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PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
MODIFICAÇÃO
CONDOMÍNIO
ACORDO
DECISÃO JUDICIAL
FRAUDE À LEI
Sumário
- Constatando-se a inexistência de acordo de todos os condóminos em ordem à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, afigura-se incontestável que o acolhimento do pedido da autora visando tal modificação, implicaria frontal violação da norma do art. 1419.º, n.º 1, do CC, que é de natureza imperativa; implicaria, mais precisamente, a obtenção dum resultado em fraude manifesta a essa disposição legal, de que o tribunal seria o instrumento. II - É certo que, conforme estabelece o n.º 3 do art. 1418.º, a não coincidência entre o fim, constante do título, a que se destina cada fracção e aquele que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo (uma nulidade que, conforme decidiu o acórdão de uniformização de jurisprudência de 10-05-89, é somente parcial). III - Mas, parece evidente que a falta de coincidência geradora da nulidade que a lei comina deve reportar-se à data da constituição da propriedade horizontal, e não a um qualquer momento ulterior, sob pena de perder sentido útil a disposição do art. 1416.º, n.º 1, do CC. IV - A situação jurídica do prédio, enquanto objecto de um direito real, eficaz erga omnes, define-se pelo título constitutivo e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional; menos ainda, pelo projecto de construção do edifício, ainda que aprovado pela autoridade administrativa competente.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. A Sociedade de Construções …, Ldª, intentou uma acção ordinária contra:
1. AA e mulher BB;
2. CC e mulher DD;
3. EE;
4. FF e mulher GG;
5. HH e mulher II;
6. JJ e mulher KK;
7. LL e marido MM;
8. NN e mulher OO;
9. PP e mulher QQ;
10. RR e mulher SS;
11. TT e mulher UU;
12. VV e mulher XX;
13. ZZ;
14. AAA;
15. BBB e marido CCC;
16. DDD e mulher EEE;
17. FFF e marido GGG;
18. HHH e mulher III;
19. JJJ e mulher KKK;
20. LLL;
21. MMM e mulher NNN;
22. OOO e mulher PPP;
23. QQQ e mulher RRR;
24. SSS;
25. TTT;
26.UUU e mulher VVV;
27. XXX e mulher ZZZ;
28. AAAA e mulher BBBB;
29. CCCC e mulher DDDD;
30. EEEE;
31. FFFF e mulher GGGG;
32 HHHH;
33. IIII. e mulher JJJJ;
34. KKKK e mulher LLLL;
35. MMMM e marido NNNN;
36. OOOO e marido PPPP;
37. QQQQ e mulher RRRR;
38. SSSS;
39. TTTT e mulher UUUU;
40. VVVV e mulher XXXX;
41. ZZZZ e mulher AAAAA;
42. BBBBB e marido CCCCC;
43. DDDDD e mulher EEEEE;
44. FFFFF e mulher GGGGG;
45. HHHHH e mulher IIIII;
46. JJJJJ e mulher KKKKK;
47. LLLLL;
48. MMMMM e mulher NNNNN;
49. OOOOO e marido PPPPP;
50. QQQQQ e marido RRRRR;
51. SSSSS e marido TTTTT;
52. UUUUU e mulher VVVVV;
53. XXXXX c mulher ZZZZZ;
54. AAAAAA e mulher BBBBBB;
55. CCCCCC e mulher DDDDDD;
56. EEEEEE e mulher FFFFFF;
57. GGGGGG e mulher HHHHHH;
58. IIIIII e mulher JJJJJJ;
59. KKKKKK;
60. LLLLLL e mulher MMMMMM;
61. NNNNNN e mulher OOOOOO.
Pediu que fosse declarada a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio urbano constituído por um edifício de 4 blocos, com logradouro, situado na Av.ª …, freguesia de …, Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob n.º …/… e inscrito na matriz predial da mencionada freguesia sob o art. 2417.º, na parte em que é desconforme com o projecto de construção que veio a ser aprovado pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim que prevê o destino da fracção “V” para actividades económicas, com o consequente cancelamento do registo nesta parte, e que os réus sejam condenados a reconhecer ser tal utilização aquela a que a aludida fracção se encontra adstrita pela referida autarquia municipal.
Contestada por uma parte dos réus, a acção veio a ser julgada improcedente, após discussão da causa, por sentença que a Relação do Porto confirmou.
Daí o presente recurso de revista, no qual a autora sustenta a revogação do acórdão recorrido com base nas seguintes conclusões úteis: 1. Para efeito da aplicação do nº 3 do artº 1418º do Código Civil a lei não distingue entre o fim constante do projecto inicial aprovado pela entidade competente e o que consta do alvará camarário que aprova posteriores alterações a este mesmo projecto; 2. Há nulidade (parcial) do título constitutivo da propriedade horizontal sempre que se verifique desconformidade entre o destino da fracção constante do título e o destino da mesma fracção fixado no alvará de licença de utilização emitido pela Câmara Municipal; 3. Na realidade, nunca pode o fim de uma fracção autónoma ser diverso e do que consta da respectiva licença camarária; 4. No caso de não existir coincidência entre o fim a que se destina cada fracção e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente prevalece sempre o que foi fixado no projecto aprovado; 5. Com efeito, a regra é a da dependência do título e a da imperatividade da sua conformação com o alvará camarário e não o contrário; 6. Pelo que o destino constante da permissão camarária tem carácter vinculativo para os condóminos; 7. Foi intenção do legislador aplicar o disposto no nº 3 do art. 1418º do C.Civil em vigor desde 1.1.95 a todas as situações de não coincidência e não apenas àquelas que surgissem após a entrada em vigor do Decreto-Lei 267/94 de 25 de Outubro; 8. O acórdão recorrido violou disposições legais imperativas de interesse e ordem pública – artºs 1416º, nº 1 e 1418º, nº 3 do CC; artºs 6º e 8º do RGEU, aprovado pelo DL 38.382, de Agosto de 1951; 9. O regime legal aplicável à nulidade do título constitutivo da Propriedade Horizontal, porque de uma nulidade especial se trata - invalidade mista - afasta-se do regime comum das nulidades dos artºs 285º e seguintes do C. Civil, aplicando-se a situação cominada no artº 1416º do mesmo diploma; 10. Na dilucidação da alegada questão da nulidade do registo, por falsidade, se o douto acórdão entendia que para o seu conhecimento se impunha uma quesitação adicional de factos e a sua inclusão na condensação, então deveria ter determinado que fosse ampliada a matéria de facto e revogada a decisão de 1ª instância com repetição do julgamento; 11. Não o tendo feito, interpretou erradamente, o nº 2 do art. 712º do C.P.C. e violou a regra de direito do nº1 do art. 511 do C.P.C.
Não foram apresentadas contra alegações. II. Ponto saliente do caso sub judice é o destino de uma das fracções autónomas do prédio identificado no processo – a designada pela letra “V”.
Contra o veredicto das instâncias, a autora pretende que lhe assiste o direito de obter a anulação do título constitutivo da propriedade horizontal na parte em que consigna que aquela fracção se destina a habitação, por isso contrariar o que relativamente a ela consta do projecto de construção aprovado e licenciado pela Câmara Municipal, no qual ficou expresso que o destino é actividades económicas.
Nisto consiste a questão a resolver na presente revista.
Ora, reduzidos ao seu núcleo essencial, são os seguintes os factos pertinentes, definitivamente fixados pelas instâncias,:
- Em 9.10.92 foi constituída por escritura pública a propriedade horizontal relativa ao prédio urbano em causa nesta acção;
- Na individualização das fracções constante do documento elaborado nos termos do art. 78.º do Código do Notariado, que ficou a fazer parte da referida escritura, destinou-se a fracção “V” a habitação (cfr. certidão de fls 311);
- Ficou a constar da escritura que o edifício estava a ser construído de harmonia com o projecto e aditamento devidamente aprovados pela Câmara Municipal, os quais foram exibidos ao notário, bem como os alvarás de licença (fls 306 e 307);
- Posteriormente, a autora fez um pedido de alteração da destinação da fracção “V” à Câmara Municipal, no sentido de que lhe fosse atribuída a finalidade de “actividades económicas” em vez de “habitação”, o que foi deferido pela entidade camarária em 17.11.93 (doc. fls. 328);
- Mediante escritura pública, a autora procedeu em 9.1.96 à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, de modo a que no mesmo constasse que o destino da fracção “V” era de actividades económicas, em conformidade com a nova licença camarária;
- Por sentença de 3.6.97, transitada em julgado, foi declarada a nulidade desse negócio jurídico de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal.
Verifica-se, assim, que na sequência da declaração de nulidade do negócio titulado pela escritura de 9.1.96 ficou a prevalecer, quanto ao destino da fracção, o que já constava da licença camarária emitida inicialmente em conformidade com o projecto aprovado e com a escritura de constituição da propriedade horizontal, mas que agora está em oposição com a nova utilização permitida pela Câmara Municipal em 17.11.93, atendido que foi o pedido de alteração apresentado pela autora. E na tese desta - esse é o efeito prático que visou com a acção instaurada - a lei não impede que, mesmo sem o concurso da vontade dos restantes condóminos, a menção do fim habitação como destino da fracção “V” possa ser “apagada” do título constitutivo; a Relação, diversamente, tal como a 1ª instância, considerou que esse desiderato não tem cobertura legal, essencialmente porque representa uma modificação do título constitutivo que contraria a norma imperativa do art.º 1419º, nº 1, do CC.
Tudo ponderado, este Tribunal entende que o acórdão recorrido decidiu correctamente e com fundamentação rigorosa e adequada; para ela se remete, nos termos do art.º 713º, nº 5, do CPC, sem prejuízo do que adiante se refere.
Rigorosamente, como se vê dos factos relatados, não há qualquer desconformidade entre o fim mencionado no título constitutivo para a fracção ajuizada e o que lhe foi atribuído no projecto que a câmara municipal oportunamente aprovou; a desconformidade existente é com a alteração que a autarquia aprovou em data posterior (17.11.93) à da constituição e registo da propriedade horizontal. E assim, constatando-se, como se constata pela presente acção, a inexistência de acordo de todos os condóminos em ordem à modificação do título constitutivo, afigura-se incontestável que o acolhimento do pedido da autora implicaria frontal violação da norma do art.º 1419º, nº 1, do CC, que é de natureza imperativa; implicaria, mais precisamente, a obtenção dum resultado em fraude manifesta a essa disposição legal, de que o tribunal seria o instrumento. Conforme já referimos em anterior acórdão deste Supremo Tribunal Acórdão de 28.9.03, proferido na revista 03 A1835, com o mesmo relator deste., no entanto, a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por meio de sentença judicial não é legalmente admissível; para tal efeito exige-se sempre que haja acordo de todos os condóminos e que a modificação se realize por meio de escritura pública, a qual se assume como verdadeira formalidade ad substantiam, isto é, como requisito de validade do negócio (artºs 220º, 371º e 1419º, nº 1, do CC). Está vedado ao tribunal intrometer-se no assunto e afastada a possibilidade de que a alteração do título possa suceder à revelis daquele acordo, ainda que seja no quadro duma acção de suprimento judicial do consentimento, dado o carácter excepcional de que este sempre se reveste. O artº 1419º, nº 1, atrás citado, é terminante e imperativo: só o acordo unânime, devidamente formalizado, de todos os condóminos poderá validar a modificação. E é evidente, como resulta dos textos legais referidos, que a exigência de escritura pública (e, indirectamente, da posterior inscrição no registo) se mantém, mesmo que à data daquela ainda não haja condóminos, ou haja um só. Este é o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência, que se perfilha (cfr. Aragão Seia, A Propriedade Horizontal, pág. 55 e seguintes).
É certo que, conforme estabelece o nº 3 do art.º 1418º, a não coincidência entre o fim, constante do título, a que se destina cada fracção e aquele que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo (uma nulidade que, conforme decidiu o acórdão de uniformização de jurisprudência de 10.5.89 – BMJ 387º, 79 – é somente parcial); mas parece evidente que a falta de coincidência geradora da nulidade que a lei comina deve reportar-se à data da constituição da propriedade horizontal, e não a um qualquer momento ulterior, sob pena de perder sentido útil a disposição do art.º 1416º, nº 1; com efeito, a situação jurídica do prédio, enquanto objecto de um direito real, eficaz erga omnes, define-se pelo título constitutivo (no caso dos autos, a escritura pública de 9.1.92), e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional; menos ainda, pelo projecto de construção do edifício, ainda que aprovado pela autoridade administrativa competente (neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, 412).
Acresce que a alteração do projecto obtida pela recorrente em 17.11.93 – depois, portanto, de constituída a propriedade horizontal – nunca poderia implicar, contrariamente ao que defende, a nulidade do título constitutivo; e isto pela razão simples, mas decisiva, de que o negócio em apreço não padece de nenhum vício que o afecte em termos de impedir ab origine a produção dos efeitos que lhe são próprios (e, consequentemente, a retroactividade característica da declaração de nulidade – art.º 289º, nº 3, do CC): na verdade, como já se disse, aquilo que ficou consignado no título a respeito do fim a que se destinava a fracção coincidia ponto por ponto, nessa data, com o que o projecto aprovado pela autarquia também referia.
Improcedem, assim, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões respeitantes à questão de direito posta na revista (1ª a 9ª).
Quanto às conclusões 10ª e 11ª basta dizer que se reportam, ao cabo e ao resto, a questões de facto, insusceptíveis de constituir objecto de recurso de revista, e alheias, por isso, à competência do STJ (art.ºs 722º, nº 2, e 729º, nº 2, do CPC). De qualquer modo, deve dizer-se que o problema da nulidade do registo fundada no art.º 16º do Código do Registo Predial foi aflorado no acórdão recorrido a título meramente incidental e como simples obiter dictum, pelo que a sua apreciação no âmbito da presente revista implicaria, simultaneamente, o cometimento da nulidade prevista no art.º 668º, nº 1, d), do CPC (excesso de pronúncia) e a violação da regra vigente no nosso ordenamento jurídico segundo a qual os recursos não visam o julgamento de questões novas, mas apenas a reapreciação das que tiverem sido decididas pelo tribunal recorrido; mesmo que se trate de uma questão de conhecimento oficioso – e não é esse o caso, obviamente – a pronúncia sobre ela no âmbito de um recurso interposto está vedada ao tribunal ad quem se isso implicar alteração da causa de pedir. III. Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 21 de Novembro de 2006
Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira