RECEPTAÇÃO
OFENDIDO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
LEGITIMIDADE
Sumário

I - O ofendido no crime de receptação, ou seja, o titular do interesse que o art. 231.º do CP especialmente protege com a incriminação é, inquestionavelmente, a vítima do facto ilícito típico contra o património através do qual foi obtido o bem objecto da receptação.
II - E sendo este o ofendido no crime de receptação, dúvidas não subsistem da sua legitimidade para a dedução de pedido de indemnização civil no processo penal, posto que todo o ofendido é lesado - art. 74.°, n.º 1, do CPP.
III - Daqui resulta que todos os danos ocasionados àquele que é ofendido no crime de receptação, ou seja, ao proprietário ou detentor do bem objecto da receptação, mais concretamente os danos produzidos sobre o objecto do crime, isto é, sobre a coisa receptada, devem ser incluídos na obrigação de indemnizar por parte do receptador, obrigação que, obviamente, também impende, de modo solidário, sobre o autor do facto ilícito típico contra o património através do qual foi obtida a coisa receptada. *

* Sumário elaborado pelo Relator.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 2404/01, da Vara Mista de Braga, após contraditório foi proferido acórdão que condenou o arguido AA, com os sinais dos autos, como autor material de dois crimes de receptação, previstos e puníveis pelo artigo 231º, n.º 1, do Código Penal, na pena conjunta de 1 ano e 6 meses de prisão (1).
Na parcial procedência do pedido de indemnização civil deduzido por GG e HH, devidamente identificados, foram condenados os demandados AA e FF (solidariamente) a pagar a quantia de € 5.000, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde 04.11.16 até integral pagamento.
Interpôs recurso o arguido e demandado AA, que circunscreveu à vertente civil da decisão, tendo extraído da motivação apresentada as seguintes conclusões:
1. Os factos praticados pelo recorrente e provados nos autos de processo-crime supra referenciados não permitem concluir que se verifica quanto ao recorrente obrigação de indemnizar os demandantes pelos danos sofridos com o furto dos bens de que eram donos e legítimos possuidores.
2. O facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar os demandantes não foi praticado pelo recorrente.
3. O facto ilícito enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual e relevante no caso sub judice não foi praticado pelo recorrente, pois tal facto consistiu no furto dos bens e não na sua revenda.
4. Não existe nexo de causalidade adequada entre os factos praticados pelo recorrente e os danos causados cujo ressarcimento é exigido pelos demandantes.
O recurso foi admitido.
Na contra-motivação apresentada os demandantes formularam as seguintes conclusões:
1. Pelo facto de o crime de receptação ser autónomo do crime de furto e pela circunstância de o receptador não ter participado directamente na actividade de subtracção da coisa ao seu proprietário, não nos permite concluir que ele não seja responsável pelo pagamento da indemnização, que tem por objectivo restituir o prejuízo causado ao lesado.
2. O agente do crime de receptação é solidariamente responsável pela indemnização devida ao proprietário da coisa.
3. Como se referiu no acórdão de 18 de Junho de 1985, no Boletim do Ministério da Justiça 348-296, "a receptação pode ser definida como um crime que acarreta a manutenção, consolidação ou perpetuidade de um crime patrimonial anormal, decorrente de crime anteriormente praticado por outrem", pelo que o seu agente viola também o direito de propriedade do dono da coisa subtraída.
4. O recorrente sabia que os objectos descritos no pedido de indemnização civil eram furtados.
5. Sabia, igualmente, que o negócio que fez com o autor da subtracção não era válido e não tinha sido transferida para a sua esfera jurídica patrimonial a propriedade das coisas furtadas.
6. Sabia, consequentemente, que com a sua conduta continuava a violar o direito de propriedade do dono das coisas que vendeu, para, por esta forma, obter para si um benefício económico ilegítimo.
7. A receptação é um delito contra a propriedade em que o receptador insiste em violar o mesmo interesse jurídico já violado pelo autor principal do furto, daí ser considerado um delito sucessivo, conexo materialmente com o precedente.
8. A receptação é um crime que responsabiliza civilmente os seus autores.
9. O recorrente tem que responder pelos prejuízos causados aos recorridos.
A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta na vista que teve nos autos nada requereu.
Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre agora decidir.
O recurso encontra-se limitado, por vontade do recorrente, à vertente civil da decisão.
Entende aquele não poder ser responsabilizado pelo pagamento da indemnização que visa ressarcir os demandantes dos prejuízos sofridos resultantes da privação dos objectos que lhes foram furtados e posteriormente por si adquiridos.
Para tanto, alega que o facto gerador da obrigação de indemnizar não foi por si praticado, visto que tal facto consistiu no furto dos bens e não na sua revenda, sendo que inexiste nexo de causalidade entre os factos por si praticados e os danos cujo ressarcimento é exigido pelos demandantes.
A questão que cumpre decidir é pois a de saber se o receptador deve ou não ser civilmente responsabilizado pelo pagamento da indemnização aos ofendidos a quem foram deslocados os bens objecto da receptação.
Decidindo, começar-se-á por assinalar que o ofendido no crime de receptação, ou seja, o titular do interesse que o artigo 231º, do Código Penal, especialmente protege com a incriminação (2) é, inquestionavelmente, a vítima do facto ilícito típico contra o património através do qual foi obtido o bem objecto da receptação.
Com efeito, de acordo com a alínea b) do n.º 3 do artigo 231º, ao crime de receptação é correspondentemente aplicável o disposto na alínea a) do artigo 207º, se a relação familiar interceder entre o receptador e a vítima do facto ilícito contra o património, o que significa que o legislador considera como ofendido da receptação a vítima do facto ilícito típico contra o património através do qual foi obtida a coisa objecto da receptação.
Deste modo, sendo ofendido no crime de receptação a vítima do facto ilícito típico contra o património através do qual foi obtido o bem objecto de receptação, dúvidas não subsistem da sua legitimidade para a dedução de pedido de indemnização civil no processo penal, posto que todo o ofendido é lesado - artigo 74º, n.º1, do Código de Processo Penal (3).
Por outro lado, com o crime de receptação, do qual é objecto a coisa obtida mediante facto ilícito contra o património, crime que se encontra inserto no Título II - Dos Crimes Contra o Património -, Capítulo IV - Dos Crimes Contra Direitos Patrimoniais -, obviamente que se pretende tutelar o direito patrimonial do proprietário ou detentor do bem objecto da receptação.
Por outro lado, ainda, certo é que o crime de receptação é um facto que acarreta a manutenção, consolidação ou perpetuação de uma situação patrimonial anormal, decorrente de um crime anteriormente praticado por outrem, pelo que o seu agente viola também o direito de propriedade ou detenção do dono ou detentor da coisa deslocada (4) .
Daqui resulta que todos os danos ocasionados àquele que é ofendido no crime de receptação, ou seja, ao proprietário ou detentor do bem objecto da receptação, mais concretamente os danos produzidos sobre o objecto do crime, isto é, sobre a coisa receptada, se devem incluir na obrigação de indemnizar por parte do receptador, obrigação que, obviamente, também impede, de modo solidário, sobre o autor do facto ilícito típico contra o património através do qual foi obtida a coisa receptada (5).

Assim sendo, certo é que o tribunal a quo bem andou ao condenar parcialmente o recorrente no pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes, ou seja, pelos ofendidos.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 13 de Setembro de 2006
Oliveira Mendes (relator)
Pires Salpico
Henriques Gaspar
Silva Flor
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(1) - Foram absolvidos dos crimes de que vinham acusados os arguidos BB, CC, DD e EE, tendo sido condenado, também, como autor material de um crime de receptação, o arguido FF.

(2) - De acordo com o artigo 68º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, ofendido é o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

(3) - Como referem Simas Santos/leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I, 404/405, citando Jorge Fonseca: «Ofendido é só aquela pessoa que é titular do interesse que a norma incriminadora visa proteger; lesado é toda aquela pessoa, ofendida ou não, que sofreu um dano ocasionado pelo crime. O que quer dizer, e simplificando as questões, que se todo o ofendido é lesado nem todo o lesado é ofendido em termos jurídico-processuais-penais».
(4) - Cf. Entre outros, o acórdão deste Supremo Tribunal de 85.06.18, publicado no BMJ, 348, 296.

(5) - Neste sentido decidiu este Supremo Tribunal no acórdão de 94.07.13, publicado no BMJ, 439, 260, decisão em que se consignou:
«É verdade que actualmente o crime de receptação é um crime autónomo e não uma forma de comparticipação criminosa. Mas daí não resulta que o receptador, por não ter participado na actividade de subtracção da coisa ao seu proprietário não seja, por isso, responsável pelo pagamento da indemnização que visa restituir o prejuízo desta, antes pelo contrário.
A indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é, dispõe o artigo 128º, do Código Penal - regulada pela Lei Civil.
E o artigo 483º do Código Civil dispõe que "aquele que, como dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos prejuízos resultantes da violação", dispondo o artigo 490º que se forem vários os autores, instigadores ou auxiliares do acto ilícito, todos eles respondem pelos danos que hajam causado e o artigo 497º que se foram várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade - ver acórdão de 29 de Março de 1992 in Boletim do Ministério da Justiça 348 - 296».