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REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BENS SUB-ROGADOS NO LUGAR DE BENS PRÓPRIOS
Sumário
I- O artigo 1723º, c) do Código Civil, ao determinar que, no regime de comunhão de adquiridos, os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges só conservam a qualidade de bens próprios desde que a proveniência do dinheiro ou dos valores seja devidamente mencionada no documento da aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges, só vale quando estiverem em jogo interesses de terceiros. II- Se estiverem em jogo apenas os interesses dos próprios cônjuges, a falta da declaração referida em I pode ser substituída por qualquer meio de prova que demonstre que o pagamento foi feito apenas com dinheiro de um deles, ou com bens próprios de um deles, afastando-se então a presunção de comunhão do artº 1724º.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA intentou acção ordinária contra BB pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 47.385,90 acrescida dos juros já vencidos no montante de € 7.585,82 e dos juros vincendos até integral pagamento.
Alegou que: foi casada com o R., em regime de comunhão de adquiridos, de quem está divorciada; no âmbito duma providência cautelar de arrolamento, prévia à acção de divórcio, não foram arroladas as duas contas bancárias "solidárias" do ex-casal, de que eram únicos titulares, por já não terem saldo dado que entretanto o R. levantou dessas contas o quantitativo total de 19.000.000$00; esse dinheiro era fruto exclusivo das economias do casal, cujas fontes de rendimento eram a exploração de uma churrasqueira, o resultado da venda das quotas na sociedade proprietária de tal churrasqueira, facto que ocorreu ainda quando casados, e da remuneração do trabalho da A., como empregada por conta de outrem; pertence-lhe metade daquele valor, ou seja 9.500.000$00, quer por força do regime de casamento, quer por ser co-titular das contas, quer ainda por ser sócia igualitária com o seu ex-marido na referida sociedade; o R. não podia dispor daqueles montantes por não lhe caber a sua administração, nem fazer sua a totalidade do depósito é um acto de administração ordinária; o R. responde pelo prejuízo que causou à A. ao apropriar-se de metade do seu património, pelo que ao abrigo do art° 483º do Código Civil, deve ressarci-la daquele montante, acrescido de juros moratórios a partir da data de cada um dos levantamentos parcelares, os quais calculou à taxa de 7%, e até 31.03.02, em € 7.585,82.
O R. contestou e deduziu reconvenção pedindo a improcedência da acção e a procedência do pedido reconvencional com condenação da A. a pagar-lhe a quantia de 19.000.000$00 e a entregar-lhe todos os móveis do R. que levou da casa de morada de família, ou o seu valor em numerário em caso de descaminho, alegando que: a A. no dia em que deixou o lar conjugal levou bens próprios do R., que discriminou, num montante total de 1.635.000$00, e que A. e R., pouco antes da saída de casa daquela, tinham levantado cerca de 19.000.000$00 que desapareceram da casa de morada de família no próprio dia em que a A. e familiares fizeram o "assalto" a tal casa, tendo a A. já antes de sair da casa de morada de família, levantado de três contas solidárias três quantias, que descriminou, das quais, na “lógica" das contas solidárias defendida pela A., metade pertence ao R. .
Na réplica a A. reduziu o pedido para a quantia de € 46.182,27, e pediu a improcedência do pedido reconvencional e a condenação do R. como litigante de má fé, em multa a fixar pelo Tribunal, alegando que ele, no que tange aos factos do pedido reconvencional - à excepção de uma máquina de limpeza a vapor, comprada na constância do matrimónio, que admite ter levado - falseia os factos e com isso a verdade, o que faz com dolo. Quanto ao pedido reconvencional, impugnou a generalidade dos factos em que o mesmo se baseia, admitindo apenas ter levantado de uma das contas bancárias uma das quantias invocadas pelo R., aceitando que este tem direito a metade dessa quantia, por isso tendo reduzindo o pedido.
No regular processamento dos autos foi a final proferida sentença que julgou a reconvenção improcedente, absolvendo a autora do respectivo pedido, e a acção parcialmente procedente, condenando o réu a pagar à autora a quantia de € 45.530,59, acrescida de juros de mora à taxa de 7% ao ano, desde 9.4.2002 até 30.4.2003, e de 4% ao ano desde 1.5.2003 até integral pagamento, absolvendo-o do restante peticionado mas condenando-o como litigante e má fé na multa de € 2.500.
O réu apelou para a Relação de Lisboa que, alterando em parte a matéria de facto, manteve porém o decidido, excepto quanto à condenação do réu por litigância maliciosa, que revogou.
Ainda inconformado, recorre agora o réu de revista, formulando as seguintes conclusões:
1ª- A A. casou com o R., tendo ela 32 anos e ele 44 anos;
2ª- Ela tinha um filho menor, o …, do primeiro casamento dela;
3ª- O R. tinha casa própria, toda mobilada, carro próprio e a A. só levou para a casa do R. a mobília do quarto do filho;
4ª- O R. de actividades anteriores ao casamento, durante 32 anos nas O.G.M.A., na .., na ..., na suinicultura própria, numa engorda de terceiros, amealhou um bom pé-de-meia, na ordem de muitos milhares de contos;
5ª- Com que lhe permitiu adquirir as quotas, da …, Lda e adquirir o seu equipamento, pagar dividas à C. Agrícola do Montijo, da anterior gerência e ao Fisco de Iva em muitos milhares de contos;
6ª- Com efeito, de 1989 a 1994, quando a suinicultura estava em alta, apurou pelo menos 20.000 contos;
7ª- De facto, facturou de 1992 a 1994, da sua exploração e engorda de terceiro, cerca de 20.000 contos, sendo certo que de 1989 a 1992 não facturou menos;
8ª- De igual modo, durante cinco anos, também no período, de 1989 a 1994, duma engorda de 1.200 leitões que fez ao Sr. CC, auferia, de cinco em cinco meses, 1.200 contos correspondente a mil escudos por cada leitão, totalizando cerca de 15.000 contos;
9ª- O R. comprou as quotas da sociedade à …, Ldª e todo o seu equipamento, com dinheiro obtido antes do casamento, como flui do nº 13 da matéria assente, ao contrário do que se afirma estranhamente, no acórdão recorrido (fls. 349), de que "ainda que se tivesse provado tal, o que não aconteceu", o que constitui a nulidade prevista no artº 668º, nº 1 al. c) do CPC;
9ªA- A A. levantou das contas solidárias dos autos as quantias de 482.000$00 e 261.870$00 e de tais montantes não se atribuiu metade ao R., na tese que mereceu vencimento, praticando-se a nulidade prevista no artº 668º, nº l, al. d) do CPC;
10ª- Embora a quota de 200 contos tivesse ficado em nome da A. então sua mulher, foi ele que desembolsou tal quantia a favor dos vendedores;
11ª- As quotas foram adquiridas por Esc. 400.000$00 e vendidas pelo mesmo valor;
12ª- Todo o equipamento da … foi adquirido pelo R. com o seu dinheiro obtido antes do casamento;
13ª- O R. vendeu todo o equipamento aos adquirentes do estabelecimento em 1999, por 5.500 contos que depositou na conta solidária do BES em 26/9/99;
14ª- Quer as quotas da …, quer todo o seu equipamento e seus valores são bens próprios do R., pois embora adquiridos na constância do casamento foram-no por virtude de direito próprio anterior, nos termos do artº 1.722º, nº l, al. c) C. Civil, bem como por terem sido adquiridos com dinheiro obtido anteriormente ao seu casamento, nos termos do disposto no artº 1.723º, al. c) do Cód. Civil;
15ª- O R., com dinheiro próprio, pagou 963.691$00 de dívida da anterior gerência da Cafreal, Ldª à Caixa Agrícola do Montijo, sendo própria tal quantia;
16ª- O R. pagou ainda com dinheiro próprio quantia não apurada de IVA, da anterior gerência;
17ª- O R. adquiriu com dinheiro próprio, em 26/1/96, 3.073 Unidades de Participação no valor de 2.500 contos com que investiu na Caixa-Gest, sendo certo que nessa altura a … ainda dava prejuízo;
18ª- O R., em 26/1/1996, abriu com cheque próprio, da C.C.A. de Alcochete, de 15.000$00, a conta nº 0033/007702/600 da Caixa Geral de Depósitos e nela depositou dinheiro próprio de Esc: 3.699.000$00, sendo certo que nessa altura, a … Ldª dava prejuízo;
19ª- Aliás, a …, Ldª, churrasqueira tipo familiar, de Junho de 1994 a Agosto de 1999 gerou prejuízo nos dois/três primeiros anos, e gerou lucros de pequena grandeza nos dois/três últimos anos;
20ª- Os dois únicos lucros que gerou a …, Ldª estão espelhados nos dois depósitos de 29/6/1999 e 30/6/1999 da conta nº 324/02006/000.5 do BES de fls. 214, isto é, 2.830.000$00, e 2.029.487$00, também são bens próprios do R., já que as quotas e o equipamento também são bens próprios, nos termos do disposto no artº 1.722º, nº 1, al. c) do C. Civil, e tais proveitos da Cafreal são próprios do R .;
21ª- A. e R. usaram também os recebidos 5.500 contos de equipamento, propriedade própria do R., para investir em títulos, como flui do extracto da conta do BES;
22ª- A …, Ldª não pagou ao R. os 3.190.436$00 de suprimentos feitos por ele e espelhados na contabilidade;
23ª- O R. fez prova de que todos os montantes das duas contas dos autos resultam de investimentos com dinheiro próprio obtido antes do casamento. Todos os fluxos provém de dinheiros da conta, mãe, própria do R.;
24ª- Fez prova de que a sociedade …, Ldª (quotas de 400 contos e equipamento de 5.500 contos) foi adquirida pelo R. com capital próprio obtido antes do casamento, pelo que é bem próprio do R., nos termos do disposto no artº 1.723º, al. c) C. Civil;
25ª- Afastou o R. a presunção contida no artigo 516º C.C., já que todos os fundos contidos nas contas resultam de actividade anterior ao casamento, e a pequena parte do lucro da …, nos últimos dois/três, anos, ser de igual modo bem próprio, pois resulta de bem adquirido em virtude de direito próprio anterior (nos termos do disposto no artigo 1.722º, nº 1, al. c) do Código Civil;
26ª- O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 668º, nº1, als. c) e d), 721º, nºs 1 e 2, 722º, nºs 1 e 2 do CPC, e 1.722º, nº l, al. c), 1.723º al. a) e 1.726º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil, pelo que deve ser revogado.
Contra-alegou a recorrida, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, é mister decidir.
Vem provada a seguinte matéria de facto (dada por assente na 1ª instância, com as alterações introduzidas pela Relação): 1.- A A. foi casada com o R., encontrando-se estes actualmente divorciados (A)); 2.- Tal casamento foi celebrado em 30.09.93 sem convenção antenupcial (Doc. de fls. 10 do apenso A); 3.- A A. propôs contra o R., antes da propositura da acção de divórcio litigioso, uma providência cautelar de arrolamento (B)); 4.- O arrolamento de bens foi decretado e levado a efeito, excepto quanto às contas bancárias do casal, que eram contas "solidárias ", com os nºs. …/…/… do Banco Espírito Santo e … da Caixa Geral de Depósitos, que não foram arroladas por não terem saldo (C), doc. de fls. 35 a 39 do apenso A e facto admitido por acordo, a "solidariedade" das contas – V. artºs. 12º da p. i. e da contestação); 5.- A. e R. foram os únicos sócios de uma sociedade denominada A … - Churrasqueira Ldª, tendo vendido, ainda quando casados, as respectivas quotas (D) e E)); 6.- Parte do montante levantado pelo R. das contas bancárias nºs …/…/… do Banco Espírito Santo e … da Caixa Geral de Depósitos foi apurado pela venda das quotas referidas em E) (F)); 7.- Quando saiu do lar conjugal a A. levou consigo uma máquina de limpeza a vapor, marca Diavolo (G)); 8.- A A. levantou da conta BES referida em C), em 10.04.2000 a quantia de 482.000$00 (H)); 9).- O R. levantou da conta nº …/…/… do Banco Espírito Santo a quantia de 9.000.000$00 e da conta nº 0033007702600 da Caixa Geral de Depósitos a quantia de 10.000.000$00 (1º e 2º); 10.- Estes levantamentos foram efectuados sem autorização da A. (3º); 11.- A A. auferia a quantia mensal de 120.000$00 como empregada da União … … (4º); 12.- Este vencimento, juntamente com a actividade da sociedade, eram as únicas fontes de rendimento do casal (5º); 12.a- A sociedade de que A. e R. eram sócios gerou prejuízos nos dois/três primeiros anos da sua gerência, gerando lucros modestos, nos últimos dois/três anos, em montantes não concretamente apurados (nova resposta ao quesito 6º); 12.b- O R. trabalhava na Churrasqueira a tempo inteiro e a A. também ali trabalhava, às vezes, ao fim do dia, das 19HOO às 20HOO e pouco (nova resposta ao quesito 7º); 13.- O dinheiro com que foram adquiridas as quotas da sociedade e o seu equipamento havia sido adquirido pelo R., antes do casamento (8º e 9º); 14.- As quotas referidas em E) foram cedidas pelo seu valor nominal de 400.000$00 (11º e doc. de fls. 23 a 28 da providência cautelar apensa); 15.- A. e R. receberam a quantia aproximada de € 27.433,88 pela venda de equipamento da churrasqueira, nomeadamente dois grelhadores, uma estufa, duas arcas, duas frigideiras, um termoacumulador, dois extractores de fumo, dois electrocutores de mosquitos estantes e móveis vários (12º); 16.- O R. trabalhou durante cerca de sete anos nas Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, cerca de sete anos na …, cerca de oito anos na … e cerca de cinco anos na suinicultura (13º a 16º); 17.- Os trabalhas realizados nas Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, na …, na … e parte do período de trabalho realizado na suinicultura foram efectuados antes de conhecer a A. (17º); 18.- O R. conseguiu poupar entre 1989 e 1994, na suinicultura, cerca de 20.000 (vinte mil) contos (nova resposta ao quesito 18º); 19.- Foi o R. quem adiantou aos anteriores sócios de A …, Ldª a quantia de 963.691$00, para que estes pudessem pagar dividas à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Montijo (19º); 19.a- O R. pagou o IVA que a anterior gerência não pagara ao Fisco, em montante não apurado (nova resposta ao quesito 20º); 20.- A A. deixou o lar conjugal em 14-04-2000 (21º); 21.- No dia 10-04-2000 a A. havia já levantado a quantia de 261.870$00 da conta nº … da Caixa Geral de Depósitos de Alcochete (37º); 22.- A A. trabalhava na sociedade "A …", às vezes, entre as 19HOO e as 20HOO e poucos minutos, depois do seu horário de trabalho na União … (nova resposta ao quesito 39º).
A recorrida pediu na petição inicial a condenação do recorrente a pagar-lhe a quantia de € 47.385,90, acrescida de juros caídos no montante de € 7.585,82, e dos vincendos até integral pagamento, louvando-se em que o recorrente, sem o consentimento dela, levantou de duas contas bancárias solidárias a quantia de 19.000.000$00 pertencente ao património comum do casal. Na réplica reduziu porém o pedido inicial, deduzindo ao capital peticionado metade de uma quantia que confessou ter levantado de uma das contas bancárias solidárias.
O recorrente, por seu turno, aduziu na contestação, além do mais que agora não importa, que as quantias depositadas lhe pertenciam por inteiro.
A causa emergiu essencialmente com os seguintes factos:
- O recorrente conseguiu poupar milhares de contos antes do casamento com a recorrida, em 30.9.1993, sem convenção antenupcial;
- O dinheiro com que foram adquiridas as quotas da sociedade e o equipamento da churrasqueira, na constância do casamento, foi adquirido pelo recorrente antes de se casar com a recorrida;
- As quotas da sociedade, uma do recorrente e outra da recorrida, no valor nominal de 200.000$00 cada uma, foram vendidas pelo valor nominal de 400.000$0, ainda durante o casamento;
- Parte do montante levantado pelo recorrente das duas contas bancárias foi apurado pela venda das quotas;
- Recorrente e recorrida receberam aproximadamente € 27.433,88 pela venda do equipamento da churrasqueira;
- A recorrida auferia no seu emprego a quantia mensal de 120.000$00, constituindo esse vencimento, juntamente com a actividade da Churrasqueira - onde o recorrente trabalhava a tempo inteiro e a recorrida, às vezes, ao fim do dia, das 19 horas às 20 horas e poucos minutos – as únicas fontes de rendimento do casal;
- Tendo a sociedade gerado prejuízos nos dois/três primeiros anos da sua gerência, e lucros modestos nos dois/três últimos anos, de montante não apurado.
O casamento foi celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos (artº 1717º do Código Civil).
Resulta do artº 1723º, c), ibidem, que conservam a qualidade de bens próprios os bens adquiridos com dinheiro próprio de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro seja devidamente mencionada no documento de aquisição, com intervenção de ambos os cônjuges.
Prevê-se aí uma sub-rogação indirecta, que apenas pode operar se a proveniência do dinheiro for devidamente mencionada no documento de aquisição, com intervenção de ambos os cônjuges.
Parte da doutrina e da jurisprudência tem entendido que o legislador tornou imperativo no artº 1723º, c) do Código Civil que a relação de conexidade nele referida resulte de forma expressa do documento de aquisição, com a intervenção de ambos os cônjuges, mas outra parte da doutrina e da jurisprudência distingue entre estarem em jogo interesses de terceiros ou somente dos cônjuges, para atribuírem àquele dispositivo legal o valor de presunção jures et de jure, no primeiro caso, e de apenas juris tantum no segundo.
Há assim duas correntes de opinião quanto à exigência ou não – quando, como no caso presente,estão apenas em jogo interesses dos cônjuges – de se declarar expressamente, com a assinatura dos dois cônjuges, que o preço da aquisição proveio de bens próprios de um dos cônjuges.
De acordo com a primeira perspectiva, mesmo não estando em jogo interesses de terceiros, os bens adquiridos serão considerados comuns se não intervierem os dois cônjuges e não for mencionada a origem do dinheiro investido na sua aquisição como pertencente só a um (requisitos cumulativos).
Assim, para Antunes Varela (Direito da Família, Livraria Petrony, pág. 378) os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges só se consideram como bens próprios quando a proveniência do dinheiro ou valores seja referida no próprio documento da aquisição ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges, só nesses termos a aquisição com bens próprios oferecendo prova bastante aos olhos da lei.Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artº 1723º do C. Civil, sustentam que se exige, para que haja sub-rogação dos bens próprios, que a proveniência do dinheiro ou valores com que os bens foram adquiridos, conste do próprio documento de aquisição ou de documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges, só esta intervenção simultânea no documento onde se mencione a proveniência dos meios com que a aquisição foi efectuada garantindo capazmente a veracidade da declaração, solução perfilhada pelo legislador por ser a que melhor corresponde ao interesse da segurança nas relações jurídicas e a que mais eficazmente acautela os interesses legítimos de terceiros contra as surpresas de um prova incontrolável.
Também Rodrigues Bastos (Notas ao Código Civil, Vol. VI, pág. 176) defende que, para que ao bem adquirido possa ser atribuída a qualidade de bem próprio, é necessário que, no documento da aquisição (ou em documento de igual força probatória) intervenham ambos os cônjuges e conste que foi feita com dinheiro ou valores próprios de um deles, sendo os bens adquiridos considerados comuns do casal se não existir a menção aludida na citada alínea c).
Idêntica posição foi adoptada por este Supremo Tribunal nos acórdãos de 15.10.1998 (no BMJ 480, pág. 466) e de 25.5.2000 (na CJSTJ 2000, II, pág. 76), sendo muito expressivo nesse sentido o voto de vencido do Conselheiro Miranda Gusmão (no BMJ 452, pág. 446 e 447), de que se respiga a seguinte passagem: «… Toda e qualquer norma jurídica só pode ter um sentido, fixado pelos elementos literais e extraliterais de interpretação, de tal sorte que… não aceitamos que a norma em causa tenha dois sentidos… (um, nas relações com terceiros, e outro, nas relações inter conjuges), sendo certo que fixado um sentido quando «nas relações inter conjuges, não se vê que, em segundo momento, possa ser fixado outro sentido quando surja interesses de terceiro, na primeira situação seria «bem próprio» e na segunda «bem comum». Situações a permitir que o «bem» saltitasse (permita-se a expressão) de património para património, com oscilação permanente no comércio jurídico…».
A outra corrente doutrinária e jurisprudencial não aceita para todos os casos a literalidade da sobredita interpretação, louvando-se em que a norma apenas pretendeu proteger os interesses de terceiros, pelo que só encerra uma presunção jures et de jure quando tais interesses estejam em jogo, podendo a falta da declaração nela mencionada ser substituída por qualquer meio de prova que demonstre o pagamento apenas por um dos cônjuges, quando estejam somente em causa as relações entre os cônjuges.
Assim, diz Pereira Coelho (Curso de Direito de Família, II, 1973, 138 s) que as razões de limitação da al. c) do artº 1723º só valem para o caso de os interesses de terceiros estarem em causa, pelo que só neste caso aquela limitação deverá aplicar-se.
Também Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito de Família, I, 3ª Edição, págs. 563 e segs.) expressam essa opinião com base na ideia de protecção de terceiros que justifica a especial exigência do artº 1723º, c), ponderando que, nas relações apenas entre os cônjuges, aquele que pretenda demonstrar que os valores utilizados na aquisição de um bem provieram do seu património pode oferecer qualquer prova capaz de afastar a qualificação do “novo bem como comum” – qualificação que resulta da inobservância dos requisitos estabelecidos no artº 1723º, c) e que assenta, em última análise, na presunção da comunhão do artº 1724º - não se aplicando por conseguinte aquela norma imperativa quando não está presente a razão que a justifica.
Foi neste sentido que decidiram os arestos deste Supremo, de 14.12.1995 (BMJ 452, pág. 437, com o aludido voto de vencido), de 24.9.1996 (BMJ 459, pág. 535), de 15.5.2001 (CJSTJ, 2001, II, pág. 75) e de 2.5.2002, na revista nº 4085/01, relatada pelo Conselheiro Sousa Inês (Edição Anual de 2002 do Boletim de Circulação Interna do STJ, pág. 173).
Embora com algumas dúvidas (pois, como soe dizer-se, onde a lei não distingue, não devemos distinguir, segundo o velho brocardo jurídico latino ubi lex non distinguit, nec nostrum est distinguere… ou ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus), optamos pela segunda posição, de que a interpretação puramente literal da al. c) do artº 1723º do C. Civil só vale quando estiverem em jogo interesses de terceiros, podendo nas relações apenas entre cônjuges a falta da declaração em referência, com intervenção dos dois cônjuges, ser substituída por qualquer meio de prova que demonstre o pagamento só por um deles, afastando-se então a presunção de comunhão.
É que, como se sumariou no último citado acórdão do STJ, a ideia subjacente à exigência de documentação constante da al. c) do artº 1723º do CC é a de protecção de terceiros, em especial de credores que contem com a massa patrimonial comum como garantia (geral) de créditos pelos quais os bens comuns do casal possam ser chamados a responder, o mesmo não acontecendo com os bens próprios de um dos cônjuges.
Descendo ao caso concreto, tendo ambas as partes outorgado a escritura de aquisição das quotas da “A … – Churrasqueira, Limitada” (escritura de cessões de quotas e nomeação de gerente, constante de fls. 221 a 224), apesar de nada se ter consignado nela quanto à proveniência do dinheiro pago pela aquisição das quotas, a verdade é que estas não faziam estas parte do património comum do ex-casal antes de alienadas por 400.000$00 ainda na constância do casamento, pois se provou que foram adquiridas com dinheiro amealhado apenas pelo recorrente antes do casamento com a recorrida.
Parte desses 400.000$00, não concretamente apurada, foi depositada nas duas contas bancárias solidárias cujo saldo foi levantado pelo recorrente, pelo que, pertencendo aquela parte dos 400.000$00 depositada apenas a este, não tem a obrigação de entregar metade dela à recorrida.
Quanto ao equipamento da churrasqueira, provou-se que foi adquirido com dinheiro economizado pelo recorrente antes do casamento e que foi vendido ainda durante o casamento por € 27.433,88, quantia essa por conseguinte pertencente apenas ao recorrente.
Todavia, não consta do rol de factos provados que essa verba tenha sido depositada em qualquer das duas contas bancárias em referência, não tendo as instâncias inferido dos factos provados que tenha nelas sido depositada, sendo certo que o recorrente não articulou na contestação que tal depósito tenha realmente sido efectuado.
E, como se expendeu num acórdão inédito relatado pelo Conselheiro Salvador da Costa, as presunções judiciais são situações em que, num quadro de conexão entre factos provados e não provados, à luz da experiência comum, da lógica corrente e por via da própria intuição humana, a existência dos primeiros, em termos de alta probabilidade, justifica a existência dos últimos, mas a fixação dos factos materiais da causa baseada em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede o âmbito do recurso de revista.
Donde, sendo vedado ao Supremo efectuar qualquer inferência de facto – pois não pode decidir de facto fora dos apertados limites do segmento final do nº 2 do artº 722º do CPC e, que assim não fosse, o recorrente não articulou que fez o depósito daquela quantia nas aludidas contas – se não possa ter por assente que tal quantia tenha sido depositado nas duas contas e tenha sido levantada pelo recorrente.
Não está pois provado que dos € 94.771,60 (19.000.000$00) levantados pelo recorrente sem autorização da recorrida, € 27.433,88 pertencessem apenas ao recorrente.
Alegou este, ainda, na contestação, que os montantes depositados nas contas bancárias eram, em parte, fruto de acções e obrigações de que era titular, mas essa matéria foi levada ao quesito 10º, quedando-se improvada.
Nesta conformidade, nada de concreto se sabe relativamente à proveniência do saldo das duas contas levantado pelo recorrente à revelia da recorrida, a não ser que parte dele resultou da alienação pelo ex-casal das duas quotas pelo montante de 400.000$00.
Tão-pouco consta do probatório que qualquer parcela do dinheiro levantado pelo recorrente das ditas contas era produto da poupança em numerário feita pelo recorrente antes do casamento com a recorrida, nem as instâncias concluíram nesse sentido ao decidir de direito.
E, não obstante a muito maior aparente capacidade económica do recorrente, não é permitido ao STJ concluir que o dinheiro depositado nas contas e levantado pelo recorrente sem autorização da recorrida seja apenas dele, pois isso traduzir-se-ia numa decisão de matéria de facto, a qual é da exclusiva competência das instâncias fora do numerus clausus estabelecido no segmento final do nº 2 do artº 722º do CPC e que aqui se inverifica.
Aliás, o recorrente não alegou concretamente ter procedido ao depósito naquelas contas de dinheiro por ele levado para o casamento, tendo articulado antes que com o dinheiro poupado antes do casamento adquiriu acções e obrigaçõese que o dinheiro depositado era em parte fruto desses títulos, de que era titular único (item 19º da contestação), circunstancialismo que não logrou provar, como se constata da resposta negativa ao quesito 10º.
Tirando a parte ainda por liquidar dos falados 400.000$00 que foi depositada nas contas, o resto do saldo destas levantado pelo recorrente tem assim de ser considerado como pertencendo ao património comum do ex-casal do recorrente e da recorrida, nos termos dos artºs 1724º do CC (favor iuris de que a entrada dos bens para a massa comum não carece de prova) e do artº 516º, ibidem (presunção de participação nos créditos).
Não logrou pois o recorrente ilidir, quanto à maior parte do dinheiro que levantou, a presunção de participação nos créditos, constante do artº 516º do Código Civil (segundo o qual, nas relações entre eles, se presume que os credores solidários comparticipam em partes iguais no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que só um deles deve obter o benefício do crédito) nem o favor iuris relativo a património comum (presunção da comunhão), resultante do artº 1724º do mesmo Diploma Legal.
Provou-se ainda que a recorrida, antes de o recorrente proceder ao aludido levantamento, levantou 482.000$00 de uma das contas solidárias e 261.870$00 da outra.
Essas importâncias (somando agora € 3.710,41) faziam partedo património comum, correspondendo metade (€ 1.855,205) à meação que caberia ao recorrente.
Assim, a recorrida deve ao recorrente € 1.855,205 (€ 3.710,41: 2), e o recorrente deve àquela € 47.385,80 (€ 94.771,60:2) menos a quantia resultante da venda das quotas por 400.000$00 (agora € 1.995,19) que se vier a apurar em execução de sentença ter sido depositada nas contas solidárias antes de o recorrente ter procedido ao levantamento do saldo delas, devendo operar-se a compensação dos créditos da recorrida e do recorrente após essa liquidação em execução de sentença.
Note-se que, ao invés do que sustenta o recorrente, as instâncias já abateram, no quantitativo de capital que ele foi condenado a pagar à recorrida, metade das duas verbas que esta levantou das contas solidárias, pelo que, e em suma, ao montante daquela condenação em capital apenas haverá a deduzir a quantia que se vier a apurar, em execução de sentença, ter sido depositada nas contas, oriunda da venda das quotas, condenando-se por isso agora o recorrente a pagar à recorrida o saldo credor que então a favor desta ficar apurado, acrescido dos juros moratórios na forma decidida na 1ª instância.
Termos em que se concede parcialmente a revista, com custas pelas partesna proporção dos respectivos decaimentos que a final se vierem a apurar, pagando-as agora provisoriamente apenas o recorrente, dado o decaimento quase total e a circunstância de não ter logrado liquidar desde já o quantitativo relegado para liquidação em execução de sentença, tornando necessária a futura liquidação.
Lisboa, 6 de Março de 2007