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DEPÓSITO BANCÁRIO
CONVENÇÃO DE CHEQUE
DESCOBERTO BANCÁRIO
CONTA CONJUNTA
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Sumário
I - A abertura de uma conta é, normalmente, a génese da relação bancária complexa entre o banqueiro e o seu cliente, traçando o “cenário” factual e legal do seu relacionamento, o qual se deve pautar por deveres de conduta, derivados da boa fé, dos usos bancários ou dos acordos particulares que celebrarem, à luz do princípio da liberdade contratual. II - Da simples abertura da conta, nascem desde logo direitos e deveres recíprocos, assumindo o banco, designadamente, a obrigação de receber cheques do cliente, mesmo que emitidos por outros bancos, para “depositar” na conta entretanto aberta, se nada for convencionado em sentido contrário. III - O contrato de depósito bancário é um contrato real, cuja perfeição só se alcança através da prática material da entrega de dinheiro (arts. 1185.º, 1205.º e 1206.º do CC). IV - A realização do depósito bancário (designadamente nos depósitos à ordem) dá origem à abertura de uma conta, na qual se vão registando as entregas feitas pelo cliente, ao abrigo do contrato de depósito, bem como todos os levantamentos, representando essa conta a expressão contabilística do depósito. V - Provado que os RR., apesar de avisados que não podiam efectuar o movimento do contravalor em escudos correspondente ao cheque de 30.000 dólares, antes de decorridos quarenta e cinco dias sobre a data do depósito desse cheque e antes da confirmação da boa cobrança do mesmo, efectuaram, antes desse prazo e dessa confirmação, movimentos na conta de que eram titulares, tendo apresentado a pagamento três cheques, cujo montante o A. adiantou, porventura pressupondo a boa cobrança do cheque estrangeiro, ou com fundamento numa relação de confiança estabelecida com os RR. enquanto clientes, está-se indiscutivelmente perante uma situação de “descoberto em conta”. VI - Apurou-se ainda que o R. foi informado que aquele cheque não teve boa cobrança, e que o mesmo foi contactado directamente pelos responsáveis pelo balcão do Banco para regularizar a conta, o que não foi feito, tendo aquele saldo negativo sido transferido para a área de contencioso, vindo posteriormente o A. a recorrer à presente acção judicial para haver dos RR. a importância que adiantou e à qual tem direito. VII - Resultando da matéria de facto provada que ambos os RR. movimentaram a crédito e débito a conta conjunta e que o valor a descoberto foi utilizado em proveito de ambos, respondem solidariamente pelo pagamento dos adiantamentos efectuados pelo autor.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Banco AA, S.A. (doravante, BCP) intentou, na Comarca das Caldas da Rainha, contra BB e mulher CC acção declarativa de condenação com processo ordinário, pedindo a condenação dos RR. no pagamento de 5.622.150$00, acrescida de juros, vencidos, no montante de 379.215$00, e vincendos, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
Alega, para tanto e em síntese:
Os Réus abriram, no balcão daquela de Caldas da Rainha, em 26/3/99, uma conta à ordem, depositando na mesma, nessa data, a quantia de 30.000$00, tendo o Réu marido depositado, no dia 29/3/99, um cheque no valor de 30.000 dólares americanos, tendo a esse depósito sido atribuída a data- -valor de 6.4.99, tendo o Réu sido informado que só poderia movimentar o contravalor em escudos daquela importância quarenta e cinco dias após o depósito e confirmação de boa cobrança; não obstante, os Réus movimentaram aquela conta, a partir do dia 29.3.99, tendo nela depositado, entre essa data e 1.6.99, a quantia total de 338.000$00, apresentando a conta em causa, em 1.6.99, um saldo negativo de 5.242.935$00, resultante do pagamento de pagamentos efectuados pelo Réu de três cheques, no valor global de 5.000.000$00, bem como do estorno do cheque estrangeiro, realizado em 30.4.99, por não ter provisão.
Citados regularmente os RR. contestaram, sustentando que o Réu marido só movimentou a conta que abriu na Autora, com recurso ao montante do cheque depositado em 29 de Março de 1999, depois de ter sido informado, por funcionários da agência de Caldas da Rainha, que o cheque tinha boa cobrança, tendo o prazo de 45 dias lhe sido mencionado como sendo o prazo máximo, podendo ser encurtado, caso houvesse confirmação da boa cobrança do cheque, pelo não lhes pode ser assacada qualquer responsabilidade.
A instância foi julgada válida e regular e organizou-se, seguidamente, a base instrutória.
Procedeu-se ao julgamento com observância do legal formalismo.
A final foi a acção julgada procedente por provada, condenando-se os RR. no pedido.
Inconformados, interpuseram os RR. recurso de apelação, que foi admitido.
A Relação de Lisboa veio a proferir acórdão, no qual julgou improcedente a apelação, mantendo a decisão, com a ressalva de que a taxa de juros de mora é de 7%, para o período considerado entre 1 de Junho de 1999 e a data da entrada em vigor da Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril.
De tal acórdão vieram os RR. interpor recurso de revista, recurso que foi admitido.
Os recorrentes apresentaram as suas alegações, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
1. A Autora, ora agravada, aceitou a abertura de uma conta de depósitos à ordem, no Balcão de Caldas da Rainha, em nome dos R.R., ora agravantes, com o n.º 000000000000, no dia 26.3.99;
2. Com a abertura de conta, é celebrado entre as partes um contrato de depósito bancário em que o dever nuclear do Banco é o de pagar até ao limite do depósito;
3. O depósito bancário é visto como um depósito irregular ou como um contrato inominado ao qual são aplicáveis normas do mútuo;
4. Independentemente das obrigações conexas deste contrato para ambos os contraentes (depositante e Banco), o que essencialmente o caracteriza é a transferência do dinheiro para a propriedade do Banco que o pode utilizar, porque é seu dono, respondendo também pelo risco da perda (artigos 1206.º, 1144.º e 796.º do Código Civil), e concomitantemente o direito do depositante em levantar montantes ou ordenar pagamentos até ao limite daquilo que depositou;
5. Este contrato confere ao Banco o direito de se recusar a pagar quando está esgotado o limite monetário dos depósitos;
6. O ora agravante foi avisado, pelo Banco que só poderia movimentar o contravalor em escudos da quantia depositada, 45 dias após o depósito e confirmação de boa cobrança;
7. Não obstante este aviso, o Réu passou o 1.º cheque, no dia 19.4.99, ou seja, 21 dias após a data do depósito, tendo o Banco procedido ao seu pagamento;
8. Ao ter conhecimento deste pagamento e sabendo que a sua conta só teria fundos se o cheque estrangeiro tivesse boa cobrança, o ora agravante convenceu-se da confirmação da boa cobrança;
9. A informação prestada pelo Banco criou no recorrente confiança, fazendo-o acreditar que já poderia dispor da quantia depositada;
10. Neste pressuposto é passado o segundo cheque, em 21.4.99 e o terceiro em 26.4.99, ambos pagos pelo Banco;
11. Concluindo-se assim, pela existência de fundos na conta dos recorrentes;
12. O agravante só movimentou a conta quando obteve a informação da boa cobrança, razão pela qual o 1.º cheque foi passado 21 dias após o depósito e não antes, pelo que, com o devido respeito, não poderá o mesmo ser responsabilizado;
13. A Douta Decisão ora posta em crise parte do pressuposto, a fls. 15, 2.º parágrafo, que o original do cheque foi devolvido ao ora agravante, tal não corresponde à realidade;
14. Constitui uma das obrigações do Banco, devolver ao cliente o original do cheque que não obteve boa cobrança;
15. Existindo um contrato de depósito bancário celebrado entre as partes, surge um outro contrato quando o Banco aceita receber cheques com o objectivo de obter a sua efectiva cobrança, e adianta o respectivo montante pressupondo a boa cobrança do cheque;
16. Não se verificando essa cobrança, resultam para as partes duas obrigações: o Banco tem que comunicar aos depositantes esse facto e devolver-lhes o título em causa, de modo a permitir-lhes a tomada de providências para obtenção do efectivo pagamento do mesmo, não basta a comunicação do Banco aos depositantes sobre a não cobrança do cheque e, eventualmente, de ele estar à sua disposição na respectiva agência, na posse do cheque é que os depositantes têm de pagar ou devolver ao Banco o dinheiro que dele haviam recebido;
17. No caso dos autos, os agravantes nunca receberam o cheque estrangeiro, nunca o mesmo lhes foi remetido pelo Banco, aliás não se vislumbra, com o devido respeito, em que prova se baseou o Venerando Tribunal da Relação, quando refere, na Douta Decisão, que o cheque foi remetido ao cliente;
18. O A. não logrou provar o envio do cheque, este nunca chegou às mãos dos recorrentes, que assim se viram impedidos de fazer valer os seus direitos, nos termos do art.º 40.º da L.U.CH;
19. Apenas ficou provado que o Banco, ponto 20.º, da matéria de facto considerada provada, “O Réu foi informado que o cheque de 30.000 dólares não teve boa cobrança” (itálico nosso);
20. A simples comunicação, por si só, não é suficiente, devendo o Banco devolver o título, e só perante este, têm os depositantes a obrigação de pagar;
21. Não tendo o Banco cumprido totalmente a sua obrigação, os depositantes também não estão obrigados ao pagamento;
22. Pelas razões atrás aduzidas, entendem os recorrentes, com o devido respeito que deverá a Douta Decisão ser revogada;
23. No entanto, por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que ainda que assim não se entenda, nunca poderá a agravante mulher ser condenada solidariamente;
24. A conta de depósitos à ordem aberta pelos recorrentes é uma conta solidária, qualquer dos titulares poderá movimentá-la, até ao limite dos seus fundos;
25. O contrato celebrado, aquando da abertura de conta, assim o permite, quando a conta é movimentada para além do montante que dispõe, surge um novo contrato;
26 O primeiro contrato esgota-se no depósito bancário, os depositantes são credores até ao limite dos seus depósitos, este montante o Banco é obrigado a pagar;
27.Se a conta fica a descoberto, torna-se o Banco credor dos depositantes e surge um novo contrato;
28. Para que haja contrato é essencial que haja mútuo consenso, que poderá ser apenas tácito, entre o Banco e quem lhe deu a ordem para pagar;
29. No caso dos autos havia uma conta solidária a descoberto e o acordo consensual para o novo negócio só se estabelece entre o Banco e quem lhe dá a ordem, não vinculativa, ou seja, o Réu, tal como ficou provado, no ponto 6.º, da matéria de facto considerada provada;
30. Pelo que, com o devido respeito, discordam os recorrentes da Douta Decisão, que considerou a responsabilidade solidária de ambos os R.R., pelo descoberto em conta, na medida em que não se fez qualquer prova de que a Ré, mulher, tenha acordado negocialmente no segundo contrato através do qual o Banco financiou o recorrente, não tendo assim qualquer responsabilidade.
Pedem que se conceda provimento ao recurso, alterando o decidido.
O A. não apresentou contralegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
II.A. De Facto
Da discussão da causa nas instâncias resultaram provados os seguintes factos:
1. Em 26.03.99, sexta-feira, os Réus abriram uma conta de depósitos à ordem no Balcão das Caldas da Rainha, a qual tomou o n.º 000000000000.
2. Para tanto, depositaram, naquela data, Esc. 30.000$00;
3. No dia 29.3.99, segunda-feira, o 1.º Réu depositou naquela conta um cheque de um banco estrangeiro no montante de 30.000 dólares dos Estados Unidos da América do Norte;
4. Tratava-se de um cheque de um tal Península Bank (Miami, Florida) encabeçado por “OAKHAVENS INVESTMENT CORPORATION” (também de Miami, Florida), no montante dos ditos 30.000 USD e datado de 28.03.99, domingo;
5. Ao depósito foi atribuída a data-valor de 06.04.99;
6. Foram feitos pelo Réu os seguintes pagamentos: pelo cheque n.º 4502125479, de Esc. 500.000$00, datado de 19.04.99, a favor de .....; pelo cheque n.º 0000000, de Esc. 2.000.000$00, datado de 21.04.99, a favor da Ré; pelo cheque n.º 00000000, de Esc. 2.500.000$00, datado de 26.04.99, a favor da Ré;
7. Foi feito o estorno do cheque estrangeiro, realizado em 30.04.99 (com data-valor de 29.04.99), por não ter provisão;
8. Os responsáveis pelo balcão nas Caldas da Rainha entraram em contacto directo com o Réu marido para obter dos Réus a regularização da conta;
9. Os Réus não provisionaram a conta com a importância considerada em dívida pelo Autor;
10. O Autor devolveu, em 8 de Maio de 1999, o cheque n.º 000000000, de 15.000$00, conforme carta de fls. 33 e 34, que se dá aqui por reproduzida para todos os efeitos legais;
11. A esta carta respondeu o R. marido, também por carta, datada de 08.06.99, que se dá aqui por reproduzida para todos os efeitos legais;
12. O primeiro Réu foi avisado de que só poderia movimentar o contravalor em escudos daquela quantia, 45 dias após o depósito e confirmação de boa cobrança;
13. Os Réus movimentaram a conta, a crédito e a débito, a partir de 29.03.99;
14. Para além do cheque referido em 3), os Réus depositaram na conta, pelo menos, 30.000$00, em 29.03.99, e 100.000$00, em 12.4.99;
15. Em 01.06.99 a conta apresentava um saldo negativo de Esc.: 5.242.935$00,
16. o qual foi transferido para o contencioso;
17. Os Réus utilizaram em seu proveito dinheiro do Autor, que não correspondia a dinheiro deles, disponível na conta em causa;
18. Fizeram-no antes que tivessem verificado a boa cobrança do cheque estrangeiro;
19. Não reembolsaram o Autor dos fundos que utilizaram por saque sobre a conta;
20. O Réu foi informado que o cheque de 30.000 dólares não teve boa cobrança.
II.B. De Direito
II.B.1. Como se sabe, o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.º 684.º. n.º 3, e 690.º, n.os 1 e 3, do CPC), importando ainda decidir as questões nela colocadas e bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.º 660.º, n.º 2, também do CPC.
Assim, a únicas questões a analisar são:
a) responsabilidade do réu marido pela devolução do montante levantado a descoberto;
b) responsabilidade da ré mulher.
II.B.2. Seguiremos, de perto, a argumentação do acórdão da Relação, relativamente ao qual apenas aditámos algumas precisões e desenvolvimentos.
A primeira questão não deve ser conhecida neste recurso, porquanto se apresenta como uma questão nova.
De facto, no recurso de apelação os recorrentes não questionaram a decisão de direito, salvo nos segmentos relativos à responsabilidade da R. e à taxa dos juros. Impugnaram, isso sim, a decisão de facto em que aquela se fundou.
Os RR. invocaram erro no julgamento da matéria de facto, isto é, consideraram que a fixação da matéria de facto pela 1.ª instância resultou de erro que, a ser corrigido implicaria a improcedência da acção.
Tendo a Relação apreciado esta questão e tendo concluído pela falta de razão dos recorrentes, não considerou sequer necessário apreciar a aplicação do direito, salvo no que concerne à condenação da ré e à taxa de juros, por expressamente suscitadas.
Os recorrentes vêm agora esgrimir contra um dos fundamentos de convicção do Tribunal da Relação, sendo certo que, por todos os motivos, tal apreciação escapa à competência deste Tribunal.
Em primeiro lugar, por não se tratar de uma questão mas de um mero argumento.
Em segundo lugar por se referir à matéria de facto e aos poderes de cognição, nesse âmbito, da Relação.
Em último lugar, por, na transcrição efectuada, a primeira parte se referir à devolução do cheque pela câmara de compensação, facto que o próprio documento atesta e a segunda parte é uma afirmação de uma regra de procedimento geral, regra essa que tenha ou não sido observada no caso concreto, não constitui factualidade que tenha sido considerada relevante e dada como provada.
II.B.3. A abertura de uma conta é, normalmente, a génese da relação bancária complexa entre o banqueiro e o seu cliente, traçando o “cenário” factual e legal do seu relacionamento, o qual se deve pautar por deveres de conduta, derivados da boa fé, dos usos bancários ou dos acordos particulares que celebrarem, à luz do princípio da liberdade contratual.
E, como resulta do que se disse supra, da simples abertura da conta, nascem desde logo direitos e deveres recíprocos, assumindo o banco, designadamente, a obrigação de receber cheques do cliente, mesmo que emitidos por outros bancos, para “depositar” na conta entretanto aberta, se nada for convencionado em sentido contrário.
Na gíria bancária, fala-se mesmo em “depósito de cheques” de que os clientes são portadores, sacados por outras pessoas e sobre outros bancos ou sobre o próprio banco onde foi aberta a conta, embora, como diremos, nestes casos não se trate propriamente de depósitos bancários.
O contrato de depósito bancário é geralmente definido como aquele “pelo qual uma pessoa entrega uma determinada quantidade de dinheiro a um banco (sublinhado nosso), que adquire a respectiva propriedade e se obriga a restitui-lo no fim do prazo convencionado ou a pedido do depositante, mediante solicitação do depositante, nas condições previamente acordadas (Alberto Luís, Direito Bancário, ed. 1985, p. 165; João Melo Franco e Herlander Antunes Martins, Dicionário de Conceitos e Princípios Jurídicos, Coimbra, 1995, p. 309).
Desta noção poderemos desde logo concluir que o contrato de depósito bancário é um contrato real, “quoad constitutionem”, porque a sua constituição exige a entrega de dinheiro, ou seja, a transferência da propriedade do dinheiro do depositante para o banco.
Em resumo, o contrato de depósito bancário é um contrato real, cuja perfeição só se alcança através da prática material da entrega de dinheiro (artigos 1185.º, 1205.º e 1206.º do Código Civil).
O contrato de depósito bancário é um negócio jurídico bilateral, com a natureza de depósito irregular, quando tenha por objecto o depósito de fundos, com interesses quer do cliente quer do banco (PAULA PONCES CAMANHO, Do contrato de depósito bancário, p. 146/210).
Dele resulta, grosso modo, a obrigação para o depositário de guardar a quantia depositada e de a restituir (outro tanto em género e qualidade) quando for pedida. (PAULA PONCES CAMANHO, op. cit., p 176).
A realização do depósito bancário (designadamente nos depósitos à ordem) dá origem à abertura de uma conta, na qual se vão registando as entregas feitas pelo cliente, ao abrigo do contrato de depósito, bem como todos os levantamentos, representando essa conta a expressão contabilística do depósito.
O banco que recebe os valores fica obrigado à restituição do saldo existente, (quando solicitado e de acordo com as cláusulas contratuais acordadas) e obrigado à guarda e manutenção da integralidade dos fundos. Apesar de poder haver, e normalmente há, várias entregas de valores, estas não dão lugar a novos contratos de depósito; essas operações (entregas e levantamentos) integram-se num só contrato, gerando créditos de que o “banco e o cliente (…) reciprocamente são titulares, de modo que, se o saldo é credor, o banco apenas deve tal saldo e não cada uma das parcelas, em numerário ou não, que foram sucessivamente creditadas ao cliente; se o saldo é devedor, é o cliente que o deve” (ac. do STJ de 24 de Janeiro de 1991, BMJ n.º 403, p. 447).
“O “descoberto em conta” é uma operação bancária através da qual o Banco consente que um seu cliente saque para além do saldo existente na conta de que é titular, até um certo limite e por um determinado prazo, o que não depende de acordo prévio entre o Banco e o cliente” (cf. acórdão da Relação do Porto, de 14.10.2002, www.dgsi.pt; no mesmo sentido: acórdãos da Relação do Porto, de 17.5.99 e de 4.2.99; acórdãos da Relação de Lisboa, de 19.12.91, de 7.10.96 e de 23.5.96 e acórdão do STJ de 16.3.2000, www.dgsi.pt).
“Trata-se de uma situação acidental, independente de qualquer contrato escrito ou formalizado, e o Banco pode exigir do cliente o reembolso do saldo em toda e qualquer ocasião, a menos que se tenha acordado, em documento escrito, um prazo determinado para esse efeito” (ut acórdão da Relação do Porto, de 19.03.98, www.dgsi.pt, citado).
Com efeito, “a maior parte dos “descobertos em conta” não configura uma operação formalmente negociada; o cliente ordena a disponibilização de quantias superiores ao saldo (ordenando que entregue a si ou a quem ele indicar), não tendo o direito de o fazer por falta de depósito; o Banco, sem a tal ser obrigado, satisfaz as ordens do cliente, porque confia na sua solvabilidade. (...) apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto: as relações entre o Banco e o cliente resultam de um comportamento típico de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, antes numa proposta tácita de ordem de levantamento por parte do cliente, de sorte que essa operação ficará sujeita ao regime do contrato de mútuo, dado a sua natureza ser semelhante à do contrato de depósito bancário, a que se aplica, conforme doutrina concreta, as disposições relativas ao contrato de mútuo” (acórdão do STJ, supra citado).
Ou seja, o “descoberto em conta” deve qualificar-se como empréstimo concedido pelo Banco ao titular da conta; esse adiantamento efectuado pelo Banco traduz “um mútuo oneroso, pois o escopo das instituições bancárias é a prossecução do lucro” (cf. acórdão da Relação do Porto, de 8.10.2002, www.dgsi.pt).
No caso dos autos, está-se indiscutivelmente perante uma situação de “descoberto em conta”. Com efeito, os Réus, apesar de avisados que não podiam efectuar o movimento do contravalor em escudos correspondente ao cheque de 30.000 dólares, antes de decorridos quarenta e cinco dias sobre a data do depósito desse cheque e antes da confirmação da boa cobrança do mesmo, efectuaram, antes desse prazo e dessa confirmação, movimentos na conta de que eram titulares, tendo apresentado a pagamento três cheques, totalizando a importância de 5.000.000$00, que o Autor adiantou, porventura pressupondo a boa cobrança do cheque estrangeiro, ou com fundamento numa relação de confiança estabelecida com os Réus, enquanto clientes.
Em virtude do cheque de 30.000 dólares não ter chegado a obter boa cobrança, por falta de provisão, a conta de que os Réus eram titulares apresentava, em 1.6.99, um saldo negativo no valor de 5.242.935$00.
Apurou-se ainda que o Réu foi informado que aquele cheque não teve boa cobrança, e que o mesmo foi contactado directamente pelos responsáveis pelo balcão de Caldas da Rainha do Autor para regularizar a conta, o que não foi feito, tendo aquele saldo negativo sido transferido para a área de contencioso, vindo posteriormente o Autor a recorrer à presente acção judicial para haver dos Réus a importância que adiantou.
De facto, como se afirma na decisão da 1.ª instância, com apoio em jurisprudência que aí se cita,“o banco tem direito a haver do titular da conta as importâncias adiantadas e, não havendo prazo para o reembolso, pode exigi-lo a todo o tempo. Isto porque “a obrigação de pagamento da quantia correspondente ao saldo devedor da conta bancária (...) tem a sua fonte no contrato de mútuo comercial que se formou pelo encontro de vontades (...)“ (apud acórdão da Relação do Porto de 8.10.2002, citado).
Só assim não seria se o Autor, de forma inequívoca, assumisse como seu o risco da boa cobrança do cheque estrangeiro, o que não é o caso.
Sendo certo que “na conta colectiva a responsabilidade solidária dos co--titulares só vai até à completa absorção do saldo, cabendo a responsabilidade pela movimentação a título de descoberto em conta, a cargo exclusivo do titular que procedeu a esta movimentação” (acórdão da Relação de Lisboa de 7.10.96, www.dgsi.pt).
Ora, resulta da matéria de facto provada que ambos os RR. movimentaram a credito e débito a conta conjunta e que o valor a descoberto foi utilizado em proveito de ambos.
Daí que, nenhuma dúvida merece a afirmação de que ambos acordaram no novo negócio com o banco, relativo ao pagamento a descoberto das ordens emitidas sobre a conta.
E, em consequência, que devam responder, solidariamente, pelo pagamento dos adiantamentos efectuados pelo autor.
III. Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso de revista interposto.