ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
PRESCRIÇÃO
PRAZO
RENÚNCIA
RECONHECIMENTO DO DIREITO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Sumário


I - Fundando-se a causa de pedir no acidente de viação que originou os danos peticionados, o direito invocado pelo autor baseia-se na obrigação de indemnizar derivada da responsabilidade civil extracontratual ou por actos ilícitos, não estando em causa qualquer incumprimento contratual, ainda que a ré seguradora tenha assumido 50% da responsabilidade.
II - Não se tendo provado as circunstâncias concretas em que ocorreu a colisão, o dever de indemnizar só pode fundar-se na responsabilidade objectiva ou pelo risco - art. 503.º, n.º 1, do CC - sendo o prazo de prescrição do direito indemnizatório do autor, aqui aplicável, o de três anos, nos termos do art. 498.º, n.º 1, do CC.
III - A carta de 09-07-1991, dirigida pela ré Seguradora ao Advogado do autor, em que aquela aceitava indemnizá-lo com base na divisão da culpa, em partes iguais, pelos respectivos condutores, implica o reconhecimento do direito do mesmo autor, perante o respectivo titular, nos termos então expressos.
IV - Tal reconhecimento interrompe a prescrição, inutilizando para prescrição todo o tempo decorrido anteriormente e começando a correr novo prazo de três anos a partir do acto interruptivo - art. 326.º, n.ºs 1 e 2 do CC. Por isso, em 09-07-1994 completou-se o prazo da prescrição de três anos.
V - Só que a ré aceitou indemnizar o recorrente, na referida proporção de 50% da culpa, a seu tempo, no dia em que fosse declarado clinicamente curado e lhe fossem fornecidos todos os danos sofridos pelo mesmo autor no acidente.
VI - Provado que, antes e depois de 21-07-1995, se efectuaram contactos com a ré, com vista à solução do diferendo, na sequência da já mencionada prévia proposta da ré de indemnização, aceite pelo autor, na proporção de 50%, tendo o último contacto entre o mandatário do autor e a ré ocorrido em 01-08-1995, e tendo o último pagamento sido efectuado pela ré aos hospitais em 17-02-1997, estes factos, ocorridos depois de se ter completado já o primeiro prazo de prescrição, em 09-07-1994, são suficientes para se considerar que houve renúncia tácita ao novo prazo de prescrição decorrido até 17-02-1997, data do último pagamento.
VII - Começando nesta data a correr novo prazo de prescrição, ficando inutilizado todo o prazo anterior, e tendo a presente acção sido instaurada em 18-10-1999, é de considerar que o prazo de prescrição então em curso, se interrompeu, de novo, logo que decorreram cinco dias, nos termos do art. 323.º, n.º 2, do CC, pelo que, em 23-10-1999 ainda se não havia esgotado o prazo da prescrição de três anos, aqui aplicável, a contar de 17-02-1997, sendo forçoso concluir que o direito de indemnização do autor não prescreveu.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :

AA instaurou a presente acção, ordinária contra Empresa-A
(actualmente Empresa-A), pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de 5.453.864$00, acrescida de juros desde a citação, como indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu, em consequência do acidente de viação ocorrido no dia 23-11-90, em que foram intervenientes o velocípede como motor …-…-…-…, conduzido pelo autor e sua pertença, e o veículo ligeiro de mercadorias …-…-…, propriedade de BB, por ele conduzido e seguro na ré, acidente esse que imputa a culpa exclusiva do condutor do …- …-… e cuja seguradora assumiu metade da responsabilidade emergente da colisão .
A ré contestou, arguindo a prescrição do direito indemnizatório peticionado e impugnando a culpa, que atribui à concorrência de ambos os condutores .
Houve réplica .
*
Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou procedente a excepção da prescrição e, consequentemente, absolveu a ré do pedido.
*
Apelou o autor, mas sem êxito, pois a Relação do Porto, através do seu Acordão de 13-3-06, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida .
*
Continuando inconformado, o autor pede revista, onde resumidamente conclui :
1 – O que foi submetido à apreciação judicial foram as declarações da recorrida, onde esta assume metade da responsabilidade do acidente, com concorrência de culpa dos interveniente em partes iguais, o que foi aceite pelo recorrente .
2 - Tais declarações, após aceitação, configuram um verdadeiro contrato de transacção, irrevogável .
3- Por isso, a responsabilidade da recorrida deriva deste contrato de transacção e não da responsabilidade civil extra-contratual, proveniente do acidente .
4 – Daí que o direito à indemnização prescreva no prazo ordinário de vinte anos e não no prazo de cinco anos .
5 - Se for entendido que rege o prazo de prescrição de 5 anos previsto no art. 498, nº3, do C.C., então o direito do autor também não se encontrava prescrito, na data da propositura da presente acção, porquanto durante o referido prazo ocorreram vários factos provados que consubstanciam causas de interrupções sucessivas da prescrição .
6 – Quando assim se não entenda, sempre deverá considerar-se que, pelo menos, existiu uma renúncia tácita à prescrição, por parte da recorrida .
7 – Considera violados os arts 309, 498, nº3, 325 e 302, nº1, do C.C.
*
A recorrida contra-alegou em defesa do julgado .

*
Corridos os vistos, cumpre decidir .

*
Remete-se para todos os factos que foram considerados provados no Acordão recorrido, que aqui se dão por reproduzidos , ao abrigo dos arts 713, nº6 e 726 do C.P.C.

Destacam-se os seguintes, com interesse para a decisão do recurso :

1- No dia 23-11-90, pelas 23h30, na estrada nacional nº 226, ao Km 30,3, próximo da localidade de G………., no concelho de M………, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o velocípede com motor, de matrícula …-…-…-…, pertencente ao autor e por ele conduzido, e o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula …-…-…, seguro na ré, pertencente a CC e por este conduzido .

2 – O velocípede com motor circulava na estrada nacional nº 206, no sentido M………, enquanto o QN transitava pela mesma estrada em sentido contrário, com os faróis na posição de médios.

3 – O acidente consistiu num choque frontal entre as duas viaturas.

4 - O embate entre o velocípede e o QN ocorreu quando este último estava a realizar uma curva para a esquerda .

5 – No momento do embate era noite.

6 – Como consequência directa e necessária do acidente, o autor sofreu os ferimentos e sequelas descritos nas respostas aos quesitos que foram considerado provados.

7 – O autor foi submetido a várias intervenções cirúrgicas, a última das quais ocorreu a 12-9-95, e manteve-se em observação até 9-1-96.

8 - O acidente foi participado de imediato à seguradora do velocípede do autor, estabelecendo-se, a partir daí, vários e sucessivos contactos com a ré, no sentido desta assumir a responsabilidade do acidente e a reparação dos respectivos danos.

9 – Na carta datada de 9-7-91, subscrita por representantes da ré, dirigida ao Ex.mo Advogado do autor, que constitui documento nº4 junto com a petição, consta, além do mais, o seguinte :
“(...) o evento em apreço resultou da responsabilidade de ambos os intervenientes .
Com efeito, não vislumbramos matéria que nos permita encaminhar a nossa posição para outro tipo de regularização que não a partilha de culpas, em partes iguais, para cada um dos condutores .
Resta-nos, assim, reiterar a nossa receptividade no tratamento do sinistrado AA, minorando-lhe dessa forma as despesas daí inerentes, desde que o mesmo dê a sua anuência para o tipo de arrumação que preconizamos e que, a seu tempo, se efectuará “.

10 – Pelo então mandatário do autor foi comunicado a funcionário da ré, encarregue do sinistro, que o autor aceitava a divisão em partes iguais, na responsabilidade do acidente .

11 – A ré foi informada de que, à data do acidente, não podiam ser contabilizados todos os danos sofridos pelo autor, já que este, clinicamente, não se encontrava curado e ainda iria ser submetido a mais intervenções cirúrgicas, como na realidade foi, pelo que apenas no dia em que o autor fosse declarado clinicamente curado seriam fornecidos todos os danos por este sofridos no acidente, o que foi aceite pela ré.

12 – No dia 21-7-95, o autor, através do seu mandatário, remeteu uma carta à ré, subscrita por esse mandatário, onde reitera o que havia acordado, ou seja, a repartição da culpa no sinistro, em partes iguais.

13 – Antes e depois de 21-7-95, efectuaram-se vários contactos com a ré, com vista à solução do diferendo .

14 – O último contacto entre o mandatário do autor e a ré ocorreu em 1-8-95.

15 – A ré pagou apenas 50% das despesas do hospital, tratamentos e transportes efectuados pelo autor .

16 – O ultimo pagamento efectuado pela ré aos hospitais, relativo à assistência prestada ao autor por causa dos danos decorrentes do acidente, verificou-se em 17-2-97.

17 – A presente acção deu entrada no Tribunal de Baião em 18-10-99.

18 – A ré foi citada em 23-2-00, por carta registada com aviso de recepção.

*

Vejamos agora as questões postas :

1.

O recorrente sustenta que o pedido não se funda no acidente de viação e na responsabilidade extra-contratual ou por facto ilícito daí decorrente, mas antes na responsabilidade contratual resultante da ré, na sua carta de 9-7-91, com a aceitação do autor, ter assumido metade da responsabilidade, com base na concorrência de culpa de ambos os condutores, na proporção de 50% para cada um deles .
Mas sem razão .
Como decorre da petição inicial, a causa de pedir funda-se no acidente de viação que originou os danos peticionados .
Enquanto tal, o direito invocado pelo autor baseia-se na obrigação de indemnizar derivada da responsabilidade civil extra-contratual ou por actos ilícitos, responsabilidade essa transferida para a ré seguradora, em virtude do invocado contrato de seguro automóvel .
Não está aqui em questão qualquer incumprimento contratual, pois inexiste qualquer prévia relação contratual entre os litigantes .
Daí que não possa aplicar-se o regime da responsabilidade contratual, como pretende o recorrente, por não estarem verificados os respectivos pressupostos legais .
Em face do exposto, não tem aplicação o prazo ordinário da prescrição de vinte anos a que se refere o art. 309 do Cód. Civil .

2.

O prazo de prescrição do direito indemnizatório do autor, aqui aplicável, é antes o de três anos, nos termos do art. 498, nº1, do Cód. Civil, onde se estabelece :
“ O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso” .
Isto porque não resultou provado, face às respostas aos quesitos, que haja culpa de qualquer dos condutores e que, por isso, o facto ilícito constitua crime, o que afasta o alongamento do prazo da prescrição para cinco anos, previsto no nº3, do mesmo art. 498.
Com efeito, não tendo logrado provar-se as circunstâncias concretas em que ocorreu a colisão, o dever de indemnizar só pode fundar-se na responsabilidade objectiva ou pelo risco – art. 503, nº1, do C.C.

3.

Aqui chegados, importa agora examinar se a interrupção da prescrição se operou e, em caso afirmativo, em que termos .
O art. 325 dispõe :
“ 1- A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido .
2- O reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam “ .
Ora, sendo assim, só a carta de 9-7-91, dirigida pela ré ao Ex.mo Advogado do autor, em que aquela aceitava indemnizá-lo com base na divisão da culpa, em partes iguais, pelos respectivos condutores, implica o reconhecimento do direito do mesmo autor, perante o respectivo titular, nos termos então expressos .
Tal reconhecimento interrompe a prescrição, inutilizando para prescrição todo o tempo decorrido anteriormente e a começando a correr novo prazo de três anos a partir do acto interruptivo – art.326, nºs 1 e 2 do C.C.
Por isso, em 9-7-94 completou-se o prazo da prescrição de três anos .

3.

Só que a ré aceitou indemnizar o recorrente, na referida proporção de 50% da culpa, a seu tempo, no dia em que este fosse declarado clinicamente curado e lhe fossem fornecidos todos os danos sofridos pelo mesmo autor no acidente .
O autor foi submetido a várias intervenções cirúrgicas, a última das quais em 12-9-95, sendo certo que se manteve em observação médica até 9-1-96.
A ré pagou apenas 50% das despesas do hospital, tratamentos e transportes efectuados pelo autor .
O recorrente sustenta que, à luz dos factos provados, teve lugar a renúncia tácita da prescrição .
É o que vamos analisar .
Sobre esta matéria, estabelece o art. 302 do C.C.:
“1- A renúncia da prescrição só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional.
2 – A renúncia pode ser tácita e não necessita de ser aceita pelo beneficiário .
3 – Só tem legitimidade para renunciar à prescrição quem puder dispor do benefício que a prescrição tenha criado “.
A renúncia tácita á prescrição respeita a um comportamento do devedor, sempre depois de decorrido o prazo prescricional .
A renúncia anterior ao decurso do prazo seria um dos negócios jurídicos feridos de nulidade , a que se refere o art. 300 do C.C.
O nº2, do citado art. 302 harmoniza-se com o disposto no art. 303, na medida em que a prescrição não opera ipso jure .
Ora, como aquele a quem a prescrição aproveita pode ou não invocá-la, deve poder também renunciar ao direito de a invocar .
Trata-se de um negócio unilateral que não necessita de aceitação do beneficiário,
Mas não há confusão possível entre a renúncia ao direito de prescrição e a interrupção desta .
Como escreve DD ( Gazeta da Relação de Lisboa, nº 21, pág. 425 ) :
“ Na interrupção, o prazo da prescrição não chegou a concluir-se.
Na renúncia, o prazo consumou-se.
Ali, pretende-se provar que o prazo se interrompeu por factos donde se deduz o reconhecimento expresso ; na renúncia, que o direito adquirido pela prescrição foi repudiado, por factos donde tal repúdio necessariamente se conclui “.
Ora, apurou-se que antes e depois de 21-7-95, se efectuaram contactos com a ré, com vista à solução do diferendo, na sequência da já mencionada prévia proposta da ré de indemnização, aceite pelo autor, na proporção de 50%.
O último contacto entre o mandatário do autor e a ré ocorreu em 1-8-95.
Provou-se ainda que o último pagamento efectuado pela ré aos hospitais, relativo à assistência prestada ao autor por causa dos danos decorrentes do acidente, se verificou em 17-2-97.
Estes factos, ocorridos no aludido contexto e depois de se ter completado já o primeiro prazo de prescrição, em 9-7-94, são suficientes para se considerar que houve renúncia tácita ao novo prazo de prescrição decorrido até 17-2-97, data do último pagamento .
Com efeito, essa renúncia da prescrição permitida pelo art. 302 do Código Civil só produz efeitos em relação ao prazo prescricional decorrido até ao acto da renúncia, não podendo impedir os efeitos do ulterior decurso de novo prazo, como foi decidido no Assento deste Supremo Tribunal de Justiça de 5-5-94 (Bol. 437-29), actualmente com o valor de Acordão Uniformizador de Jurisprudência ( art. 17, nº2, do dec-lei 329-A/95, de 12 de Dezembro ) .

O que significa dizer que a partir de 17-2-97 começou a correr novo prazo de prescrição , ficando inutilizado todo o prazo anterior .

A presente acção foi instaurada em 18-10-99, sendo de considerar que o prazo de prescrição, então em curso, se interrompeu, de novo, logo que decorreram cinco dias, nos termos do art. 323, nº2, do C.C., por a citação da ré não ter sido efectuada nesse prazo de 5 dias, por razões de orgânica judicial, que não são imputáveis ao autor .
Ora, em 23-10-99 ainda se não havia esgotado o prazo da prescrição de três anos, aqui aplicável, a contar de 17-2-97, pelo que é forçoso concluir, contrariamente ao decidido pelas instâncias, que o direito de indemnização do autor não prescreveu.

4-

Face á improcedência da excepção peremptória da prescrição, impõe-se a revogação do Acordão recorrido e ordenar que os autos baixem directamente à 1ª instância para conhecimento do pedido .
*
Termos em que, embora com fundamentação não coincidente, concedem a revista, revogam o Acordão recorrido e, com ele, a sentença da 1ª instância, e determinam que os autos baixem directamente à 1ª instância para conhecimento do pedido .
Custas pela recorrida .

Lisboa, 19 de Setembro de 2006

Azevedo Ramos
Silva Salazar
Afonso Correia