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COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VÍCIOS DA SENTENÇA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO
REENVIO DO PROCESSO
ABUSO SEXUAL DE PESSOA INCAPAZ DE RESISTÊNCIA
DEBILIDADE MENTAL
INIMPUTABILIDADE
Sumário
I - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a insuficiência, para a decisão de direito, da matéria de facto provada, constituirá – desde que resulte do texto da decisão recorrida – vício que, se inviabilizar a decisão do recurso, há-de determinar o reenvio do processo para novo julgamento (arts. 410.º, n.º 2, e426.º, n.º 1, do CPP). II - Ocorrerá esse vício se o tribunal colectivo, estando em causa um crime de «abuso sexual de pessoa incapaz de resistência» (art. 165.º, n.º 1, do CP), der como assente, simplesmente, que a «ofendida» padece de «deficiência mental», não esclarecendo se tal «deficiência» é «grave» ou «ligeira». III - Com efeito, «uma análise (…) dos motivos psíquicos que possam conduzir à incapacidade de opor resistência» aproximam esta «do conceito que, segundo o art. 20.º, n.º 1, constitui o substrato bio-psicológico da inimputabilidade» (Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 478). IV - O que fará com que «os aludidos motivos [de incapacidade de opor resistência] se reconduzam», em regra, a «uma psicose ou, eventualmente, a uma oligofrenia (…) grave». * * Sumário elaborado pelo Relator.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Arguido/recorrente: AA (1)
1. OS FACTOS
No dia 16 de Fevereiro de 2006, cerca das 17:15, o arguido abordou BB (-11Out81), a cerca de 300 metros da paragem do autocarro, no Largo do .., Cabreiros, Braga, quando esta, vinda do colégio, regressava a casa da avó, sita na mesma freguesia, no lugar das .... BB sofre de deficiência mental, razão pela qual frequenta o ensino especial, tendo o arguido conhecimento desse facto, porquanto há já muitos anos a família de BB é cliente da sua mercearia, sita no Lugar do ...., em Cabreiros, Braga. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido, que se fazia transportar no veículo com a matrícula DL, Ford Escort 1.3, de que é proprietário, abeirou-se de BB e ofereceu-lhe boleia até à casa da avó, como já tinha feito noutras ocasiões. BB, reconhecendo o arguido, aceitou e entrou no seu veículo, sentando-se no banco da frente, ao lado dele. O arguido reiniciou a marcha do veículo e, percorridos alguns metros, sem a ter consultado, desviou-se do percurso para a casa da avó desta, virou para um caminho de terra batida e imobilizou o veículo a cerca de 300 metros, numlocal ermo, sito no lugar de ..., em Cabreiros, Braga. Ali, o arguido despiu a BB, tirando-lhe o casaco, as calças e as cuecas, ao mesmo tempo que lhe passava as mãos pelo corpo, principalmente nos seios e na [vulva], abriu o fecho das suas calças e colocou o pénis de fora. Apesar de BB manifestar o seu desagrado, dizendo-lhe para se afastar e terminar, o arguido prosseguiu a sua conduta, colocando por várias vezes a sua mão na zona dos seios, púbis e [vulva] da ofendida, contra a vontade desta. Decorridos alguns minutos, o arguido ajudou-a a vestir-se e advertiu-a, em tom sério, para não relatar o sucedido a ninguém, senão batia-lhe, causando-lhe desta forma medo e inquietação. Depois, o arguido reiniciou a marcha do seu veículo e retomou o caminho para casa da avó de BB, deixando-a a cerca de trinta metros da entrada. O arguido, sabendo que BB sofre de anomalia psíquica e que por essa razão não avaliaria correctamente a sua verdadeira intenção, convenceu-a a entrar no seu veículo, com o pretexto de que iria levá-la a casa da avó, pretendendo dessa forma deslocá-la para um local ermo a fim de satisfazer os seus impulsos sexuais. Estando consciente de que BB não avaliaria em toda a extensão o sentido e o significado dos actos sexuais referidos, em virtude da anomalia de que padece e, também por esse motivo, não lhe resistiria, o arguido aproveitou-se dessas circunstâncias para satisfazer os seus desejos sexuais. Ao actuar da forma descrita, quis o arguido satisfazer a sua lascívia e obter satisfação sexual, atingindo os sentimentos de decência e decoro de BB. Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Não tem antecedentes criminais. Confessou as suas apuradas condutas. Na data dos factos consumia bebidas alcoólicas em excesso, tendo-se submetido a tratamento de desintoxicação alcoólica. Concluiu o 4.º ano de escolaridade. Dedica-se à exploração de um minimercado. Vive com a esposa.
2. A condenação
Com base nestes factos, a Vara Mista de Braga, em 16Nov06, condenou AA (-18Jan50), como autor de um crime de rapto (artigo 160.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 alínea a), com referência ao artigo 158.º n.º 2 alínea e) do Código Penal), na pena de três anos e seis meses de prisão; pelocometimento de um crime de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (artigo 165.º n.º 1 do Código Penal), na pena um ano e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de quatro anos de prisão:
Ao arguido vem imputada a prática de um crime de rapto do tipo previsto e punível pelo artigo 160.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 alínea a) do Código Penal. Este tipo de ilícito concretiza-se na privação da liberdade com uma finalidade específica, qual seja o cometimento de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da vítima. O que caracteriza o crime de rapto e o distingue do crime de sequestro, sendo comum a ambos a privação da liberdade, é que aquele ilícito pressupõe e exige a transferência da vítima de um lugar para outro diferente. E, por outro lado, os meios empregues pelo agente também estão individualizados no tipo como sendo a violência, a ameaça ou a astúcia. Ao nível do elemento subjectivo exige-se o dolo quer relativamente à acção quer ao resultado de privação da liberdade da pessoa transferida, de forma coactiva ou astuciosa, de um lugar para o outro (Comentário Conimbricense, vol. I, p. 428). No caso concreto, o arguido praticou factos integradores deste tipo de crime ao levar a ofendida para um local ermo, desviando o trajecto que conduzia à casa da avó daquela e a onde se disponibilizara a levar a BB, tudo fazendo com a finalidade de praticar com ela actos sexuais, contra a sua vontade. Para concretizar os seus intentos, o arguido serviu-se da confiança que nele depositava a ofendida por ser conhecido da família e já a ter transportado em outras ocasiões sem que nada de semelhante tivesse acontecido, logrando convencer a BB de que o seu propósito era somente de a conduzir para a residência da avó. Além disso, estava o arguido ciente de que a ofendida era portadora de deficiência mental e, por esse motivo, mais fragilizada se apresentava para colocar obstáculos à prossecução dos seus intentos. Agiu por essa forma astuciosamente, privando-a da liberdade de movimentos e conduzindo-a para local onde só ele pretendeu ir, com a finalidade de praticar actos sexuais com a ofendida, contra a vontade desta. Conclui-se, pois, que o arguido cometeu um crime de rapto, que é qualificado pela circunstância de a privação da liberdade ter sido praticada contra pessoa particularmente indefesa em razão de deficiência mental (cf. artigo 160.º n.º 1 alínea b) e n.º 2, alínea a), com referência ao artigo 158.º n.º 2 alínea e) ambos do Código Penal). Após a ter raptado, o arguido praticou actos de natureza sexual com a ofendida, contra a vontade desta, prevalecendo-se da incapacidade da mesma para lhe opor resistência, em virtude da anomalia psíquica de que padece. Com efeito, o arguido apalpou o corpo da ofendida na zona dos seios, púbis e vagina, contra a vontade dela e aproveitando-se da incapacidade da ofendida reagir eficazmente contra tal conduta. A factualidade descrita integra a prática de crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, porquanto a ofendida estava fragilizada, em razão da anomalia psíquica, para lhe opor obstáculos à prossecução da sua conduta, do que o arguido se aproveitou, considerando-se actos sexuais de relevo aqueles que foram por ele praticados na pessoa da ofendida (cf. artigo 165.º n.º 1 do Código Penal). Na verdade, constitui acto sexual de relevoessencialmente aquele que assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e que contende com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica. A exigência legal de que o acto seja de relevo impõe, por um lado, o afastamento de actos considerados insignificantes e, por outro lado, elege os actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e atinjam, de uma maneira objectivamente significativa, a reserva pessoal, no domínio da sexualidade (Comentário Conimbricense, Tomo I, p. 448-449; Código Penal, II, pág. 368-369, Simas Santos e Leal-Henriques). No caso concreto, os actos praticados pelo arguido integram inequivocamente o conceito de actos sexuais de relevo, por ser inquestionável que se situam na esfera da sexualidade e que assumem ofensa grave da liberdade sexual da visada. O arguido estava acusado do crime de abuso sexual na forma qualificada, no qual se concretizam os actos sexuais de relevo que são considerados os mais graves que a vítima é obrigada a praticar ou a suportar, nomeadamente a cópula, o coito anal e o coito oral (cf. n.º 2 do artigo 165.º do Código Penal). Porém, não resultou provado que o arguido tenha mantido relações de cópula com a ofendida, como se descrevia na acusação, o que afasta a verificação da qualificativa, concluindo-se que cometeu um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, do tipo previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 165.º do Código Penal. A alteração para ilícito de menor gravidade, estando os factos já incluídos nos descritos na acusação e resultando da própria alegação da defesa, não impõe a comunicação ao arguido da alteração, nos termos do artigo 358.º n.º 1 e 2 do CPP, nada obstando ao conhecimento do crime. Em face do exposto, conclui-se que o arguido cometeu, em concurso efectivo, um crime de rapto qualificado e um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, atento que são autónomos os bens jurídicos tutelados em cada um dos ilícitos e tendo presente que o crime de rapto não exige a consumação do crime-fim, ou seja, não exige a realização da intenção do raptor, basta-se com a finalidade (vd. Comentário Conimbricense, Tomo I, p. 430). Aos crimes cometidos pelo arguido são aplicáveis as seguintes molduras penais: ao crime de rapto corresponde a pena de três a quinze anos de prisão; ao crime de abuso sexual de pessoa incapaz é aplicável a pena de seis meses a oito anos de prisão. Na fixação da medida concreta da pena importa ter presentes os vectores constantes do artigo 71.º do Código Penal, sem deixar de ponderar que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa (cf. artigo 40.º n.º 2 do Código Penal). Assim, importa considerar a ilicitude dos factos, em grau elevado, atentas as circunstâncias concretas do modo de execução, considerando que o arguido atingiu, com a sua actuação, a autodeterminação sexual de pessoa com debilidade mental e que nele depositava confiança, levando-a a crer que a conduziria à casa da avó sem outros incidentes e privando-a da liberdade como meio para a realização da sua intenção de praticar actos sexuais, contra a vontade dela. De ponderar são também a natureza e intensidade dos actos que o arguido praticou, bem como a modalidade de dolo directo com que actuou. Revelam-se prementes as exigências de prevenção especial, face à desconformidade da personalidade do arguido com valores essenciais da liberdade e autodeterminação sexual, não podendo olvidar-se também as exigências de prevenção geral acentuadas pela gravidade objectiva dos factos e a sua repercussão no sentimento comunitário. Importa valorar ainda as condições de vida do arguido, a sua idade e o seu comportamento anterior, bem como a sua confissão. Tudo ponderado, fixam-se, por adequadas, as seguintes penas: a pena de três anos e seis meses de prisão, pelo cometimento de um crime de rapto qualificado; a pena de um ano e seis meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência. Avaliando os factos na sua globalidade, tendo em conta a sua natureza e a sequência temporal, valorando os bens jurídicos eminentemente pessoais que foram violados e a personalidade do arguido, nos termos do artigo 77.º n.º 1 do Código Penal, fixa-se a pena única de quatro anos de prisão.
3. O RECURSO
3.1. Inconformado, o arguido, em 30Nov06 (2), recorreu ao Supremo, pedindo a redução e a suspensão da pena:
O arguido é primário, tendo colaborado com a justiça, na medida em que confessou os factos de que vinha acusado; ficando provado que na data dos factos estava embriagado. Tendo dependência de bebidas alcoólicas, submeteu-se a um tratamento de desintoxicação alcoólica e está inserido social e profissionalmente. O tribunal a quo não teve em linha de conta os critérios estabelecidos no artigo 71 ° do Código do Código Penal, designadamente o facto de o arguido se ter mostrado arrependido da sua conduta, ter confessado os factos de que vinha acusado, colaborando com a justiça. O tribunal devia ter valorado todas as condições supra descritas, designadamente o facto de estar alcoolizado, não só como elementos atenuantes, em termos de medida concreta da pena, mas também em sede de ilicitude e culpa, face aos efeitos danosos provocados na capacidade de o arguido agir em conformidade com o direito. Ou seja, não atendeu as todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depuseram a favor do agente, em consequência, não observou o preceituado no art. 71.º n.º 2 do Código Penal, devendo a pena situar-se no limite mínimo da respectiva moldura penal. O crime de rapto p. p. artigos 160.1.b e 2.a do Código Penal é punido com uma pena de 3 a 15 anos de prisão. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (art. 72.º, n.º 1, do CP). Fazendo baixar o mínimo da pena para limite inferior ao previsto em abstracto, só se justifica naqueles casos, absolutamente excepcionais, que o legislador não terá configurado na sua previsão e que merecem um tratamento à parte, como válvula de segurança do sistema. O recorrente sempre teve um bom relacionamento com a família da vitima, auxiliando-os sempre que podia, dadas as dificuldades económicas que estes tinham. Tentando refazer a sua vida, o arguido submeteu-se a um tratamento de desintoxicação alcoólica, estando bem inserido social e profissionalmente, o arguido é dono de uma mercearia, onde trabalha por conta própria, auxiliando o seu filho e a sua nora nas despesas com a alimentação, dado que os mesmos residem no primeiro andar da sua casa. Depois dos factos, nunca mais teve qualquer contacto com a vítima nem com a sua família. Este acto por parte do recorrente só pode ser justificado pelo seu estado de saúde na data dos factos devido à sua dependência alcoólica, não passando desta forma de um acto isolado. Desta forma, esta pena deveria ser especialmente atenuada para dois anos de prisão, cumprindo-se desta forma as finalidades de prevenção geral e especial das penas. Nestes termos, nunca deverá ser aplicada ao arguido uma pena superior a dois anos e seis meses de prisão, pela prática dos crimes de que vinha acusado. O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos, dispõe-se no nº1 do art. 50° C. Penal, se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A suspensão da pena é uma medida com um cariz pedagógico e reeducativo, proporcionar ao arguido condições ao prosseguimento de uma vida à margem da criminalidade. Ora, está o arguido perfeitamente inserido socialmente, consoante resulta do relatório do IRS. Sempre trabalhou para garantir a subsistência da sua família. Com o tratamento a que se submeteu, está em condições de seguir uma nova vida. Com uma pena de prisão efectiva, o arguido não vai conseguir prosseguir os seus objectivos, tendo que encerrar o estabelecimento comercial de que é proprietário e onde trabalha, pondo em risco a subsistência da sua família e acabando por ter contacto com o mundo da criminalidade em vez de se afastar deste. As finalidades da punição estão perfeitamente asseguradas com a ameaça de prisão.
3.2. Em resposta, o MP, em 04Jan07, pronunciou-se pelo improvimento do recurso:
O recorrente sustenta que deveria ser condenado na pena mínima de seis meses, para o crime de abuso sexual de pessoa incapaz, atendendo à confissão dos factos e manifestação de arrependimento, ao alcoolismo, à avançada idade do arguido e à ausência de antecedentes criminais. Discorda-se do recorrente e considera-se que se encontra correctamente determinada a medida da pena, atendendo aos critérios do art. 71 ° do Código Penal. As circunstâncias que favorecem o arguido foram devidamente ponderadas, fixando-se a pena próximo do limite mínimo. No entanto, são muito elevadas as necessidades de prevenção geral, atendendo à acentuada gravidade objectiva dos factos e à sua repercussão social na comunidade, não devendo aplicar-se pena inferior a um ano e seis meses de prisão. O recorrente considera que deve especialmente atenuada a pena aplicada pela prática do crime de rapto do art. 160°, nº 1 do Código Penal, nos termos previstos no art. 72°, nº 1 e 73° do Cód. Penal, fixando em dois anos de prisão. "Nos termos do artigo 72°, n.° 1 do Código Penal, o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”. A acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída em relação aos casos para os quais está prevista a fórmula de punição, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo. A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas, se puder, deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena, vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas. A aplicação da atenuação especial da pena obedece a dois pressupostos essenciais: - diminuição acentuada da ilicitude e da culpa e, em geral, das exigências de prevenção; - a diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante quando uma imagem global cio facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuta que possa razoavelmente supor-se que o legislador não terá configurado na sua previsão. No caso concreto, não existem circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Apenas se verificam circunstâncias atenuantes normais, tais como a ausência de antecedentes criminais, a confissão dos factos e a manifestação de arrependimento, a circunstância de o arguido consumir bebidas alcoólicas em excesso, tendo-se submetido a tratamento de desintoxicação e a sua situação social, familiar e económica. Todas estas circunstâncias foram devidamente ponderadas na determinação da medida da pena, mas não diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. A imagem global do facto está longe de o apresentar de gravidade diminuta. Pelo contrário, toda a actuação do arguido demonstra uma acentuada ilicitude, tendo o arguido convencido a ofendida a entrar no veículo automóvel, com o pretexto de que a iria transportar a casa da avó, pretendendo satisfazer os seus impulsos sexuais e sabendo que a ofendida sofre de anomalia psíquica. Tendo o arguido sido condenado na pena única de quatro anos de prisão, não pode determinar-se a suspensão da execução da pena. No entanto, mesmo que viesse a ser condenado em pena não superior a três anos de prisão, não superior a três anos de prisão, não deveria determinar-se a suspensão da execução da pena, nos termos do art. 50º, nº1 do Cód. Penal. Dispõe o art. 50° nº 1 do Cód. Penal: "O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição". "Trata-se de um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos. "Sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, o juiz tem o dever de suspender a execução da pena: esta é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico. Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição. As condições de vida do recorrente, a confissão e manifestação de arrependimento não são suficientes para se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, atendendo a todas as restantes circunstâncias, nomeadamente à elevada gravidade dos factos que revela um sentimento de acentuada desconformidade do recorrente com valores essenciais, e uma personalidade critica a impor acrescidas exigências de reinserção e recomposição valorativa. As circunstâncias que são salientadas pelo recorrente são insuficientes para se concluir pelo juízo de prognose favorável e para afastar a consideração que resulta da elevada ilicitude dos factos e da intensidade do dolo. Não se verificam os requisitos previstos no art. 50.º nº l do Cód. Penal, não devendo ser decretada a suspensão da execução da pena ainda que sujeita a deveres, regras de conduta ou regime de prova, nos termos das disposições contidas nos art.s 51.º, 52.º e 53.º do Cód. Penal.
4. QUESTÃO PRÉVIA
4.1. Para que, tipicamente, nos pudéssemos confrontar aqui com um crime de rapto (art. 160.1 do CP), seria necessário, desde logo, que o arguido tivesse transferido a «vítima» de um lugar para outro, enganando-a quanto ao objectivo da «boleia» que lhe ofereceu, para contra ela cometer «crime contra a sua liberdade sexual».
4.2. Por outro lado, para que se verificasse a situação prevista na al. e) do n.º 2 do art. 158.º do CP (e, com ela, a qualificação decorrente do art. 160.2.a), impor-se-ia que a vítima, em razão da sua «deficiência mental» e apesar da sua idade (24 anos), fosse e pudesse considerar-se «particularmenteindefesa» (nomeadamente quanto a abordagens de natureza sexual).
4.3. O crime visado pelo arguido seria – porventura (3) – o de «abuso sexual de pessoa incapaz de resistência» (art. 165.1), ou seja, o de aproveitamento da incapacidade da vítima (de lhe «opor resistência», apesar dos seus 24 anos de idade) para contra ela praticar «acto sexual de relevo».
4.4. Os factos provados, porém, são insuficientes para uma fundamentada decisão de direito.
4.5. Desde logo, a matéria de facto assente pelo tribunal colectivo não caracteriza a «deficiência mental» de que diz sofrer a «ofendida». Ignora-se, com efeito, se essa «deficiência» era «grave» ou «ligeira», apesar de «uma análise (...) dos motivos psíquicos que possam conduzir à incapacidade de opor resistência» se aproximar «do conceito que, segundo o art. 20.1, constitui o substrato bio-psicológico da inimputabilidade» (Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 478). O que faz com que «os aludidos motivos se reconduzam», em regra, a «uma psicose ou, eventualmente, a uma oligofrenia (...) grave».
4.6. Ora, no caso, «o diagnóstico mais recente que lhe foi atribuído foi de "deficiência mental de grau moderado"» (cfr. relatório de avaliação psicológica de fls. 105 a 118).
4.7. É certo que, apesar disso, «podem existir anomalias psíquicas que não relevem em definitivo para a inimputabilidade (mas quando muito para a imputabilidade diminuída) mas devam relevar para o efeito da incapacidade de resistência ao acto sexual» (4).
4.8. No caso, é certo que, quando tocada, «BB manifestou o seu desagrado, dizendo [ao arguido] para se afastar e terminar». Porém, esta reacção de «desagrado» (porventura de «oposição») não denota, insofismavelmente (pois que, a esse respeito, é algo ambivalente) (5), a sua (definitiva) «(in)capacidade de opor resistência» (6).
4.9. Também não éinequívocaquantoà sua eventual «incapacidade de opor resistência» a circunstância de ter sido «contra a vontade desta» (e apesar daquela manifestação de desagrado) que o arguido «prosseguiua sua conduta, colocando por várias vezes a mão na zona dos seios, púbis e [vulva] da ofendida».
4.10. Repare-se, aliás, na fórmula dubitativa (7): e meramente subjectiva (8) como o colectivo se referiu à conexão entre a anomalia psíquica da visada e à representação que o arguido terá feito da avaliação dela não só do seu móbil (ao oferecer-se para a levar a casa) como da «extensão, sentido e significado dos actos sexuais» que nela viria a praticar: «O arguido, sabendo que BB sofre de anomalia psíquica e que por essa razão não avaliaria correctamente a sua verdadeira intenção, convenceu-a a entrar no seu veículo (...); «Estando consciente de que BB não avaliaria em toda a extensão o sentido e o significado dos actos sexuais referidos, em virtude da anomalia de que padece e, também por esse motivo, não lhe resistiria, o arguidoaproveitou-se dessas circunstâncias para satisfazer os seus desejos sexuais»
4.11. Em suma, o tribunal colectivo terá deduzido da simples deficiência mental da visada (9) – por isso não se tendo preocupado em caracterizá-la e em conexioná-la com a sua capacidade ou incapacidade «para formar e exprimir a sua vontade nesse sentido» - a sua «incapacidade de opor resistência» à prática de outrem, com ela, de quaisquer «actos sexuais de relevo», nomeadamente aqueles de que, no caso, foi «objecto» (10).
4.12. Curiosamente, essa errada perspectiva do tribunal colectivo terá sido, igualmente, a do próprio arguido, que, «sabendo que BB sofria de anomalia psíquica»,terá daídeduzido, simplesmente, que ela, «por essa razão, não avaliaria correctamente a sua verdadeira intenção» (a de a «deslocar para um local ermo a fim de satisfazer os seus impulsos sexuais»).E que, «estando consciente de que BB, em virtude dessa anomalia, não avaliaria em toda a extensão o sentido e o significado dos actos sexuais [por ele pretendidos] e também por esse motivo, não lhe resistiria, se aproveitou dessas circunstâncias para satisfazer os seus desejos sexuais».
5. CONCLUSÃO
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, resultante do texto da decisão recorrida, constitui vício que, inviabilizando a decisão do recurso, determina o reenvio do processo para novo julgamento (art.s 410.2 e 426.1 do CPP).
6. DECISÃO
Conhecendo da questão prévia da «insuficiência, para a decisão de direito, da matéria de facto provada», o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência, determina o reenvio do processo (11) para novo julgamento (12) das questões de facto que ficaram por apreciar (cfr., supra, 4.5, 4.7, 4.10 e 4.11) e, por arrastamento, das questões de direito emergentes da matéria de facto globalmente fixada.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2007
Carmona da Mota Pereira Madeira Simas Santos -------------------------------------------------------------------------------------------
(1) Detido entre 19 e 20Fev06, data em que foi interrogado, libertado e sujeito a TIR, a apresentações periódicas e a proibição de contactos com a ofendida.
(2) Data em que pagou a respectiva taxa de justiça de interposição (€ 178).
(3) Se bem que os factos provados se limitem a referir que o arguido, «consciente de que a ‘ofendida’não avaliaria em toda a extensão, em virtude da anomalia de que padece, o sentido e o significado dos actos sexuais» (e de que, «também por esse motivo, não lhe resistiria»), se «aproveitou dessas circunstâncias para satisfazer os seus desejos sexuais».
(4) Como, inversamente, «podem existir com frequência anomalias que conduziriam à inimputabilidade, mas não constituem, em concreto e em definitivo, incapacidade para formar e exprimir a vontade da vítima no sentido da resistência ao acto sexual» (ibidem). De outro modo, alcançar-se-ia «o resultado, pessoal e socialmente inadmissível (e político-criminalmente insuportável) de “condenar” a generalidade das pessoas portadoras de uma qualquer anomalia mental à abstinência de actos sexuais com outrem» (ibidem).
(5) Aliás, a examinada, na «história do evento» constante do exame médico-legal de fls. 96/99, «negou qualquer agressão sexual».
(6) Até porque poderia significar – a par, eventualmente, de uma «definitiva incapacidade para formar e exprimir a vontade da vítima no sentido da resistência ao acto sexual» - a sua eventual aquiescência a certos actos de menor relevo (como os que ou alguns dos que foram praticados, ainda que porventura lesivos dos seus «sentimentos de decência e decoro») e, ao mesmo tempo, a sua antecipada oposição a actos de maior relevo (que, aliás, não terão chegado, então, a ser praticados). A este propósito, convirá sublinhar que o exame médico-legal de fls. 96/99 revelou «soluções de continuidade himeniais (...) cicatrizadas» (e, por isso, não recentes) «compatíveis com actividade sexual de tipo coito vaginal».
(7) Revelada no modo verbal condicional («avaliaria»; «resistiria») de que se serviu para exprimir a sua ideia. Cfr., a este propósito, STJ 18Jan07, recurso 4806/06-5 (relator: Cons. Pereira Madeira): «É nulo por violação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal, o acórdão de Relação que confirmou a condenação do arguido na pena única de 25 anos de prisão por autoria de dois crimes consumados e um tentado de homicídio doloso qualificado, se o dolo repousa, afinal, numa hipótese condicional (“No momento da prática dos factos, o arguido estaria, para estes em concreto, capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação”)».
(8) Pois que colocada no «dolo» do arguido, sem uma qualquer «objectivação» na realidade exterior.
(9)Como se «a generalidade das pessoas portadoras de uma qualquer anomalia mental estivessem “condenadas” à abstinência sexual com outrem» (Comentário, I-478).
(10) Como «vítima» (se a eles resistiu ou só por «incapacidade» não se lhes opôs) ou como «parceira» (se, podendo, se não se lhes opôs).
(10) Sem prejuízo das questões de facto já decididas cuja solução não venha a colidir com a que vier a ser dada às que, no anterior julgamento, ficaram por apreciar.
(11) Por outra composição colegial (pois que dispõe de cinco juízes efectivos) da Vara Mista de Braga (art. 426-A, n.º 1 do CPP).