RECURSO
PENA APLICÁVEL
PENA APLICADA
RECORRIBILIDADE DA DECISÃO
TRÁFICO DE DROGA
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
Sumário


I - A irrecorribilidade de que fala a alínea f), do artigo 400.º do Código de Processo Penal, há-de referir-se a «processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos», sendo irrelevante, para o efeito, a pena em concreto aplicada.
II – Estando em causa uma mistura explosiva de duas das drogas clássicas mais perniciosas em termos de saúde pública – o «rebolau», mistura de heroína e cocaína – a mostrando-se a intervenção da arguida em clara co-autoria de actividade traficante, assumindo ela verdadeiro (con) domínio do facto, quer guardando a droga e proventos do tráfico, quer, assumindo a actuação essencial de abastecedora pontual sempre que para tal solicitada, e não sendo desprezíveis quer a reiteração dos factos, quer as quantidades apuradas em que teve intervenção, nomeadamente se tiver em conta que cada tenda era embalagem de 13 ou 14 doses individuais de «rebolau» e que, pelo menos, transportou e forneceu ao co-arguido, em dias distintos, 4 dessas «unidades», o que perfaz mais de meia centena de doses individuais, não se descortina em sede de ilicitude – e é desta que ora importa cuidar – nenhuma componente decisiva que a faça ter como «consideravelmente diminuída» como exige o falado artigo 25.º do DL 15/93 citado.

* Sumário elaborado pelo relator

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Em processo comum colectivo foram julgados pelo tribunal colectivo os arguidos:
- AA, e
- BB,
que os condenou, como co – autores materiais de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21° do DL 15/93, de 22 de Janeiro, em pena de prisão efectiva, ele de 6 (seis) anos e ela de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses.

Inconformados com a decisão, recorreram à Relação de Évora que negou provimento a ambos os recursos.
Desta decisão interpuseram novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 3/5/2006, da 3.ª Secção declarou nulo o acórdão recorrido nos termos dos artigos 428.º n.º 1, 431. °, 425.°, n.º 4 e 379. °, n.º 1, alínea c), todos do Código do Processo Penal, determinando a sua reformulação por ter entendido nada obstar a que se apreciasse o recurso na dimensão imposta pelas respectivas motivações, daí considerar ter havido omissão de pronúncia sobre questão que era obrigado a conhecer.

Nesta sequência, a Relação de Évora conheceu dos recursos, decidindo:
«1.º O acórdão recorrido fez rigorosa apreciação e valoração da prova produzida em audiência de julgamento, não ocorrendo os assacados vícios, pelo que não justificava a crítica que com a sua impugnação os recorrentes lhe dirigem.
2.º As medidas das penas mostram-se objectiva e subjectivamente adequadas ao caso.
3.º Pelo exposto nega-se provimento aos recursos, confirmando-se a decisão recorrida.»
Ainda irresignada, recorre agora de novo ao Supremo Tribunal de Justiça a arguida BB assim delimitando conclusivamente o objecto do recurso:
- a) A Recorrente agiu sempre determinada pelo perigo que o seu irmão sofria, e consciente da enorme dependência que o seu irmão padecia, e pela constantes insistências do mesmo, nunca a arguida BB teve consciência de deter algo, pois sempre acreditou que a droga fora achada pelo seu irmão, pelo que ora propriedade do mesmo, pelo que nunca representou que estivesse a incorrer na conduta p. e p. pelo artigo 21° do DL n.º 15/03 de 22 de Janeiro, tanto mais que até a Acusação do Ministério Público tinha qualificado a conduta da ora recorrente como preenchendo o p. e p. do artigo 23° do supra citado diploma, não lhe reconhecendo culpa e consciência para a acusar no fim do inquérito pelo artigo 21° do mesmo diploma, como posteriormente veio a acontecer,
b) Razões pelas quais, entende a Recorrente que o Tribunal da Relação de Évora no acórdão datado de 11 de Julho de 2006 de ora se recorre, violou o artigo 21° do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro ao aplicá-lo sem ter em conta o previsto no artigo 16. ° do Código Penal, pois a Recorrente agiu sempre em erro sobre os elementos do mesmo tipo.
c) Mesmo que se considere que a ora Recorrente tinha consciência e dolo, ao guardar e levar o produto estupefaciente, estava sempre com a consciência de que o que detinha era a quantidade necessária ao consumo do seu irmão, pelo que a sua consciência da ilicitude preenchia sempre a do tipo contra-ordenacional de consumo, agindo em erro sobre os elementos de facto e de direito do tipo dos artigos 21° e 23.º do DL n.º 15/93 de 22 Janeiro, questão que deveria ter sido analisada em sede de analise da matéria de facto.
d) Assim a ora Recorrente agiu determinada pela ameaça que o seu irmão e sua família sofriam, e que inclusive o levava a quase não sair de casa e a solicitação do seu irmão toxicodependente pelo que a sua conduta deve ser ponderada à luz das alíneas a) e b) do número 2 do artigo 72° do Código Penal.
e) Eram estes os motivos ponderosos, a forte solicitação do arguido AA, a Recorrente saber dos efeitos da ressaca” no seu irmão, e mais do que tudo, a Recorrente querer mais do tudo evitar que os seus sobrinhos vissem o próprio pai a ressacar, o que faz com que in casu estejamos perante as situações previstas nas alíneas a) e b) do número 2 do artigo 72° do Código Penal, o que implicava que não podia a decisão da 1.ª Instancia deixar de se pronunciar sobre estes mesmos motivos, e implica agora que o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de que ora se recorre, violou o disposto nas alíneas a) e b) do número 2 do artigo 72° do Código Penal, ao no considerar preenchido o previsto nas mesmas, e em prejuízo para a ora Recorrente, pois não aproveitou das consequências do preenchimento das referidas alíneas, que passam pela aplicação do disposto no artigo 73° n.º 1 alínea b) do Código Penal, ou seja uma redução do limite mínimo da pena que lhe era aplicável.
f) Considerando o que supra foi dito, é patente que a ora Recorrente agiu em erro sobre o preenchimento do tipo de que foi condenada, a ora Recorrente agiu guardando produto estupefaciente do seu irmão e entregando-lhe a pedido do próprio irmão, que nunca a ora Recorrente procedeu à venda, pesagem ou empacotamento de produto estupefaciente, pois nunca o fez, e como tal, nunca se poderia provar, como não se provou nos autos em análise, que no se provou que a ora Recorrente tivesse auferido qualquer tipo de vantagem com a recolha dos produtos que eram do seu próprio irmão.
g) Então mesmo que se considere que a ora Recorrente com a sua conduta preencheu o tipo do artigo 21° do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, atento à factualidade supra exposta é patente que a ilicitude da conduta da ora Recorrente é consideravelmente diminuída,
h) Na medida em que, se se considerou provado que o irmão da ora Recorrente era toxicodependente. se este pediu à sua irmã que guardasse produto estupefaciente, se este produto estupefaciente foi entregue pela a ora Recorrente ao seu irmão toxicodependente em diversos dias, e se o irmão da Recorrente dedicava-se ao tráfico de estupefaciente e esta sabia-o e auxiliava-o a dissimular a actividade,
i) Se nunca a ora Recorrente procedeu à venda, pesagem ou empacotamento de produto estupefaciente, pois nunca o fez, e como tal, nunca se poderia provar, como não se provou nos autos em análise,
j) Então é patente que se encontra preenchido o artigo 25° do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro.
m) Mas a decisão da 1.ª Instancia ao nem sequer ter procedido à ponderação da aplicação do artigo 25° do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, e ao no ter fundamentado a sua no aplicação, demonstra que se o tivesse feito, entao aplicaria de certeza o mesmo preceituado, ao no fazê-lo violou-o e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11 de Julho de 2006 de que ora se recorre, incorre na mesma violação do artigo 25° do Decreto-Lei n. ° 15/93 de 22 de Janeiro ao no o aplicar à ora Recorrente, e ao não fundamentar sequer o alegada falta do seu preenchimento, sendo certo que o Tribunal da Relação de Évora na decisão de que ora se recorre, na página 30 da mesma decisão até reconhece que a ilicitude da arguida recorrente não revela qualquer exasperação, não estando subjacente à sua conduta um negócio de grande tráfico,
n) Pois a ser verdade que se encontraria preenchido o artigo 21° do mesmo diploma, também é verdade que a ilicitude da ora Recorrente é in casu consideravelmente diminuída, pelo que o acórdão do Tribunal da Relação de Évora violou o artigo 25° do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, ao decidir no o aplicar à ora Recorrente quando a factualidade apurada preenchia o previsto na mesma disposição.
o) Dada a ilegalidade praticada pela decisão do Tribunal da Relação de Évora de que ora se recorre, ao ter decidido manter a decisão da 1.ª.° Instância condenando a ora Recorrente pela prática do crime previsto somente pelo artigo 21° do Decreto-Lei n. ° 15/93 de 22 de Janeiro, violando o disposto no artigo 25° do mesmo diploma
p) Ao não sopesar convenientemente a ilicitude diminuída da ora Recorrente e todos os factos acima enunciados e que concorrem para a aplicação de uma pena de prisão no superior a três anos e suspensa na sua execução, de acordo até com o decidido neste Venerando Tribunal na decisão supra citada e com o decidido pelo o próprio Circulo Judicial de Faro na decisão também aqui citada, a decisão do Tribunal da Relação de Évora violou o disposto no artigo 40.º do Código Penal.

Termina pedindo no provimento do recurso, seja «modificada a sentença condenatória», absolvendo-se o ora recorrente do crime de que vem condenado ou, caso assim não seja entendido, se «modifique a medida da pena em que o arguido foi condenado» para uma pena de prisão de três anos, sendo suspensa a sua execução.
Refugiou-se o Ministério Público junto do tribunal recorrido numa pretensa irrecorribilidade da decisão, assentando para tanto na circunstância de a pena aplicada não ser superior a oito anos de prisão, de resto em conformidade com uma jurisprudência efémera deste Supremo Tribunal.
Mas, subidos os autos, tal posição «abstencionista» não colheu aplauso do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto que promoveu o impulso dos autos para julgamento do recurso.

Questões a decidir:
- Questão prévia irrecorribilidade da decisão?
- Pressupostos da incriminação da recorrente nomeadamente a existência de acção penalmente relevante.
- Qualificação jurídica dos factos – tráfico comum ou de menor gravidade?
- Espécie e medida da pena – pena suspensa?

2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.

Factos provados [transcrição]
1. O arguido AA, desde data não concretamente apurada mas não anterior a Fevereiro de 2005 que se vinha dedicando ao tráfico de rebolau (que consiste numa mistura de heroína e cocaína), vendendo tal substância aos consumidores desse produto em doses individuais;
2. A venda do rebolau era feita essencialmente a partir da residência do arguido AA, sita no Largo da ...., ....., 2ª fase, nº 000, em 0000
3. Em data não concretamente apurada mas não anterior a Fevereiro de 2005, para melhor dissimular essa sua actividade, o arguido AA pediu a sua irmã, a arguida BB, que lhe guardasse o produto estupefaciente em sua casa e lho fosse levando, em tendas (que consistem em embalagens de 13 ou 14 doses individuais de rebolau já feitas e embaladas pelo arguido AA), à medida que fosse precisando;
4. Para tanto, o arguido AA utilizava o telefone móvel com o número 90000000 e o telefone fixo da sua casa (com o número 0000000000) e a arguida BB utilizava o telemóvel nº 900000000;
5. Assim, no dia 18 de Fevereiro de 2005, depois das 10.00 horas, a arguida BB levou quantidade não concretamente apurada de rebolau ao arguido AA;
6. No dia 19 de Fevereiro de 2005, antes das 13.00 horas, a arguida BB levou duas tendas ao arguido AA;
7. No dia 23 de Fevereiro de 2005, antes das 16.00 horas, a arguida BB levou uma quantidade não concretamente apurada de rebolau ao arguido AA;
8. O arguido AA tinha a vender rebolau para si um indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, mas que era conhecido por João, a quem deu um telemóvel para o efeito e que em data anterior a 21 de Fevereiro de 2005, lhe ficou com 100 € de rebolau;
9. No dia 28 de Fevereiro de 2005 realizaram-se buscas domiciliárias às residências de ambos os arguidos, tendo sido apreendidos à arguida BB:
9.1. Duas “tendas”, contendo no seu interior, uma 13 doses individuais e outra 12 doses individuais, num total de 25 doses individuais de rebolau com o peso líquido de 2,357 gramas;
9.2. Um saco que continha rebolau com o peso líquido de 4,819 gramas;
9.3. Trezentos euros em notas de 20 (12 notas), 50 (1 nota) e de 5 euros (2 notas);
9.4. Seis telemóveis;
9.5. Dois recortes de saco plástico grandes;
9.6. Um medidor para fazer as doses individuais com vestígios de rebolau, e
9.7. Uma tesoura:
10. No mesmo dia e na sequência da busca realizada à residência do arguido AA foram-lhe apreendidos:
10.1. Um panfleto de rebolau, com o peso líquido de 0,122 grama;
10.2. Três telemóveis, e
10.3. Um recorte grande de saco plástico com resíduos de cocaína;
11. A arguida BB sabia que o irmão, o arguido AA se dedicava ao tráfico de estupefacientes, nomeadamente de rebolau e agiu com o propósito de guardar quer a droga, quer os instrumentos de medição e embalamento de doses individuais por forma a que a este, caso fosse interceptado pela polícia ou se lhe fosse fazer uma busca a casa, nada ou pouca coisa lhe fosse encontrada, auxiliando-o assim a dissimular a sua actividade de tráfico;
12. Por sentença proferida no dia 22 de Maio de 1998, no âmbito dos autos de processo comum singular nº 64/96 do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração, foi o arguido AA condenado pela prática, em Agosto de 1995, de um crime de furto qualificado, na pena de 120 dias de multa;
13. Por acórdão proferido no dia 29 de Outubro de 1999, no âmbito dos autos de processo comum colectivo nº 463/97.oTBOLH do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração, foi o arguido AA condenado pela prática, em 30 de Setembro de 1996, de um crime de consumo e um crime de tráfico para consumo, na pena única de um ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos;
14. A pena referida no número anterior extinguiu-se;
15. Por sentença proferida no dia 19 de Novembro de 2001, no âmbito dos autos de processo comum singular nº 209/96 do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração, foi o arguido AA condenado pela prática, em 20 de Agosto de 1995, de um crime de furto qualificado, na pena de 100 dias de multa;
16. Por sentença proferida no dia 20 de Janeiro de 2003, no âmbito dos autos de processo especial sumário nº 46/03.7PAOLH do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração, foi o arguido AA condenado pela prática, em 10 de Janeiro de 2003, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 160 dias de multa;
17. Por sentença proferida no dia 6 de Fevereiro de 2004, no âmbito dos autos de processo especial sumário nº 113/04.0PAOLH do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração, foi o arguido AA condenado pela prática, em 26 de Janeiro de 2004, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos;
18. Por sentença proferida no dia 10 de Fevereiro de 2005, no âmbito dos autos de processo comum singular nº 924/03.3PAOLH do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração, foi o arguido AA condenado pela prática, em 13 de Julho de 2003, de um crime de furto qualificado, na pena de 300 dias de multa;
19. O arguido AA tem o 6º ano de escolaridade;
20. Na data da prática dos factos vivia com sua mulher e dois filhos de ambos, de 3 e 4 anos de idade;
21. O arguido aufere mensalmente cerca de 250 € de uma pensão de reforma por invalidez;
22. O arguido tem um barco com o qual, por vezes, vai colher bivalves à Ria Formosa, realizando quantias não concretamente apuradas com a venda de tal colheita;
23. Do ponto de vista disciplinar, o arguido tem tido um comportamento prisional adequado, não havendo qualquer registo ao nível da justiça e disciplina;
24. No Estabelecimento Prisional está inscrito num curso de encadernação;
25. O arguido iniciou-se no consumo de drogas há mais de 10 anos, estando a fazer, sob os auspícios do Centro de Atendimento a Toxicodependentes de Olhão da Restauração, um tratamento da toxicodependência desde há vários anos, estando incluído num programa de metadona;
26. À arguida BB não são conhecidos antecedentes criminais;
27. Vive com o marido, 2 filhos de ambos (com 6 e 16 anos de idade) e um sobrinho que está a seu cargo e que tem 16 anos de idade;
28. Todos estes menores são estudantes;
29. O marido da arguida é funcionário público, desempenhando funções de chefe de pessoal auxiliar de acção educativa;
30. A arguida é cantoneira de profissão, trabalhando para a Câmara Municipal de Olhão da Restauração;
31. A arguida aufere de remuneração base líquida a quantia de 491 €, a que acresce a retribuição por trabalho suplementar que a mesma preste;
32. A arguida é vista por colegas e amigas como uma pessoa trabalhadora, honesta e dedicada à família;
33. A arguida não é consumidora de drogas, nomeadamente rebolau.".

Factos não provados [transcrição]
«Não se provaram os demais factos constantes das acusações, sendo certo que aqui não interessa considerar as alegações conclusivas, de direito ou que contenham meras referências probatórias, as quais deverão ser ponderadas em sede própria deste acórdão, nem os factos absolutamente irrelevantes para a decisão da causa.
Concretamente, não se provou que:
I. O comportamento dos arguidos, tal como plasmado na matéria de facto julgada provada já vinha sendo por eles praticado desde Novembro de 2004, tendo-se demonstrado apenas o que se deixou descrito na factualidade apurada;
II. No dia 18 de Fevereiro de 2005 a arguida BB tivesse levado ao arguido AA duas tendas de rebolau, tendo-se provado apenas o que se deixou descrito na factualidade apurada;
III. No dia 23 de Fevereiro de 2005 a arguida BB tivesse levado ao arguido AA uma tenda de rebolau, tendo-se provado apenas o que se deixou descrito na factualidade apurada;
IV. No dia 21 de Fevereiro de 2005, antes das 19.00 horas, a arguida BB tivesse levado uma tenda ao arguido AA;
V. No dia 24 de Fevereiro de 2005, antes das 10.00 horas, a arguida BB tivesse levado uma tenda ao arguido AA;
VI. Em casa da arguida BB tivessem sido apreendias duas tendas contendo, cada uma delas, 13 doses individuais de rebolau, mas apenas o que se está descrito na matéria de facto julgada provada;
VII. O dinheiro apreendido à arguida BB fosse proveniente da venda de rebolau;
VIII. A arguida BB tivesse actuado com o propósito de guardar o dinheiro resultante da venda de droga por parte do irmão;
IX. O arguido AA é toxicodependente há 11 anos e está em tratamento de metadona desde há 9 anos, tendo-se demonstrado, neste particular, apenas o que se deixou descrito na factualidade apurada.»

Nesta matéria de facto não se vislumbram vícios capazes de afectarem a sua validade, mormente os referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que, de resto o recorrente lhe não assaca também.
Daí que se tenha por definitivamente adquirida.

As questões de direito

Questão prévia
O Ministério Público junto do tribunal recorrido, invocando um acórdão deste Suprmeo Tribunal tem como irrecorrível a decisão da Relação, atento a que a mesma confirma decisão de 1.ª instância em que a pena aplicada se fica aquém dos oito anos de prisão.
Aquela jurisprudência, porém, está longe de ser maioritária.
E, nomeadamente pela pena do ora relator vários arestos surgirem consgrando a solução contrária.
Retoma-se o que se escreveu no acórdão proferido no recurso n.º 2720/03-5, com o mesmo relator, a tal propósito:

«Tal como oportunamente já foi tornado público no acórdão de 26/6/03, proferido no recurso n.º 1797/03-5 (1) em que o ora relator lavrou voto de vencido, ressalvando sempre o devido respeito, não se aceita a tese de irrecorribilidade da decisão em causa, nos termos em que vem defendida […].
São estas em resumo as razões de um tal entendimento já explanadas naquela declaração de voto e que, por não se vislumbrarem argumentos em contrário, capazes de invalidarem o seu sentido, aqui se reassumem:
O princípio geral nesta matéria – ampla admissibilidade dos recursos – é enunciado pelo artigo 399.º do Código de Processo Penal que dispõe: «É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei».
«A regra é, pois, que se pode sempre recorrer, salvo nos casos expressamente exceptuados por lei. Assim, para em determinado caso sabermos se pode haver ou não recurso, temos de ver se o caso se encontra exceptuado por lei, nomeadamente no artigo 400.º (...)» (2) .
Por seu lado, não é admissível recurso, entre outros, «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções» - art.º 400.º, n.º 1, f), do mesmo diploma adjectivo.
Poderá esta disposição excepcional(3) comportar o sentido restritivo do direito ao recurso que lhe empresta o Ministério Público junto do Supremo Tribunal?
A resposta não poderá deixar de ser negativa.
Desde logo, porque a letra da lei parece não oferecer grande margem para dúvidas quando estatui, por forma muito clara, que a irrecorribilidade de que fala a alínea f), do artigo 400.º supra transcrita, há-de referir-se a «processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos».
Sendo de presumir, nos termos do disposto no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil – princípio geral em matéria de interpretação de leis – «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados», dificilmente poderá aceitar-se que, por um lado, se referisse a pena aplicável com o mesmo sentido de pena aplicada [mas insusceptível de agravamento em recurso]. A ser assim, o mínimo que se exigiria de quem sabe exprimir-se naqueles termos presumidamente correctos, é que à expressão pena aplicável, tivesse sido equiparada expressamente a situação mencionada de pena aplicada insusceptível de agravação em recurso, ou outra equivalente.
É que – não o esqueçamos – a regra é a recorribilidade das decisões, sendo a irrecorribilidade, sempre, excepcional. E quando se tratasse de impor uma tão lata extensão do regime de excepção, como a proposta na posição do Ministério Público, importaria, sobremaneira, que tal fosse expresso ou explícito, de forma inequívoca, ou, pelo menos, colhesse da lei um mínimo, ainda que porventura imperfeito, de tradução literal, o que não é o caso.
Por outro lado, se é certo, face ao preceituado no artigo 11.º, ainda do Código Civil, que as normas excepcionais, não comportando, embora, ao menos para a nossa lei, aplicação analógica, admitem interpretação extensiva, não é menos verdade que, mesmo aqui, importa actuar com cautelas, tal como de resto se pronunciou o Parecer da Procuradoria-Geral da República, de 8/7/76(4), segundo o qual «a interpretação extensiva só é possível quando o intérprete conclua pela certeza de que o legislador se exprimiu restritivamente, dizendo menos do que pretendia (minus dixit quam voluit)».
Debruçando-se sobre o sentido da citada alínea f), escreve o Prof. Germano Marques da Silva (5), que tal norma constitui uma aplicação do princípio da dupla conforme. «Se a decisão condenatória da 1.ª instância for confirmada em recurso pela relação, só é admissível recurso se a pena aplicável for superior a oito anos».
É este sentido estrito da excepção que resulta do texto da lei, supostamente elaborada por um legislador capaz de exprimir-se convenientemente.
Não parece, assim, resultar da lei qualquer suspeita e, muito menos, certeza, de que o legislador disse menos do que queria.
Ademais há razões jurídicas de fundo que se erguem contra a interpretação extensiva do preceito – mas, como se viu, restritiva do princípio geral do direito ao recurso – proposta pelo Ministério Público.
Na verdade, por um lado, os critérios de recorribilidade e ou irrecorribilidade expressos no Código de Processo Penal, para assegurarem a necessária previsibilidade do direito em causa, são, em geral, pelas razões expostas, tributários de fixação apriorística, por isso ligados, como penhor dessa desejável previsibilidade, às penas abstractas aplicáveis e não, como é pretendido, de alguma forma dependentes das penas aplicadas pelas instâncias, portanto de verificação a posteriori e, assim, de aplicação mais ou menos empírica ou casuística, tornando-se, por essa via, num direito em larga medida imprevisível e incerto, já que dependente do resultado do julgamento de cada caso concreto, o que para uma previsão de tão largo espectro como o direito ao recurso não parece consagrar a melhor opção legislativa.
Por outro lado, ressalvando sempre o devido respeito por diversa posição, há ou parece haver uma certa petição de princípio na tese proposta, ao assentar em que, nos casos como o caso sujeito, «pena aplicável se confunde com pena aplicada», uma vez que não havendo recurso do MP, e face à proibição da reformatio in pejus, ao tribunal de recurso já não seria possível ir para além da pena em que as instâncias convergiram.
É que, em primeiro lugar, bem pode dar-se o caso de a pena aplicada poder ter sido o resultado infeliz de um (pouco provável mas, ainda assim, sempre possível) eventual erro de direito por parte das duas instâncias. E não parece aceitável, do ponto de vista da defesa efectiva dos direitos do arguido, que este não possa levar o caso perante o Supremo Tribunal de Justiça, não só – como será legítimo – para ver reduzida a pena, se for esse o caso, como, mais do que isso, para, junto do Mais Alto Tribunal, defender, mesmo, a sua absolvição, (6) caso em que, a triunfar essa pretensão absolutória, não há lugar, como é óbvio, a falar em pena aplicada ou aplicável, e, muito menos, de coincidência entre ambas. Em tal caso a pena aplicada não subsiste, deixando, assim, de existir, e seria impossível equipará-la a pena aplicável que, por seu lado, também deixa de ter lugar. Daí, a razão de ser da falada petição de princípio que parte do pressuposto, não demonstrado e inaceitável, de que a pena aplicada no caso é uma realidade imodificável, uma espécie de caso julgado...unilateral (7) .
Depois – e não menos importante – tal entendimento não parece aceitável, do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade de armas, logrando portanto, duvidosa cobertura nas atinentes previsões, entre outras, nomeadamente a do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Na verdade, na interpretação proposta, verificando-se dupla conforme, isto é, convergência de posições entre as instâncias quanto à condenação, só à acusação fica reservado o direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, direito que, assim, é incompreensivelmente negado ao condenado, o que, privilegiando sem razão aparente a «parte acusadora», coloca a defesa numa injustificada situação de inferioridade e incomportável desigualdade processual.
Nem se argumente, ex adverso, que, se o Ministério Público decidir recorrer, então já o arguido o poderá fazer também em igualdade de armas...e que, enfim, a existir aqui alguma ofensa a tal princípio, ela compensaria de algum modo a que – pendendo a favor do arguido – já resulta da irrecorribilidade em caso de dupla conforme absolutória contemplada na alínea d) do n.º 1, do mesmo artigo 400.º
É que, por um lado, não se vê onde possa residir a reclamada igualdade de posições processuais ou de armas, quando o direito ao recurso do arguido é subtraído à sua própria avaliação e fica dependente de ponderação e avaliação alheias, e por outro, tratando-se, ali – na dupla conforme absolutória – de preservar a absolvição, dá-se, por essa via, corpo visível à regra da liberdade consagrada, nomeadamente, no artigo 27.º, n.º 1, da Lei Fundamental – e, sobretudo, a garantia constitucional de processo criminal, decorrente da «dignidade da pessoa humana» (art.º 1.º), de que «todo o arguido se presume inocente (art.º 32.º, n.º 2) – o que não sucede no caso vertente, em que a violação favorece a parte acusadora (na decorrência de uma qualquer presunção de culpabilidade do arguido) em detrimento precisamente da parte constitucionalmente presumida inocente. Além de que, e salvo o devido respeito, a haver, ali, violação de tal princípio (8), não seria digno da melhor solução jurídica, remediar um mal, contrapondo-lhe outro igual... Finalmente, a dupla conforme absolutória – ao contrário também do que sucede na situação ora em apreço – aporta consigo a reposição definitiva da paz social de algum modo afectada pelo caso, o que, só por si, justificaria a discriminação positiva que a lei lhe confere.
Afirma-se por outra via que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça deve estar reservada para casos de «maior gravidade» e aquele deve ser preservado da apreciação de bagatelas penais, como o que não pode deixar-se de concordar. Mas o que não pode é aceitar-se que, por via da interpretação proposta, possa justamente cair-se no exagero do oposto que é, eventualmente, privar o Mais Alto Tribunal de intervir justamente nesses casos de maior gravidade para que está vocacionado, o que, em teoria, de acordo com a tese de que divergimos, em todos pode acontecer, (bastando, para tanto, que as instâncias, porventura até «interessadamente», sejam concordantes na aplicação de penas de prisão não superiores a oito anos...), o que, por absurdo, não pode lograr apoio legal.
Não parece razoável, com efeito, até do ponto de vista constitucional do eficaz direito ao recurso, condicionar a sua existência, afinal, ao concreto entendimento das instâncias, que, para o bem e para o mal, teriam ao seu alcance o poder imenso de decidir, em última instância (!), da recorribilidade ou não da decisão por elas proferida. E muito menos, deixá-lo na dependência de avaliação alheia, na certeza de que o Código de Processo Penal só admite a figura do recurso subordinado «em caso de recurso interposto por uma das partes civis» - art.º 401.º, n.º 1.
Daí que, nomeadamente, por razões de previsibilidade e segurança jurídica, o critério da recorribilidade ou irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça não possa, e não deva, ser ligado, casuisticamente, a posteriori, às penas concretas aplicadas, antes devendo ser aferido, em abstracto e a priori, pelas molduras legais abstractas aplicáveis.
Não se desconhece o argumento de existência de alguma contradição no sistema, esgrimido em defesa da tese proposta pelo MP, segundo o qual, haverá casos de crimes puníveis, em abstracto, com pena de prisão não superior a oito anos, que, em face das penas concordantes aplicadas se tornam irrecorríveis, por aplicação do regime daquela alínea f), enquanto outros, por crimes a que corresponde moldura penal abstracta de máximo superior a oito anos, mas objecto de condenação mais leve que os primeiros, logram o benefício do recurso. O que seria um paradoxo.
Mas a contradição é, apenas, aparente. Com efeito, trata-se aqui de uma clara questão de política legislativa a que só o legislador pode dar resposta e que os tribunais, independentemente da visão crítica que sobre ela possam ter, devem respeitar. A resposta é simples: a gravidade dos últimos casos supra mencionados, aferida, como deve ser, pela moldura abstracta, é bastante, para, independentemente qualquer que tenha sido a pena concreta, justificar, daquela óptica político- legislativa, que uns devam ser recorríveis e outros não. Se tal critério se revelar desajustado ao legislador compete alterá-lo, não competindo ao tribunal substituir-se-lhe.
Por estas razões, esquematizadas, mostra-se improcedente a falada questão prévia da irrecorribilidade suscitada pelo MP […].
São considerações que se mostram actuais, motivo por que se julga improcedente a falada questão prévia e se vai conhecer do recurso

Acção penalmente relevante
«A Recorrente agiu sempre determinada pelo perigo que o seu irmão sofria, e consciente da enorme dependência que o seu irmão padecia, e pela constantes insistências do mesmo, nunca a arguida BB teve consciência de deter algo, pois sempre acreditou que a droga fora achada pelo seu irmão, pelo que ora propriedade do mesmo, pelo que nunca representou que estivesse a incorrer na conduta p. e p. pelo artigo 21° do DL n.º 15/03 de 22 de Janeiro, tanto mais que até a Acusação do Ministério Público tinha qualificado a conduta da ora recorrente como preenchendo o p. e p. do artigo 23° do supra citado diploma, não lhe reconhecendo culpa e consciência para a acusar no fim do inquérito pelo artigo 21° do mesmo diploma, como posteriormente veio a acontecer» – conclusão a) da motivação.
Estas afirmações, vertidas logo na conclusão 1.ª da motivação da recorrente, são entre si insanavelmente contraditórias.
Com efeito, por um lado, a recorrente nega a livre determinação na guarda da droga, e, mesmo, «a consciência de deter algo». Porém, logo se contradiz, quando, por um lado, «sempre acreditou que a droga fora achada pelo irmão», o que mostra que sabia de que produto estava a ser guardiã, e, por outro, se como afirma – de resto sem tradução no elenco fáctico provado – agiu sempre determinada pelo perigo que o seu irmão sofria – não se vê onde repouse a perda de liberdade da sua opção já que, confessadamente, o que a movia era preservar o irmão do perigo que aquele alegadamente sofria, actuação, portanto, consciente e voluntariamente assumida.
Está fora de causa, assim, qualquer hipótese, mesmo remota, de erro sobre as circunstâncias do facto, nomeadamente, para efeitos da previsão do artigo 16.º do Código Penal, ou, ainda mais, o afastamento da voluntariedade da acção, no âmbito do artigo 14.º do mesmo diploma.

Qualificação jurídica dos factos – tráfico comum ou de menor gravidade?
Sobre este ponto dissertou o acórdão recorrido:
«Diz a recorrente que mesmo "que se considere que a ora recorrente tinha consciência e dolo, ao guardar e levar o produto estupefaciente, estava sempre com a consciência de que o que detinha era a quantidade necessária ao consumo do seu irmão, pelo que a sua consciência da ilicitude preenchia sempre a do tipo contra-ordenacional de consumo".
Dispõe o artigo 21º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro – tráfico de estupefacientes –, previsão imputada à Recorrente, que «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.».
No citado preceito define-se o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual se punem diversas actividades ilícitas, cada uma delas dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime.
Trata-se de um crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige para a sua consumação a verificação de um dano real e efectivo.
O crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido (a saúde pública na dupla vertente física e moral) como patenteiam os vocábulos definidores do tipo fundamental.
A arguida, aceitando o que invoca, mesmo após saber que se tratava de produto estupefaciente, conforme se apurou, e nada indicando que estava legalmente autorizada para a deter, entendeu por bem guardá-lo para o ir entregando ao seu irmão. Esta conduta da arguida, consubstanciada no "proporcionar a outrem", ou mais visivelmente na detenção ilícita, cai na previsão do crime de tráfico de droga.
O Tribunal "a quo", perante os factos provados, procedeu assim a uma correcta subsunção jurídica, na medida em que atendendo à sua globalidade e às circunstâncias em que estes ocorreram e se desenvolveram, temos por certo que a ilicitude da conduta da arguida recorrente apesar de não revelar qualquer exasperação, isto é, não subjaz à sua conduta um negócio de grande tráfico, o que se traduziu na pena em concreto que lhe foi aplicada.»
Ao que se vê, a questão da qualificação nesta específica vertente – de os factos integrarem o crime do artigo 25.º do DL 15/93, de 22/1 – que ora é posta em recurso para o Supremo Tribunal de Justiça é uma questão nova, na medida em que não foi objecto do recurso para o tribunal recorrido, sendo sabido que os recursos como remédios jurídicos se limitam a tomar posição e, sendo caso disso, corrigir decisões defeituosas, e, não, meios de obter decisões novas.
Em todo o caso, considerando que na qualificação jurídica dos factos, em suma na aplicação do direito, não sofre o Supremo Tribunal de qualquer limitação – iura novit curia – sempre se adiantará que as bases de facto que poderiam sustentar uma ilicitude consideravelmente diminuída estão de todo ausentes.
Com efeito, para além de estarmos a lidar com uma mistura explosiva de duas das drogas clássicas mais perniciosas em termos de saúde pública – o «rebolau», mistura de heroína e cocaína – a intervenção da arguida mostra-se em clara co-autoria de actividade traficante, pois se é certo que o objectivo do irmão era dissimular a actividade, não é menos verdade que a actuação da recorrente foi muito para além dessa mera dissimulação, assumindo ela verdadeiro (con) domínio do facto, quer guardando a droga e proventos do tráfico, quer, assumindo a actuação essencial de abastecedora pontual sempre que para tal solicitada, para tanto se socorrendo de modernos meios de telecomunicação.
Nem sequer são desprezíveis quer a reiteração dos factos, quer as quantidades apuradas em que a arguida teve intervenção, nomeadamente se tiver em conta que cada tenda era embalagem de 13 ou 14 doses individuais de «rebolau» e que, pelo menos, transportou e forneceu ao co-arguido, em dias distintos, 4 dessas «unidades», o que perfaz mais de meia centena de doses individuais.
Além disso, quando foi surpreendida, no dia 28 de Fevereiro de 2005, tinha em casa duas «tendas», contendo no seu interior, uma 13 doses individuais e outra 12 doses individuais, num total de 25 doses individuais de rebolau com o peso líquido de 2,357 gramas; um saco também contendo «rebolau» com o peso líquido de 4,819 gramas; além de objectos claramente relacionados com a actividade traficante, como o «medidor para fazer doses individuais de rebolau».
Enfim, não se descortina em sede de ilicitude – e é desta que ora importa cuidar – nenhuma componente decisiva que a faça ter como «consideravelmente diminuída» como exige o falado artigo 25.º do DL 15/93 citado.
Daí que não haja censura a fazer à qualificação dos factos levada a efeito pelo tribunal recorrido.

Espécie e medida da pena
Quanto a este ponto é a seguinte a fundamentação do acórdão:
« […] As exigências de prevenção geral, não é despiciendo salientá-lo, são elevadas, atenta a natureza do ilícito em causa, que, hodiernamente, dentro da panóplia de tipos legais de crimes, é seguramente dos que maior repulsa social concita em decorrência dos malefícios que potencia, sobejamente conhecidos e referidos pelo acórdão recorrido. O Tribunal "a quo" individualiza as necessidades de prevenção geral à comarca de Olhão, atento o número elevado de crimes de tráfico aqui cometidos.
Igualmente são patentes as necessidades de prevenção especial, com particular destaque para o Recorrente que tem adoptado condutas ilícitas, tal como se retira do seu Certificado de Registo Criminal, que apresenta já sete condenações anteriores, duas das quais relacionadas directamente com drogas.
[…]
E a verdade é que a pena que recaiu sobre os Recorrentes não ultrapassou a medida da sua culpa e também não extravasou dos limites dentro dos quais a justiça relativa tinha de ser procurada, uma vez que foi ponderada e convenientemente tido em conta a actividade criminosa, a moldura penal abstracta do preceito incriminador, a natureza das infracções, a intensidade do dolo, a personalidade de delinquente e as exigência de prevenção de futuras infracções idênticas – só assim se atingirá uma das finalidade das penas – a criação de um sentimento de segurança, de utilidade, de punidade e de justiça.
Efectivamente, contra os Arguidos, ora Recorrentes há a considerar a gravidade objectiva e subjectiva dos factos; a ilicitude é acentuada como o é o grau de culpa, pois os agentes deste tipo de crimes ponderam bem o perigo que constitui lidar com este tipo de drogas e, apesar disso, arriscam-se a fazê-lo, bem conhecendo e pretendendo os lucros de tal actividade.
A droga encontrada, denominada de rebolau, trata-se de uma mistura de cocaína e heroína, apresentando "elevado poder aditivo e que, por essa razão, tem grande potencialidade criminógena", tal como é salientado na decisão recorrida e que também foi tomado em consideração na medida concreta da penas.
Por sua vez a Recorrente e conforme se apurou, sabia que o seu irmão e arguido, se dedicava ao tráfico de produto estupefaciente, tendo com ele colaborado nos termos descritos no acórdão de que recorre.
O Tribunal "a quo" entendeu, perante a factualidade apurada, que a "culpa dos arguidos, analisada sob o ponto de vista volitivo, revela-se muito intensa", o que, perante o exposto, determinou as penas aplicadas, as quais não oferecem reparo, atenta a moldura penal abstracta – 4 a 12 anos de prisão. Assim a pena arbitrada ao Recorrente pode considerar-se ajustada, fixada que foi num quarto para além daquele limite mínimo, tal como a da Recorrente que viu uma condenação de seis meses para além do limite mínimo, sabido qual o comportamento de ambos os arguidos para a fixação da matéria de facto dada como provada, na sequência da droga que lhes foi encontrada.»
Estas considerações são de subscrever.
A pena aplicada não ultrapassa a culpa e foi doseada dentro dos parâmetros do artigo 71.º do Código Penal.
Nomeadamente, as circunstâncias favoráveis à recorrente, mormente a ausência de antecedentes criminais e o seu enquadramento sócio-familiar foram devidamente valoradas ao ponto de a pena que lhe foi aplicada se ter ficado apenas ligeiramente acima do limite mínimo possível.
E, assim sendo, como é, está fora de causa a aplicação de pena de substituição, nomeadamente pena suspensa, por a tal se opôr desde logo a exigência formal do artigo 50.º n.º 1, do Código Penal que apenas a admite em relação a crimes punidos com pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.
Pelo exposto, o recurso não logra provimento.

3. Termos em que, negando provimento ao recurso, confirmam o segmento impugnado do acórdão recorrido.
Pelo decaimento a recorrente pagará custas, com taxa de justiça que se fixa em 5 unidades de conta.

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Outubro de 2006

Pereira Madeira (relator)
Santos Carvalho
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa

__________________________
(1) Publicado em texto integral, nomeadamente, em http://www.dgsi.pt/jstj e também http://www.verbojuridico.net.
(2) Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição Verbo, 2000, págs. 322..
(3) No verdadeiro sentido do termo porque na realidade estabelece uma excepção ao falado princípio geral da admissibilidade dos recursos.
(4) Publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 263, págs. 103.
(5)Ob. cit. págs. 325
(6) Para mais nos casos, como o dos autos, de maior gravidade «abstracta», ou seja nos crimes a que corresponde pena de máximo aplicável superior a oito anos de prisão.
(7) Porque eficaz apenas contra o arguido..
(8) E não é seguro que tal se possa afirmar, ante a evidente superioridade de meios processuais que o MP dispõe, em geral, no processo penal, em clara superioridade perante a situação do arguido.