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SEGURO AUTOMÓVEL
REBOQUE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário
I - O reboque está abrangido por uma obrigação própria de seguro, embora este seja feito na mesma apólice do veículo rebocador e o capital seguro seja único para o conjunto rebocador e reboque (arts. 4.º, n.º 5.1, e 11.º, Risco I, al. b), da Tarifa do Ramo Automóvel). II - Deve considerar-se que a vítima e o réu contribuíram em igual medida para a ocorrência do acidente de viação que aconteceu, de acordo com os factos provados, da seguinte forma: o réu conduzia um tractor agrícola levando atrelado um reboque, pela E.N. 209, no sentido Sobrão-Lustosa; porque um dos pneus tivesse furado, retirou o reboque, que se encontrava carregado, e deixou-o aí estacionado, ocupando a totalidade da berma direita atento o sentido indicado e ainda cerca de 40-50 cm da hemi-faixa direita; este local configura uma recta, provida de iluminação pública, na qual existem casas de ambos os lados, existindo ainda uma exposição de móveis, embora a zona onde estava estacionado não estivesse directamente abrangida pela iluminação dos candeeiros públicos; o reboque, de cor vermelha escura e baça, não estava sinalizado com o triângulo de pré-sinalização, nem com qualquer luz acesa na retaguarda, dispondo de dois triângulos reflectores colocados na traseira, um do lado direito e outro do lado esquerdo da matrícula; no dia seguinte, pelas 23 h, a vítima circulava pela mesma estrada, tripulando um motociclo, no sentido Sobrão-Lustosa e foi embater no ângulo esquerdo da retaguarda, numa das arestas, do reboque. III - Na verdade, o réu preteriu um especial dever de cuidado e diligência ao abandonar o reboque no concreto local durante, no mínimo, 23 horas, com especial incidência durante a noite, e acabou por potenciar um perigo real para a circulação rodoviária. IV - Também a vítima não foi diligente, pois não se apercebeu com a devida antecedência do reboque, o qual estava estacionado numa recta, iluminada e encontrava-se dotado de dois reflectores colocados na traseira, um em cada um dos lados, e ocupando apenas 40 a 50 cm da hemi-faixa de rodagem. V - Afigura-se justo e equitativo o montante indemnizatório de 20.000,00 € destinado a ressarcir os danos não patrimoniais sofridos pela autora com a morte súbita e violenta do seu marido, traduzidos numa uma forte dor moral e num vazio existencial que ainda hoje perduram.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
AA, por si e na qualidade de legal representante de suas filhas menores BB, CC, DD e EE,
intentoua presente acção de condenação, emergente de acidente de viação, com processo ordinário,
contra
- FF - GG; e
- HH,
pedindo que sejam condenados, a título principal a 1ª ré e subsidiariamente o 2º e 3º réus para a hipótese de não existir seguro válido, a pagarem-lhes a quantia de 46.023.000$00, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente estradal de que foi vítima seu marido II.
Fundamenta, no essencial, esta sua pretensão na ocorrência de um embate entre o motociclo com motor …-…-…, conduzido pelo seu falecido marido e de que era dono, e a retaguarda do reboque de matrícula ……., que o seu proprietário, o réu GG, havia deixado abandonado na via pública, sem qualquer sinalização e em lugar sem iluminação, o que à hora da ocorrência do acidente e com trânsito em sentido contrário não permitia que fosse detectada a sua presença. Pela violação deste dever objectivo de cuidado imputa-lhe a culpa na ocorrência do evento danoso.
Com base em todos os danos sofridos, encontra o montante peticionado.
Responsável pela sua satisfação é a ré FF, para quem havia sido transferida a responsabilidade pelos danos causados com aquele reboque, ou então os dois restantes réus caso o atrelado não beneficie de seguro válido.
Contestaram os réus,
GG
arguindo a sua ilegitimidade, por não ser o dono do tractor e reboque interveniente no acidente e imputando a culpa nesta ocorrência à conduta do condutor do motociclo, bem como impugnando o valor dos danos reclamados;
FF
sustentando que o seguro celebrado com o proprietário do tractor não abrangia os danos emergentes deste acidente, porque ocasionados pelo reboque; e atribuindo, de qualquer modo, ao condutor do motociclo a culpa na eclosão do acidente e reputando de exagerado o montante dos danos reclamados.
HH
impugnando, por desconhecimento, as circunstâncias em que ocorreu o acidente, mas defendendo que o reboque está obrigatoriamente abrangido pelo seguro do tractor.
Admitida a intervenção principal de JJ, alegada proprietária do reboque, não assumiu qualquer posição processual.
Logo no despacho saneador foi a ré FF absolvida do pedido por se considerar que o reboque não estava abrangido por qualquer contrato de seguro.
Decisão atacada pelo réu HH, em recurso de apelação com subida a final.
Fixados seguidamente os factos que se consideraram assentes e os controvertidos, teve lugar, por fim, a audiência de discussão e julgamento.
Na sentença, subsequentemente proferida, foi a acção julgada improcedente e os réus e interveniente absolvidos do pedido.
Inconformada com o assim decidido, apelou a autora, tendo o Tribunal da Relação do Porto revogado parcialmente a sentença, absolvendo os réus GG, HH e interveniente JJ da instância, por se ter considerado que o reboque estava abrangido por contrato de seguro; e, concluindo que houve culpa parcial do seu proprietário na ocorrência do acidente, condenou a ré seguradora a indemnizar as autoras na proporção de 70%.
Irresignadas com o assim decidido, recorrem a seguradora, pugnando pela inexistência de seguro válido relativamente ao reboque ou, então, pela culpa exclusiva ou predominante do motociclista na ocorrência do acidente; e as autoras, defendendo a culpa exclusiva do proprietário do reboque no acidente e a alteração do valor dos danos arbitrados.
Contra-alegaram as autoras e o HH defendendo a improcedência do recurso da ré seguradora, fazendo-o esta apenas quanto à alegada inexistência de seguro eficaz do reboque, mas já secundando a posição da seguradora quanto à culpa exclusiva da vítima na eclosão do acidente.
***
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir
II. Âmbito do recurso
A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo das recorrentes radica, em síntese, no seguinte:
ré seguradora
1- O seguro obrigatório reporta-se aos veículos terrestres a motor, aos seus reboques e semi-reboques;
2- A lei impõe a realização de seguro de responsabilidade civil decorrente da utilização dos reboques ou semi-reboques, em termos de o seguro de determinado veículo não cobrir os prejuízos causados a terceiros pelos reboques ou semi-reboques que sejam atrelados a esse veículo e, por maioria de razão, quando não estejam atrelados ao mesmo;
3- No caso sub júdice o reboque ………não circulava nem estava atrelado ao tractor no momento do acidente, mas encontrava-se estacionado tendo sido rebocado para o local do estacionamento pelo tractor de matrícula …-…-…, cujo contrato de seguro não o incluía, mas antes incluía outro reboque, este de matrícula……;
4- Não havia contrato de seguro de responsabilidade civil respeitante apenas ao reboque de matrícula ……como unidade autónoma, mas quando atrelado ao tractor de matrícula …-……;
5- E mesmo que se entenda que o contrato de seguro abrange os danos causados pelo reboque, quando não em circulação e dele separado fisicamente, sempre o mínimo nexo causal exigido seria o de o reboque ter sido rebocado para o lugar onde veio a ficar estacionado pelo tractor a que se reporta o seguro que o abrange;
6- E não existindo seguro relativo ao reboque ……, é forçoso concluir que os danos resultantes do acidente não se encontravam abrangidos pela apólice n.°………; 7- Não é o simples facto de o reboque em causa estar parado nas condições apuradas nem a ocupar 40/50 cm da faixa de rodagem da estrada nacional, no interior de uma povoação, que é potenciador de perigo de acidente com algum veículo que nela circule;
8- Dos factos provados parece resultar que o motociclista podia e devia ter visto o reboque na via pública a uma distância que lhe permitisse rodear o referido veículo, que não ocupava mais de 40/50 cm da faixa de rodagem, e não embater contra ele, como veio a acontecer;
9- Foi a falta de atenção e destreza e a ausência da diligência que era imposta ao motociclista que constituíram a causa do acidente que, assim, terá que lhe ser exclusivamente imputado;
10- Mas mesmo que se venha a entender que ambos os condutores concorreram para a produção do acidente, face às circunstâncias do caso e pela aplicação do critério da diligência de um bom pai de família ou homem médio colocado na situação do motociclista, é a este que terá de ser imputada culpa predominante na eclosão do acidente.
autoras
1- Como é reconhecido no Acórdão recorrido, o réu GG com a sua conduta estradal violou, pelo menos, quatro deveres objectivos de cuidado e o dever geral de diligência, ao deixar o atrelado, na via pública e nas condições que resultaram provadas na matéria de facto dada por assente;
2- Ao invés, a conduta estradal da vítima foi isenta de violação de qualquer dever objectivo de cuidado ou do dever de diligência;
3- Se se entender que a vitima, com a sua conduta contribuiu com 10,15 ou 20% para o deflagrar do acidente, dado o alegado nas antecedentes conclusões e o disposto no art. 570º do C. Civil, sempre deve ser fixada em favor dos recorrentes a indemnização correspondente à dos danos sofridos;
4- E o dano futuro advindo aos recorrentes pela perda contributiva da vítima deve ser fixado em 75.000,00 € e não em 65.000,00 €; os danos morais sofridos pela própria vítima “ in itinere mortis” devem ser fixados em 5.000,00 €; e os danos morais da recorrente AA, fixados em 20.000 €, devem ser fixados em 25.000,00 €.
B- Face ao teor das conclusões formuladas, as questões controvertidas a decidir reconduzem-se a averiguar:
- se o reboque estava abrangido por seguro eficaz
- culpa na ocorrência do acidente
- quantificação dos montantes indemnizatórios
III. Fundamentação
A- Os factos
Foram dados como provados no acórdão recorrido os seguintes factos:
1) II nasceu em 06/03/1966 e era casado, à data de 14/05/2000, com a A. AA, sendo as restantes AA. as únicas filhas daquele; 2) O II faleceu em 14 de Maio de 2000, intestado, sendo as AA. as suas únicas e universais herdeiras;
3) No dia 13 de Maio de 2000, pelas 23h00, ocorreu um embate na estrada nacional 209, no lugar de Igreja, da freguesia de ………, desta comarca, no qual intervieram o marido da A. AA, que conduzia o motociclo com motor, de que era dono, de matrícula …-…-…, e o reboque de matrícula……, o qual, como o tractor agrícola a que viera acoplado e de matricula …-…-…, eram conduzidos e pertença do 2° R. GG;
4) No dia 12 de Maio de 2000, o R. GG conduzia o tractor agrícola e o identificado reboque na E.N. 209, no sentido Sobrão-Lustosa;
5) E porque um dos pneus tivesse furado, o 2.° R., então, retirou o reboque, que se encontrava carregado, e deixou-o estacionado na E.N. 209, e no sentido Sobrão-Lustosa;
6) O reboque ocupava a totalidade da berma direita atento o sentido indicado no ponto anterior e não mais de 40-50 cm da hemi-faixa direita, atento o mesmo sentido;
7) O reboque, estacionado na via pública, não estava sinalizado com o triângulo de pré-sinalização, nem com qualquer luz acesa na retaguarda, dispondo de dois triângulos reflectores colocados na traseira, um do lado direito e outro do lado esquerdo da matrícula;
8) A sua cor era de um vermelho escuro e baço;
9) O reboque encontrava-se estacionado numa recta, a qual tem iluminação pública e na qual existem casas de ambos os lados, existindo ainda uma exposição de móveis;
10) O reboque estava estacionado numa zona não directamente abrangida pela iluminação dos candeeiros públicos;
11) Nas circunstâncias de lugar e tempo indicadas no ponto 3, o marido da A. AA circulava na E.N. 209, no motociclo aí também referido e no mesmo sentido Sobrão-Lustosa;
12) O marido da A. AA e o motociclo, este com a parte dianteira, embateram no ângulo esquerdo da retaguarda, numa das arestas, do reboque;
13) Como consequência directa e necessária do embate, sofreu o marido da A. AA lesões crâneo-encefálicas, as quais lhe provocaram a morte;
14) O marido da A. AA aparentemente era forte e saudável e não padecia de qualquer deformidade ou enfermidade;
15) O marido da A. AA trabalhava na construção civil;
16) E era um homem dedicado ao trabalho e à família; 17) Parte dos rendimentos do marido da A. AA revertiam para a A. e suas filhas;
18) Entre o momento do acidente e aquele em que ocorreu a morte do marido da A. da AA decorreram horas;
19) Com a morte súbita e violenta do seu infeliz marido sofreu a A. AA uma forte dor moral e um vazio existencial que ainda hoje perduram;
20) As restantes AA. sofreram, também, com a morte súbita e violenta do seu infeliz pai uma forte dor moral;
21) Na apólice n. ……, em que a seguradora é a ré LL, consta como veículo seguro um tractor agrícola de matrícula …-…-… e como reboque seguro, o reboque de matrícula…… – cfr.doc junto a fls. ….
B- O direito
1. se o reboque beneficiava de seguro eficaz
Segundo o nº 1 do art. 110º C.Estrada (aprovado pelo dec-lei 114/94, de 3 Maio, revisto e republicado pelo dec-lei 2/98, de 3 Janeiro, o aqui aplicável), reboque é o veículo destinado a transitar atrelado a um veículo a motor.
Constituindo um conjunto de veículos o grupo constituído por um veículo tractor e seu reboque, sendo equiparado a veículo único, para efeitos de circulação, esse conjunto de veículos – cfr. art. 111º, nºs 2 e 3.
Todo o veículo que não tem meios para circular por si próprio, mas que se destina a ser rebocado por um veículo a motor, é um reboque, constituindo, juntamente com o veículo tractor, uma unidade circulante.
Os veículos a motor e seus reboques, determina o nº 1 do art. 131º C.Estrada, só podem transitar na via pública desde que seja efectuado, nos termos de legislação especial, seguro da responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização.
Devendo a pessoa que possa ser responsabilizada pelo ressarcimento dos danos decorrentes de lesões causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor e seus reboquesencontrar-se coberta por seguro que garanta essa responsabilidade – nº 1 do art. 1º do dec-lei 522/85, de 31 Dezembro.
Daqui decorre claramente que a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a utilização de um reboque deve estar coberta por seguro que a garanta (1).
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Na situação vertente, a apólice de seguro cobre a responsabilidade civil pela circulação do tractor agrícola de matrícula …-…-…, bem como do reboque de matricula …..
Por força deste contrato, a ré seguradora assumiu a responsabilidade pelo risco inerente à circulação desta unidade circulante, tractor e seu reboque.
Este é um dado pacífico, que ninguém questiona.
1.1- Porém, o acidente dos autos deu-se com o atrelado quando este se encontrava estacionado na via pública, sem estar acoplado ao tractor, após um dos pneus ter sofrido um furo.
Um reboque, na definição legal, é um veículo, embora não automóvel, sem locomoção própria, destinado a transitar atrelado a veículos a motor.
Em princípio, um reboque, desde que não acoplado ao tractor e, portanto, não integrante da unidade circulante, não será fonte potenciadora de riscos. Mas esses riscos podem existir mesmo quando imobilizado, como aconteceu ou terá acontecido na presente situação ou em outras situações de perigo.
Por isso é que todo o reboque está abrangido por uma obrigação própria de seguro, embora o seu seguro seja feito na mesma apólice do veículo rebocador e o capital seguro seja único para o conjunto rebocador e reboque, conforme se dispõe na Tarifa do Ramo Automóvel, arts. 4º, nº 5.1 e 11º, Risco I, al. b).
Mas se, por via de regra, o seguro de reboques não tem autonomia (tem-na quando o seu proprietário não possua rebocador próprio, situação contemplada na parte final do nº 5.1 do aludido art. 4º), impõe-se a referência expressa a tal seguro na apólice do veículo rebocador, sob pena de não beneficiar do respectivo seguro. O seguro de um veículo não abrange automaticamente o risco inerente ao reboque que lhe seja acoplado.
Mas desde que a alusão ao serviço de reboque conste da apólice do veículo rebocador, todo o risco decorrente da utilização desta unidade circulante está contratualmente garantido pelo seguro.
Por isso, é indiferente que o reboque estivesse ou não acoplado ao tractor, estivesse ou não em circulação quando o acidente ocorreu, porquanto todo o risco que resultasse da sua utilização estava coberto por um seguro próprio.
1.2- Pelos mesmos motivos é também indiferente que o reboque tenha transitado até ao local onde estava estacionado e ocorreu o acidente atrelado a um tractor diferente do mencionado na respectiva apólice de seguro.
O atrelado encontrava-se estacionado neste local desde o dia anterior e a vítima foi embater na sua retaguarda, sobre o lado esquerdo. E ocupava parte da faixa de rodagem, sem que tal estivesse pré-sinalizado.
Foi com este atrelado, sem estar acoplado a qualquer tractor e estacionado na via pública, que o acidente ocorreu. E o risco potenciado por este reboque estava coberto por um seguro próprio.
O reboque até poderia ter sido colocado neste local por meios não mecânicos, nomeadamente empurrado ou puxado à mão. Neste condicionalismo já não faria de todo qualquer sentido argumentar com o âmbito do seguro do veículo rebocador, se a respectiva apólice abrangia ou não o reboque.
Porque, repete-se, beneficiava de um seguro próprio, os riscos inerentes à utilização deste reboque estavam por ele abrangidos.
2. culpa na ocorrência do acidente
2.1- Enquanto na sentença da 1ª instância se decidiu que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da vítima, já no acórdão recorrido se perfilhou entendimento diferente, concluindo-se que o mesmo se ficou a dever à conduta quer do réu GG quer da própria vítima, na proporção de 70% e 30%, respectivamente.
Esta conclusão é atacada por seguradora e autoras, sustentando aquela que o reboque em nada contribuiu para a eclosão do acidente e defendendo estas que a culpa exclusiva na sua ocorrência é do réu GG.
No que à dinâmica do acidente respeita, temos que, no dia 12 de Maio de 2000, o R. GG conduzia um tractor agrícola levando atrelado um reboque, pela E.N. 209, no sentido Sobrão-Lustosa. Porque um dos pneus tivesse furado, retirou o reboque, que se encontrava carregado, e deixou-o aí estacionado, ocupando a totalidade da berma direita atento o sentido indicado e ainda cerca de 40-50 cm da hemi-faixa direita. Este local configura uma recta, provida de iluminação pública, na qual existem casas de ambos os lados, existindo ainda uma exposição de móveis, embora a zona onde estava estacionado não estivesse directamente abrangida pela iluminação dos candeeiros públicos.
O reboque, de cor vermelha escura e baça, não estava sinalizado com o triângulo de pré-sinalização, nem com qualquer luz acesa na retaguarda, dispondo de dois triângulos reflectores colocados na traseira, um do lado direito e outro do lado esquerdo da matrícula.
No dia seguinte, pelas 23 h, a vítima circulava pela mesma estrada, tripulando um motociclo, no sentido Sobrão-Lustosa e foi embater no ângulo esquerdo da retaguarda, numa das arestas, do reboque.
Em princípio, é proibido o estacionamento de reboques não atrelados ao tractor fora dos parques especialmente destinados a esse efeito –al. g) do nº 1 do art. 50º C.Estrada.
Em caso de imobilização forçada de um veículo na via pública em consequência de avaria, o condutor, além de proceder ao seu regular estacionamento, deve diligenciar pela sua rápida remoção, usando dos adequados dispositivos de sinalização enquanto essa remoção não ocorrer –art. 87º, nºs 1 e 2 C.Estrada.
Sempre que qualquer veículo fique imobilizado na via pública, do anoitecer ao amanhecer e sempre que as condições de iluminação não permitam um fácil reconhecimento a uma distância de 100 m, é obrigatório o uso de sinal de pré-sinalização de perigo, colocado a não menos de 30 m da retaguarda do veículo, em conformidade com o disposto nos arts. 5º, nº 2 e 88º, nº 2, al. b) C.Estrada.
Por outro lado, é estabelecida a obrigatoriedade de o trânsito de veículos se fazer pelo lado direito da faixa de rodagem, o mais próximo possível das bermas e passeios, mas conservando a distância suficiente para evitar acidentes –nº 1 do art. 13º C.Estrada.
Mas para que um facto ilícito possa ser imputado ao agente é necessário que tenha agido com culpa, que haja certo nexo psicológico entre o facto praticado e a vontade do lesante.
A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente que podia e devia ter agido de outro modo e pode revestir a forma de dolo ou mera culpa ou negligência (2).
A mera culpa ou negligência traduz-se na omissão pelo agente da diligência ou cuidado que lhe era exigível, sendo apreciada, como se diz no nº 2 do art. 487º C.Civil, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
A nossa lei consagrou o critério da apreciação da culpa em abstracto, ou seja, tendo em consideração as concretas circunstâncias em que o acidente se desenvolveu, por referência a um normal condutor.
O reboque ficou imobilizado na via pública devido ao furo de um dos seus pneus.
Embora não tenha ficado apurada a hora a que esta ocorrência teve lugar, sabe-se que tal aconteceu no dia 12. Como o acidente ocorreu às 23 h do dia 13, o reboque esteve, pelo menos, imobilizado no local 23 horas.
Uma vez que o reboque ficou a ocupar parte da faixa de rodagem e em zona não directamente iluminada pela luz pública, não obstante o local configurar uma recta na qual existem casas de ambos os lados e com iluminação pública, constituía um sério perigo para a circulação que aí se processava. Por isso e ainda porque a sua presença nem sequer estava assinalada com qualquer sinal de pré-sinalização, exigia-se, de acordo com o que seria normal, que o reboque fosse removido do local logo que possível.
Um especial dever de cuidado e diligência não se compagina com o abandono do reboque neste local durante, no mínimo, 23 horas, com especial incidência durante a noite, porque potenciador de um perigo real para a circulação rodoviária.
A conduta omissiva do réu GG apresenta-se como adequada à eclosão do acidente.
Mas se esta conduta foi adequada à eclosão do acidente, também a vítima, por acção e omissão censuráveis ético-juridicamente, para ela contribuiu.
Na verdade, o reboque, apesar de não estar em local onde directamente incidissem as luzes de iluminação pública, o certo é que estava estacionado numa recta, iluminada, estava dotado de dois reflectores colocados na traseira, um em cada um dos lados, e ocupando apenas 40 a 50 cm da hemi-faixa de rodagem.
Um condutor normal, pondo na condução o cuidado exigível, ter-se-ia apercebido deste obstáculo na faixa de rodagem com a devida antecedência, contornando-o. Acresce que, contrariamente ao alegado, não ficou demonstrado que, no momento, circulasse qualquer veículo em sentido contrário e que, por isso, a vítima visse o seu campo de visão diminuído. Por outro lado, um condutor medianamente diligente também não circularia tão próximo da berma que o levasse a embater em algo aí existente.
Com esta falta de diligência a vítima concorreu, juntamente com a actuação do réu GG, para a eclosão do acidente.
Perante as circunstâncias concretas em que o acidente ocorreu e os especiais deveres de cuidado omitidos por ambos os intervenientes, entendemos que os dois contribuíram em igual medida para a sua ocorrência, sendo de considerar a culpa de cada um na percentagem de 50%, nesta medida se alterando a graduação das culpas fixada no acórdão recorrido.
2.2- Sustentam as autoras que, mesmo a considerar-se que a vítima contribuiu com a sua conduta para o deflagrar do acidente, atendendo à culpa do réu GG deveria ser-lhes reconhecido o direito a receberema indemnização correspondente à totalidade dos danos.
Segundo o nº 1 do art. 570º C.Civil, a concorrência de culpas pode efectivamente influir na indemnização, considerando a gravidade da culpa de ambas as partes e as consequências danosas delas decorrentes.
Só que na situação vertente não se descortina qualquer desproporção na gravidade da conduta dos intervenientes, antes se considerando que a conduta de ambos foi causa bastante e adequada do acidente, não sendo inexpressiva, como pretendem as autoras, a censura à actuação da vítima para efeitos do referido art. 570º.
3. quantificação dos montantes indemnizatórios
3.1- perda contributiva da vítima para com as autoras
No acórdão recorrido fixou-se em 65.000 € o valor da indemnização devido às autoras pela perda das contribuições com que a vítima contribuía para a família.
Defendem, porém, as autoras que esse montante deve ser elevado para 75.000 €, com o argumento de que a vítima trabalharia previsivelmente até aos 75 anos e que os rendimentos auferidos subiriam naturalmente.
O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, preconiza o nº 1 do art. 564º C.Civil, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, podendo o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis.
Para no nº 3 do art. 566º se dispor que, se não puder ser averiguado o valor exacto dos mesmos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
É pacífico o entendimento jurisprudencial de que a indemnização do dano futuro deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir e que se extinga no final do período provável de vida activa (3).
No cálculo desse capital intervêm necessariamente a equidade, constituindo as tabelas financeiras de que habitualmente se lança mão mero valor auxiliar, devendo ser corrigidos os resultados assim obtidos se o julgador os considerar desajustados ao caso concreto.
A Relação ponderou devidamente todos os elementos atendíveis para fixação desse capital, nomeadamente a idade da vítima, rendimentos a auferir ao longo da previsível vida activa e importância que disponibilizaria para as autoras. E considerou que o período de vida activa se prolongaria até aos 65 anos de idade, e bem, porquanto o que está em causa é o período de vida útil ou laboral. Igualmente adequada a correcção equitativa do capital a que procedeu por referência à evolução de preços no consumidor e aos aumentos de produtividade.
Ponderando todos estes elementos, afigura-se justo e equitativo o montante arbitrado a este título, não nos merecendo, por isso, qualquer censura.
3.2- dano sofrido pela própria vítima
No acórdão recorrido decidiu-se não arbitrar qualquer indemnização a título de dano moral sofrido pela própria vítima, por não ter ficado demonstrado que tenha sofrido dores e angústia entre o momento do acidente e a sua morte.
No que a esta questão se refere, ficou provado que a vítima, em consequência do acidente, sofreu lesões crâneo-encefálicas que lhe provocaram a morte –resposta ao ponto nº 20 da base instrutória. Questionava-se ainda se entre o momento do acidente e aquele em que ocorreu a morte do infeliz marido da Autora decorreram horas, durante as quais, sofreu dores lancinantes e angústia própria de quem se debate entre a vida e a morte e acaba por sucumbir –ponto nº 25, tendo apenas sido dado como assente que entre o momento do acidente e aquele em que ocorreu a morte do marido da A. AA decorreram horas.
Para justificar que não ficou demonstrada a existência deste tipo de danos discorre-se no acórdão recorrido: Sabido que não deve recorrer-se à via presuntiva para suprir a falta de prova relativamente a factos devidamente discutidos e apreciados na audiência de julgamento não podemos agora, por via presuntiva, como parecem querer as apelantes, dar como demonstrado a existência das dores e angústia por si alegadas.
Dos factos assentes apenas decorre que a vítima não teve morte imediata, tendo sobrevivido algumas horas (não se sabe quantas) ao acidente, acidente em que sofreu lesões crâneo-encefálicas, que lhe provocaram a morte.
No ponto controvertido da base instrutória em que se procurava expressamente averiguar se a vítima viveu um momento doloroso e angustiante entre o momento do acidente e a sua morte, não se deu como assente que ela tivesse sofrido dores e angústia.
Se o tribunal de 1ª instância não deu como provados estes factos, não obstante terem sido objecto de apreciação, não poderia a Relação dá-los como assentes com base numa presunção, quando a sua força probatória pode ter ficado abalada pela discussão e apreciação que desses factos já fora feita em audiência de julgamento.
A Relação, soberanamente nesta concreta situação, concluiu que não era possível extrair a ilação de que a vítima sofrera dores e angústia.
Não tendo ficado assente que a vítima passara por um momento doloroso e angustiante, não está demonstrada a existência do dano e, consequentemente, carece de suporte a concessão da satisfação de ordem pecuniária reclamada.
Também neste campo não nos merece censura o acórdão recorrido.
3.3- dano não patrimonial sofrido pela autora AA
No acórdão recorrido atribuiu-se à autora AA a quantia de 20.000 € como compensação pelos danos de natureza não patrimonial por ela sofridos com a morte de seu marido, montante que defende dever ser computado em 25.000 €.
Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, aferida em termos objectivos, mereçam a tutela do direito (artigo 496°, n.° 1 C. Civil).
Devendo o montante pecuniário ser fixado equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias a que se reporta o art. 494º (nº 3 do citado art. 496º).
Ficou provado que a autora AA, com a morte súbita e violenta do seu marido, sofreu uma forte dor moral e um vazio existencial que ainda hoje perduram.
A morte do marido da autora mergulhou-a num sofrimento psíquico relevante.
Considerando este quadro e fazendo apelo ao juízo de equidade a que se alude o nº 3 do art. 496º C.Civil, temos por ajustado o montante arbitrado no acórdão recorrido.
4. Clarificadas as questões controvertidas colocadas, impõe-se, agora, apurar o quantum indemnizatório devido às autoras.
Sendo fixada em 50% a culpa de cada um dos responsáveis pela eclosão do acidente e mantendo-se os montantes indemnizatórios arbitrados no acórdão recorrido, são-lhe devidas as seguintes quantias:
- a todas as autoras, a quantia de 57.500 € (50.000 € + 65.000 € x 50%);
- à autora AA, a quantia de 10.000 € (20.000 € x 50%);
- a cada uma das autoras BB, CC, DD e EE, a quantia de 5.000 € (10.000 € x 50%).
Responsável pela sua satisfação é a ré seguradora, já que assumira a responsabilidade pelos riscos próprios do atrelado interveniente no acidente.
IV. Decisão
Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se nos seguintes termos:
a- negar a revista das autoras;
b- conceder, em parte, a revista da ré seguradora e condená-la a pagar as quantias de:
- 57.500 €, a todas as autoras;
- 10.000 €, à autora AA;
- 5.000 €, a cada uma das autoras BB, CC, DD e EE;
c- manter, quanto ao mais, o acórdão recorrido;
d- condenar nas custas as recorrentes, na proporção do respectivo decaimento.
Lisboa, 12 Outubro de 2006
Alberto Sobrinho
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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1- cfr., neste sentido, ac. S.T.J., de 2000/01/18, in C.J.,VIII-1º,34(acs. STJ)
2- cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 10ª ed., I, pág. 566.
3- cfr., entre outros, acs. S.T.J., de !999/03/16, in C.J.,VII-1º,167(acs.STJ) e de 2006/06/08, in www.dgsi.pt/jstj