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CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ARRENDAMENTO PARA PROFISSÃO LIBERAL
CESSÃO DE ARRENDAMENTO
RENDA
REVOGAÇÃO REAL DO CONTRATO
FIANÇA
BENFEITORIA
OBRAS
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
1. O recurso de revista não é susceptível de incidir sobre o segmento decisório da Relação relativo à omissão pelo tribunal da 1ª instância de despacho de convite ao aperfeiçoamento do articulado da contestação por via do acrescentamento de factos pertinentes à defesa. 2. O julgamento das instâncias sobre a data em que o arrendatário entregou ao senhorio as chaves do locado com intenção de revogação do contrato de arrendamento excede o âmbito do recurso de revista, por se tratar de questão de facto decidida com base em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador. 3. A remessa ao locador das chaves do locado pelo inquilino - tradição simbólica do locado - constitui manifestação de vontade pelo último de pôr termo ao contrato de arrendamento. 4. A revogação real do contrato de arrendamento depende, todavia, da recepção das referidas chaves pelo senhorio com intenção de aceitar o distrate e de pôr fim àquele contrato. 5. A prudente utilização do locado prevista no artigo 1043º, nº 1, do Código Civil envolve o cuidado normal na espécie de coisa em causa, por exemplo, no arrendamento para o exercício de profissão liberal, a afixação de anúncios ou reclamos da respectiva actividade, a abertura de orifícios nas paredes para instalação de ar condicionado ou a colocação de suportes nas paredes para estantes. 6. Tendo o senhorio e o inquilino convencionando que este não seria indemnizado pelo valor das obras e benfeitorias autorizadas ou efectuadas no locado e que passariam a pertencer ao imóvel, dispensado ficou este último, no termo do arrendamento, da obrigação de repor o locado no estado em que se encontrava à data da sua celebração ou de suportar o custo da reposição realizada pelo primeiro. 7. Não é, por isso, ilícita a recusa do inquilino de operar a mencionada reposição, por se não traduzir na violação de alguma obrigação decorrente do contrato de arrendamento, pelo que o senhorio não tem o direito de lhe exigir indemnização por não ter podido, sem realizar as obras, arrendar a loja para o exercício de determinada actividade comercial e industrial. *
* Sumário elaborado pelo Relator.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
"AA" intentou, no dia 3 de Junho de 2004, contra BB e Empresa-A acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração de que identificado contrato de arrendamento deixou de produzir efeitos na data da sua renovação por virtude da sua denúncia e a condenação solidária das rés ao pagamento das rendas de Abril a Novembro de 2003, no montante total de € 11 029, 20, a indemnizá-la das despesas no montante de € 5 017, 03 com a reposição do local arrendado e do que viesse a liquidar-se em execução de sentença por impossibilitarem o arrendamento do locado, por não reunir as condições necessárias para o efeito, no pagamento das despesas de condomínio, no valor de € 75, e a retirarem do local arrendado o ar condicionado e as suas tubagens, a suportarem as despesas com a reparação do local arrendado após essa remoção, com juros de mora à taxa legal desde a citação relativamente aos mencionados valores.
Fundamentou a sua pretensão em contrato de arrendamento celebrado com a ré BB para consultório naturista, na proibição de identificadas obras sem autorização, na convenção de não indemnização pelas obras e benfeitorias autorizadas, na falta de pagamento de rendas, na transferência da posição daquela ré para Empresa-A, na fiança da primeira, na alteração da fracção arrendada e no atraso da sua entrega.
As rés, na contestação, afirmaram, por um lado, ter a compartimentação do locado sido acordada com a autora, não terem podido levantar as benfeitorias, e estas haverem valorizado o locado.
E, por outro, terem posto termo ao contrato com efeitos em 31 de Março de 2003, que a autora as accionou sob abuso do direito e só aceitarem pagar as despesas de condomínio devidas até essa data.
Na réplica, as rés impugnaram a argumentação da autora e, realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 26 de Setembro de 2005, por via da qual, por um lado, foi declarada a extinção do contrato de arrendamento no dia 30 de Novembro de 2003.
E, por outro, foram as rés condenadas solidariamente a pagar à autora as rendas no montante total de € 11 029, 20, as despesas de condomínio no montante de € 68,75, e BB no pagamento de juros de mora desde 15 de Junho de 2004, à taxa de 4% ao ano, contados sobre aquela quantia até 12 de Julho de 2004 e ambas as rés, solidariamente, no pagamento de juros de mora à mesma taxa, contados sobre aquela importância desde 13 de Julho de 2004.
Apelaram a autora e as rés, e a Relação, por acórdão proferido no dia 11 de Maio de 2006, negou provimento a ambos os recursos.
Todas elas interpuseram recurso de revista, formulando a primeira, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- BB obrigou-se a indemnizá-la pelos prejuízos sofridos aquando da entrega do locado, após esta não conseguiu arrendá-lo para comércio e restauração em consequência das obras de modificação por ela realizadas;
- para conseguir arrendar o locado para comércio e restauração teve a recorrente de fazer obras para repor a loja em condições para aquele fim, no que despendeu € 3 988,50;
- o facto de o artigo 1043º, nº 1, do Código Civil admitir convenção em contrário da obrigação do locatário de restituir o locado no estado em que se achava à data do arrendamento não afecta o direito da recorrente à indemnização pedida, ele está salvaguardado no contrato de arrendamento, resultando da vontade dos outorgantes;
- o tribunal errou na interpretação do contrato de arrendamento e na qualificação dos factos face ao direito aplicável, porque o artigo 1043º do Código Civil não exclui o direito do senhorio de exigir a indemnização em causa;
- o acórdão deve ser revogado na parte que manteve a absolvição das recorridas do pedido de indemnização.
Empresa-A e BB alegaram, por seu turno, em síntese:
- o tribunal tem a faculdade de exercício vinculado de desenvolver diligências para suprir as imperfeições ou irregularidades dos articulados;
- como era essencial para a justa composição do litígio o apuramento das datas em que chaves foram enviadas à recorrida e em que ela as recebeu, o tribunal da 1ª instância deveria ter convidado as recorrentes a juntar os documentos comprovativos desses factos;
- foram erradamente interpretadas na sentença as normas dos artigos 265º, nº 3 e 508º, nº 3, do Código de Processo Civil, motivo pelo qual a verdade formal não correspondeu à verdade material;
- o processo contém elementos que permitem concluir no sentido da cessação do contrato de arrendamento por acordo pelo seu uso pela recorrida antes de Novembro de 2003, porque franqueou o acesso de terceiros à loja no dia 9 de Abril daquele ano;
- o contrato de arrendamento cessou por revogação real, pelo que o acórdão interpretou e aplicou erradamente o artigo 62º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro;
- deve, por isso, ser revogado na parte em que negou provimento ao recurso de apelação que interpuseram.
Empresa-A e BB alegaram, por seu turno, no recurso de apelação interposto por AA, em síntese, o seguinte:
- não podiam proceder ao levantamento das benfeitorias feitas no locado, porque, findo o contrato, ficaram a pertencer à recorrente;
- a obrigação de restituir o locado no estado em que se encontrava aquando da celebração do contrato foi convencionalmente afastada;
- não estavam obrigadas a realizar as obras para permitir o novo fim de comércio e restauração, nem a indemnizar a recorrente por não ter conseguido arrendar a loja com as benfeitorias que passaram a pertencer-lhe;
- a aplicação do artigo 1043º, nº 1, do Código Civil foi expressamente afastada pelas recorridas e pela recorrente;
- o acórdão procedeu, nesta parte, a criteriosa aplicação do direito aos factos.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. Em 30 de Novembro de 2001, AA, como senhoria, por um lado, e BB, por outro, declararam por escrito:
- a primeira dar à última de arrendamento a sua loja sita no rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo n.º ..., da Endereço-A - antigo lote..- da freguesia de Salvador, Santarém, que faz parte do prédio constituído em propriedade horizontal, inscrito na matriz sob o artigo 3843;
- destinar-se o local arrendado a consultório naturista e afins e ser o arrendamento pelo prazo de um ano, com início em 1 de Dezembro de 2001 e termo em 30 de Novembro de 2002, renovável por iguais períodos, se antes não fosse denunciado por um dos contratantes;
- ser a renda mensal de € 1 321,81 a pagar no primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito;
- autorizar AA a BB a transferência do local arrendado para uma sociedade de que a última fizesse parte;
- ser vedada a BB a realização de quaisquer obras que alterem a divisão interior ou o exterior da loja e do edifício sem autorização escrita da senhoria ou da Câmara Municipal de Santarém;
- todas as obras ou benfeitorias que vierem a ser autorizadas ou efectuadas ficam a ser pertença do imóvel, sem direito de indemnização ou retenção pela inquilina;
- autorizar AA a BB a realização das obras de beneficiação e de adaptação do local arrendado à actividade a que se destina, bem como à colocação de anúncios luminosos ou de outra natureza, desde que não seja alterada a divisão interna e o aspecto exterior da loja;
- obrigar-se BB a pagar os encargos com o condomínio a partir de 1 de Janeiro de 2002;
- obrigar-se BB a conservar em bom estado as canalizações de água, luz, esgotos, despejos e seus pertences, pagando à sua custa as reparações necessárias, e a manter em bom estado os soalhos, vidros e pinturas, obrigando-se a reparar as deteriorações quando deixar a casa e a entregar o local arrendado em bom estado de conservação, com todos os vidros intactos, com as chaves e tudo o mais que nele presentemente se encontra;
- assumir BB a responsabilidade pelos prejuízos que se verificarem aquando da restituição do local arrendado.
2. Em 30 de Novembro de 2002, AA e BB, esta por si e em representação da Empresa-A, declararam acordar a alteração do contrato de arrendamento, nos seguintes termos:
- passar a ser inquilina Empresa-A, que se obriga ao integral cumprimento do contrato de arrendamento de 30 de Novembro de 2001;
- poder a nova inquilina exercer no local arrendado a sua actividade, ou seja processos e tratamentos de medicina biológica e natural, naturopatia, incluindo as áreas de acupunctura, quiroprática, homeopatia, osteopatia, massagens de reabilitação e estética de todo o parâmetro respectivo;
- ser a renda mensal de 1378,65€, a partir de 1 de Dezembro de 2002, face à actualização legal;
- obrigar-se BB pessoalmente como fiadora e principal pagadora ao integral cumprimento do contrato de arrendamento inicial de 30 de Novembro de 2001, e à presente alteração e suas renovações, com expressa renúncia ao benefício da excussão.
3. BB procedeu no local arrendado às seguintes modificações: a) colocação de um anúncio luminoso e escritos na porta de entrada; b) criação de diversos pequenos gabinetes, com a instalação de divisórias e portas; c) co- locação de um tecto falso, acompanhado da respectiva iluminação, instalação eléctrica e tomadas de corrente eléctrica, colocação de vinílico através de colagem sobre um auto-nivelante colocado no mosaico existente, instalação de ar condicionado e respectiva tubagem e ligações eléctricas e instalação de tubagens na casa de banho com furo dos azulejos.
4. No início de 2003, BB, por si e em representação de Empresa-A, manifestou verbalmente a vontade de pôr termo ao contrato de arrendamento no mês de Março de 2003.
5. Por carta de 6 de Fevereiro de 2003, através do seu pai e procurador, AA informou BB e Empresa-A, que o contrato tinha o prazo de um ano, renovável por iguais períodos, que o arrendamento só terminava em 30 de Novembro de 2003 e que no fim do mesmo a inquilina devia repor a loja na situação em que se encontrava.
6. Para responder ao pedido formulado por BB e Empresa-A de antecipar o fim do contrato, AA questionou-as sobre se estavam na disposição de repor a loja no estado em que se encontrava no momento do arrendamento.
7. Em 12 de Março de 2003, AA interpelou BB e Empresa-A para pagarem a renda vencida em 1 de Março de 2003, correspondente ao mês de Abril seguinte, no montante de € 1 378,75, acrescida da respectiva indemnização.
8. BB e Empresa-A enviaram pelo correio, por carta remetida pelo seu advogado, as chaves do local arrendado.
9. Por carta registada de 12 de Janeiro de 2004, AA interpelou BB e Empresa-A, com fundamento em incumprimento do contrato de arrendamento, para no prazo de 10 dias pagarem as rendas que se vencessem até ao termo do contrato, correspondentes aos meses de Abril a Novembro de 2003, no montante total de € 11 029,20, reporem a loja nas condições em que lhes foi arrendada, levantarem o tecto falso e reporem o tecto original e levarem todos os reclames deixados, e alertou-as para o custo do tipo de obras a efectuar para repor o local arrendado nas mesmas condições em que se encontrava face ao relatório elaborado pela Empresa-A.
10. No começo do ano de 2004, AA fez obras tendentes a colocar o arrendado num espaço amplo como era na altura em que foi arrendado à BB, tendo, a seu mando, sido removido o tecto falso, desmontadas as divisórias e as portas, arrancados o piso colado ao primitivo chão da loja e as tubagens existentes no exterior das paredes, tudo isso anteriormente instalado por BB.
11. O tecto da loja tinha muitos furos para suportar o tecto falso e as divisórias colocados pela BB, tendo sido instalado um novo tecto falso.
12. A mando de AA foram colocados novos mosaicos no chão da loja e feitos nesta trabalhos de pintura, de tapagem de fissuras, de reparação de rodapés e de reposição do estado original da casa de banho, de alterações na parte eléctrica, o que importou em € 3 569.
13. Para documentar o estado da loja antes e depois das obras efectuadas, AA gastou em fotografias a quantia de € 121, e com os serviços prestados pela Empresa-B gastou € 297,50.
14. BB e Empresa-A, não pagaram o montante de € 75 referente às despesas de condomínio do ano de 2003.
15. Em 2003 ou 2004, anteriormente à realização das obras referidas nas respostas aos artigos terceiro a oitavo da base instrutória, AA foi contactada mais do que uma vez para arrendar a referida fracção para comércio ou restauração, o que não aconteceu por a mesma, face às modificações nela introduzidas por BB, não se coadunar com as finalidades pretendidas.
16. Quando BB acedeu à posse da loja, eram visíveis no tecto as vigas da estrutura do prédio, e Empresa-A, deixou um espaço compartimentado, dotado de um tecto falso, com iluminação em todas as divisões e focos nalgumas zonas.
III
As questão essencial decidenda é a de saber se AA tem ou não direito a exigir das outras recorrentes o despendido em obras, a indemnização por perda de oportunidade de novo arrendamento e as rendas em causa.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação das recorrentes, a resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação do objecto do recurso interposto por BB e Empresa-A
- natureza e efeitos dos contratos celebrados entre as recorrentes;
- AA tem ou não direito a exigir das outras recorrentes o custo da reposição do locado no estado inicial?
- AA tem ou não direito a exigir das outras recorrentes indemnização por não haver podido arrendar a loja para comércio e restauração?
- AA tem ou não direito a exigir das outras recorrentes o pagamento das rendas em causa?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.
1.
Comecemos pela delimitação negativa do objecto do recurso interposto por BB e Empresa-A.
Estas recorrentes invocaram nas conclusões de alegação, por um lado, a errada interpretação na sentença dos artigos 265º, nº 3 e 508º, nº 3, do Código de Processo Civil.
E, por outro, que o processo contém elementos que permitem concluir no sentido de que o contrato cessou pelo menos no dia 9 de Abril de 2003, com fundamento em que AA facultou o acesso a terceiros à referida loja naquela data.
O recurso próprio da decisão que infrinja as normas processuais indicadas pelas recorrentes é, naturalmente, o de agravo, porque só pode estar em causa a violação da lei de processo (artigos 691º e 733º do Código de Processo Civil).
Ora, sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admitido recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso (artigo 722º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Trata-se do princípio designado da unidade ou absorção, em que o recurso de revista, em razão do seu objecto essencial relativo à violação de normas jurídicas substantivas, arrasta para a sua órbita o conhecimento da violação de normas jurídicas adjectivas, próprio do recurso de agravo.
Todavia, para o efeito, exige a lei, como condição do conhecimento da violação de normas jurídicas processuais, que a decisão da Relação sobre essa matéria seja impugnável nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil.
A este propósito, estabelece a lei, por um lado, ser admissível recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação de que seja admissível recurso, salvo nos casos em que couber revista ou apelação (artigo 754º, nº 1, do Código de Processo Civil).
E, por outro, não ser admissível recurso de agravo do acórdão da Relação sobre a decisão da 1ª instância, salvo se estiver em oposição com outro proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B, jurisprudência com ele conforme (artigo 754º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Ora, no caso vertente, estamos perante um segmento decisório de um acórdão da Relação que conheceu de invocada omissão pelo tribunal da 1ª instância por não haver proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento do articulado da contestação com expressão da data da remessa e do recebimento das chaves.
O referido segmento decisório não se integra na excepção à proibição da admissibilidade de recurso a que se reporta o nº 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil.
Em consequência, não pode este Tribunal, no recurso de revista, conhecer da violação das referidas normas de natureza processual.
No que concerne à alegação da data da cessação do contrato por revogação real, como isso depende de saber quando foram remetidas e recebidas as chaves da loja, do que realmente se trata é de uma questão de facto.
Ora, salvo casos excepcionais legalmente previstos, este Tribunal apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que este Tribunal aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, no recurso de revista, pode este Tribunal sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, este Tribunal só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado algum facto sem a produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou externa.
Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.
Como nesta parte a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da 1ª instância, confirmada pela Relação, foi baseada em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, não pode este Tribunal sindicá-la, no recurso de revista, na sua amplitude positiva e negativa.
2.
Atentemos agora na natureza e nos efeitos dos contratos celebrados entre recorrentes.
AA e BB convencionaram, no dia 30 de Novembro de 2001, a primeira ceder à última de arrendamento a loja em causa para instalação de um consultório naturista, pelo prazo de um ano, mediante o pagamento de renda.
As referidas declarações negociais consubstanciam a celebração entre ambas de um contrato de arrendamento urbano para o exercício de uma profissão liberal (artigos 1º, 3º, nº 1 e 121º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro - RAU - e 12º, nº 1, do Código Civil).
O arrendamento urbano é regido pelo disposto no referido diploma e, no que nele não esteja previsto, pelo regime geral da locação (artigo 5º, n.º 1, do RAU)
As partes utilizaram a forma de documento escrito particular legalmente exigida para o efeito (artigo 7º, nº 1, do RAU).
Em 30 de Novembro de 2002, assumiu Empresa-A a posição de arrendatária no confronto de AA, por virtude da cessão da posição contratual por parte de BB, autorizada antecipadamente e posteriormente reconhecida pela segunda (artigo 424º do Código Civil).
O contrato de arrendamento é susceptível de cessar por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outra causa legalmente prevista (artigo 50º do RAU).
A cessação dos efeitos do contrato de arrendamento por denúncia opera por comunicação pelo denunciante ao denunciado, por citação em acção judicial ou, extrajudicialmente, por escrito (artigos 52º, nº 1, 53º, nºs 1 e 2, do RAU).
O arrendatário pode obstar à renovação automática do contrato, procedendo à denúncia regulada no artigo 1055º do Código Civil (artigo 68º, n.º 1, do RAU).
A denúncia do contrato de arrendamento com prazo de duração de três meses a um ano tem que ser comunicada ao outro contraente com a antecedência mínima de trinta dias (artigo 1055º, nº 1, alínea c), do Código Civil).
A extinção unilateral do contrato de arrendamento por efeito de denúncia apenas produz efeitos no termo do prazo contratual (artigo 55º, n.º 1, do RAU).
Em regra, inobservada a forma escrita exigida para a denúncia do contrato de arrendamento, não ocorre o efeito visado pela concernente declaração (artigo 53º, n.º 2, do RAU).
Mas as partes podem, a todo o tempo, por acordo, revogar o contrato de arrendamento, independentemente da forma escrita, salvo se o mesmo não for imediatamente executado ou contiver cláusulas compensatórias ou quaisquer outras cláusulas acessórias (artigo 62º, n.º 2, do RAU).
Acresce que AA e BB declararam esta assumir perante aquela a posição de fiadora e principal pagadora das obrigações assumidas pela locatária Empresa-A e das renovações do contrato e que renunciava ao benefício de excussão.
Estamos, por isso, nesta parte, perante um contrato de fiança celebrado entre, por um lado, BB, primitiva arrendatária, cedente da sua posição contratual a Empresa-A, e AA, por outro (artigo 627º, nº 1, do Código Civil).
Em consequência, BB garante pessoalmente, a título solidário, o cumprimento por Empresa-A da obrigação de pagamento da renda e demais prestações pecuniárias no confronto de AA (artigos 627º, nº 1 e 641º, nº 1, do Código Civil).
3.
Vejamos agora se AA tem ou não direito a exigir das outras recorrentes o custo da reposição do locado no estado inicial.
Far-se-á, previamente, uma breve referência ao regime legal das benfeitorias e da reparação das deteriorações provocadas nas coisas alugadas ou arrendadas.
Salvo o caso de reparações ou outras despesas urgentes da responsabilidade do senhorio, sem prejuízo de convenção em contrário, o locatário é equiparado ao possuidor de má fé quanto a benfeitorias que haja feito no locado (artigo 1046º, n.º 1, do Código Civil).
Assim, salvo estipulação em contrário, não tem o locatário direito a levantar as benfeitorias voluptuárias, que, por isso, as perde (artigo 1275º, n.º 2, do Código Civil).
Tem, porém, direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias efectuadas e a levantar as benfeitorias úteis, desde que tal se possa fazer sem detrimento do locado (artigo 1273º, n.º 1, do Código Civil).
E quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao seu levantamento, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1273º, n.º 2, do Código Civil).
Entre as obrigações do arrendatário em geral conta-se a de restituir a coisa locada findo o contrato de arrendamento, em regra no estado em que o recebeu (artigos 1023º, 1038º, alínea i) e 1043º do Código Civil).
Mas é lícito ao arrendatário realizar no locado pequenas deteriorações, desde que se tornem necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade, que deve reparar antes da sua restituição, salvo convenção em contrário (artigo 4º do RAU).
Trata-se de deteriorações que não resultam de uma prudente utilização do locado, que, se não houver convenção em contrário, devem ser reparadas pelo locatário.
Quanto às deteriorações resultantes de prudente utilização do locado, rege o 1043º do Código Civil.
Na falta de convenção em contrário, é o locatário obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com o fim do contrato (artigo 1043º, nº 1, do Código Civil).
A prudente utilização do locado é a que é envolvida de zelo e cuidado normais na espécie de coisas em causa, por exemplo, a afixação de anúncios ou reclamos da actividade do locatário no prédio, a abertura de algum orifício nas paredes para instalação de ar condicionado, a colocação de suportes nas paredes para estantes, quadros, imagens ou candeeiros.
Assim, resulta do mencionado normativo que, se não houver convenção em contrário, as deteriorações do locado não resultantes de uma prudente utilização devem ser reparadas pelo locatário antes da entrega do locado.
AA exigiu a Empresa-A que repusesse a loja nas condições em que foi arrendada a BB e levantasse o tecto falso retornando a forma original.
Todavia, AA autorizou BB a fazer na loja obras de beneficiação e de adaptação à actividade a que se destinava, bem como à colocação de anúncios luminosos ou de outra natureza, desde que não fosse alterada a divisão interna e o aspecto exterior da loja.
Acresce que AA e BB convencionaram que as obras ou benfeitorias autorizadas pertenceriam ao imóvel, sem direito a indemnização ou retenção por parte da segunda.
Por isso, face aos termos do contrato, Empresa-A, transmissária da posição contratual de BB no contrato de arrendamento, não podia retirar da loja locada o resultado das obras que nela realizou.
Não estamos perante as deteriorações no locado a que se reportam os artigos 4º do Regime do Arrendamento Urbano e 1043º do Código Civil, ou seja, perante o convencionado pelas partes que consta de II 1, nas suas penúltima e última partes.
Com efeito, do que se trata, tendo em conta a causa de pedir que AA formulou na acção, é da realização pela arrendatária BB de obras de adaptação da loja ao exercício da actividade de consultório de naturista.
Ora, as partes convencionaram a exclusão de indemnização ao locatário por todas as obras ou benfeitorias autorizadas ou efectuadas no locado, certo que clausularam que passavam a ser pertença do imóvel.
Assim, proibido no clausulado do contrato de arrendamento o ius tollendi no confronto da locatária, excluída ficou a sua obrigação de repor o locado no estado em que se encontrava à data da celebração do arrendamento.
Em consequência, excluída também ficou por via contratual a obrigação de Empresa-A suportar, no confronto de AA, o custo da reposição que esta última invocou.
4.
Atentemos agora se AA tem ou não direito a exigir das outras recorrentes indemnização por não haver podido arrendar a loja para comércio e restauração.
AA invocou que lhe resultaram prejuízos em virtude de não ter podido arrendar a loja para o exercício do comércio e da restauração em consequência das obras de modificação da mesma realizadas por BB, pretendendo indemnização por BB e de Empresa-A a liquidar posteriormente.
A responsabilidade civil é uma modalidade da obrigação de indemnizar, ou seja, de eliminar o dano ou prejuízo reparável.
São essencialmente os mesmos os pressupostos da responsabilidade civil obrigacional ou contratual e da responsabilidade civil extracontratual, ou seja, a acção ou a omissão ilícita, o dano, o nexo de causalidade entre este e aquela e a culpa (artigos 483º, nº 1, 562º e 563º e 799º, n.º 2, do Código Civil).
A ilicitude é susceptível de se traduzir na violação do direito de outrem, isto é, de direitos subjectivos, sejam relativos, derivados de contratos, sejam absolutos.
A culpabilidade presume-se, por força do disposto no artigo 799º, n.º 1, do Código Civil, no domínio da responsabilidade civil contratual, mas supõe a ilicitude da acção ou da omissão a que se reporta, ou seja, a violação do contrato em causa.
Distingue-se entre o dano emergente e o lucro cessante, o primeiro como diminuição efectiva do património, e o segundo como o seu não aumento em razão da frustração de um ganho.
Finalmente, a obrigação de indemnização depende de que entre o acto ilícito ou antijurídico e o prejuízo ocorra um nexo de causalidade adequada (artigos 562º e 563º do Código Civil).
Conforme acima se referiu, por virtude de convenção entre a locadora e a locatária, esta não estava obrigada a repor o locado no estado em que se encontrava à data da celebração do contrato de arrendamento.
O objecto do convencionado sob II 1, penúltima e última partes, conforme já se referiu, reporta-se a deteriorações do locado por uso prudente ou não do locado, e na situação em análise do que se trata é de obras para a sua adaptação à actividade de naturista empreendida por BB.
Por isso, a não reposição do locado no estado em que se encontrava na altura da celebração do contrato de arrendamento por parte de Empresa-A não se traduz em omissão ilícita, isto é, não se reconduz à violação de alguma obrigação decorrente daquele contrato.
Em consequência, como não ocorre o pressuposto básico da obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil contratual, AA não pode exigir de BB ou de Empresa-A o ressarcimento patrimonial por não ter podido arrendar a loja para o exercício do comércio e da restauração sem realização nela de obras.
5.
Vejamos agora se AA tem ou não direito a exigir das outras recorrentes o pagamento das rendas em causa.
Os factos provados não revelam a data em que BB, representante de Empresa-A, entregou as chaves da loja locada a AA, embora neste ponto, porque tal foi considerado pelas instâncias, sabe-se que a sua remessa ocorreu depois de 12 de Março de 2003, sem devolução pela última.
Certo é que a entrega ao locador das chaves do locado pelo locatário constitui manifestação deste de pôr termo ao contrato de locação, porquanto envolve a tradição simbólica da posse da coisa locada para o senhorio, e a recepção das chaves do locado pelo senhorio consubstancia a aceitação da proposta de distrate do contrato de arrendamento.
Como a entrega e o recebimento das chaves envolve a execução imediata da obrigação de entrega do locado, a situação é de revogação real, válida independentemente de forma escrita (artigo 62º, n.º 2, do RAU).
Todavia, BB e Empresa-A não cumpriram o ónus de alegação e de prova da data em que AA recebeu as chaves com a intenção de pôr fim ao contrato de arrendamento (artigo 342º, nº 2, do Código Civil).
A este propósito, importa ter em conta a factualidade constante de II 4 a 7, donde resulta, por um lado, que AA não aceitou a proposta de Empresa-A, meramente verbal, aliás sem eficácia para o efeito, no sentido de o contrato terminar em Março de 2003.
E, por outro, que lhe expressou ser o termo do contrato apenas no dia 30 de Novembro seguinte, e que para responder à proposta de antecipação desse termo questionou-a sobre se estava na disposição de repor a loja no estado em que ela se encontrava no momento da celebração do contrato de arrendamento.
E, finalmente, no dia 12 de Março de 2003, interpelou Empresa-A para lhe pagar a renda vencida em 1 de Março de 2003, correspondente ao mês de Abril seguinte, acrescida da respectiva indemnização.
Assim, os factos provados não revelam que AA, com o recebimento das chaves da loja, tenha tido a intenção de aceitar o termo do contrato de arrendamento.
Perante este quadro, a conclusão é no sentido de que o contrato em análise não se extinguiu por revogação real, mas no respectivo termo, ou seja, no dia 30 de Novembro de 2003.
Em consequência, a obrigação de Empresa-A de pagamento da renda estende-se até à referida data (artigo 1038º, alínea a), do Código Civil).
6.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
O recurso não pode ter por objecto a questão da errada interpretação dos artigos 265º, nº 3 e 508º, nº 3, do Código de Processo Civil, nem a decisão da matéria de facto relativa às datas em que as chaves do locado foram enviadas por Empresa-A a AA e esta as recebeu.
AA e BB celebraram um contrato de arrendamento para o exercício de profissão liberal, e a última, com autorização da primeira, cedeu a sua posição contratual a Empresa-A.
BB e AA celebraram um contrato de fiança por via do qual a primeira garantiu à última o cumprimento das obrigações contratuais decorrentes do referido contrato de arrendamento para Empresa-A.
AA não tem o direito de exigir de BB e de Empresa-A o custo da reposição do locado no estado imediatamente anterior à celebração do contrato de arrendamento nem indemnização por não haver podido arrendar a loja para comércio e restauração.
BB e Empresa-A estão contratualmente vinculadas ao pagamento a AA o quantitativo das rendas correspondentes aos meses de Abril a Novembro de 2003.
Improcedem, por isso, ambos os recursos.
Vencidas, são as recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento a ambos os recursos e condenam-se as recorrentes no pagamento das custas respectivas, na proporção do vencimento.
Lisboa, 6 de Dezembro de 2006.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís