pelo que foi acolhido na Instituição Santa Catarina aos 7 anos de idade , onde permaneceu até aos 16 anos , tendo concluído apenas o 5° ano de escolaridade .
No decurso deste período temporal os contactos com a mãe e os irmãos foram pontuais .
Nunca beneficiou de actividades organizadas de tempos livres e o seu convívio social e cultural foi , do qual fez , igualmente , parte um certo isolamento .
Iniciou-se aos 16 anos , no mundo do trabalho , em actividades indiferenciadas na lavoura e na construção civil , ainda na Ilha de S. Jorge .
Encetou , pouco depois , a relação com a companheira , da qual possui uma filha , actualmente com 3 anos de idade , caracterizando-a como estável ao nível afectivo .
O inicio do consumo de heroína e cocaína , após se ter fixado na ilha do Pico , originou instabilidade laboral e subsequente precaridade material , o que levou à alteração da sua relação marital .
À data dos factos o arguido vivenciava um período de maior instabilidade afectivo-emocional e psicossocial , expressa por um padrão comportamental aditivo .
Afectivamente apresenta-se vulnerável , em consequências das carências desenvolvidas a este nível ao longo da sua vida , o que facilitou a sua associação a indivíduos de faixas etárias superiores , nomeadamente ao arguido DD , a que acresce um quadro sócio-cultural pobre e com um padrão de comportamento de cariz desviante , correlacionados com restrições ao nível da sua sociabilidade , donde decorreu a sua instabilidade laboral e económica .
Vivia com a companheira e filho em casa de um irmão mais velho , que também ocupava a casa , a qual se encontra em precárias condições de conservação .
Socialmente , pese embora as precárias condições económicas , a família do arguido tem boa aceitação , o mesmo não sucedendo com o arguido que , face aos seus poucos hábitos de trabalho e ser conotado com o consumo de produtos estupefacientes , sofria de alguma estigmatização , que se agudizou com os factos ora em apreço .
Presentemente denota ambivalência ao nível da descentração na medida em que se , por um lado , percepciona os efeitos nefastos dos consumos de estupefacientes , tanto para si , como para a família constituída , por outro lado , em função de terceiros , tende a refugiar-se num discurso justificativo de anteriores atitudes e/ou comportamentos, atribuindo responsabilidades a factores externos .
Apresenta um comportamento institucional normal mas com indicadores de instabilidade emocional - elevados níveis de ansiedade e depressão - que levaram ao seu encaminhamento para intervenção psicoterapêutica .
Evidencia um ainda incipiente investimento no reforço das relações afectivas com a companheira e a filha , que têm sido o seu suporte afectivo .
Foi já condenado em pena de multa , substituída por admoestação , pela prática , em 29.06.02 , de um crime de condução sem habilitação legal .
À data dos factos estava sujeito à medida de coacção de apresentação periódica .
Confessou os factos .
O arguido DD nasceu na ilha do Pico , no seio de uma família sócio-cultural modesta , tendo apenas um irmão gémeo .
Concluiu o 9º ano de escolaridade com 18 anos de idade , após o que ingressou no mundo do trabalho , na área da construção civil .
Cumpriu o serviço militar obrigatório e , aos 24 anos de idade , casou . Desta relação tem dois filhos com 4 e 9 anos de idade .
Passou a trabalhar , essencialmente , na lavoura , quer por conta própria , quer por conta de outrem .
Com 16 anos de idade iniciou-se no consumo de produtos estupefacientes , o qual se veio a agravar no decurso dos últimos três anos , o que influenciou quer a sua actividade profissional , quer a sua vida familiar , vivenciando o arguido , à data dos factos , um período de instabilidade psicossocial .
O arguido , que sempre foi considerado como bom trabalhador , cumpridor , assíduo e responsável , passou a trabalhar de forma irregular , o que originou dificuldades económicas .
A mulher sentiu-se na necessidade de trabalhar para contribuir para o sustento do agregado , trabalhando como recepcionista de leite e no serviço doméstico , com o que auferia cerca de € 220 mensais .
O agregado sempre esteve bem inserido na comunidade local , situação que , relativamente ao arguido , se alterou após o conhecimento dos factos ora em apreço .
O discurso do arguido DD indicia algumas capacidades de descentração e de auto-recriminação , se bem que centradas na família , mas tende a transferir as suas responsabilidades , como justificação , para factores exógenos .
Foi condenado na pena de 12 meses de prisão , cuja execução ficou suspensa pelo período de 2 anos , pela prática , em 03.05.99 , de um crime de tráfico de menor gravidade .
Confessou os factos .
Provou-se ainda que o HH era pessoa com personalidade conflituosa , ameaçadora e intimidatória , que costuma trazer armas na sua viatura .

Do Pedido de Indemnização Civil :
(...).
Factos não provados:

- o negócio do café funcionava para camuflar a actividade de venda de produtos estupefacientes e para lavagem de dinheiro ;
- o arguido devolveu parte da heroína que retirou ao HH pelo simples facto de ter sido descoberto ;
- o HH foi ter com o arguido AA ao café "..." , nas Lajes do Pico , exigindo-lhe a entrega dos documentos e da chave de um motociclo da marca "Peugeot" , exigência que de imediato foi satisfeita ;
- os arguidos consumiam haxixe e erva juntos ;
- a heroína consumida pelos arguidos , a II e o DD "..." estava muita misturada com comprimidos ;
- em consequência da chamada telefónica do arguido DD , em 21.05 , o HH se dirigiu ao café "..." , sito nas Lajes do Pico , onde se encontrou com os arguidos ;
- o arguido AA , após o arguido DD ter efectuado o primeiro disparo que atingiu o HH , lhe gritou : "mata o gajo" ;
- que os arguidos apanharam cinco cartuchos do chão e guardaram-nos na viatura do DD .

5. Nas conclusões da motivação, o recorrente define ao objecto do recurso as seguintes questões:
I- Não qualificação do crime de homicídio praticado na pessoa de GG, que considera apenas como homicídio simples (conclusões 4ª a 8ª);
II- Insusceptibilidade de integração, perante os factos provados, dos crime de profanação de cadáver (conclusões 9ª a 11ª);
III- Medida da pena, especialmente por não ter sido devidamente valorada a confissão dos factos (conclusões 1ª a 3ª).

6. O recorrente considera que os factos provados não permitem qualificar o crime de homicídio praticado na pessoa de GG, por não ser caso de integração da alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.
O crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132º do Código Penal, é uma forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no nº 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do nº 2 do artigo 132º.
O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.
Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.
Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado.
A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. FIGUEIREDO DIAS, "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, págs. 27-28).
O modelo de construção do tipo qualificado - qualificado pelo especial tipo de culpa - através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. idem, pág. 28).
A decisão sobre a integração do crime qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana.
A frieza de ânimo, a que se refere a alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, traduz a formação da vontade de praticar o facto de modo frio, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão ou sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução (v. g., acórdão do STJ, de 30/10/2003, proc. 3252/03).
Deve, porém, tratar-se sempre de condutas que exteriorizam um especial juízo de culpa por serem uma refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente censuráveis, ou que documentem no facto qualidades particularmente desvaliosas da personalidade do agente.
A qualificação do homicídio, com efeito, releva essencialmente do especial juízo de censura que deve ser feito ao agente, sendo as cláusulas-padrão modos ou meios, exemplificativos, de avaliar e surpreender o especial juízo de censura, que, todavia, se não esgota nem se confunde com estas cláusulas (cfr., v. g., acórdão deste Supremo, de 30/Out/03, cit.).
Perante os elementos de integração da cláusula-padrão referida, os factos provados revelam, impressivamente, que o recorrente actuou de modo intenso, resoluto, decidido, persistente, pensado e frio, em total e absoluta indiferença pelo vítima, insistindo na sua intenção de concretizar, sem falhas, a eliminação física, nas circunstâncias concretas, de um indivíduo, presença inesperada no local, que tinha assistido à prática, pelo recorrente e outro co-arguido, dos factos imediatamente antecedentes na execução de um outro crime de homicídio na pessoa do pai da vítima.
Tais circunstâncias, bem documentadas nos factos provados, integram a dimensão qualificativa da alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, por revelarem no facto uma projecção de especial censurabilidade e perversidade na execução do crime, adensando exponencialmente a culpa do recorrente.
A avaliação ponderada da decisão recorrida respeitou, assim, os critérios de integração da cláusula-padrão do artigo 132º, nº 2, alínea i), do Código Penal.
O recurso improcede pois, nesta parte.

8. O recorrente considera que os factos provados não permitem integrar o crime de profanação de cadáver, p. e p. no artigo 254º do Código Penal, porque, no caso, não agiu com intenção e violar o bem jurídico protegido - o sentimento de respeito devido aos mortos.
No que releva, o recorrente foi condenado pela prática de dois crimes pp. e pp. no artigo 254º do Código Penal, porque «ambos os arguidos ao incendiarem e destruírem os cadáveres das vítimas actuaram com o propósito de ocultarem os seus actos, representando como consequência necessária de tal conduta que faltavam ao respeito devido aos mortos» - ponto 72 da matéria de facto.
O artigo 254º do Código Penal, sob a epígrafe de "profanação de cadáver ou de lugar fúnebre", define como elementos típicos do crime «sem autorização de quem de direito subtrair, destruir ou ocultar cadáver ou parte dele, ou cinzas de pessoa falecida» (nº 1, alínea a); «profanar cadáver ou parte dele, ou cinzas de pessoa falecida, praticando actos ofensivos do respeito devido aos mortos» (nº 1, alínea b); ou «profanar lugar onde repousa pessoa falecida ou monumento aí erigido em sua memória, praticando actos ofensivos do respeito devido aos mortos (nº 1, alínea c).
O tipo legal do artigo 254º,nº 1 do Código Penal visa a protecção de um sentimento moral colectivo de respeito pelos defuntos, independentemente de qualquer conotação religiosa ou de fé, protegendo um bem jurídico imaterial (cfr. v. g., "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo II, pág. 532).
Perante os elementos de facto e os termos da decisão recorrida, a quaestio suscitada reverte apenas à integração, ou não integração, dos elementos de tipicidade descritos na alínea a) do nº 1 - destruição de cadáver.
Importa, por isso, e como elementos de composição da tipicidade, delimitar o objecto do facto e os elementos da acção.
Neste sentido, «cadáver é o corpo de uma pessoa falecida, enquanto se possa dizer que ele representa essa mesma pessoa - portanto quando não se tenha verificado o processo total de decomposição ou quando não se tenha quebrado, por uma qualquer razão, a conexão simbólica entre os despojos e a pessoa falecida; o cadáver tem de ser uma espécie de representação do corpo» (cfr. loc. cit.).
A acção deve consistir em subtracção ou destruição de tal modo que impeça que se dê ao cadáver o destino normal com a consequente manifestação de sentimentos (sociais ou religiosos) para com as pessoas falecidas - ou mais especificamente, para com uma concreta pessoa falecida.
Em geral, destruir significa alterar a substância, deixando a coisa de manter a sua individualidade anterior; constitui materialmente um plus em relação à danificação (em que não existe perda total da identidade), ou à desfiguração (em que se afecta irremediavelmente a projecção física externa).
No caso de cadáver, destruir significa «reduzir a nada» - por exemplo quando se lança fogo ao cadáver ou se faz desaparecer as cinzas (cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, "Código Pena Anotado", 2º Vol., 3ª ed., p. 1081).
A destruição significa, assim, enquanto impeditiva da manifestação de sentimentos sociais, a desintegração de modo a que o cadáver peca a sua essência específica de espécie de representação do corpo.
Delimitada por este modo a tipicidade da alínea a) do nº 1 do artigo 254º do Código Penal, verifica-se, no caso, a integração dos elementos típicos - especificamente a integração, exigida pelo construção do tipo, do elemento "destruição de cadáver": destruição em termos de desintegração ou desaparecimento dos elementos físicos do cadáver que quebra a «conexão simbólica» entre os despojos e a pessoa falecida.
Na verdade, os factos provados evidenciam (tanto pela referência directa - «destruírem» - do ponto 72, como pela descrição das consequências nos cadáveres das vítimas nos pontos 63 e 65 da matéria de facto) que ocorreu destruição, no sentido físico, suposta pelos elementos de integração de tipo - desintegração ou desaparecimento dos elementos físicos, afectando, irremediavelmente, a conexão simbólicas entre os despojos e a pessoa falecida.
A destruição, nos termos descritos, equivale, na comparação entre a exteriorização física do cadáver e os despojos consequentes à actuação do recorrente, a «redução a nada», em desintegração ou desaparecimento dos elementos de conexão do cadáver à pessoa falecida.
Existiu, assim, destruição do cadáver relevante para efeitos de integração do artigo 254º, nº 1, alínea a) do Código Penal.
Por outro lado, a alínea a), em diverso das alíneas b) e c) da mesma disposição, não exige específica intenção como elemento do tipo de ilicitude.
Basta a destruição ou a ocultação que, em quaisquer condições não autorizadas (a ressalva do segmento inicial da norma), exterioriza, in re ipsa, a quebra do sentimento de respeito e piedade devido aos mortos enquanto bem jurídico protegido pela incriminação.
Elemento que também resulta dos factos provados.
O recorrente cometeu, assim, os crimes pp. e pp. no artigo 254º, nº 1, alínea a) do Código Penal por que vem condenado.

9. Embora de modo genérico, o recorrente discute também a questão da determinação da medida das penas, invocando que o acórdão recorrido não valorou a confissão e o arrependimento, sendo que, nas circunstâncias, a confissão foi elemento decisivo para o apuramento dos factos (conclusões 1ª a 3ª).
Este fundamento, no entanto, não procede.
A decisão recorrida valorou a confissão do recorrente, tomando-a devidamente em consideração, como expressamente refere, como circunstância positiva na formação da medida das penas, que se mostram criteriosamente fixadas.
Não ocorreu, assim, violação do norma do artigo 71º, nºs 1 e 2 do Código Penal referida pelo recorrente.

10. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso confirmando o acórdão recorrido.

Taxa de justiça: 5 UCs
Defensor Oficioso: honorários da tabela

Lisboa, 21 de Junho de 2006
Henriques Gaspar (relator)
Soreto de Barros
Armindo Monteiro
Sousa Fonte