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RECONVENÇÃO
RECONHECIMENTO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário
I - Tratando-se de uma acção em que se pede o reconhecimento de uma servidão de passagem com base na usucapião, é admissível a dedução da reconvenção em que os réus pedem o reconhecimento do direito de preferência na compra efectuada pelos autores do prédio dominante. II - A reconvenção pode ser deduzida condicionalmente para a hipótese de procedência da acção. III - A fase liminar visa apenas a formulação de um juízo acerca da admissibilidade da reconvenção por forma a garantir a sua legalidade formal, sem implicar um juízo sobre o seu mérito.
Texto Integral
Processo n.º 7830/10.3TBVNG-A.P1
Proveniente da 1.ª Vara de Competência Mista de Vila Nova de Gaia.
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:
Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
I. Relatório
B… e esposa C…, residentes na Rua …, n.º …, …, Vila Nova de Gaia, instauraram contra D… e esposa E…, com residência na Rua …, n.º …, …, do mesmo concelho e comarca, acção declarativa com processo ordinário, pedindo que os réus sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio que identificam nos art.ºs 1.º e 2.º da petição inicial, bem como o direito de servidão a favor desse prédio sobre o caminho de terra batida localizado no prédio dos réus, melhor identificado naquele articulado.
Para tanto, alegaram, em síntese, que:
São proprietários daquele prédio por o terem comprado e o haverem adquirido por usucapião.
O único acesso a esse prédio é feito, desde há mais de cinquenta anos, através de um caminho em terra batida existente no prédio dos réus, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1611, com cerca de sete metros de comprimento e quatro metros de largura, tendo adquirido o direito de por lá passarem com base na usucapião.
Porém, os réus vêm impedindo o exercício desse direito desde 2006.
Os réus contestaram, por impugnação, negando a existência do invocado direito de servidão, e, para o caso de se reconhecer tal direito, deduziram reconvenção, alegando que não lhes foi dado conhecimento dos projectos das vendas efectuadas aos autores, como devia, na qualidade de preferentes, razão por que devem ser chamados os vendedores.
Concluíram pela improcedência da acção e, para a hipótese de ser julgada procedente, pediram que lhes seja reconhecido o direito de preferência, requerendo, para tanto, a intervenção principal provocada dos vendedores F… e mulher G…, H… e marido I… e J….
Os autores replicaram, limitando-se a impugnar os factos alegados e a invocar a excepção da caducidade do direito de preferência, concluindo pela improcedência da reconvenção.
Após, foi proferido o seguinte despacho:
“Os Réus D… e E… deduziram reconvenção contra os Autores e ainda contra F…, H… e J…, cuja intervenção principal provocada, como associados dos Autores-reconvindos requereram.
Os Autores, na réplica, impugnaram os factos invocados na reconvenção e deduziram excepção, mas não se pronunciaram quanto ao pedido de intervenção.
Cumpre decidir.
A decisão do incidente pressupõe a da admissibilidade da reconvenção, posto que é pressuposto da intervenção dos chamados.
Assim:
É de considerar, para a decisão desta questão, que, pela presente acção, os Autores visam o reconhecimento da propriedade do prédio melhor identificado no artº 1º da inicial e o reconhecimento do direito de servidão, a favor do seu prédio, sobre o prédio dos RR.
Por sua vez, os Réus, em sede de reconvenção, e, para a hipótese subsidiária, que formulam, de vir a ser julgado procedente a acção, pedem o reconhecimento do seu direito de preferência na venda do prédio identificado em 1º da inicial, titulada por escrituras públicas identificadas na inicial, realizadas pelos autores reconvindos e pelos chamados.
Fundamentam os Autores o pedido de reconhecimento da servidão existente a favor do seu prédio sobre o prédio do Réu na alegação que o seu prédio não tem comunicação directa com a via publica e que na constituição por usucapião do referido caminho de servidão.
Os RR na sua contestação sustentam a inexistência do direito de servidão invocado, e impugnam os factos invocados na inicial, designadamente a afirmação que o prédio dos AA não tem comunicação com a via pública.
Porém, e para a hipótese da procedência da acção, com o reconhecimento do invocado direito de servidão, deduzem a reconvenção, fundamentando-a na circunstância de, na hipótese de reconhecimento do direito de servidão, quer por se considerar que o prédio dos AA não tem comunicação directa com a via pública, quer por se considerar que foi constituída por usucapião a invocada servidão, então, em qualquer dessas hipóteses, assistia ao AA-reconvindos o direito de preferência nas sucessivas transmissões que foram efectuadas pelos Chamados aos AA do prédio referido no artº 1º da inicial.
A reconvenção constituiu instrumento jurídico que permite, mediante determinado circunstancialismo, reunir, no mesmo processo, pretensões substanciais contrapostas. Configura uma acção cruzada, aproveitando o réu a iniciativa do autor para, na contestação, deduzir contra este uma pretensão de efeitos contrários ou com objecto diferenciado.
A sua admissibilidade está, porém, sujeita a determinados condicionalismos, de carácter substancial e processual.
Para além dos demais requisitos de natureza processual que ao caso não importa agora analisar, impõe a lei a existência de uma conexão substancial entre a pretensão do Autor e aquela que é deduzida em reconvenção.
Assim, conforme estipula o art. 274º, n.º 2, do C.P.C. constituem pressupostos substanciais da reconvenção a verificação de uma das seguintes hipóteses:
- o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;
- o réu propõe-se obter a compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
- o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
Das hipóteses configuradas no citado art.º 274º, n.º 2, do CPC, arredadas ficam a prevista nas alíneas b) e c), por manifestamente se não verificarem no caso concreto as hipóteses nele contempladas.
Resta analisar a verificação no caso da hipótese prevista na alínea a) do citado normativo: emergir o pedido dos Réus do mesmo facto jurídico que serve de fundamento á acção e á defesa.
Quanto ao grau de conexão entre o pedido reconvencional e a acção ou a defesa, deve este consistir em o pedido do réu ter por fundamento o acto ou facto, fundamento da acção ou da defesa, não bastando que o pedido do réu seja apenas atinente ao acto ou facto fundamento da acção ou da defesa (Alberto Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, pag. 98 e Prof. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 324).
Ora, o pedido reconvencional deduzido pelos Réus não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa.
Com efeito, os factos jurídicos que servem de fundamento à acção são a constituição por usucapião de caminho de servidão sobre o prédio do R. a favor do prédio dos AA, e a circunstância de este não comunicar directamente com a via pública.
O pedido dos Réus não emerge desses factos, mas sim da circunstância de não lhes ter sido dado comunicado pelos Chamados as transmissões efectuadas a favor dos Autores do prédio identificado na inicial, por forma a exercerem o direito de preferência, que lhes assiste, na hipótese de este prédio não ter comunicação com a via pública.
E também não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, posto que os RR impugnam a existência do direito de servidão, deduzindo a reconvenção para a hipótese subsidiária, de, ao contrário do por si sustentado na contestação defesa, ser reconhecido tal direito.
(no sentido do exposto, e em caso idêntico, cfr. entre outros, Ac. da Relação de Coimbra de 15.01.08, proc. nº 1065/05, em www.dgsi.pt)
Pelo exposto, por se não verificarem para tanto os necessários pressupostos substanciais, enunciados no art.º 274º, n.º 2, do CPC, não se admite a reconvenção deduzida pelos Réus contra os Autores absolvendo-se estes da instância reconvencional.
Por não admissível a reconvenção, indefere-se o incidente de intervenção de terceiros deduzido pelo RR, nos termos do disposto no artº 279º, nº 4, do CPC.
Custas da reconvenção e do incidente de intervenção de terceiros a cargo dos Réus.
Notifique.”
Inconformados com o assim decidido, os réus/reconvintes interpuseram recurso de apelação para este Tribunal e apresentaram a sua alegação com as seguintes conclusões:
“a) O dispositivo legal constante do art. 274.º, n.º 2, al. a), 1.ª parte do C.P.C. explicita que a reconvenção, para ser admissível, tem de emergir do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à acção.
b) Este normativo legal tem sido interpretado com o sentido de que a acção e a reconvenção podem ter diversas causas de pedir, bastando que haja uma certa conexão entre elas, ou seja, é necessário apenas que o pedido reconvencional se mova no interior da mesma relação jurídica que foi invocada pelos AA. (cfr. o Ac. RP de 17.01.75, BMJ, 243, p.325 e o Ac. RL, de 25.6.1984, Col. Jur., 1984, 3.º-165).
c) No caso concerto, os AA./recorridos invocaram factos susceptíveis de consubstanciar a existência de uma servidão de passagem sobre o prédio dos RR./recorrentes, a favor do prédio dos AA.
d) Por sua vez, os RR./recorrentes, a título cautelar, pediram, em sede reconvencional, o reconhecimento do direito de preferência sobre o prédio adquirido pelos AA./recorridos, fundamentando tal pretensão na existência da mesma servidão.
e) Na verdade, os RR./recorrentes têm direito a preferir na aquisição do prédio que foi adquirido pelos AA./recorridos não pela circunstância de não lhes terem sido comunicadas as vendas realizadas, mas pelo facto de o seu prédio estar onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio dos AA.
f) A falta de comunicação das sucessivas transmissões é tão só um requisito formal que nada vale, caso não se verifique o requisito material que se consubstancia nas preferências legais plasmadas no Código Civil.
g) Pelo que, a causa de pedir da acção e da reconvenção são a mesma: a existência de uma servidão de passagem que se exerce pelo prédio dos RR., a favor do prédio dos AA. Enumera-se neste sentido o Ac. STJ-1.ª, de 29.2.2000, Sumarios, 38.º-27 – Agravo n.º 118/00 -1.ª Secção, Aragão Seia (Relator).
h) No entanto, caso não se entenda, no que não se prescinde, que a causa de pedir da acção e da reconvenção são a mesma, dúvidas não restam, de que os factos jurídicos de que emerge a acção e a reconvenção estão interligados, havendo uma forte e “íntima” conexão entre uns e outros.
i) Por conseguinte, deverá ser admitida a reconvenção deduzida pelos RR. e, consequentemente, deferido o incidente de intervenção provocada de terceiros aí melhor identificados.
j) Violou a Meritíssima Juiz a quo, o art. 274.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil, fazendo uma menos correcta interpretação do disposto nos arts. 1555.º e 1410.º do Código Civil.
Termos em que, se deverá dar provimento ao presente recurso e ordenar a substituição do despacho ora em crie por outro que admita o pedido reconvencional deduzido pelos RR. e, consequentemente, defira o incidente de intervenção provocada de terceiros…”.
Os autores/reconvindos contra-alegaram pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O recurso interposto foi admitido como apelação, com subida imediata e em separado, e com efeito meramente devolutivo.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
Sabido que o seu objecto está delimitado pelas conclusões dos recorrentes (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção é posterior a 1/1/2008 – cfr. art.º 12.º do mesmo diploma), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, e tendo presente que nos recursos se apreciam questões e não razões, a única questão a dirimir consiste em saber se a reconvenção deduzida é ou não admissível.
II. Fundamentação
Os factos a considerar na apreciação e decisão desta questão constam do antecedente relatório, pelo que não há necessidade de os reproduzir aqui.
Importa, pois, aplicar-lhes o direito, tendo em vista a resolução da mencionada questão.
Como é sabido, a reconvenção traduz-se numa modificação do objecto da acção e consiste na formulação de um pedido substancial ou pretensão autónoma por parte do réu contra o autor. Trata-se de uma verdadeira acção proposta pelo réu contra o autor, enxertada numa outra acção, em que há um pedido autónomo e não apenas formal, um autêntico contra-ataque desferido pelo reconvinte contra o reconvindo. Mas para que tal seja lícito é necessária a verificação de determinados requisitos processuais e objectivos ou substantivos, traduzindo-se estes num certo nexo do pedido reconvencional com a acção ou com a defesa (cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., págs. 322 a 329; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, págs. 146 a 153; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., pág. 379; Castro Mendes, Direito Processual Civil, II vol., ed. da AAFDL 1978/79, págs. 292 a 312; José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 2.ª ed., 2008, pág. 529).
Estes últimos requisitos estão previstos no n.º 2 do art.º 274.º do CPC, onde se distinguem taxativamente três tipos de situações.
Aqui, importa analisar apenas as situações contempladas na alínea a), por ser demasiado evidente que as restantes não são aplicáveis ao caso em apreço.
Nos termos da citada alínea a) a reconvenção é admissível “quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa”.
A primeira parte desta alínea só pode ter o sentido de a reconvenção ser admissível quando o pedido reconvencional tenha a mesma causa de pedir da acção, isto é, o mesmo facto jurídico (real, concreto) em que o autor fundamenta o direito que invoca; enquanto que a segunda parte tem o sentido de ela ser admissível quando o réu invoque, como meio de defesa, qualquer acto ou facto jurídico que, a verificar-se, tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos desta Relação de 16/9/91, na CJ, ano XVI, tomo IV, pág. 247 e do STJ de 5/3/96, no BMJ, 455.º, 389 e de 27/4/2006, proferido no processo n.º 06A945, acessível em www.dgsi.pt).
Neste último acórdão, escreveu-se:
“Tratando-se de uma contra-pretensão, uma nova acção dentro do mesmo processo, a reconvenção, embora com um pedido autónomo, deve ter certa compatibilidade com a causa de pedir do autor”. E mais adiante:
“O pedido reconvencional tem de ter a sua génese … na causa de pedir do autor ou no qual se estriba a defesa. Emergindo da causa de pedir da acção, pode figurar-se a mesma causa de pedir (cfr. Prof. Anselmo de Castro in "Direito Processual Civil Declaratório" I, 173) nos pedidos principal e cruzado. Se, porém, emerge do facto jurídico em que se estriba a defesa, a situação é buscar uma redução, modificação ou extinção do pedido principal (cf. Cons. Rodrigues Bastos, "Notas ao Código de Processo Civil", II, 28).
Isto é, o requisito substantivo da admissibilidade da reconvenção, da alínea a) do nº 2 do artigo 274º do CPC implica que o pedido formulado em reconvenção resulte naturalmente da causa de pedir do autor (ou, até, se contenha nela) ou seja normal consequência do facto jurídico que suporta a defesa, que tem o propósito - regra de obter uma modificação benigna ou uma extinção do pedido do autor.”
O acórdão desta Relação de 25/6/2007, proferido no processo n.º 0752896, acessível em www.dgsi.pt, considerou existir suficiente conexão entre os factos invocados na acção e na reconvenção e verificado o aludido requisito substantivo para a admissibilidade desta, quando o pedido emerge de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, no sentido de que resulta de factos com os quais indirectamente se impugna os alegados na petição inicial.
Indubitável é a necessidade da existência de conexão entre o pedido da acção e o pedido reconvencional, a qual se traduz, no caso previsto na citada alínea a), na ligação através do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa.
Assim, para que a reconvenção seja admissível ao abrigo desta alínea, é necessário que o pedido reconvencional tenha a mesma causa de pedir da acção – ou parte dela - ou emerja do acto ou facto jurídico que serve de fundamento à defesa, embora desse acto ou facto jurídico se pretenda, neste caso, obter um efeito diferente (neste sentido Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, volume II, 3.ª edição, pág. 32).
Como já se referiu, a causa de pedir desta acção é constituída pelos factos concretos que, na perspectiva dos autores, consubstanciam a constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem a onerar o prédio dos réus. É com base nesses factos que formulam o pedido de reconhecimento da existência dessa servidão.
Por sua vez, os réus baseiam o seu pedido reconvencional na existência da mesma servidão, já que pedem o reconhecimento do seu direito de preferência na compra efectuada pelos autores do prédio dominante, com as legais consequências, o que implicará, a ser-lhes reconhecido, a extinção daquela servidão, face à reunião dos dois prédios (dominante e serviente) no domínio da mesma pessoa (cfr. art.º 1569.º, n.º 1, al. a) do Código Civil).
Daqui resulta logo, com toda a evidência, que a situação destes autos não é idêntica ao caso tratado no acórdão da RC de 15/1/2008, proferido no processo n.º 1065/05, como se diz no despacho recorrido, sendo antes bem diferente, na medida em que ali o direito de preferência invocado radicava na confinância e no disposto no art.º 1380.º do Código Civil, enquanto que aqui se baseia na existência de uma servidão de passagem e no preceituado no art.º 1555.º do mesmo Código.
Como tal, não tem aqui cabimento a doutrina ali seguida.
Baseando-se na existência da mesma servidão, quer a acção quer a reconvenção (mais precisamente nos factos concretos que conduzem à sua constituição por usucapião quanto à primeira e pressupondo o seu reconhecimento relativamente à segunda), parece-nos evidente que o pedido reconvencional emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, pelo menos em parte. E também emerge de facto que serve de fundamento à defesa, na medida em que o reconhecimento do direito de preferência importará a extinção da servidão nos termos já referidos.
Daqui resulta, a nosso ver, a indispensável conexão entre os factos invocados como causa de pedir na acção e na reconvenção, sendo que o pedido nesta formulado, para além de pressupor o reconhecimento da servidão de passagem e, por conseguinte, a existência dos factos necessários à sua constituição, também emerge de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, por visar a extinção do efeito pretendido pelos autores.
Entendemos, assim, também por esta razão, que se verifica conexão suficiente para que se mostre preenchido, relativamente ao pedido reconvencional, o requisito substantivo previsto na alínea a) do n.º 2 do citado art.º 274.º, que permite a reconvenção quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa.
É que, quando se exige que a reconvenção tem de emergir de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, está-se a considerar a defesa permitida processualmente, isto é, a defesa a que se reporta o art.º 489.º do CPC, apenas nela não cabendo a invocação de factos que se apresentem como totalmente alheios aos alegados na acção, o que não é o caso destes autos.
A alínea em análise deve ser interpretada não apenas no sentido de que a reconvenção é admissível quando o pedido reconvencional se fundamenta no mesmo facto jurídico que serve de fundamento ao pedido formulado na acção, mas também quando emerge do acto ou facto jurídico invocado como meio de defesa e que seja susceptível de modificar, reduzir ou extinguir o pedido do autor.
E isso ocorrerá sempre que se verifique uma coincidência parcial entre os factos que o réu, ao contestar a tese do autor, invocou para justificar os fundamentos da sua própria defesa, ainda que existam outros a exorbitar essa defesa, mas mantendo todos uma conexão entre si.
Tanto basta para que a reconvenção seja admissível (crf., neste sentido, o acórdão desta Relação de 1/7/2010, proferido no processo n.º 1248/09.8TJPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Aliás, o STJ, no acórdão de 29/2/2000, proferido no agravo n.º 118/00 da 1.ª Secção, sumariado em Sumários, 38.º- 27, citado pelos recorrentes, já admitiu a reconvenção em caso semelhante, afirmando que “numa acção em que se pede o reconhecimento e a declaração de existência de uma servidão de passagem, é admissível a formulação da reconvenção em que os réus pedem o reconhecimento do seu direito de preferência na compra efectuada pelos autores do prédio dominante e a declaração judicial de extinção da servidão”.
Não admitir, neste caso, o pedido reconvencional, não permitindo que se discutam, em toda a sua extensão, os factos jurídicos invocados como meio de defesa, por carecer de fundamento legal, como foi entendido no despacho recorrido, constituiria uma interpretação errada, demasiado formal e redutora do estabelecido na al. a) do n.º 2 do citado art.º 274.º.
Contrariamente ao que foi referido naquele despacho, não obsta à sua admissão a impugnação da existência do direito de servidão, nem a sua dedução condicional ou, como ali se diz, subsidiária.
E também não obsta a interpretação feita pelos recorridos quanto à aplicabilidade do art.º 1555.º do Código Civil e à inexistência do direito de preferência.
É que, no dito art.º 274.º, estão previstos os requisitos indispensáveis à admissibilidade da reconvenção e não os que são necessários à apreciação do seu mérito.
Este será apreciado oportunamente, em momento posterior.
Aqueles resultam de uma análise perfunctória e liminar, visando apenas a formulação de um juízo acerca da admissibilidade da reconvenção, assim garantindo unicamente a sua legalidade formal, não resultando daí qualquer juízo sobre o seu mérito (neste sentido e a propósito de nulidade imputada à sentença por contradição, decidiu o acórdão da RC de 6/12/2005, no processo n.º 2564/05, acessível em www.dgsi.pt).
Por isso mesmo, tem-se entendido que a inadmissibilidade da reconvenção, por falta de conexão entre os pedidos principal e reconvencional, constitui uma excepção dilatória inominada que conduz à absolvição da instância reconvencional (cfr. Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 2.ª ed., págs. 339 e 357 e acórdão desta Relação de 19/10/2004, processo n.º 0423576, www.dgsi.pt).
E é pacífico que a reconvenção pode, como é o caso, ser deduzida condicionalmente para a hipótese de procedência da acção, ficando subordinada à condição da procedência da pretensão dos autores (v.g. acórdãos desta Relação de 19/10/89, CJ, ano XIV, tomo 4, pág. 196 e do STJ de 27/11/2003, processo n.º 03B3126, em www.dgsi.pt), podendo, ainda o pedido reconvencional ser formulado subsidiariamente, ou seja, para ser tomado em consideração apenas no caso de não proceder um pedido anterior (o que não se verifica) - (cfr. Ac. do STJ de 1/10/2002, no agravo n.º 2069/02-1ª, Sumários 10/2002), o que pressupõe, necessariamente, o conhecimento de mérito e, como vimos, não é este o momento oportuno para o fazer (cfr. o nosso acórdão de 22/2/2011, proferido no processo n.º 1765/09.0TBVNG-A.P1, disponível em www.dgsi.pt).
De resto, a questão suscitada pelos recorridos relativamente à aplicabilidade do citado art.º 1555.º e ao reconhecimento do direito de preferência nele consignado aos proprietários de prédios onerados com servidões constituídas por usucapião é complexa e tem gerado controvérsia, dividindo a doutrina e a jurisprudência, pelo que, também por esta razão, só deve ser decidida aquando da apreciação do mérito e não nesta fase liminar.
Quer tudo isto dizer que a reconvenção deve ser admitida, tal como deve ser proferida decisão sobre a admissibilidade do chamamento requerido nos termos dos art.ºs 274.º, n.º 4 e 326.º, n.º 2, ambos do CPC.
Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC para concluir:
1. Tratando-se de uma acção em que se pede o reconhecimento de uma servidão de passagem com base na usucapião, é admissível a dedução da reconvenção em que os réus pedem o reconhecimento do direito de preferência na compra efectuada pelos autores do prédio dominante.
2. A reconvenção pode ser deduzida condicionalmente para a hipótese de procedência da acção.
3. A fase liminar visa apenas a formulação de um juízo acerca da admissibilidade da reconvenção por forma a garantir a sua legalidade formal, sem implicar um juízo sobre o seu mérito.
Procedem, por conseguinte, as conclusões relevantes do recurso interposto, pelo que o despacho impugnado não pode subsistir.
III. Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revoga-se o despacho recorrido e ordena-se que seja proferido outro a admitir a reconvenção deduzida e a apreciar o requerimento da intervenção principal provocada, seguindo-se a tramitação prevista na lei processual civil.
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Custas em ambas as instâncias pelos autores/reconvindos/apelados.
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Porto, 5 de Julho de 2011
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo