CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
DEVER ACESSÓRIO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
Sumário


I - Na compra e venda de veículo automóvel, a emissão por escrito da declaração de venda, necessária para que o comprador possa inscrever no registo automóvel a aquisição do direito de propriedade sobre o veículo adquirido, constitui um dever acessório do vendedor.
II - Daqui decorre que o vendedor apenas cumpre pontualmente o contrato quando emite tal declaração de venda; só assim é que entrega a coisa em conformidade com o contrato.
III - Cumpre defeituosamente o contrato a ré que vendeu uma viatura à autora e comprometeu-se a registá-la em nome desta e a entregar-lhe os documentos já com tal averbamento, dentro de um mês, o que não fez até hoje, impedindo a circulação do veículo e a sua utilização pela autora.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

……. - SISTEMAS DE ……….., LDª,

intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário,

contra

………….. - VEÍCULO E ………, S.A.,

pedindo que:
- se proceda à anulação do contrato de compra e venda do veículo automóvel de matrícula …-…-…, celebrado entre elas, condenando-se a Ré a reconhecer e aceitar tal anulação e a restituir-lhe a quantia de Esc. 3.750.000$00 recebida a título de preço da venda, acrescida de juros moratórios sobre tal quantia, desde a data do negócio até à data da restituição;
subsidiariamente
- seja a ré condenada a eliminar os defeitos do veículo e a entregar-lhe o livrete e o título de propriedade do mesmo, com anotação de transferência da propriedade a seu favor;
- seja, ainda, condenada a pagar-lhe uma indemnização por todos os prejuízos que sofrer em consequência da descrita actuação da Ré, a liquidar em execução de sentença;

Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese, que a ré lhe vendeu um veículo com deficiências várias que, a deles ter conhecimento, nunca o teria comprado, o que ela bem sabia; e que a ré se tem recusado a entregar-lhe os documentos deste veículo. Tendo-lhe esta actuação da ré causado prejuízos vários,

Contestou a ré para, no essencial, sustentar que o veículo não apresentava qualquer defeito grave e relativamente a pequenos defeitos procedeu à sua reparação. E que, só por razões estranhas, não lhe pôde entregar o título de registo de propriedade. Termina por invocar a caducidade da presente acção por terem decorrido mais de seis meses sobre a entrega da viatura, sem que a autora tivesse denunciado qualquer defeito.

Replicou a autora reafirmando, genericamente, a posição inicialmente assumida.

Saneado o processo e fixados os factos que se consideraram assentes e os controvertidos, teve lugar, por fim, a audiência de discussão e julgamento.
Na sentença, subsequentemente proferida, foi julgada procedente a excepção de caducidade mas apenas quanto a algumas das deficiências que o veículo apresentava e, em parte, procedente o pedido e a ré condenada a entregar à autora o livrete e título de registo da propriedade do veículo, com averbamento a favor da autora.
Sentença que foi anulada para ampliação da matéria de facto.

Aditada a base instrutória dos factos pertinentes, prosseguiu o processo para julgamento e, na sentença então proferida, julgou-se o pedido principal improcedente e, na parcial procedência do pedido subsidiário, condenou-se a ré a entregar à autora o livrete e título de propriedade do veículo, com anotação da transferência da propriedade a favor da autora e a pagar ainda à autora a indemnização de 3.000.000$00 pelos prejuízos que lhe causou.


Inconformada com o assim decidido, apelou a ré, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Janeiro de 2006, mantido a sentença da 1ª instância com excepção do montante indemnizatório que, por o considerar incerto, condenou a ré no que vier a ser liquidado.

Irresignada, recorre de novo a ré agora para este Supremo Tribunal de Justiça, defendendo que não lhe pode ser assacada qualquer responsabilidade pelo dano de privação de uso da viatura.

Contra-alegou a autora recorrida em defesa do decidido.

***

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo da recorrente radica no seguinte:

1- Não ficou provado que a não entrega atempada dos documentos do veículo matrícula …-…-… à Recorrida tenha acontecido por culpa da Recorrente, nem tão pouco ficou provado que a Recorrente culposamente deixou de entregar aquela documentação, na medida em que, tal como ficou suficientemente demonstrado, a Recorrente não tinha em sua posse os documentos da viatura no momento da venda, conforme era do conhecimento da Recorrida, sendo que até os documentos lhe serem entregues, em Novembro de 1998, a Recorrente estava impossibilitada de entregar os documentos da viatura à Recorrida e de efectuar o registo da propriedade da viatura a favor da Recorrida.

2- Até Novembro de 1998, a Recorrente estava impossibilitada de entregar os documentos da viatura à Recorrida e de efectuar os respectivos registos, uma vez que não tinha os referidos documentos em sua posse.

3- Nestes termos, não pode ser assacada qualquer responsabilidade à Recorrente pelos prejuízos referidos pela não utilização do veículo matrícula …-…-…, uma vez que os factos que impediram a Recorrente de entregar a documentação da viatura não são imputáveis à Recorrente.

4- De acordo com o art. 798° do Código Civil, só quando o incumprimento é imputável ao devedor é que lhe advém a obrigação de indemnizar dos prejuízos resultantes do referido incumprimento, pelo que não existindo incumprimento imputável à Recorrente, não existe qualquer obrigação de indemnizar.

5- Considera o douto Acórdão recorrido que está verificado o incumprimento culposo, o dano e o nexo de causalidade entre este e aquele, cabendo à Recorrente ressarcir a Recorrida dos prejuízos que lhe causou.

6- No entanto, os factos assentes não permitem concluir aquilo que a decisão recorrida concluiu ao considerar, sem mais, que a Recorrente incumpriu culposamente o dever de entrega dos documentos à Recorrida!

7- Tal como refere o art. 798.° do Código Civil, a responsabilidade da Recorrente, a existir, teria que basear-se na existência de um incumprimento culposo da Recorrente que não se verificou nem consegue ser retirado, de alguma forma, da fundamentação de facto da decisão recorrida.

B- Face ao teor das conclusões formuladas a questão controvertida a decidir reconduz-se a averiguar se a autora incumpriu culposamente o dever de entrega dos documentos do veículo.


III. Fundamentação


A- Os factos

Foram dados como provados no acórdão recorrido os seguintes factos:

A- A Ré dedica-se à distribuição e venda de automóveis e é concessionária da marca Mercedes-Benz em Portugal.

B- A 15.10.97 a Ré vendeu à autora o veículo Mercedes – Benz 300 CE-24 por 3.750.000$00, tendo recebido então tal quantia.

C- Tal veículo era destinado a transportar os gerentes da autora (por lapso evidente consignou-se “Ré”) e a outros serviços da respectiva actividade comercial.

D- Os representantes da ré disseram aos gerentes da autora que dentro de um mês entregariam a esta o livrete e o título de registo de propriedade, já com o averbamento em nome da autora.

E- E a autora passou a utilizar o veículo.

F- O veículo em causa tem a propriedade registada a favor de “T………Lda”

G- E tal facto foi verificado a 28.04.98 pelos gerentes da autora junto da conservatória do registo automóvel.

H- A Ré garantiu à autora, aquando da venda que o veículo havia sido objecto de revisão cuidada a todos os seus componentes e que não sofria de qualquer defeito.

I- E a autora esclareceu a Ré antes da venda de que pretendia adquirir um veículo em segunda mão inteiramente apto a poder circular.

J- O veículo apresentava também outras faltas e deficiências, designadamente, iluminação da caixa de velocidades fundida.

K- E impossibilidade de accionamento do farol de nevoeiro traseiro em resultado do desprendimento do respectivo botão.

L- E o conta quilómetros estava bloqueado.

M- E a porta do lado esquerdo apresentava dificuldades em fechar.

N- E o livro de revisões não havia sido entregue à autora.

O- E as duas chaves principais, uma secundária e uma chata, não haviam sido entregues à autora.

P- Após 15.10.97 os gerentes da autora verificaram que o veículo perdia óleo.

Q- E reclamaram junto da Ré a propósito da perda de óleo.

R- E dos referidos defeitos e faltas.

S- Por carta recebida pela Ré a 5.11.97 e datada de 3.11.97, a autora apresentou as reclamações em J),K), L), M), N) e O).

T- E através de telefonemas.

U- A Ré não obteve a transferência de propriedade do veículo para a autora.

V- Da referida carta datada de 3.11.97. consta o seguinte: “(…) 1- Substituição da iluminação da caixa (…) 2. Impossibilidade de accionar o farol de nevoeiro traseiro (…)”

W- A Ré procedeu a reparações na viatura.

X- Em 4.11.98 a Ré comunicou à autora o seguinte: “Vimos … solicitar a V. Exª., o envio … do vosso número de contribuinte a fim de procedermos à transferência da viatura…”

Z- A autora solicitou à Ré a correcção de defeito relacionado com perda de óleo, esta só detectada após a venda.

AA- A falta da documentação referida em D) da matéria de facto assente impediu a autora de efectuar a inspecção periódica ao veículo em Junho de 98.

BB- E, por via de tal, a autora tem estado impedida de circular com tal viatura e de utilizá-la na sua actividade comercial.

CC- Por força do citado em AA e BB a autora sofreu prejuízos, tendo tido necessidade de adquirir um outro veículo para substituir o Mercedes com a matrícula …-…-….

B- O direito

Em 15 de Outubro de 1997, a ré vendeu à autora o veículo Mercedes – Benz 300 CE-24 por 3.750.000$00, tendo recebido então tal quantia.

É inquestionável que se está perante um contrato de compra e venda de um veículo automóvel. Tal decorre dos factos dados como assentes –cfr. al. b)- e do estatuído nos arts. 874º e 879º, ambos C.Civil.
Segundo o nº 1 do art. 408º C.Civil, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei.
O contrato de compre e venda é um contrato com eficácia real e tem como efeitos essenciais a transmissão do direito de propriedade e as obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço (art. 879º C.Civil).
Quando, como na situação vertente, o contrato de compra e venda tem por objecto um veículo automóvel, em que o registo é obrigatório e a sua circulação depende precisamente desse registo (arts. 5º, nºs 1, al. a) e 2 do dec-lei 54/75, 12 Fevereiro, e 85º, nºs 1 e 2. al.a) C.Estrada –redacção então em vigor-), o vendedor só cumpre pontualmente o contrato quando emite a declaração de venda necessária à inscrição no registo da aquisição automóvel a favor do comprador (art. 25º, nº 1 do decreto 55/75, de 12 Fevereiro). Só assim é que entrega a coisa em conformidade com o contrato.
Como se decidiu em ac. S.T.J., de 2006/03/23 (1), na compra e venda de veiculo automóvel a emissão por escrito da declaração de venda, necessária para que o comprador possa inscrever no registo automóvel a aquisição do direito de propriedade sobre o veículo adquirido, constitui dever acessório do vendedor.
O vendedor, além de entregar o veículo, deve fazer acompanhar essa entrega da respectiva declaração de venda.

Apesar do veículo estar registado a favor de T……….Lda e não da ré, esta comprometeu-se a registá-lo em nome da autora e entregar-lhe os documentos já com esse averbamento, dentro de um mês, o que não fez até hoje, impedindo a circulação do veículo e consequente utilização pela autora.
A ré cumpriu mas deficientemente a prestação a que estava vinculada, impedindo objectivamente o fim a que estava afectada, ou seja, cumpriu de modo defeituoso a obrigação. Como ensina Antunes Varela (2), na categoria do cumprimento defeituoso cabem, não só as deficiências da prestação principal ou de qualquer dever secundário de prestação, como a violação dos deveres acessórios de conduta, incluindo os posteriores à execução do contrato (culpa post contractum finitum).
Para além do incumprimento definitivo ou mora no cumprimento, há ainda o cumprimento defeituoso, que consubstancia uma prestação com vícios, defeitos ou irregularidades.
No nº 1 do art. 799º C.Civil fala-se em cumprimento defeituoso mas apenas para aí se deixar consignado que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
O credor tem de provar, no caso de cumprimento defeituoso, o defeito ocorrido (nº 1 do art. 342º C.Civil), para, a partir daí, se presumir a culpa do devedor (nº 1 do citado art. 799º).
Provado o vício e não ilidida a presunção de culpa, decorre a obrigação de ressarcimento dos danos causados ao credor, em conformidade com o disposto no art. 798º C.Civil. Embora haja meios característicos de reacção do comprador, a consequência mais importante do cumprimento defeituoso, diz Antunes Varela (3), é a obrigação de ressarcimento dos danos causados ao credor.

Afirma a recorrente que não tinha em sua posse os documentos da viatura no momento da venda, o que a recorrida bem sabia, e que até lhe serem entregues, em Novembro de 1998, estava impossibilitada de proceder à transferência de propriedade.
Mas não foi esta a realidade factual que ficou provada. Apenas ficou assente que o veículo estava registado a favor de T……………Ldª e não da ré. E que esta se comprometeu a registá-lo em nome da autora e entregar-lhe os documentos já com esse averbamento, dentro de um mês, o que não fez até hoje, impedindo a circulação do veículo e consequente utilização pela autora, apesar de saber que a autora pretendia adquirir um veículo em segunda mão inteiramente apto a poder circular.
Como a propriedade do veículo estava registada a favor de um terceiro e mesmo assim a vendedora se comprometeu a proceder ao seu averbamento a favor da compradora no prazo de um mês, incumbia àquela diligenciar por essa transferência de propriedade e subsequente entrega dos documentos ou, então, invocar o circunstancialismo que se lhe deparou obstativo desse cumprimento obrigacional.
Nenhuma razão justificativa ou explicativa do cumprimento defeituoso a ré conseguiu demonstrar. Logo, presuntivamente é culpada por tal cumprimento, em conformidade com o disposto no nº 1 do art. 799º C.Civil, tornando-se responsável pelo prejuízo causado à autora –art. 798º C.Civil.

E porque se verificam os demais pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo da ré, o que nem sequer foi questionado e, como tal, não constitui objecto do presente recurso, não poderia deixar de ser condenada a ressarcir os danos concretamente causados à autora.

IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 12 de Outubro de 2006

Alberto Sobrinho
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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1- in C.J.,XIV-1º,150 (relator Cons. Salvador da Costa)
2- in Das Obrigações em Geral, II, em nota na pág. 123
3- ob. cit, pág. 124