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ACÇÃO DE DESPEJO
RESOLUÇÃO
DENÚNCIA
INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
NORMA DE INTERESSE E ORDEM PÚBLICA
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Sumário
I - Pretender o despejo com fundamento em algum dos fundamentos taxativamente indicados no art. 64.º, n.º 1, do RAU (art. 55.º, n.º 1, do RAU) e o pagamento das rendas em dívida e juros de mora vencidos e vincendos, é incompatível com a petição do despejo por o arrendatário não ter aceitado e dado satisfação à denúncia pelo senhorio do contrato de arrendamento de duração limitada (arts. 55.º, n.º 2, 68.º, 100.º e 118.º do RAU) e de uma indemnização por enriquecimento sem causa. II - Na verdade, não se pode sustentar simultaneamente, em via principal, que a denúncia do contrato operou efeitos em certa data, e simultaneamente invocar causas legais para a resolução do contrato que pressupõe a vigência actual dele. III - A ineptidão da petição inicial, conducente à nulidade de todo o processo, tem por escopo estabelecer a segurança jurídica quanto ao objecto do processo conformado pelo pedido e pela causa de pedir, sendo de natureza insuprível, levando mesmo ao indeferimento liminar do petitório (art. 234.º-A do CPC), assentando a sua justificação em interesses de ordem pública e não em simples interesses das partes. IV - O princípio da cooperação não é absoluto. Tendo os autores cumulado na petição inicial pedidos substancialmente incompatíveis, há ineptidão dessa peça, tornando de forma insuprível todo o processado nulo, impondo a absolvição da ré da instância (arts. 193.º, n.ºs 1 e 2, al. c) e 288.º, n.º 1, al. b), do CPC). *
* Sumário elaborado pelo Relator.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
"AA" e BB instauraram acção ordinária contra CC, pedindo a sua condenação:
a) A despejar de imediato o prédio que discriminaram e a entregá-lo devoluto de pessoas e bens, limpo e pintado interiormente;
b) A pagar as rendas em dívida de Julho e Agosto de 2003, no montante de 1.396,64 €, acrescido de juros moratórios à taxa legal de 7% no montante de 109,82 €, no total de 2.200,19 €, e os vincendos até integral pagamento;
c) A pagar a compensação pecuniária resultante da ilegítima ocupação do prédio, pela sua fruição e enriquecimento à custa do empobrecimento dos AA, e da privação de gozo dos AA do mesmo, no montante de 12.500 €, e dos meses vincendos, no valor de 1.250 € por mês;
d) Pedido alternativo: caso procedesse a validade do arrendamento, a pagar as rendas em dívida, desde Julho de 2003, acrescidas da indemnização de 50%, até integral pagamento, a depositar até ao termo do prazo da contestação.
Alegaram, para tanto, que: a ré tem pago as rendas sistematicamente com atraso, e após Novembro de 2001 depositou-as num Banco, embora sempre com atraso, não tendo chegado a pagar duas rendas; a ré tem dado ao prédio uso diverso do contratado (estando o prédio arrendado para garagem e oficina de bate-chapas e reparação mecânica de automóveis, a ré tem consentido que nele estejam pessoas a habitar); em 5.2.2003 denunciaram o contrato nos termos da cláusula 1ª do contrato de arrendamento, segundo a qual este foi feito pelo prazo de cinco anos, com início em 1.9.1998, podendo o senhorio denunciar o contrato no final do prazo desde que o fizesse com pelo menos 6 meses de antecedência.
A ré contestou, alegando, inter alia, a incompatibilidade de pedidos.
Foi lavrado despacho julgando verificada a incompatibilidade de pedidos, declarando a ineptidão da petição inicial e absolvendo a Ré da instância.
Os AA agravaram para a Relação de Lisboa que todavia negou provimento ao agravo.
Novamente inconformados, interpuseram os autores o presente agravo em 2ª instância, concluindo:
1º- Alegaram na petição que haviam celebrado um contrato de arrendamento com a ré, que esta não pagou integral e pontualmente todas as rendas vencidas no decurso do arrendamento e que deu ao prédio um fim diverso daquele que havia sido estipulado e que denunciaram o referido contrato de arrendamento a 05/02/2003, nos termos do § único da cláusula primeira do referido contrato;
2º- Alegaram ainda que a ré não lhes entregou o prédio na data produção de efeitos da denúncia, ou seja em 31 de Agosto de 2003, tendo por isso enriquecido à custa dos AA durante todo o tempo decorrido entre a data da produção de efeitos da denúncia e actual data, pois a ré não pagou desde então nem as rendas devidas, nem qualquer outra compensação pelo uso do prédio, tendo os AA empobrecido em consequência de tal atraso na entrega do prédio;
3º- Em consequência do alegado, pediram o despejo imediato da ré do prédio em causa, bem como a sua condenação no pagamento das rendas devidas e não pagas até à data da produção de efeitos da denúncia e, no pagamento de uma indemnização em virtude do atraso na restituição do prédio, depois destes haverem denunciado o contrato;
4º- Tais causas de pedir não são incompatíveis entre si, nem muito menos o são os pedidos formulados. Ao entender de modo contrário, violou o acórdão recorrido o artigo 56º, nº2 do RAU;
5º- É possível formular o pedido de despejo da ré do prédio, por não o ter entregue aos autores na data de produção dos efeitos da denúncia, bem como o pedido de pagamento as rendas em dívida e a indemnização pelo atraso na restituição do prédio dado de arrendamento. Ao entender o contrário, o acórdão recorrido também violou o disposto nos artºs 55º, nº 2 do RAU e 1045º do CC (só por manifesto lapso se escreveu que tais preceitos são do CPC);
6º- Questão diferente que se poderia colocar seria a da procedência do pedido formulado na alínea c) da petição inicial, mas isso já será uma questão de mérito a apreciar pelo tribunal, em nada estando relacionada com a compatibilidade entre as causas de pedir e pedido formulados;
7º- Por outro lado, o pedido formulado sob a alínea d) apenas foi formulado para o caso de a denúncia vir a ser julgada inválida e a ré querer pagar as rendas em dívida até à data da contestação e assim manter o contrato de arrendamento válido. Ao entender que tal pedido é incompatível com os anteriormente formulados, violou o acórdão recorrido o artº 1041º do Código Civil;
8º- Conforme dispõe o artigo 56º, nº 2 do RAU, "Juntamente com o pedido de despejo, autor pode requerer a condenação do réu no pagamento de rendas ou de indemnização", pelo que a sentença recorrida violou essa disposição legal;
9º- Os autores podiam deduzir cumulativamente contra a ré, num só processo, vários pedidos, não sendo os mesmos incompatíveis, dado o disposto artigo 56º, nº 2 do RAU, tendo o acórdão recorrido violado os artºs 56º, nº 2 do RAU e 470º do CPC;
10º- A considerar-se que a petição inicial continha qualquer inexactidão, deveria o Juiz a quo convidar os autores a aperfeiçoá-la, o que não fez, violando o acórdão recorrido, o disposto nos artºs 265º e 508º do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cabe decidir.
A 1ª instância considerou que quando os efeitos jurídicos que o autor se propõe obter com ambos os pedidos sejam inconciliáveis existe incompatibilidade geradora de ineptidão da petição inicial, e que, sendo alternativo apenas o pedido da al. d), o pedido da al. c) é substancialmente incompatível com os pedidos das als. a) e b), por mutuamente se excluírem.
Julgou pois verificada essa cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, declarando anulado todo o processado, abstendo-se de conhecer do mérito da causa e absolvendo a ré da instância (artº 193º, nº 1, c) e 288, nº 1, b) do CPC).
A Relação, por seu turno, negou provimento ao agravo, expendendo o seguinte: «…Parece que com o primeiro pedido os Autores pretendem obter a resolução do contrato e que com o terceiro pedido pretendem prevalecer-se da denúncia do contrato antes aludida. O terceiro pedido é ininteligível, pois pede-se uma compensação monetária que estará fatalmente compreendida nas rendas e legais acréscimos, ou seja acaba por duplicar os pedidos formulados em segundo e quarto lugar. Admite-se que os Autores quisessem formular em alternativa dois pedidos principais cada um deles com um pedido acessório: Um pedido de resolução do contrato, acompanhado do pedido de pagamento das rendas em dívida e legais acréscimos; em alternativa, um pedido de declaração de validade da denúncia do contrato a que procederam, acompanhado de um pedido de condenação da Ré a pagar os quantitativos correspondentes à ocupação que se tomou abusiva após o final do contrato (Setembro de 2003, a admitir-se a validade da denúncia). Todavia a formulação dos pedidos está feita de tal forma que não se compreende qual é o pedido principal e qual é o pedido alternativo - e não se compreende de todo a que título pretende os quantitativos referidos no terceiro pedido, que assim aparece sem causa de pedir idónea. Para além de ausência de causa de pedir este pedido é efectivamente contraditório com o pedido de pagamento de rendas. Verifica-se assim, que existe ininteligibilidade relativamente à causa de pedir do terceiro pedido e contradição deste com o segundo pedido. Pelo que a petição é efectivamente inepta, nos termos do artº 193º, nº 2, als. a) e c), do Código de Processo Civil. Assim, o agravo não pode obter provimento».
Sustentam porém os recorrentes que inexistem os apontados vícios da petição inicial, geradores de ineptidão, não sendo as causas de pedir incompatíveis entre si, o mesmo sucedendo relativamente aos pedidos.
Alegam que o pedido de despejo imediato (pedido da al. a)), se alicerçou na denúncia tempestiva do contrato de arrendamento, que fizeram ao abrigo da 1ª cláusula contratual mas que a ré não acatou.
Acrescentam que a compensação impetrada na al. c) se funda na circunstância de a ré lhes não ter devolvido o locado na data da produção dos efeitos da denúncia, continuando a usar o prédio arrendado entre a data da produção desses efeitos e a data actual, sem nada pagar aos autores, assim se locupletando à custa do empobrecimento destes.
Concluem ainda que o pedido da al. b) se reporta apenas às duas rendas em débito pela ré (Julho e Agosto de 2003) e respectivos juros de mora vencidos e vincendos.
E dizem ainda que o pedido da al. d) é para atender apenas no caso de se julgar a denúncia inválida e a ré querer pagar as rendas em dívida até à contestação e assim manter o contrato de arrendamento válido.
Lendo porém a petição inicial, pode constatar-se com facilidade que a pretensão do despejo imediato se fundamentou não só no não acatamento pela ré da denúncia contratual alegadamente válida, mas também na falta de pagamento de rendas no tempo e lugar próprios, e no uso do arrendado para fim diferente daquele a que contratualmente se destina.
Tanto assim é que os autores articularam no item 45º da p.i. que pretendem que seja resolvido o contrato de arrendamento por falta de pagamento da renda no tempo e no lugar próprios, conforme disposto no artº 64º, nº 1, a) do RAU, e, no item 51º da mesma peça, que pretendem que seja resolvido o contrato de arrendamento por a ré usar ou consentir que outrem use o arrendado para fim ou ramo de negócio diverso daquele a que se destina, conforme disposto no artº 64º, nº 1, c) do RAU.
Fazem assim sentido o primeiro parágrafo da transcrita fundamentação do acórdão recorrido (Parece que com o primeiro pedido os Autores pretendem obter a resolução do contrato e que com o terceiro pedido pretendem prevalecer-se da denúncia do contrato…), e a asserção, constante do pré-saneador, de o pedido formulado em c) ser substancialmente incompatível com os pedidos formulados em a) e b), por mutuamente se excluírem.
Pretender o despejo com fundamento em algum dos fundamentos taxativamente indicados no artº 64º, nº 1 do RAU (artº 55º, nº 1 do RAU) e o pagamento das rendas em dívida e juros de mora vencidos e vincendos, é incompatível com a petição do despejo por o arrendatário não ter aceitado e dado satisfação à denúncia pelo senhorio do contrato de arrendamento de duração limitada (artºs 55º, nº 2, 68º, 100º e 118º do RAU) e de uma indemnização por enriquecimento sem causa. Na verdade, não se pode sustentar simultaneamente, em via principal, que a denúncia do contrato operou efeitos em 31 de Agosto de 2003, e simultaneamente invocar causas legais para a resolução do contrato o que pressupõe a vigência actual dele.
A Relação, como se vê da sua motivação, admitiu que os autores quisessem formular em alternativa dois pedidos principais, cada um deles com um pedido acessório: um pedido de resolução do contrato, acompanhado do pedido de pagamento das rendas em dívida e legais acréscimos, e um pedido de declaração de validade da denúncia do contrato a que procederam, acompanhado de um pedido de condenação da ré a pagar os quantitativos correspondentes à ocupação que se tornou abusiva após o final do contrato (Setembro de 2003, a admitir-se a validade da denúncia), acrescentando não se compreender todavia qual desses dois pedidos é o principal e qual é o alternativo.
Se assim é, o que se aceita, será possível vislumbrar a possibilidade de tudo remediar mediante um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, como defendem os recorrentes socorrendo-se dos artºs 265º e 508º do CPC?
Será viável neste caso dar cumprimento ao dever processual de cooperação, extensível aos próprios magistrados (artº 266º, nº 1, 508º, nº 1 e 508º-A, nº 1, c) do CPC)?
Como refere Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, pág. 153), a progressiva afirmação do princípio da cooperação, considerado já uma trave mestra do processo civil moderno, leva frequentemente a falar duma comunidade de trabalho entre as partes e o tribunal para a realização da função processual, concepção do processo civil bem afastada da velha ideia liberal duma luta arbitrada pelo juiz.
Todavia, o princípio da cooperação não é absoluto.
A ineptidão da petição inicial gera a nulidade de todo o processo (artº 193º, nº 1 do CPC), consubstanciando uma excepção dilatória (artº 494º, b) do CPC). As excepções dilatórias só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do artº 265º, nº 2 (artº 288º, nº 3 do CPC). E o juiz deve providenciar, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da fala de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância (artº 265º, nº 2 do CPC).
Ora, a ineptidão da petição inicial, conducente à nulidade de todo o processo, tem por escopo estabelecer a segurança jurídica quanto ao objecto do processo conformado pelo pedido e pela causa de pedir, sendo de natureza insuprível, levando mesmo ao indeferimento liminar do petitório (artº 234º-A do CPC), assentando a sua justificação em interesses de ordem pública e não em simples interesses das partes. A única situação de ineptidão passível de superação através de actuações processuais é a que expressamente consta do artº 193º, nº 3, aqui inaplicável (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I. págs. 29 e 225 e Vol. II, págs. 67 e 77 e segs.).
Tendo os autores cumulado na petição inicial pedidos substancialmente incompatíveis, há ineptidão dessa peça, tornando de forma insuprível todo o processado nulo, impondo a absolvição da ré da instância (artºs 193º, nºs 1 e 2, c) e 288º, nº 1, b) do CPC).
Nada havendo a alterar, acordam portanto em negar provimento ao agravo, condenando os agravantes nas custas.
Lisboa, 21 de Novembro de 2006
Faria Antunes (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves