INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Sumário

I - A garantia autónoma é uma figura jurídica (cujo fundamento jurídico-positivo se encontra no art. 405.º do CC) que se destina a proteger o credor contra o risco de incumprimento por parte do devedor.
II - É uma medida de protecção mais forte do que aquela que constitui o arquétipo das garantias pessoais - a fiança - na medida em que arreda da sua disciplina o princípio da acessoriedade, que constitui o traço característico da fiança.
III - Enquanto a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor (art. 627.º, n.º 2, do CC), o que significa que o fiador pode opor ao credor os meios de defesa de que pode valer-se o devedor - designadamente as excepções relativas à validade, eficácia, conteúdo, extinção, (...) da obrigação garantida -, a garantia autónoma acha-se inteiramente desligada da relação principal, não podendo o garante opor ao beneficiário as excepções atinentes à dita relação principal.
IV - A obrigação assumida pelo garante, na garantia autónoma, funda-se na responsabilidade objectiva, é autónoma e independente, e não se molda sobre a obrigação (de prestar ou de indemnizar) do devedor do contrato-base, nem quanto ao objecto nem quanto aos pressupostos da sua exigibilidade.
V - Há, por outro lado, garantias autónomas simples e garantias autónomas automáticas. Enquanto nas primeiras o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação do garante desde que prove o incumprimento da obrigação do devedor ou a verificação do circunstancialismo que constitui pressuposto do nascimento do seu crédito face ao garante, já tal prova não lhe é exigível nas segundas, devendo nestas o garante entregar imediatamente ao beneficiário, ao primeiro pedido deste, a quantia pecuniária fixada.
VI - Se a garantia não for à primeira solicitação, se não contiver esta cláusula que lhe confere automaticidade, o beneficiário só pode exigi-la desde que prove o facto que é pressuposto do nascimento da obrigação de garantia.
VII - A questão de saber se, em dado caso, estamos perante uma fiança ou uma garantia autónoma e, dentro do género, se perante uma garantia autónoma automática e à primeira solicitação, supõe interpretação do negócio jurídico e da vontade das partes, à qual há-de proceder-se de acordo com o disposto nos arts. 236.º e 238.º do CC.
VIII - Não se tratando de garantia autónoma, automática ou à primeira solicitação, o documento em que se funda a execução não tem força executiva, não é documento enquadrável na al. c) do art. 46.º do CPC e, como tal, a execução não pode prosseguir - nem devia ter sido instaurada - por inexistência de título executivo - arts. 813.º, a) e 815.º, n.º 1, do CPC (na versão de 1997), 814.º, al. a), e 816.º, na redacção introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 08-03. *
* Sumário elaborado pelo Relator.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Por apenso à execução com processo ordinário para pagamento de quantia certa, instaurada por AA contra Empresa-A deduziu a executada embargos, alegando, em síntese, que a garantia bancária dada à execução não tem cláusula on first demand, pelo que não é pagável à primeira solicitação e não constitui título executivo.
A obrigação assumida pelo Banco embargante através do documento dado execução é futura e condicional, pois ficou dependente do incumprimento pelo mandante das obrigações para ele emergentes do contrato-promessa de aquisição de 360.000 acções da empresa Empresa-B, referido no documento da garantia.
No documento dado à execução não existe qualquer menção que possa ser interpretada como expressando a vontade do Banco executado, ora embargante, de efectuar um pagamento automático, nem o mesmo documento pode ser interpretado como expressão da vontade do mesmo Banco de excluir da sua esfera jurídica o direito a invocar em seu favor as excepções derivadas do contrato-base nele mencionado.
Fundamentalmente pelas razões invocadas, o executado apenas assumiu a qualidade de fiador do obrigado principal. Assim sendo, a referida garantia tem a natureza de fiança, pelo que o documento dado à execução não constitui título executivo.
Alega, por último, que o exequente não fez qualquer prova do incumprimento do contrato-promessa por parte da mandante da garantia. Dada a natureza da fiança o exequente não tem direito a haver do executado, ora embargante, qualquer quantia ao abrigo da garantia por este prestada, pois não houve incumprimento por parte da mandante da garantia, a sociedade Empresa-C.

Contestou o embargado pedindo a improcedência dos embargos, alegando, também em resumo, não fazer qualquer sentido classificar a garantia bancária em causa como fiança. A mesma é autónoma, como se verifica pela existência de prazo de validade, pelo que não faz qualquer sentido discutir a relação subjacente ao contrato de garantia.
Conclui, reafirmando a qualidade de título executivo da garantia bancária dada à execução, nos termos do artº 46º al. c) do CPC.

Afirmada a regularidade da instância, o Ex.mo juiz julgou assentes os seguintes
factos:

1 - O embargante subscreveu um documento intitulado GARANTIA BANCÁRIA Nº 35167185.90.19 com o seguinte teor:
O BANCO Empresa-A, Sociedade Aberta, pessoa colectiva n. 512004528, com sede na Rua Dr. ..., Edifício..., em Ponta Delgada, matriculado na Conservatória do Registo Comercial de Ponta Delgada sob o n.° 1804, com o capital social de cinquenta e um milhões oitocentos e noventa e dois mil trezentos e sessenta e cinco Euros representado neste acto por BB e CC, na qualidade de procuradores com poderes bastantes para o efeito, e a pedido de Empresa-C, pessoa colectiva n.° 512 006 40, com sede na Rua .., n.°...., concelho de Angra do Heroísmo, com o capital social integralmente realizado de dois milhões e quatrocentos mil euros constitui, pelo presente instrumento, a favor de AA, contribuinte fiscal com o n. 211343951, com morada em..., Leiria, uma garantia bancária, até ao valor de € 1.745.792,60 (Um milhão setecentos e quarenta e cinco mil setecentos e noventa e dois euros sessenta cêntimos) destinada a caucionar o bom cumprimento das obrigações decorrentes para o mandante acima identificado relativas ao contrato-promessa de aquisição de 360.000 acções da empresa Empresa-B
A presente garantia é válida até 11/07/2003.
A reclamação de quaisquer montantes ao abrigo desta garantia tem de ser apresentada ao BANCO Empresa-A, Sociedade Aberta até ao termo da sua validade, sob pena de este não ser responsável pelo seu pagamento, independentemente da devolução do respectivo original.
Angra do Heroísmo, 06 de Junho de 2002.

2 - Por carta, recebida pelo embargante em 11.07.2003, o embargado solicitou o pagamento da quantia referenciada no documento mencionado em 1, alegando o incumprimento por parte do mandante da garantia, do contrato - promessa celebrado.

E com base neles decidiu assim:

«A questão fundamental nos autos reside em saber se o documento dado à execução e referenciado em 1 pode constituir um título executivo, o que, por sua vez nos remete para uma segunda questão, qual seja a de saber se tal documento deve ser entendido como uma fiança, como defende o embargante, ou uma garantia autónoma, como defende o embargado.
Naturalmente que a solução a dar a esta questão é primordial, dada a diferença de tratamento jurídico de uma e outra.
Com efeito, como decorre dos artigos 627º. 637º e 638º do Código Civil (diploma a que pertencerão as restantes disposições adiante citadas, sem menção em contrário), a fiança é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa se obriga para com o credor a cumprir a obrigação de outra pessoa, no caso de esta não o fazer. Por outro lado, o fiador assume uma obrigação acessória, o que lhe possibilita opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor afiançado, conferindo-lhe também o benefício da excussão. Ainda que o fiador renuncie a tal benefício, a sua obrigação está sempre dependente da obrigação principal, porque a sua validade depende da validade daquela, extingue-se com ela, não a pode exceder, nem ser contraída em condições mais onerosas (cf. artºs 631º e 632º).
O contrato de garantia bancária, por sua vez, não se encontra previsto na nossa legislação, sendo aceite no nosso ordenamento jurídico, face ao princípio da liberdade contratual, consagrado no artº 405º.
Neste tipo de contrato, o garante, perante o credor, responsabiliza-se pelo pagamento de uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma obrigação alheia (do mandante da garantia), não garante o cumprimento da obrigação do devedor, visando antes assegurar o interesse do beneficiário da garantia. Precisamente por esta razão é uma garantia autónoma, isto é não tem qualquer subordinação à obrigação garantida.
Como é referido, entre outros, pelo Ac. STJ 21.11.2002, no processo genético de emissão de uma garantia bancária autónoma existe, em primeiro lugar um contrato-base entre o mandante da garantia e o beneficiário, a que se segue um contrato qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante incumbe o banco de prestar garantia ao beneficiário e, por último, o contrato de garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar a soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se venceu e não foi paga e solicite o pagamento, sem possibilidade de invocar a prévia discussão dos bens do beneficiário ou a invalidade ou impossibilidade da obrigação por este contraída.
Cumpre ainda referir que, entre os diversos tipos de garantias bancárias, podemos ainda distinguir as garantias autónomas simples e as garantias autónomas automáticas (também designadas "à primeira solicitação" ou on first demand).
A garantia "à primeira solicitação" pode qualificar-se como uma promessa de pagamento à primeira interpelação, a qual cria uma situação jurídica, por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo beneficiário da garantia, terá de pagar, sem poder contestar o pagamento que lhe é exigido. Tal garantia representa para o beneficiário um acréscimo de garantia, pois que o garante fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os pressupostos que legitimam o pedido de pagamento.
Importa, todavia, sublinhar, que autonomia não se confunde com automaticidade, apenas esta reforça aquela. Na verdade, ainda que a garantia não tenha incluída a cláusula on first demand, a mesma continua a ser independente da obrigação garantida, com todas as características já supra enunciadas.

A qualificação jurídica de um contrato passa pela interpretação do alcance e sentido que as partes quiseram dar às suas declarações negociais. Para isso, terá de proceder-se à sua interpretação, que consiste em determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com tais declarações, sujeita às regras estabelecidas nos artigos 236° e seguintes.
Aí se afirma o primado da vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário: do disposto no n.° 2 (do artigo 236°) resulta que, conhecendo o declaratário o sentido que o declarante pretendeu exprimir através da declaração, é de acordo com a vontade comum das partes que o negócio vale, quer a declaração seja ambígua, quer o seu sentido (objectivo) seja inequivocamente contrário ao sentido que as partes lhe atribuíram.
Nos casos em que o declaratário não conhece a vontade real do declarante, o citado artigo 236º consagra uma teoria objectivista da interpretação, mitigada por restrições de índole subjectivista: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).
No que se refere aos negócios formais, rege o artigo 238° do Código Civil, nos termos do qual, não há sentido possível que não tenha no texto do preceito um de correspondência, a não ser que se trate de matéria relativamente à qual se não exija a forma prescrita, na lei (nº 2), ou prevalecer um sentido que não tenha aquele mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, se esse sentido, corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade.

Analisado o teor do documento, nos termos referidos em 1, ao contrário do defendido pelo embargado, entendemos não existir qualquer cláusula que nos permita a interpretação de que a garantia assumida foi "à primeira solicitação".
Na verdade, os termos utilizados, designadamente a expressão destinada a caucionar o bom cumprimento das obrigações decorrentes para o mandante acima identificado relativas ao contrato-promessa de aquisição de 360.000 acções da empresa Empresa-B, sugerem que o embargante não prescindiu de controlar, por alguma forma, o cumprimento do mandante.
Porém, também, consideramos que, ao contrário do defendido pelo embargante, não estamos perante qualquer fiança, mas sim perante uma garantia bancária autónoma.
Em primeiro lugar, no documento, em local algum se faz menção a fiança, sendo que, se fosse essa a sua vontade, teria naturalmente utilizado a expressão "fiança bancária" e não "garantia bancária".
Além do mais, dada a interdependência entre a obrigação assumida pelo fiador e a obrigação do devedor principal, a fiança, por regra, mantém-se enquanto a obrigação principal não for cumprida.
Sendo assim, não faria qualquer sentido a estipulação de um prazo para a validade da fiança, como acontece no documento dado à execução.
Pelo exposto, é nosso entendimento que um declaratário normal colocado na situação do embargado, interpretaria tal documento com o sentido de o banco se constituir como devedor autónomo, pelo que o documento em causa constitui uma garantia autónoma.
Finalmente, e pelas razões já supra expostas referentes à distinção entre autonomia e automaticidade, independentemente ter ou não a cláusula on first demand, a mesma constitui um título executivo, ao abrigo do disposto no artº 46º al. c) do CPC.

Em face do exposto e sem outras considerações, julgo os presentes embargos improcedentes e, em consequência absolvo o embargado do respectivo pedido».

Inconformado, apelou o Banco, insistindo não estarmos perante garantia bancária autónoma e, portanto, não constituir o documento título executivo. Como se vê da alegação que coroou com estas

Conclusões:

1) - O ora recorrente invocou, nos embargos deduzidos, como fundamento destes e, portanto, como fundamento do pedido de extinção da instância executiva: (i) falta de título executivo; (ii) inexistência da dívida exequenda, por não se verificar incumprimento do contrato subjacente.
2) - A douta sentença recorrida deu como assentes e com interesse para a causa, apenas dois factos, a subscrição do documento intitulado GARANTIA BANCÁRIA N° 3516185.9019, com o teor que consta do documento junto com o requerimento executivo, e que, por carta recebida pelo embargante, ora recorrente, em 11.07.2003, o embargado solicitou o pagamento da quantia referenciada no documento mencionado em 1, alegando o incumprimento, por parte do mandante da garantia, do contrato-promessa celebrado.
3) - E com estes elementos factuais, a douta sentença entendeu que o documento mencionado era uma garantia autónoma, embora não automática ou "on first demand", e apesar disso, é um título executivo, ao abrigo do disposto no artigo 46° al. c) do CPC, considerando improcedentes os embargos.
4) - O recorrente alegou muitos outros factos relevantes para a decisão da causa segundo outra perspectiva de direito que a douta sentença deveria ter seleccionado e levado à base instrutória.
5) - Decidiu a Relação de Lisboa, no Ac. de 27/4/99 (in Col. Jur., 1999, tomo 2, pág. 125), que, não se comprometendo o banco garante a pagar à primeira interpelação, não estamos perante uma garantia autónoma ("on first demand"), mas sim perante uma fiança, pelo que o documento em que foi prestada essa garantia não constitui título executivo contra o banco fiador, atento o carácter acessório da fiança.
6) - Esta interpretação é perfeitamente aplicável ao caso sub judice pois a obrigação assumida pelo executado embargante através do documento dado à execução é futura e condicional, pois ficou dependente do incumprimento pelo mandante das obrigações para ele emergentes do contrato-promessa nele expressamente mencionado.
7) - Este contrato-promessa é um contrato sinalagmático, envolvendo diversas obrigações para o mandante da garantia, a sociedade Empresa-C, e também para o beneficiário dela, o ora exequente, pois que se trata de um contrato-promessa bastante complexo, com direitos e obrigações para todas as partes nele intervenientes.
8) - A própria promessa de aquisição das ditas acções pela sociedade mandante da garantia ficou expressamente dependente da verificação de diversas condições específicas, tudo como consta, designadamente, das suas cláusulas 7ª a 10ª.
9) - Acresce que no documento dado à execução não existe qualquer menção que possa ser interpretada como expressando a vontade do Banco executado ora embargante de efectuar um pagamento automático, nem tal documento pode ser interpretado como expressão da vontade do mesmo Banco de excluir da sua esfera jurídica o direito a invocar em seu favor as excepções derivadas do contrato-base nele mencionado.
10) - O documento dado à execução não constitui, pois, título executivo, não se encaixando em qualquer das previsões das alíneas a), b) ou d) do art.° 46.° do CPC.
11) - O documento dado à execução é um documento particular assinado pelo devedor, mas não importa o reconhecimento ou a constituição de obrigação pecuniária de montante determinado ou determinável por liquidação, nos termos do art.° 805° do C. P. Civil.
12) - Do seu texto não resulta uma obrigação assumida pelo executado embargante que seja certa, líquida e exigível, pelo que obedece aos requisitos do art.° 46 , al. c) do C. P. Civil, ou seja, não constitui título executivo.
13) - E a falta de título executivo implica a extinção da execução.
14) - O exequente ora embargado não alegou nem fez prova do incumprimento do contrato-promessa por parte da mandante da garantia não lhe bastando invocar que o contrato-promessa não foi cumprido.
15) - Ao fiador é consentida a oposição ao afiançado dos meios de defesa do devedor, pelo que, de acordo com o princípio da acessoriedade da fiança, prescrito no n° 2 do art. 627°, do C. Civil, e nos termos do disposto no art.° 637°, n° 1, do mesmo Código, podem ser opostos pelo fiador ao credor todos os meios de defesa que competem ao devedor (garantido) na relação principal.
16) - A fiança tem natureza subsidiária, só tendo de ser cumprida caso o não seja a obrigação do devedor principal; e é acessória, porque a sua validade depende da validade daquela, extingue-se com ela, não a podendo exceder nem ser contraída em condições mais onerosas (artigo 631° e 632° do CC)
17) - No âmbito da relação subjacente, o embargado recorrido não tem direito a haver da mandante da garantia, a sociedade Empresa-C, a quantia exequenda, pois não houve incumprimento por parte desta do contrato - promessa entre eles celebrado, tendo-se esta limitado a invocar a excepção do não cumprimento do contrato por parte do ora recorrido para recusar o pagamento parcial do preço acordado.
18) - E este instituto opera tanto no caso de incumprimento total como de incumprimento total parcial e ainda no caso de cumprimento defeituoso.
19) - Assim, além de não ter título executivo, o exequente ora recorrido não só não tem direito à quantia exequenda nem a qualquer outra, que lhe não é devida pelo devedor principal, pois que não incumpriu o contrato-promessa.
20) - Assim, sendo a obrigação do Banco executado ora embargante a de fiador, nada devendo o devedor principal, aquele também nada deve.
21) - Mesmo no caso das garantias automáticas, há no direito português limites à exigência do pagamento sempre que o imponham as regras da boa-fé, (artigo 762° n° 2 do CC) ou o procedimento abusivo do beneficiário (art. 334° do mesmo Código).
22) - O exequente, ora recorrido, violou as regras da boa-fé, ao pretender receber através do accionamento da garantia uma quantia avultada a que sabia não ter direito, o que constitui também um comportamento abusivo.
23) - O processo não se encontrava em condições de ser proferida sentença, antes devendo ser elaborado despacho saneador, seguido da selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, fixando a base instrutória,
24) - Tudo nos termos do disposto nos artigos 510° e 511° do CPC, seguindo-se os demais termos legais.
25) - Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida fez incorrecta interpretação e aplicação das disposições legais invocadas, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que decisão que ordene o prosseguimento dos autos nos termos indicados.

O Exequente/Embargado/Recorrido concluiu assim a sua resposta:

A) - O documento dado à execução constitui inequivocamente uma garantia bancária autónoma.
B) - Na verdade, e desde logo, expressões como "GARANTIA BANCÁRIA N.° 35167185.90.19", «(...) constitui, pelo presente instrumento, a favor de AA, contribuinte fiscal com o n.° 211343951, com morada em ...., Leiria, uma garantia bancária até ao valor de € 1.745.792,60 (Um milhão setecentos e quarenta e cinco mil setecentos e noventa e dois euros e sessenta cêntimos) destinada a caucionar o bom cumprimento das obrigações decorrentes para o mandante (...) relativas ao contrato - promessa de aquisição de 360.000 acções da empresa Empresa-B»; «A presente garantia é válida até 11/07/20030»; «A reclamação de quaisquer montantes ao abrigo desta garantia tem de ser apresentada ao BANCO Empresa-A, Sociedade Aberta até ao termo da sua validade (. ..)», inculcam com nitidez que o recorrente assumiu uma obrigação totalmente independente da obrigação do garantido decorrente do contrato base (o contrato - promessa celebrado com o recorrido).
C) - A simples utilização da expressão "garantia bancária" deve ser tida como presunção de que as partes quiseram dar corpo a uma garantia bancária autónoma.
D) - A garantia bancária tem como características fundamentais a autonomia e a automaticidade.
E) - As garantias bancárias autónomas simples são apenas e tão só condicionadas à apresentação de determinados documentos.
F) - De acordo com o n.° 1 do artigo 236.° do Código Civil, a declaração negociai deve ser interpretada como um declaratário razoável, colocada na posição concreta do declaratário a interpretaria.
G) - A garantia bancária autónoma não admite uma interpretação extra textual.
H) - In casu, o declaratário normal colocado na posição do real declaratário tomaria necessariamente em conta que a garantia bancária prestada o foi enquanto garantia autónoma e, por consequência, interpretaria a declaração dela constante como a assunção de uma obrigação própria de garantia do bom cumprimento do contrato - promessa, expressa na quantia declarada a pagar, invocando o recorrido o seu incumprimento pelo mandante.
I) - O recorrente podia e devia contar com esse sentido, nos termos da 2.ª parte do n.° 1 do artigo 236.° do C. C., uma vez que a garantia bancária é no nosso sistema financeiro o instrumento usual pelo qual o Banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato - base) sem poder invocar em seu beneficio qualquer meio de defesa relacionado com esse mesmo contrato.
J) - O facto de ter sido aposto um prazo de validade constitui prova inequívoca de que a garantia é autónoma do contrato celebrado entre o recorrido e a "Empresa-C", pois a fiança mantém-se, por regra, enquanto a obrigação principal não for cumprida.
K) - Não existe qualquer possibilidade de confusão entre a fiança e a garantia autónoma: Enquanto que a obrigação do fiador é causal e acessória em relação à obrigação garantida (a do devedor principal), na garantia autónoma isso não acontece. O garante não se vincula a pagar uma divida do dador de ordem; mais do que isso, assegura ao beneficiário o pagamento, imediato e sem discussão, de uma quantia idêntica à garantida, quando aquele lho solicite.
L) - E, mesmo que não se tratasse de uma garantia bancária à primeira solicitação, nem por isso se trataria de uma fiança: também existe a figura da fiança à primeira solicitação.
M) - Os contratos de garantia negociados com as instituições bancárias para os fins e objectivos referidos são usualmente designados por garantias bancárias autónomas.
N) - A uma garantia bancária autónoma não são aplicáveis as normas dos artigos 627°, 631°, 634°, 637° e 642°, n.° 2 do Código Civil.
O) - O garante não pode invocar em sua defesa quaisquer meios relacionados com o contrato garantido, ou seja, não podem ser apostas objecções exteriores ao contrato de garantia.
P) - A garantia bancária autónoma constitui título executivo contra o banco garante.
Q) - A douta sentença não violou a lei e só merece ser confirmada,
R) - O recorrido não violou as regras da boa-fé e, designadamente, não actuou em abuso do direito.
S) - A douta sentença recorrida está em sintonia com a jurisprudência uniforme deste colendo tribunal, nomeadamente,
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/12/2003, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01/07/2003, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/03/2003, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/11/2002 in C.J.S.T.J., Ano X, Tomo III, pág. 150,
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/10/2002, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/12/2001, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/07/2001, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/05/2001, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/11/2000, in Colectânea de Jurisprudência, 2000, 5, 177;
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13/10/2000, in Colectânea de Jurisprudência, 2000, 4, 214;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01/06/2000, in Colectânea de Jurisprudência, 2000, 2, 85;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/11/1999; in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/05/1999, in Colectânea de Jurisprudência, 1999, 2, 114;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/05/1998, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/01/1997, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/01/1996, in www.dgsi.pt;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/03/1995, in Colectânea de Jurisprudência, 1995, 1, 137 e
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/01/1993, in www.dgsi.pt.
T) - No presente recurso, nas suas legações, as partes discutem apenas matéria de direito.
U) - O valor da causa é superior à alçada dos tribunais judiciais de 2ª instância.
V) - Não existem agravos retidos.
W) - É previsível, até perante o percurso processual que tem vindo percorrer, que, se o presente recurso for, como será certamente, julgado improcedente, o recorrente venha novamente a recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.
X) - Pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 725.° do Código de Processo Civil, requer-se que o mesmo (per saltum) suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça.

Ouvido sobre este pedido, nada disse o Banco Recorrente e o Ex.mo Juiz mandou subir os autos a este Supremo Tribunal.

Aceite que foi o recurso per saltum e colhidos os vistos de lei, cumpre decidir a questão submetida à nossa apreciação, a de saber se o documento junto com a petição - o acima transcrito sob o n.º 1 - constitui título executivo.

Temos, para tanto, por provados os factos acima elencados sob os n.os 1 e 2. E são eles bastantes para decisão, não sendo necessário apurar os demais referidos na alegação do Banco Recorrente porque das duas uma: ou o documento constitui, por si, título executivo e não interessa apurar outros factos, ou o documento não constitui título executivo e os embargos procedem, sem necessidade nem possibilidade de averiguar tais factos que não conferem, ainda que provados fossem, exequibilidade ao título.
Vamos, pois, analisar o aplicável

Direito:

Nos termos do art. 45º, n.º 1, do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva. É também pelo título que se afere a legitimidade de exequente e executado (art. 55º) e se determina a certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação (art. 802º do CPC).
«Como se sabe, o título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade da realização coactiva da correspondente prestação através de uma acção executiva, O título executivo cumpre, pois, uma função constitutiva, na medida em que atribui exequibilidade a uma pretensão, possibilitando que a correspondente prestação seja realizada através das medidas coactivas impostas ao executado pelo tribunal.
Esta exequibilidade implica não só um efeito positivo - que respeita à concessão ao credor do direito de execução - mas também um efeito negativo, o qual se traduz na inadmissibilidade, por falta de interesse processual, de uma acção declarativa relativa à pretensão exequível (cfr. artigo 449º, nº 2, alínea c), do C.P.C.).
As partes não podem atribuir força executiva a um documento ao qual a lei não concede eficácia de titulo executivo - nullus titulus sine lege - e também não podem retirar essa força a um documento que a lei qualifica como titulo executivo. O que significa que os títulos executivos são, sem possibilidade de quaisquer excepções criadas ex voluntate, aqueles que são indicados como tal pela lei (cfr. artigo 46º do C.P.C.), pelo que a sua enumeração legal está submetida a uma regra de tipicidade» (1).

«Podemos defini-lo (o título executivo), na esteira de Manuel de Andrade, como o documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servir de base ao processo executivo ou, então, como Mandrioli, como um acto de verificação (accertamento) contido num documento que, no seu complexo, constitui a condição necessária e suficiente para proceder à execução forçada» (2).

Nos termos do art. 46º, al. c), do CPC, é título executivo, pode servir de base à execução ... o documento particular, assinado pelo devedor, que importe constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do art. 805º...

Está nestas condições o documento transcrito em 1?
Estará, se ele permitir ao Exequente exigir do Banco garante, sem mais, quantia que se contenha dentro dos limites garantidos; não estará, se for possível ao Banco discutir a justeza do pedido, as razões por que o Exequente se diz credor.
O que nos introduz a sub-questão de indagar da natureza do contrato de garantia vertido em tal documento.

«Toda a obrigação (...) é assistida de uma garantia que lhe imprime jurisdicidade.
Tal garantia traduz-se na susceptibilidade de, em caso de necessidade, obter a condenação do devedor na realização da prestação devida (acção condenatória) e a efectivação forçada (execução) da mesma prestação à custa do seu património (Código Civil, artigo 817.º, e Código de Processo Civil, artigo 4.º).
Na prática, pois, a garantia inerente a qualquer crédito concretiza-se sobre o património do devedor, que por isso se diz ser a garantia geral ou comum dos credores.
O património funciona aqui como universalidade, no sentido de que respondem pelas dívidas todos os bens e apenas os bens (penhoráveis) que dele façam parte no momento da execução, ficando libertos da garantia os bens entretanto saídos do património e a ela sujeitos os bens entretanto nele ingressados (Código Civil, artigo 601.º, e Código de Processo Civil, artigo 821.º).
Os credores gozam de tratamento igualitário, quaisquer que sejam as datas de constituição dos seus créditos, não se estabelecendo entre eles uma hierarquização em função dessas datas.
Dado este tratamento igualitário, os credores ficam submetidos a concurso no caso de insolvibilidade do devedor, por os respectivos bens não se mostrarem suficientes para integral satisfação dos débitos, procedendo-se a um pagamento rateado, proporcional ao valor nominal de cada crédito e ao valor global do activo (Código Civil, artigo 604.º).

A fim de afastar, na medida do possível, as contingências da mera garantia comum, são com frequência estabelecidas, por negócio jurídico ou por lei, garantias especiais a favor de determinados credores ou de determinadas categorias de credores.
As garantias especiais acrescem à garantia geral, não perdendo os credores a faculdade de se prevalecerem desta pelo facto de beneficiarem daquelas.

As garantias especiais consistem, umas vezes, na afectação de determinados bens do devedor - ou de terceiro - ao pagamento preferencial do crédito: são as garantias reais (consignação de rendimentos, penhor, hipoteca, privilégios creditórios, direito de retenção).
As garantias especiais consistem, outras vezes, no facto de haver outra ou outras pessoas que também podem ser compelidas a pagar e que por conseguinte também respondem com os respectivos patrimónios: são as garantias pessoais.
As garantias reais traduzem-se em direitos reais ao serviço de direitos de crédito e têm um significado qualitativo, na medida em que conferem aos respectivos titulares uma posição de vantagem em relação a determinados bens; só possuem também um significado quantitativo quando recaem sobre bens de terceiro, porque então avoluma-se o número dos bens responsáveis.
As garantias pessoais traduzem-se em direitos de crédito ao serviço de outros direitos de crédito e têm um significado quantitativo, porque multiplicam o número das pessoas e patrimónios responsáveis.
Os que asseguram obrigações alheias, como garantes pessoais, também são devedores, embora por natureza as suas obrigações desempenhem uma função de garantia e portanto o peso final da responsabilidade venha a recair sobre o garantido, contra quem os garantes que hajam pago têm direito de regresso integral, podendo exigir dele tudo quanto hajam desembolsado» (3).

De entre as garantias especiais pessoais destacam-se as garantias bancárias, assim chamadas porque prestadas por um banco (4), hoje uma prática constante, muito especialmente nos contratos internacionais....
«Trata-se frequentemente de contratos vultosos, de execução relativamente demorada, entre empresas que não têm um seguro conhecimento recíproco e uma total confiança mútua.

O contrato poderá deixar de ser executado ou ser mal executado: por exemplo, o empreiteiro poderá não construir a obra ou construí-la mal. A outra parte dispõe de acções contratuais, quer para exigir que o contraente faltoso cumpra as suas obrigações, quer para fazer valer os direitos que lhe advêm da rescisão do contrato. Mas o recurso a essas acções oferece graves inconvenientes, dadas as demoras, custos e complexidade de um procedimento judiciário internacional; e revela-se não raro inoperante, porque o facto de a parte contrária ter faltado aos seus compromissos faz supor, só por si, que não está em condições de os satisfazer.

Por isso o contraente que receia ver-se confrontado com uma situação desse tipo exige que um banco de sólida reputação internacional garanta a conveniente execução do contrato; e a tendência que se tem desenhado é no sentido de reclamar uma garantia automática.
A garantia automática chama-se assim porque o banco deve pagar logo que o pagamento lhe é exigido, sem poder formular quaisquer objecções.
Claro que o problema, embora assuma particular relevo nas relações internacionais, também se põe no plano interno. E se por comodidade falamos sempre de bancos, o certo é que aparecem por vezes empresas seguradoras a prestar garantias deste tipo» (5).
...
«A garantia em referência é chamada, indiferentemente, autónoma, automática ou à primeira solicitação ... a mais apropriada das quais se afigura a primeira, pelo seu maior rigor técnico.
Por hipótese, o interessado deseja uma garantia tão forte como o depósito de dinheiro ou de valores.
Dados os inconvenientes já assinalados desse depósito, dispõe-se a aceitar, no lugar dele, outra garantia, mas que o coloque em situação tão segura como a que lhe adviria de um depósito feito nas suas mãos.
Essa outra garantia será prestada por um banco, em termos de funcionamento automático, logo à primeira solicitação do interessado, sem este ter de justificar o pedido, e sem que o banco possa opor-lhe quaisquer objecções.
O beneficiário abdica do depósito, mas no pressuposto de ser substituído por uma garantia que, chegado o momento oportuno, ele possa efectivar imediatamente, poupando-o aos incómodos e demoras de um procedimento judicial, e colocando afinal nas suas mãos, a posteriori, aqueles fundos que renunciou a receber a priori.
A outra parte não pode deixar de se mostrar de acordo, visto tratar-se de sucedâneo prático de um depósito que tem vantagem em não efectuar.
Por outro lado, o banco, correndo um risco maior, também percebe do seu cliente uma comissão mais elevada; procura naturalmente acautelar em termos convenientes o eventual exercício do direito de regresso contra ele; e foge a imiscuir-se nos litígios entre ele e o beneficiário, podendo pagar «de olhos fechados» ao segundo, como «de olhos fechados» terá de reembolsar o primeiro, sem necessidade de o banco tomar posição a favor de um ou de outro.

O garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembolsar o garante, também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor.

A garantia autónoma é a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato.
...
A fiança é o contrato pelo qual uma pessoa se obriga para com o credor a cumprir a obrigação de outra pessoa, no caso de esta o não fazer. O fiador compromete-se a pagar a dívida de outrem - o devedor principal. O seu compromisso é acessório.
No caso de garantia autónoma, o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia. Ele assegura ao beneficiário determinado resultado, o recebimento de certa quantia em dinheiro, e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário diga que não o obteve da outra parte, sem que o garante possa entrar a apreciar o bem ou mal fundado desta alegação.
O objecto da fiança confunde-se com o objecto da dívida afiançada, no sentido de que o fiador tem de pagar o que o afiançado deixou de satisfazer. O objecto da garantia autónoma é distinto do objecto da obrigação decorrente do contrato-base.
Daqui resulta que o garante autónomo ou independente, ao contrário do fiador, não é admitido a opor ao beneficiário as excepções de que se pode prevalecer o garantido. Faz-se muitas vezes uma declaração expressa nesse sentido, afirmando-se no título da garantia não poder o garante invocar as excepções derivadas do contrato-base. Essa declaração não é indispensável, mas tem a vantagem prática de explicitar melhor que não se trata de uma fiança. Em regra, tal declaração aparece rotulada de renúncia, mas verdadeiramente não se trata de renúncia - ou melhor, exclusão - de um direito que assistisse em princípio ao garante, e sim de uma consequência necessária da natureza autónoma da garantia» (6).

«A garantia bancária, que é uma operação activa dos bancos destinada a assegurar o cumprimento de obrigações contraídas pelo cliente perante terceiro, pode assumir diversas modalidades, tais como a de fiança, mandato de crédito, aval, aceite bancário (quando a este se não siga o desconto ao balcão do próprio banco), e, também, a de garantia autónoma, que é uma espécie particular de garantia criada e desenvolvida no âmbito do comércio internacional.

No processo genético de emissão de uma garantia bancária autónoma existe, em primeiro lugar, um contrato-base, entre o mandante da garantia e o beneficiário, a que se segue um contrato, qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante incumbe o banco de prestar garantia ao beneficiário, e, por último, o contrato de garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar a soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se venceu e não foi paga e solicite o pagamento, sem possibilidade de invocar a prévia excussão dos bens do beneficiário ou a invalidade ou impossibilidade da obrigação por este contraída.

A garantia autónoma, que é um produto da imaginação dos operadores comerciais e da liberdade de conformação negocial das partes (art. 405º, CC) tem, assim, como característica principal, que a distingue da fiança ou do mandato de crédito, a independência (autonomia) relativamente ao contrato-base, entendido este como o contrato de que derivam as obrigações garantidas.
É que a fiança tem natureza subsidiária, pois só terá de ser cumprida caso o não seja a obrigação do devedor principal, e acessória, porque a sua validade depende da validade daquela, extingue-se com ela, não a podendo, mesmo, exceder, nem ser contraída em condições mais onerosas (cfr. arts. 631º e 632º).
A garantia autónoma, pelo contrário, gera uma obrigação totalmente independente, nem subsidiária nem acessória do contrato-base.
O fiador poderá renunciar ao benefício da excussão (art. 638º, CC), e, nesse caso, retirar à fiança a característica subsidiária; em todo o caso, a fiança continuará dependente da obrigação principal, em termos de validade e de eficácia; será sempre uma garantia acessória.
...
A garantia autónoma funciona, pois, independentemente da excussão dos bens do beneficiário e da validade substancial ou formal da obrigação garantida.
A garantia autónoma é, normalmente, apetrechada com uma cláusula on first demand, que se poderá traduzir por "à primeira solicitação", e que representa, para o beneficiário, um acréscimo de garantia, pois que o seu significado é o de que o banco fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor.
...
Este breve excurso através da teoria da fiança e da garantia autónoma teve, naturalmente, como fim perceber e qualificar a garantia prestada pelo banco recorrente.
A atitude de perceber deverá ter como guia e como limite o disposto no art. 238º, CC, visto tratar-se de negócio formal (7)».

«Na prática comercial faz-se sentir a necessidade de garantias mais enérgicas do que a fiança. Entre outras modalidades conta-se o depósito de dinheiro ou outros valores (titular de crédito, pedras ou metais preciosos) nas mãos dos credores - espécie prevista no art. 623º do CC e que possui verdadeiramente a natureza de penhor (penhor de coisa fungível quando verse sobre dinheiro) - art. 666º nº.2.
O referido depósito coloca, em princípio, o credor numa posição segura e cómoda.
O depósito como forma de garantia oferece, porém, inconveniente para o devedor, na medida em que se traduz para ele numa imobilização antieconómica de dinheiro ou de outros bens, e oferece também inconveniência para o credor, quando respeita a dinheiro e se receia a sua depreciação.
A suspensão de todos os inconvenientes, quer do depósito em dinheiro, quer da fiança, encontra-se com o recurso à garantia autónoma.
A teorização desta matéria distinguindo a garantia autónoma da fiança remonta a "Stammler" há já quase um século: distinguia aquele autor os contratos (8) de garantia em duas categorias: de um lado, os contratos de garantia, acessórios de uma obrigação principal; de outro, os contratos de garantia que encontravam fundamento na autonomia da vontade e prescindiram daquela relação com qualquer outra relação jurídica, gerando para o promitente uma obrigação totalmente autónoma.
E foi esta doutrina, acolhida no código alemão, que permitiu um grande desenvolvimento, sobretudo na Alemanha, da figura da "garantievertrag", como excelente instrumento de desenvolvimento do comércio internacional, sendo três as vantagens práticas apresentadas por estas garantias, enunciadas por José Simões Patrício (in "Preliminares sobre a garantia", "On First Demand" - Revista Ordem dos Advogados, ano 43, III, 1983) e Galvão Teles, Garantia Bancária Autónoma, pags. 20).
A garantia autónoma surge, no comércio jurídico, como garantia pela qual o Banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base) sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato (Galvão Teles, ob. cit., pags. 22; Simões Patrício, ob, cit. págs....).
A garantia autónoma e a fiança correspondem a preocupações semelhantes, na medida em que ambas têm uma função específica de garantia: não podem, todavia, assimilar-se porque as separam traços fundamentais.
A fiança é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa se obriga para com o credor a cumprir a obrigação de outra pessoa, no caso desta o não fazer. O fiador compromete-se a pagar a dívida de outrem - o devedor principal. O seu compromisso é acessório - art. 627º nº. 1. No caso de garantia autónoma, o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia.
Ele assegura ao beneficiário determinado resultado: o recebimento de certa quantia em dinheiro, e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário diga que não o obteve da outra parte, sem que o garante possa apreciar o bem ou mal fundado desta alegação (Galvão Teles, ob. cit. 24).
O garante autónomo ou independente, ao contrário do fiador, não é admitido a opor ao beneficiário as excepções de que se pode prevalecer o garantido (Galvão Teles, ob. cit. 24; Ferrer Correia, Notas para o Estudo do Contrato de Garantia Bancária, na Revista de Direito e Economia, ano VIII, 1982, pags. 250 e 251).
A questão de saber se em determinado caso existe uma garantia simples (fiança) ou um contrato realmente autónomo, em face da relação obrigacional, pode apresentar dificuldades. É um problema a resolver em sede de interpretação da vontade das partes, atentas as circunstâncias da situação concreta e os usos comerciais, se os houver (Ferrer Correia, ob. cit., págs. 252), sendo certo que não haverá lugar a interpretação da vontade das partes quando o Banco se compromete a pagar "à primeira interpelação": "On first demand".

A inserção de tal cláusula no contrato de garantia bancária tem um duplo alcance:
1) Em primeiro lugar, ela significa que o Banco renuncia a opor ao beneficiário quaisquer excepções derivadas tanto da sua relação com o cliente e mandante (relação interna), como da relação causal (a relação entre o devedor principal e o beneficiário).
2) Em segundo lugar, a cláusula "on first demand" teria por efeito isentar o beneficiário do ónus da prova dos pressupostos do seu crédito contra o Banco.
A simples afirmação feita pelo beneficiário de que o facto se produziu (de que a outra parte não cumpriu o contrato que por isso foi por ele rescindido unilateralmente) bastaria para colocar o Banco na situação de ter de efectuar o pagamento pedido, sem mais indagações (Ferrer Correia, ob. cit., pags. 252 e 253).
Não existindo cláusula expressa "on first demand" no contrato de garantia bancária haverá que interpretar o mesmo no sentido de se apurar qual a vontade das partes: fiança ou garantia autónoma.

Na interpretação haverá que ter presente que, por um lado, o n.º 1 do art. 236º do CC representa a consagração da chamada "teoria da impressão do declaratário", teoria esta que entende que a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário, a interpretaria, com o que se procura, num conflito que atribuiu à sua declaração e o interesse do declaratário no sentido que podia razoavelmente atribuir a esta, que se julga merecedora de maior protecção, não só porque era mais fácil ao declarante evitar uma declaração não coincidente com a sua vontade do que ao declaratário aperceber-se da vontade real do declarante, mas também porque assim se defendem melhor os interesses gerais do tráfico, do comércio jurídico.
Por outro lado, na interpretação da declaração de vontade das partes serão atendíveis todas as circunstâncias do "caso concreto", todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, pág. 421) (9).
...
«Partindo do «Garantievertrag» à Bankgarantie que vem a ser definida como o «contrato unilateral destinado, em regra, a garantir a prestação de terceiro perante o credor beneficiário, em termos de assegurar a este último que receberá sempre a prestação ou a soma contratualmente estabelecida, e isto não só em caso de incumprimento de terceiro, mas igualmente quando a obrigação do devedor principal não chegou a existir ou se tornou posteriormente impossível».
Só que o contrato de garantia, assim definido, não eliminava todos os riscos inerentes à actividade comercial: a descoberto ficava ainda o risco de ter de se provar a ocorrência dos pressupostos que condicionam o direito do beneficiário - o que poderia atrasar consideravelmente o pagamento da soma estipulada.
Aparece, assim, para neutralizar este último inconveniente - com o apoio dos próprios bancos, interessados em não se envolver em disputas deste tipo, nem assumir o ingrato papel de «árbitro» -, a cláusula de pagamento à primeira solicitação (auf erstes Anfordern).
Consegue-se deste modo uma segurança total: não só a garantia se desliga (porque autónoma) da relação principal (entre o beneficiário e o devedor), como igualmente se elimina o risco de litigância sobre a ocorrência ou não dos pressupostos que legitimam o pedido de pagamento feito pelo beneficiário.
Perante uma garantia de pagamento à primeira solicitação, o garante - normalmente um banco, sendo também, por isso, em regra, uma garantia bancária - está obrigado a satisfazê-la de imediato, bastando para tal que o beneficiário o tenha solicitado nos termos previamente acordados. É o devedor que, depois de reembolsar o garante da importância por este paga ao beneficiário, tem o ónus de intentar procedimento judicial para reaver a referida importância, caso o credor/beneficiário haja procedido sem fundamento.
...
Diferentemente da fiança, trata-se de uma garantia autónoma, isto é, não acessória, visto não ser afectada pelas vicissitudes da relação principal e automática porque a garantia à primeira solicitação (modalidade mais generalizada) opera imediatamente, logo que o seu pagamento seja pedido pelo beneficiário» (10).

Com a clareza que o caracteriza ensina o Senhor Professor Calvão da Silva (11):
«Na experiência negocial, sobretudo na praxis comercial, bancária e financeira, são frequentes derrogações às normas do Código Civil reguladoras da fiança. E o aspecto do regime legal que as mais das vezes vem afastado pelas partes é justamente o requisito típico da fiança, vale dizer, a acessoriedade, quer a acessoriedade genética (art. 632) - por exemplo: na hipótese de invalidade da obrigação principal, a fiança estende-se à obrigação de restituição - quer a acessoriedade funcional (art. 637) - verbi gratia: o fiador é obrigado a pagar imediatamente ao credor, mediante simples interpelação escrita, não obstante a eventual oposição do devedor.
O objectivo da derrogação do princípio da acessoriedade da fiança é óbvio: desligar a garantia da relação principal, autonomizando-a, por forma a que o seu funcionamento seja automático, eficaz e seguro, e assim proporcione a maior celeridade e a máxima confiança aos agentes económicos na vida dos negócios.
...
Naturalmente, caracterizando-se a fiança pela sua dependência da relação principal, garantias pessoais daquela natureza não podem reconduzir-se ao tipo legal. Mas isso não impõe a conclusão de que essas fianças não acessórias ou garantias autónomas sejam nulas. Antes deve entender-se que as partes celebraram um contrato atípico ou inominado de garantia, conformemente ao princípio da liberdade contratual previsto no art. 405. Destarte, ao afastarem-se, na regulamentação convencional dos seus interesses, de certos aspectos da disciplina legal do arquétipo das garantias pessoais - a fiança - as partes inventaram urna rica e poliédrica gama de fianças impróprias ou garantias atípicas, objecto de crescente número de estudos doutrinários e arestos jurisprudenciais.

A segurança e a certeza proporcionadas aos operadores económicos no tráfico jurídico explicam a expansão vertiginosa de garantias pessoais autónomas, exemplo vivo de mais uma notável riqueza e inventiva da prática e da autonomia privada.
No fundo, o contrato inominado de que emergem garantias independentes da relação principal, mesmo quando as partes as apelidam de fiança, revela-se um deus ex machina, omnipresente nesta zona das obrigações. E a distinção feita por Stammler, nos contratos de garantia, entre contratos acessórios (fiança, mandato de crédito) e contratos autónomos de uma relação de base passa a constituir critério de resolução dos problemas de qualificação das garantias pessoais, disseminadas na contratação, em típicas e atípicas.
Dito por outro modo, aceita-se que a causa da garantia não implica necessariamente acessoriedade, característica essencial do tipo legal fideiussório, e que a sua independência da relação principal caracteriza o contrato de garantia dito autónomo, fundado no princípio da autonomia privada».

Depois de enumerar as várias espécies de garantia pessoal que se impuseram já como tipo social, escreve o Ilustre Professor sobre a garantia de pagamento, pela qual o garante assegura ao beneficiário o pagamento da dívida pecuniária, se o devedor principal o não fizer nos termos devidos e a cláusula de pagamento à primeira interpelação:

A terminologia inglesa das garantias, muito difundida na praxis comercial internacional, tem um valor sugestivo, não despido de significado. Sendo bond um acto formal (under seal) pelo qual uma pessoa se compromete a pagar a outra determinada quantia de dinheiro, independentemente de uma consideration, aquele vocábulo sugere de imediato que as garantias têm valor de per si, valor autónomo não subordinado à relação principal garantida.
Mas mais que esse significado etimológico, na generalidade dos casos, sobretudo no sector bancário e financeiro, as garantias prevêem a obrigação de o garante pagar à primeira solicitação do beneficiário. Consequência natural dessa cláusula de "pagamento à primeira interpelação", característica do contrato autónomo de garantia, é a de o garante não poder opor ao beneficiário as excepções atinentes à relação principal.
Noutros termos: ao primeiro pedido do beneficiário da garantia, o garante é obrigado a pagar imediatamente sem contestação, sem poder exigir a prova da inadimplência e não obstante a eventual oposição do garantido - daí que não raro se fale de cláusula de "pagamento à primeira solicitação e sem excepções".
Deste modo, ao desligar a garantia da relação principal, autonomizando-a, obtém-se a vantagem de segurança oferecida pela caução em dinheiro, mas sem o grave inconveniente da imobilização monetária, e protege-se o credor não só contra o risco do incumprimento mas ainda contra riscos atípicos, estranhos ao escopo da fiança legal - aspectos que só por si fazem da referida cláusula de autonomização um poderoso meio de coerção ao cumprimento das obrigações contratuais!»
...
Quanto à tutela do devedor contra a excussão abusiva ou fraudulenta da garantia autónoma à primeira solicitação:

«A independência estrutural e funcional da garantia autónoma on first demand da relação de base presta-se a abusos por parte do beneficiário que, aproveitando-se da insensibilidade da obrigação de garantia às vicissitudes da relação garantida, pode excutir indevidamente o garante. É o preço da autonomia, a contraface da automaticidade de funcionamento da cláusula, que, sabemo-lo já, atribui ao credor o direito de exigir o pagamento da garantia mediante simples declaração (não provada) do incumprimento da obrigação assegurada, sem contestação, pois ao garante são negadas as excepções relativas ao contrato base.
Convenhamos, porém, que, se frequentes e graves, as injustiças inerentes ao funcionamento do ius strictum podem matar a galinha dos ovos de ouro, que o mesmo é dizer desencorajar e desvalorizar o uso da cláusula on first demand ou equivalente. Em ordem a evitar esse resultado e a crítica de que se trata de "instituição sem alma", sente-se a necessidade de abrir válvulas de ventilação de justiça, adivinhando-se, porém, a dificuldade de encontrar o ponto óptimo da dialéctica com a segurança que justifica a notável difusão da cláusula.
Sob esta visualização de evitar que a cláusula se salve da doença mas morra da cura, salvaguardando-se a pureza do seu sangue na contratação leal e correcta, admite-se a permeabilidade da segurança às exigências da justiça nos casos excepcionais de excussão manifestamente abusiva ou fraudulenta da garantia, hipóteses em que se imputa ao garante conhecedor da situação o dever de bloquear ou paralisar a garantia e recusar o pagamento para evitar uma iniquidade (fraus omnia corrumpit).
Desta maneira não se dá cobertura à fraude do credor, designadamente do credor que voluntária e intencionalmente não cumpre as suas obrigações na relação principal ou que, depois de pago pelo devedor, vem excutir dolosamente a garantia. Ainda aqui, na oposição da exceptio doli, todas as cautelas são poucas, e por isso se exige ao dador da ordem uma prova líquida, uma prova qualificada, segura e inequívoca da conduta fraudulenta ou abusiva do credor, que a doutrina maioritária requer documental. Está instalada, na doutrina e na jurisprudência, a discussão acerca da existência da fraude, falando-se da necessidade de um comportamento doloso, da suficiência de um uso (objectivamente) anormal do direito ou da ausência manifesta do direito do beneficiário. Naturalmente, a exigência de fraude fraud in the transaction) é própria da common law, que não conhece a teoria geral do abuso de direito (cfr. V.g., § 5-114(2) do Uniform Commercial Code dos E.U.A). Já na civil law o mesmo resultado alcança-se pelo princípio (da proibição) do abuso de direito do beneficiário da garantia, em nome da justiça material.»

«Comummente concebida com estrutura triangular, ela decompõe-se em três relações distintas:
- um contrato base (de compra e venda, empreitada, fornecimento, etc.) celebrado entre A e B, que constitui a relação principal;
- um contrato de mandato, celebrado entre A e C, pelo qual aquele incumbe este, em geral um banco, de prestar a garantia exigida por B;
- finalmente, um contrato de garantia, entre C e B, obrigando-se o garante a pagar a soma convencionada logo que solicitada pelo beneficiário (B).

Diferentemente da fiança, trata-se de uma garantia autónoma, isto é, não acessória, visto não ser afectada pelas vicissitudes da relação principal, e automática, porque a garantia à primeira solicitação (modalidade mais generalizada) opera imediatamente, logo que o seu pagamento seja pedido pelo beneficiário.
É devida, portanto, «mesmo que a relação principal se mostre inválida e sem que o garante possa opor ao beneficiário os meios de defesa do devedor, visto que o garante assume uma obrigação própria, independente (desligada) do contrato base. Nem o devedor pode, por isso, impedir o garante de prestar a soma acordada logo que o beneficiário a solicite.»

«Tudo se passa, tratando-se de uma garantia autónoma à primeira solicitação ... como se o banco, no momento em que se obrigou perante o beneficiário tivesse depositado à ordem deste o montante estipulado na garantia. Esta funciona assim como substituto de um depósito de dinheiro ou de valores à ordem do credor - beneficiário, sem os inconvenientes que a imobilização do dinheiro acarretaria, não podendo, porém, essa substituição prejudicar o credor (12) ».

Mais recentemente e no mesmo sentido decidiu este Supremo Tribunal:
«O contrato de garantia bancária é um negócio inominado admitido no nosso sistema jurídico ao abrigo do princípio da liberdade contratual (artigo 405.° do Código Civil), que Galvão Telles define como a garantia pela qual o Banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato (O Direito, ano 120.°, tomos III e IV, págs. 283 e seguintes).
A nova economia mundial proporcionou o aparecimento de novas figuras convencionadas de garantias pessoais, que são autónomas em relação à obrigação garantida na medida em que, através dela, o garante «assegura ao credor determinado resultado, assumindo o risco da não verificação do mesmo, qualquer que seja, em princípio, a causa» (Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, 1990, pág. 265).
Como ensina José Simões Patrício, "Preliminares sobre a garantia On First Demand», Revista da Ordem dos Advogados, ano 43.°, Dezembro de 1983, esta garantia é «exequível mediante simples, imotivada ou potestativa comunicação, pelo beneficiário do incumprimento da obrigação (principal) do mandante».
Francisco Cortez, Revista da Ordem dos Advogados, ano 52.°, Julho de 1992, págs. 503­610, após considerar que a garantia bancária autónoma é prestada através da celebração de um contrato autónomo de garantia entre uma entidade (o garante), normalmente um banco (em cumprimento de um contrato de mandato sem representação em que é mandante o devedor de uma obrigação) e um beneficiário (titular do correlativo direito de crédito), pelo qual o garante se obriga a entregar uma quantia pecuniária determinada ao beneficiário, logo que, tratando-se de uma garantia bancária simples, este prove o pressuposto da constituição do seu direito de crédito contra o garante (regra geral, o incumprimento da obrigação do devedor), aponta como característica essencial desse contrato a autonomia que, em termos substanciais, significa que o garante se vincula a uma obrigação de garantia própria e independente de qualquer outra obrigação, mesmo a garantida, e que na prática se concretiza na inoponibilidade pelo garante ao beneficiário das excepções sobre vicissitudes controvertidas, quer da relação jurídica de base existente entre devedor­mandante e o credor - beneficiário, quer do contrato de mandato celebrado entre ele garante-mandatário e o devedor-mandante (cfr. págs. 606­-607). Ideia retomada e reafirmada mais adiante (pág. 608), ao escrever que o garante se vincula a uma verdadeira «obrigação de garantia», pelo qual este assegura ao beneficiário um certo resultado - regra geral, o cumprimento correcto e pontual da obrigação do devedor.
Como garantia autónoma, não tem natureza acessória relativamente à obrigação garantida; o garante deve manter-se em posição de estrita neutralidade em face dos litígios, disputas ou controvérsias entre as partes do contrato-base (Almeida e Costa e Pinto Monteiro, «Garantias bancárias, o contrato de garantia à primeira solicitação», Colectânea de Jurisprudência, ano XI, 1986, tomo V, págs. 19-20).
Ensina Ferrer Correia, «Notas para o estudo do contrato de garantia bancária», Revista de Direito e Economia, 1982, pág. 254, que o contrato de garantia autónoma é radicalmente independente relativamente ao contrato-base, inteiramente desligado da relação entre o beneficiário e o dador da ordem; e no tocante à diferença entre a «garantia» e a «fiança» entende que ela «reside no facto de a garantia, diferentemente da fiança, não ter natureza acessória em relação à obrigação garantida: uma certa autonomia em relação a esta obrigação (abstracção hoc sensu) constitui seu traço específico», em face da fiança.

Também o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a desenvolver, neste âmbito, significativa jurisprudência, como pode ver-se dos acórdãos de 27 de Novembro de 1993, Boletim do Ministério da Justiça, nº 423, pág. 483, de 23 de Março de 1995, Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano III, tomo I, pág. 137, de 9 de Janeiro de 1997, processo nº 402/96, de 27 de Janeiro de 1998, processo nº 831/97, de 5 de Novembro de 1998, processo nº 883/98, de 16 de Abril de 1998, processo nº 222/98, de 1 de Junho de 1999, processo nº 359/99, e de 22 de Fevereiro de 2000, processo nº 995/99 (13) ».

«Esta garantia (garantia «on first demand»), que podemos traduzir por promessa de pagamento à primeira interpelação, ou como é mais frequente dizer-se, à primeira solicitação, corresponde a uma situação jurídica por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo credor, terá de pagar a quantia garantida sem discussão; isto é, sem poder invocar qualquer excepção. Como costuma afirmar- se na gíria bancária, o carácter autónomo do funcionamento desta garantia significa: «pediu, pagou»; o garante não pode contestar o pagamento que lhe for exigido. Pode, assim, concluir-se que a garantia bancária à primeira solicitação, além de ser autónoma com respeito à relação garantida, opera de modo automático.
Neste tipo de garantia, ainda é usual distinguir-se entre a garantia de pagamento com ou sem justificação documental. No primeiro caso, o credor tem de justificar documentalmente (divergindo o tipo de documentação em função da garantia) o pedido feito ao garante; prescinde-se desta justificação na segunda hipótese. O facto de se prescindir de qualquer justificação não constitui motivo de invalidade da cláusula, que desempenha um papel fundamental na vida contratual (14)».

«Pelo contrato de garantia bancária autónoma o beneficiário fica a dispor de um direito que pode exercer com independência face às circunstâncias que rodeiam a relação que o vincula com o devedor principal. Assim o contrato entre o garante e o beneficiário e o contrato entre este e o dador da ordem, não manifestam entre si algum vínculo jurídico, unicamente se influenciando de um ponto de vista económico no que se refere ao conteúdo de um e outro, já que por razões inerentes à função essencial do contrato de garantia, deve existir uma certa proporção entre um e outro. Em causa não está que uma prestação seja assegurada por devedores diversos, mas sim a protecção do interesse económico do beneficiário na relação principal que pode ficar satisfeito directamente por meio do cumprimento dessa, ou através de uma soma em dinheiro que em termos de indemnização lhe será entregue pelo banco garante.
Face a estas razões favoráveis ao beneficiário de uma garantia bancária, o próprio garante está interessado em que o seu compromisso possa ser qualificado como uma obrigação abstracta ou não acessória. Para os bancos (ou outros garantes profissionais se assim se entender) o que se quer é uma desconexão completa entre a sua prestação e as circunstâncias que rodeiam o contrato face ao qual o garante é um estranho.
Pense-se nos inconvenientes que resultariam para o banco garante se para o pagamento da soma fixada na garantia, o banco tivesse que analisar se, por exemplo, uma determinada obra de engenharia foi executada de acordo com o estipulado ou não. Tempos houve em que os bancos, especialmente no comércio internacional tiveram de actuar como árbitros entre devedor e credor, para determinar se a circunstância que justificava o pagamento da soma fixada na garantia, se tinha ou não produzido.
Tal situação representa para o banco uma desvantagem. Por um lado, o banco garante ver-se-á submetido à pressão quer por parte do beneficiário que reclama o pagamento da garantia, como pelo ordenador que pretende impedir tal pagamento, até porque indirectamente é o seu património que vai ser afectado. Por outro lado, não é positivo para os bancos verem-se obrigados a investigar qual a situação concreta da relação garantida. Tal radica quer em razões técnicas, jurídicas ou mesmo geográficas.
Daí que o que o banco pretende é estar essencialmente numa posição que dependa exclusivamente das condições do próprio contrato de garantia. Evita-se assim que seja o próprio garante quem deva decidir da conveniência de pagar ou não, o que por vezes é praticamente impossível. Daqui se extrai que o desenvolvimento e crescente utilização das garantias bancárias à primeira solicitação fica a dever-se à aceitação por parte de quem as recebe, mas também às vantagens de quem as dá que assim conseguem que a profissionalidade da sua condição de garante adquira uma maior nitidez já que o compromisso assumido vai limitar-se exclusivamente aos termos do contrato concluído com o beneficiário, ou seja que o seu cumprimento dependa estritamente de factos objectivos.
Este distanciamento do banco face aos interesses do ordenador da garantia reforça assim a posição de independência por parte daquela, superando a acessoriedade e os seus rígidos esquemas, permitindo um maior grau de segurança ao beneficiário das garantias bancárias nomeadamente quando estas operem no âmbito internacional
A própria expressão garantias à primeira solicitação é um facto indiciador de que tanto garante como beneficiário pretendem eliminar, através desta cláusula, qualquer remissão para o contrato principal. Um outro aspecto em que a ausência de acessoriedade se manifesta nos contratos de garantia é o relativo às excepções que o banco garante dispõe face ao beneficiário. É usual que uma das cláusulas dos contratos de garantia expresse a renúncia por parte do banco às excepções que derivam do contrato principal. Assegura-se desta forma, que mesmo existindo um fundamento para a oposição à reclamação de pagamento da garantia, tal não irá ser oposto pelo banco garante, reforçando-se assim a posição do banco como um terceiro estranho à relação garantida.
O garante limita assim a sua possível oposição frente à reclamação do beneficiário àquelas causas que nascem exclusivamente do contrato de garantia concluído entre ambos. Esta renúncia expressa às excepções do contrato principal é manifestação da vontade das partes do que o contrato de garantia seja autónomo ou independente do contrato principal.
...
A cláusula à primeira solicitação atribui automaticidade à garantia autónoma. Se a garantia não for à primeira solicitação o beneficiário só pode exigi-la desde que prove o facto que é pressuposto do nascimento da obrigação de garantia. Diferentemente a cláusula à primeira solicitação possibilita ao beneficiário o exigir o pagamento da garantia mediante simples interpelação ao garante realizada de acordo com o estipulado na garantia, mas sem ter de justificar, sem ter de provar o bem fundado dessa reclamação. Razão tem assim A. Ferrer Correia ao afirmar que esta cláusula apresenta um rigor draconiano. Ultrapassa-se assim "o risco de se ter de provar a ocorrência dos pressupostos que condicionam o direito do beneficiário".

Pode a cláusula à primeira solicitação servir como critério interpretativo no sentido de se considerar afastada a dúvida acerca da natureza do negócio em causa? Ou seja se a cláusula "à primeira solicitação" é por si só sinónimo de garantia autónoma?
A resposta afirmativa já foi mais clara do que actualmente é possível. Com efeito a garantia autónoma não tem que obrigatoriamente ser automática embora esta característica reforce a autonomia. É no entanto usual que na prática negocial as partes ao recorrerem à cláusula à primeira solicitação o façam com o sentido de outorgarem uma garantia autónoma. Assim mesmo o entendeu o STJ que no seu Ac. de 27 de Janeiro de 1993 afirma que a cláusula "on first demand" é típica do contrato de garantia bancária autónoma. Mas este aresto é mais incisivo ao pronunciar-se no sentido de as garantias bancárias autónomas incluírem necessariamente a cláusula de pagamento à primeira solicitação. Já antes o STJ no Ac. de 7 de Novembro de 1990 deu a entender que a autonomia da garantia implica o pagamento à primeira solicitação. Por sua vez a Relação de Lisboa na decisão de 11 de Dezembro de 1990 tinha associado a cláusula à primeira solicitação ao carácter autónomo da garantia ("o contrato de garantia bancária é realmente autónomo, quando o banco se compromete a pagar à primeira solicitação"). Contudo é possível e já tem ocorrido que a cláusula em causa seja utilizada numa garantia acessória, v.g. uma fiança.
Fundamental é então a interpretação da vontade das partes aquando da conclusão deste negócio. Só assim se pode evitar que pela presença de uma cláusula à primeira solicitação se conclua necessariamente pela existência de uma garantia autónoma.
O que se tem verificado é uma diversidade de interpretações acerca do alcance a dar a esta cláusula. Ela já foi entendida como tendo unicamente o valor correspondente a uma inversão da carga probatória, ou então com o significado de que o garante está obrigado a pagar sem poder exigir prova alguma e sem poder opor nenhuma excepção. Menos extremadas tem sido as posições que vêem nesta cláusula um indício, um critério favorável da existência de uma garantia autónoma. Para esta tendência a referência genérica ao contrato base por parte da garantia não invalida o seu carácter autónomo que só seria posto em causa com uma referência em concreto às obrigações do devedor principal e que interferissem com a garantia (15)».

Pode dizer-se, em síntese, que a garantia autónoma é uma figura jurídica (cujo fundamento jurídico-positivo se encontra no art. 405º do CC) que se destina a proteger o credor contra o risco de incumprimento por parte do devedor.
É uma medida de protecção mais forte do que aquela que constitui o arquétipo das garantias pessoais - a fiança - na medida em que arreda da sua disciplina o princípio da acessoriedade, que constitui o traço característico da fiança.
Na verdade, enquanto a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor (art. 627º/2 do CC), o que significa que o fiador pode opor ao credor os meios de defesa de que pode valer-se o devedor - designadamente as excepções relativas à validade, eficácia, conteúdo, extinção, ... da obrigação garantida - a garantia autónoma acha-se inteiramente desligada da relação principal, não podendo o garante opor ao beneficiário as excepções atinentes à dita relação principal.
Na garantia autónoma o garante "assegura ao credor determinado resultado, assumindo o risco da não verificação do mesmo, qualquer que seja, em princípio, a sua causa".
A obrigação assumida pelo garante, na garantia autónoma, funda-se na responsabilidade objectiva, é autónoma e independente, e não se molda sobre a obrigação (de prestar ou de indemnizar) do devedor do contrato base, nem quanto ao objecto nem quanto aos pressupostos da sua exigibilidade.
Existe, pois, clara diferença entre o contrato de garantia autónoma e a fiança.
Há, por outro lado, garantias autónomas simples e garantias autónomas automáticas. Enquanto nas primeiras o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação do garante desde que prove o incumprimento da obrigação do devedor ou a verificação do circunstancialismo que constitui pressuposto do nascimento do seu crédito face ao garante, já tal prova não lhe é exigível nas segundas, devendo nestas o garante entregar imediatamente ao beneficiário, ao primeiro pedido deste, a quantia pecuniária fixada.
Nestas garantias automáticas insere-se a garantia de pagamento à primeira interpelação (on first demand): ao primeiro pedido do beneficiário da garantia o garante é, em princípio, obrigado a pagar imediatamente sem contestação, sem poder exigir a prova da inadimplência do devedor garantido e mesmo com a eventual oposição deste.

Se a garantia não for à primeira solicitação, se não contiver esta cláusula que lhe confere automaticidade, o beneficiário só pode exigi-la desde que prove o facto que é pressuposto do nascimento da obrigação de garantia.

A questão de saber se, em dado caso, estamos perante uma fiança ou uma garantia autónoma e, dentro do género, se perante uma garantia autónoma automática e à primeira solicitação, supõe interpretação do negócio jurídico em apreço e da vontade das partes.
E porque se trata de negócio formal, vertido no documento acima transcrito sob o n.º 1, há-de proceder-se à interpretação em causa de acordo com o disposto nos art. 236º e 238º do CC.

Não sofre dúvida que a lei - art. 236º, n.º 1, do CC - consagra, como grande princípio da interpretação negocial, a doutrina da impressão do destinatário: toma-se o declaratário efectivo, nas condições reais em que se encontrava, e presume-se depois ser ele uma pessoa normal e razoável, medianamente instruída e diligente. E o sentido prevalecente será aquele que objectivamente resulte da interpretação feita por esse destinatário razoável, que ajuiza não só das circunstâncias efectivamente conhecidas pelo declaratário real mas também daquelas outras que um declaratário normal, posto na situação daquele, teria conhecido (16).

A prevalência do sentido correspondente à impressão do destinatário é, todavia objecto, na lei, de uma limitação, em conformidade com o ponto de vista de Larenz e, entre nós, de Ferrer Correia: para que tal sentido possa relevar torna-se necessário que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este pudesse razoavelmente contar com ele (art. 236º, nº 1, in fine). Não se verificando tal coincidência entre o sentido objectivo correspondente à impressão do destinatário e um dos sentidos ainda imputáveis ao declarante, a sanção parece ser a nulidade do negócio.
Em conformidade com o ditame da velha máxima «falsa demonstratio non nocet», o nº 2 do artigo 236º estabelece que, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. Neste caso a vontade real, podendo não coincidir com o sentido objectivo normal, correspondeu à impressão real do destinatário concreto, seja qual for a causa da descoberta da real intenção do declarante. O sentido querido realmente pelo declarante releva, mesmo quando a formulação seja ambígua ou inexacta, se o declaratário conhecer este sentido (com as limitações decorrentes, para os negócios formais, do art. 238º, nº 2). Quer dizer: a ambiguidade objectiva, ou até a inexactidão, da expressão externa não impedem a relevância da vontade real, se o destinatário a conheceu. Houve coincidência de sentidos (o querido e o compreendido), logo, este é o sentido decisivo (17).

Nos termos do art. 238º do CC,

1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.

A doutrina preferível, em tese geral, quanto ao problema da hermenêutica negocial, sofre desvios quanto a certos negócios. Esses desvios traduzem-se:
Num maior objectivismo: é o que sucede nos negócios solenes ou formais. Quanto a estes, o sentido objectivo correspondente à impressão do destinatário, isto é, o sentido correspondente à doutrina geral, não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, embora imperfeita, no texto do respectivo documento (art 238º, nº 1). Tal restrição constitui «um corolário natural - se não mesmo inevitável - do carácter solene destes negócios».

«Naturalmente, a questão de saber se em determinado caso existe uma fiança simples, uma fiança (acessória) à primeira solicitação ou já um contrato autónomo de garantia é um problema a solucionar em sede de interpretação da vontade das partes, atentas as cláusulas da garantia, as circunstâncias da situação concreta e os próprios usos comerciais, se os houver. Em caso de dúvida, o negócio de garantia presume-se ser de fiança, em virtude de esta ser o tipo considerado na lei e de em matéria de garantias autónomas valer a interpretação textual, o conteúdo objectivo do acto e não o literal» (18).

Os factos, o Direito e o recurso

De posse destes ensinamentos e revisto o texto da garantia à luz dos preceitos reguladores da interpretação negocial, é ponto assente que no documento em que foi vazado o contrato de garantia não se contém a cláusula on first demand ou à primeira interpelação, o que logo afasta a automaticidade da garantia, ao abrigo da qual e ao primeiro pedido do beneficiário da garantia o garante é, em princípio, obrigado a pagar imediatamente, sem contestação, sem poder exigir a prova da inadimplência do devedor garantido e mesmo com a eventual oposição deste.

Afastada a automaticidade da garantia, afectada fica a sua autonomia ou independência em relação à relação principal ou contrato-base, pois, como acima se viu, se a garantia não for à primeira solicitação, (se não contiver esta cláusula que lhe confere automaticidade), o beneficiário só pode exigi-la desde que prove o facto que é pressuposto do nascimento da obrigação de garantia.

Também se não vê no texto da garantia qualquer declaração de renúncia do banco à invocação de excepções derivadas do contrato-base.
Essa declaração não é indispensável, mas tem a vantagem prática de explicitar melhor que não se trata de uma fiança. Em regra, tal declaração aparece rotulada de renúncia, mas verdadeiramente não se trata de renúncia - ou melhor, exclusão - de um direito que assistisse em princípio ao garante, e sim de uma consequência necessária da natureza autónoma da garantia.
No nosso caso e bem ao contrário, a garantia bancária (porque prestada por um banco) destinou-se a caucionar o bom cumprimento das obrigações emergentes para o mandante ... relativas ao contrato-promessa de aquisição de 360.000 acções...

Nem uma palavra sobre autonomia da garantia antes expressa referência ao bom cumprimento do contrato-base.
Nem se diga - como pode afirmar-se a propósito de garantias bancárias destinadas a substituir a caução em empreitadas de obras públicas ou particulares a que se aplique o regime daquelas - que a autonomia da garantia resulta dessa finalidade.
Aqui visou-se caucionar o bom cumprimento de um contrato promessa de compra e venda de acções que, nem por sua natureza nem por regulamentação legal, impõe qualquer prestação de caução.

Disso mesmo se deu conta o Ex.mo Juiz quando afirmou que o embargante não prescindiu de controlar, por alguma forma, o cumprimento do mandante.

Nem se diga que se as partes quisessem contratar uma fiança teriam escrito fiança bancária em vez de garantia bancária. É certo. Mas porque, em vez de garantia bancária não escreveram garantia bancária autónoma? E porque não contrataram a exclusão de alegação, pelo garante, de excepções derivadas do contrato-base? E porque não incluíram a vulgar cláusula à primeira interpelação?

Por outro lado, nada na lei impõe que a fiança acompanhe toda a vida do contrato. E bem podem as partes ter querido que a garantia só valesse até à data combinada por entenderem que até tal data deviam os promitentes (mandante da garantia e beneficiário desta), cumprindo a promessa, outorgar o contrato prometido ou tê-lo por definitivamente incumprido.

Transformar esta garantia bancária simples em garantia autónoma - assim impedindo o garante de discutir a relação de base quando nenhuma cláusula de exclusão foi contratada - fazê-la equivaler a garantia automática, apesar de não conter cláusula de pagamento à primeira solicitação ou semelhante, é concluir que qualquer garantia, só por ser prestada por um banco, há-de ser garantia bancária autónoma, à primeira solicitação, é atraiçoar a liberdade contratual, impor a uma das partes obrigações que ela não contratou.
Tanto mais que, em caso de dúvida, o negócio de garantia presume-se ser de fiança, em virtude de esta ser o tipo considerado na lei e de em matéria de garantias autónomas valer a interpretação textual, o conteúdo objectivo do acto e não o literal. Isto, se dúvidas houvesse, que não as há, ao menos fundamentadas.

Não se tratando de garantia autónoma, automática ou à primeira solicitação, o documento em que se funda a execução não tem força executiva, não é documento enquadrável na al. c) do art. 46º do CPC e, como tal, a execução não pode prosseguir - nem devia ter sido instaurada - por inexistência de título executivo - ar. 813º, a) e 815º, n.º 1 do CPC (na versão de 1997), 814º, a) e 816º na redacção introduzida pelo Dec-lei n.º 38/2003, de 8 de Março.

Decisão

Termos em que, na concessão da revista, se decide:
a) - revogar a aliás douta decisão recorrida,
b) - julgar procedente a oposição por embargos e, consequentemente,
c) - extinta a acção executiva.

Custas pelo Exequente/Embargado/Recorrido.


Lisboa, 28 de Setembro de 2006

Afonso Correia (Relator)

Ribeiro de Almeida

Nuno Cameira

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(1) - Ac. do STJ (Cons.º Garcia Marques), de 4.5.99, na Col. Jur. (STJ) 99-II-83.
(2) - Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 5ª edição (Outubro de 2003), pág. 19.
(3) - Professor Galvão Telles, Garantia Bancária Autónoma, em O Direito, ano 120.º, 1988 III-IV, 275 e ss.
(4)- Op. cit., 278.
(5) - ibidem, 281.
(6) - Ibidem, 284/285. O sublinhado é de nossa responsabilidade.
(7) - Ac. do STJ (Cons.º Quirino Soares) de 21.11.2002, na Col. Jur. 2002-III-148/149.
(8) - Esta distinção entre contratos de garantia acessórios e autónomos é também atribuída a Rudolf Stammler e anotada pelos Professores Almeida Costa e Pinto Monteiro, em Garantias Bancárias, Col. Jur. 1986-V-15 e ss.
(9) - Ac. do STJ (Cons.º Miranda Gusmão) de 23.3.1995, na Col. Jur. (STJ) 1995-I-137.
(10) - Professores Almeida Costa e Pinto Monteiro, no Parecer referido na nota 8.
(11) - Direito Bancário, Almedina, Dezembro de 2001, pág. 383 a 389.
(12) - Ac. do STJ, de 9.1.1996, no BMJ 453-432/433.
(13) - Ac. do STJ, de 26.11.2000, no BMJ 499-347.
(14) - Pedro Romano Martinez, Garantias Bancárias, Estudos em Homenagem ao Prof. Inocêncio Galvão Telles, II, Direito Bancário, Dezembro de 2002, pág. 274.
(15) - Garantia Bancária Autónoma À Primeira Solicitação: Algumas Questões. Estudo do Mestre António Sequeira Ribeiro na obra agora referida, pág. 289 e ss, maxime 355 e 363.
(16) - Calvão da Silva, Estudos de Direito Civil (Pareceres), 124.
(17) - Mota Pinto, Teoria Geral, 3ª ed., 449.
(18) - Professor Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial, (Pareceres) Garantias acessórias e garantias autónomas, 353, nota 39.