EMBARGOS DE TERCEIRO
DESPACHO LIMINAR
SIMULAÇÃO ABSOLUTA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
CASO JULGADO
Sumário

I - Quando estamos na fase introdutória dos embargos de terceiro – despacho de recebimento ou rejeição dos embargos em que a embargante — massa insolvente de (...) se apresenta-se a defender a alegada propriedade de um bem imóvel que diz integrá-la como património autónomo, penhorado nos autos de execução por ter sido considerado como sendo património dos executados, tal penhora ofende esse direito de propriedade da embargante.
II - Para demonstrar a probabilidade séria da existência desse seu direito de propriedade a embargante alega que o acto de transmissão do dito bem realizado pela insolvente para os executados é nulo e de nenhum efeito, por vício de simulação absoluta do mesmo, estando pendente a respectiva acção com vista à referida declaração de nulidade do acto de transmissão.
III - Tanto basta para serem recebidos liminarmente os embargos.
IV - A tal não obsta a circunstância de haver sentença transitada em julgado proferida em acção de impugnação pauliana que reconheceu à exequente o direito potestativo de penhorar o dito bem no património dos executados na medida do seu interesse.
V - Face ao cariz pessoal da impugnação pauliana, a referida decisão apenas aproveita à ora exequente, a qual actua no seu único e exclusivo interesse.
VI - A eficácia de tal decisão, sem pôr em causa os efeitos do respectivo caso julgado, poderá ser arredada, face aos efeitos da eventual decisão de nulidade do acto de transmissão do bem, por simulação absoluta, (designadamente o efeito retroactivo da declaração de nulidade) na acção intentada pela ora embargante e acima referida.

Texto Integral

Apelação
Processo n.º 18/03.1TBMTS-B.P1
Tribunal Judicial de Matosinhos - 2.º juízo cível
Recorrente – Massa insolvente de B…
Recorridos – C…, Ld.ª
D… e mulher
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Maria do Carmo Domingues
Desemb. Cecília Agante

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – A Massa insolvente de B… intentou, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que C…, Ld.ª, com sede em Matosinhos interpôs contra B…, D… e mulher, E…, os presentes embargos de terceiro pedindo que recebidos os mesmos venha a ser “reconhecido e declarado:
I – Que o bem imóvel penhorado – prédio urbano composto de casa de dois pavimentos, logradouro e jardim, sito no … ou …, freguesia de …, inscrita na matriz sob o art.º 800 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 148 de … – é da exclusiva propriedade e posse da embargante (massa falida de B…) desde a data da declaração de insolvência proferida em 6-02-2008, tendo sido antes, ininterruptamente da propriedade e posse da pessoa singular em causa desde as datas referidas nos presentes articulados (em comum com o seu cônjuge, desde 3-11-1989 e, como bem próprio exclusivo, desde pelo menos 7-06-1994);
II – A invalidade (nulidade), por simulação absoluta, do contrato de compra e venda do mesmo imóvel, compra e venda essa realizada através da escritura notarial outorgada em 12-11-2002, exarada a fls 37 do Livro 206-F do cartório Notarial de F…;
III – A sua restituição à massa insolvente de B…;
IV – E, ainda em consequência, a verem ordenado o cancelamento dos registos efectuados com base nos actos cuja declaração de invalidade se solicita, designadamente o seguinte: - o acto inscrito pela Ap. N.º 54/021118 com reporte ao antes identificado prédio urbano;
V – Que, por tal motivo, não podia tal imóvel ser penhorado e, em consequência,
VI – Ordenado o seu levantamento (da penhora) e, desde já a suspensão imediata dos termos do processo de execução”.(sic).
Para tanto, alega a embargante, em síntese, que o imóvel penhorado não é propriedade dos executados D… e mulher, sendo sim propriedade e parte integrante da massa insolvente de B…, como património autónomo que é, pois que tal bem sempre esteve na posse da ora insolvente e a venda que a mesma fez do mesmo àqueles é inválida, nula, em virtude do acto ter sido absolutamente simulado.
Mais alegou que intentou contra os referidos executados D… e mulher acção declarativa de condenação pedindo a declaração de nulidade da referida venda, por simulação, a qual constitui causa prejudicial dos presentes embargos e deverá ocasionar a suspensão da sua instância.

*
Os embargos de terceiro foram, de seguida, liminarmente, rejeitados.
Da respectiva decisão pode ler-se: “…daqui resulta claro, que o imóvel aqui indicado à penhora e, posteriormente, penhorado, o foi na sequência da decisão proferida nos autos principais que declarou a venda do mesmo por B… aos aqui executados ineficaz em relação ao agora exequente.
A questão que então se coloca e a que se resumem estes embargos é a de saber qual consequência jurídica da declaração de insolvência na sentença que julgou procedente a dita acção de impugnação pauliana.
(…)
Ora, do agora exposto resulta não ser "in casu” aplicável o disposto no artigo 88.º do CIRE, pois que o imóvel objecto da acção de impugnação pauliana (que a exequente pretende penhorar nestes autos) não faz parte da massa falida, apenas podendo ser executado pelo autor daquela acção, o ora exequente, por a acção de impugnação pauliana proposta só a ele aproveitar.
Dito por outras palavras, para qualquer outro credor da massa falida aquele bem imóvel é "inexistente" no património da insolvente, como também, antes da decretada insolvência, seria "inexistente" para qualquer outro credor da B….
O carácter pessoal da acção de impugnação pauliana impõe que os efeitos da mesma, ou seja, o facto de poder ser penhorado aquele prédio - afinal, propriedade da aqui embargante - no património dos 2.ºs réus da referida acção e aqui executados, apenas se aproveitem ao ali autor, aqui exequente.
(…)
…aqui chegados, cumpre perguntar qual é o direito do embargante que é ofendido pela penhora realizada nos autos principais?
Nenhum.
Na verdade, por força da acção intentada pela embargante contra os executados, tem aquela a mera expectativa de adquirir a propriedade do imóvel aqui penhorado, caso a decisão lhe venha a ser favorável.
É que não resulta da propositura daquela acção nenhum direito da massa insolvente sobre o imóvel penhorado que seja atacado pela penhora.
E, parece-me claro que o detentor de uma expectativa jurídica não pode, com tal fundamento, embargar de terceiro.
Nem se diga que cumpria aqui, apreciar de tal simulação (tal como pedido em II, III e IV do pedido formulado na petição inicial), já que tais pedidos hão-de ser apreciados na dita acção intentada no Tribunal de Vila do Conde, sob pena de serem proferidas duas decisões, eventualmente contraditórias, sobre a mesma questão.
(…)
Não sendo recebidos os embargos, não há lugar à suspensão desta instância, restando ao exequente formular idêntico pedido (de suspensão) na própria execução, caso assim o entenda.
Do agora exposto resulta que:
- a declaração de insolvência não tem quanto ao imóvel penhorado o efeito pretendido pela embargante,
- a invocada posse do bem por banda de B… não é apta a produzir o efeito pretendido; e
- não se me afigura verificar-se a probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante, mas antes uma mera expectativa de aquisição do mesmo.
Assim, sem necessidade de mais considerações, não pode senão rejeitar-se os presentes embargos de terceiro (…).”
*
*
Não se conformando com tal decisão dela veio a embargante recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que receba os presentes embargos com a normais consequências.
A recorrente juntou aos autos as suas alegações onde formula as seguintes conclusões:
1. Foram deduzidos embargos de terceiro pela "Massa Falida de B…", por apenso a processo executivo instaurado pela sociedade "C…" com base em sentença que julgou procedente impugnação pauliana relativamente a um contrato de compra e venda em que fora sujeito passivo a insolvente (pessoa singular) e sujeitos activos os executados.
Acontece que,
2. A decisão recorrida "confundiu" a capacidade judiciária, "confundiu" os diferentes direitos e obrigações, "confundiu" as diferentes posições processuais entre a "B…", pessoa singular e a respectiva "Massa Insolvente".
3. Partiu do errado pressuposto de que os presentes embargos pretendiam "contrariar" (ofendendo caso julgado) a sentença proferida na acção de impugnação pauliana, quando, pelo contrário, se pretende ir para além dela: solicitar ao tribunal o que nela podia mas não ficou decidido, por não lhe ter sido solicitado, o reconhecimento da simulação do negócio jurídico em causa.
4. Partiu do errado pressuposto de que pelos presentes embargos se pretendia defender, unicamente, a "posse" (direito de apreensão dos bens) e não, também, a propriedade sobre o imóvel em causa, concluindo, erradamente, que a "Massa Insolvente", com o prosseguimento da execução, não veria qualquer um dos seus direitos ser preterido ou prejudicado.
5. Ignorou a abundante prova documental já constante dos autos, nomeadamente que foi a própria exequente "C…" que, na acção de impugnação pauliana em que foi autora, invocou, como causa de pedir, a simulação do negócio sub judice, ficando assim demonstrada a probabilidade séria da existência da posse e do direito de propriedade invocado pela embargante.
6. Em consequência, decidiu contra a realidade processual dos autos, estando os seus fundamentos em contradição quer com o efectivamente invocado quer com o decidido.
7. É assim a mesma nula, nos termos do art.ºs 668.º do CPC, e como tal deve ser declarada.
Sem prescindir e subsidiariamente,
8. A sentença que julgou procedente a impugnação pauliana consagrou uma "ineficácia do negócio jurídico restrita e relativa" (não obstante, com base em factos que consubstanciavam a simulação do negócio).
9. Diversamente, nos presentes embargos, foi invocada uma "nulidade específica", a simulação absoluta do negócio, o vício aduzido como fundamento da nulidade.
10. Não é, assim, o respectivo pedido incompatível com o da sentença proferida, nem é violado caso julgado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 497.º n.ºs 1 e 2 e 498.º, ambos do CPC.
11. Não está em causa "contrariar" a sentença proferida, como defende a douta decisão recorrida; está em causa ir para além dela: solicitar ao tribunal o que nela podia, mas não ficou decidido, por não lhe ter sido solicitado, o reconhecimento da simulação.
12. Simulação invocada como se tendo verificado entre a vendedora (B…) e os compradores (D… e esposa) e cujos factos integradores foram dados como provados.
13. Não obstante tal simulação, a embargada "C…", aí como autora, pretendeu apenas a declaração da sua ineficácia o que lhe foi permitido pelo artigo 615.º, n.º 1 do C. Civil).
Por outro lado,
14. É a "massa falida" embargante (património autónomo com capacidade judiciária) que tem interesse nos presentes embargos, não a "B…", pessoa singular, pretendendo-se defender o interesse de todos os credores cujos créditos foram já reconhecidos no processo de insolvência (incluindo o da"C…").
15. Nada obstando a que, decretada a ineficácia de um negócio (acção de impugnação pauliana) não se possa, posteriormente, solicitar o reconhecimento da sua nulidade (presentes embargos).
16. A alegante "Massa Falida", nos presentes embargos, não está a pôr em causa a matéria dada como provada naquela anterior acção - pelo contrário, pretende socorrer-se dela!
17. Pois que, se numa acção foi dada como provada matéria de facto que consubstancia a simulação de determinado negócio, não é por a respectiva decisão aludir a que apenas foi solicitada a sua ineficácia, a que não foi pedida a sua nulidade, que se pode concluir pela existência de caso julgado no sentido da validade do mesmo (negócio).
18. Nos termos dos art.ºs 351.º a 359.º do CPC e dos art.ºs 1276.º, 1278.º e 1285.º do Código Civil, o objecto dos embargos de terceiro deduzidos contém um âmbito que vai além da mera desoneração dos bens do acto ofensivo (penhora) da posse e direito de apreensão por parte da Massa Falida, pretendendo os mesmos, ainda, que se discuta a propriedade dos bens penhorados.
19. A declaração de insolvência da "B…" e a declaração de ineficácia (da sentença proferida na acção de impugnação pauliana) não faz extinguir, nem inutiliza, as acções em que se solicite o reconhecimento da simulação absoluta de determinado negócio a favor da Massa Insolvente.
20. Donde se impõe concluir pelo interesse útil e direito da "Massa Insolvente de B…" no prosseguimento dos presentes embargos de terceiro, para efeitos de ser apreciada a alegada nulidade absoluta do acto de transmissão do imóvel em causa.
21. A "Massa Insolvente" de "B…" é parte legítima para os, por si, deduzidos embargos, pois constitui um património autónomo, um conjunto patrimonial afectado pela lei a certo fim (protecção dos credores) e que só responde, ou responde preferencialmente, pelas dívidas relacionadas com tal fim.
22. O art.º 81.º do C.I.R.E. estabelece que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da Massa Insolvente (n.º 1); interdita ao devedor a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo (n.º 2); que o administrador da insolvência assume todos os poderes de que o devedor fica privado bem como a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (n.ºs 1 e 3 a 5) e que são ineficazes os actos realizados pelo insolvente em contravenção ao disposto n.ºs 1 e 2 (n.º6).
23. Face ao antes exposto, deverá o dito imóvel estar incluído na massa falida, tendo o respectivo administrador legitimidade, enquanto representante da "massa", para os actos processuais em causa (v. g. dedução de embargos).
24. O património autónomo de um insolvente possui a qualidade de "terceiro" relativamente à pessoa, em si, do próprio insolvente: embora não possua personalidade jurídica, possui capacidade judiciária para defesa dos interesses dos seus credores (naturalmente incompatíveis, na sua maioria, com os do próprio insolvente).
25. Com capacidade judiciária (art.º 6.º CPC), o património autónomo/massa falida em causa, é alheio ao negócio jurídico (simulado) que fundamentou a impugnação pauliana - não foi parte nele, mas pode ser patrimonialmente favorecido ou prejudicado pelos seus efeitos.
26. Ora, a embargante "Massa Insolvente" reputa ofensiva quer da sua posse (direito de apreensão de bens no âmbito da liquidação do activo) quer do respectivo direito de propriedade, o prosseguimento de uma acção executiva que terá como consequência a entrega judicial a quem, na mesma, adquira o bem objecto de penhora (imóvel).
27. Os deduzidos embargos de terceiro enquadram-se numa modalidade de especial de oposição espontânea, com a finalidade de permitir a participação de um terceiro (Massa Insolvente) que se diz titular de uma situação jurídica subjectiva incompatível com qualquer acto judicial que ordene a penhora, apreensão, venda ou entrega de bens, uma vez que estes actos a prejudicarão patrimonialmente (melhor dizendo, aos respectivos credores).
28. Assim, sendo a "Massa Insolvente" um "terceiro" relativamente à execução, não se lhe aplica a proibição de utilização dos embargos de terceiro como meio de impugnação da penhora (art.º 351.º n.º 1 do CPC).
29. Devia, portanto, a petição de embargos ter sido liminarmente recebida.
30. E nem seriam necessárias mais diligências instrutórias para demonstrar a probabilidade séria da existência da posse ou do direito invocado pelo embargante, atenta a prova documental já constante dos autos (que a sentença recorrida ignorou).
31. Está (mais do que) provada a existência da posse (direito de apreensão) e do direito invocado pela embargante "Massa" (a propriedade do imóvel, atenta aquela simulação, pertence a "B…" e tem de integrar o acervo patrimonial activo da Massa Insolvente) assim como a incompatibilidade daquela posse e do direito de propriedade da insolvente ou deste direito com a penhora (art.º 354.º do CPC, a contrario).
32. A sentença recorrida é nula (como antes se disse) e, como tal, deve ser declarada.
33. Quando assim se não entenda, deve ela então ser revogada por ter violado por erro de interpretação o disposto nos antes citados preceitos legais, e substituída por outra que julgue no sentido antes defendido.
*
Não foram juntas quaisquer contra-alegações.

II – Vêm assentes da 1.ª instância os seguintes factos não impugnados por via do presente recurso:
1. Foi penhorado nestes autos o prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de … sob o n.º 148 e inscrito na matriz sob o n.º 800;
2. A execução de que estes autos são apensos foi intentada com base numa letra de câmbio avalizada por B… e, bem assim, uma sentença transitada em julgado em 2/03/10, proferida no âmbito da acção de processo ordinário movida pela ora exequente contra os executados (2.ºs réus) e B… (1.ª ré) na qual foi decidido o seguinte:
“...declaro procedente a impugnação do contrato celebrado por escritura pública de 12/11/2002, por via do qual a primeira R. declarou vender e os 2.°s RR. declaram comprar pelo preço de € 75.000,00, o prédio urbano composto por casa de habitação, quintal e jardim, inscrito na matriz predial urbana de … sob o artigo 148, de …, a qual se haverá por restituída ao património da 1.ª R., livre e desonerada, na medida necessária à satisfação do crédito da A., podendo esta executar esse mesmo prédio, com vista à satisfação desse crédito, no património dos 2.ºs RR...; e
"Declaro ainda procedente a impugnação do acto da venda dos bens móveis e do arrendamento habitacional do mesmo prédio urbano sito na freguesia de …, os quais se haverão por restituídos ao património da primeira R., na medida necessária à satisfação desse crédito, no património dos segundos RR.";
3. B…* foi declarada insolvente por decisão proferida no processo n.º 348/08.6TBVCD, transitada em julgado no dia 24/03/08, não tendo sido apreendidos para a massa falida quaisquer bens; *(este ponto apresentava um evidente erro de escrita porquanto aí se referia “a embargante” e não quem foi declarada insolvente) e,
4. A massa insolvente intentou contra os aqui executados acção na qual pedem que seja judicialmente decidida e declarada a invalidade (nulidade) por simulação absoluta, do contrato de compra e venda do imóvel penhorado nestes autos e que os réus sejam condenados a restituir o mesmo à massa insolvente.

III - Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 684.º n.º3, 684.º-B n.º 2 e 685.º-A, todos do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
*
Ora, visto o teor das alegações da recorrente são duas as questões que cumpre apurar, ou seja, se:
1.º - A decisão recorrida é nula por contradição entre a mesma e os respectivos fundamentos e,
2.º - Se em face dos factos assentes nos autos os embargos de terceiro devem ser recebidos com as legais consequências.
*
1.ªquestão – nulidade da decisão.
Segundo o disposto no artº 668.º n.º1 al. c) do C.P.Civil a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Esta nulidade – oposição entre os fundamentos e a decisão (al. c) do referido preceito legal) - só se verifica quando e, segundo o Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil anotado, vol.V, pág. 141, «…os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto”. Ou seja, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma oposta àquela que logicamente deveria ter extraído.
A referida nulidade refere-se, assim, a um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso daquele que seguiu.
Não se pode confundir a motivação da decisão, cfr. art.º 659.º do C.P.Civil, com a fundamentação a que se reporta o artº 653.º n.º2 (fundamentação da decisão sobre a matéria de facto). Aquela, e que nos interessa “in casu”, desdobra-se em fundamentação de facto e fundamentação de direito, consubstanciada esta na interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes aos factos dados como assentes. Pelo que tal nulidade não abrange, o chamado, erro de julgamento, seja de facto, seja de direito, e designadamente a não conformidade da decisão com o direito substantivo, neste sentido, entre muitos outros, vide Ac. do STJ de 21.05.98, in CJ/STJ, Ano VI, Tomo 2, pág. 95.
Vendo a decisão recorrida, os seus fundamentos e a sua parte decisória, manifestamente, não vislumbramos a ocorrência da invocada nulidade.
Improcedem as respectivas conclusões da apelante.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, julga-se inverificada a referida nulidade da decisão recorrida, consistente na contradição entre os fundamentos da decisão e esta.
*
2.ªquestão – recebimento dos embargos de terceiro.
Como é sabido até à entrada em vigor da reforma do Processo Civil operada pelo DL 329-A/95, de 13.10, a função dos embargos de terceiro estava limitada à defesa da posse quando ofendida por qualquer diligência ordenada judicialmente, cfr. art.º 1037.º n.º1 do C.P.Civil. Após a referida reforma pela qual se eliminou do elenco dos processos especiais as acções possessórias, passaram a ser considerados um incidente da instância, como uma verdadeira sub-espécie da oposição espontânea, enxertado num processo pendente entre outras partes, “visando a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes da causa, e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante”.
Os embargos de terceiro constituem o meio especialmente previsto para a defesa da posse ou de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, judicialmente, ordenada de que o titular seja alvo. Assim, dispõe o art.º 351.º n.º1 do C.P.Civil que: “Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.
Escreve o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 187: “os embargos de terceiro constituem uma modalidade especial de oposição espontânea. Esses embargos destinam-se a permitir a reacção de um terceiro contra um acto judicial que ordena a apreensão ou entrega de bens e que ofende a sua posse ou qualquer direito incompatível com a realização do âmbito da diligência (artº 351º nº 1”.
Como incidente (de oposição espontânea) da instância executiva, os embargos de terceiro, são pela sua estrutura uma verdadeira acção declarativa de mera apreciação, já que a sua finalidade é verificar a existência de um direito ou duma posse atingido ilegitimamente por uma penhora, ou por qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens. Como refere Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil”, vol. II, pág. 96, “incidente, pois, na técnica moderna, é, como nota Guasp, qualquer questão anormal que surge na pendência de uma causa, ligada aos termos que nele se discutem, e que, por sua natureza, exige uma decisão prévia e especial”.
E como objectivo essencial, os embargos de terceiro podem ter uma função preventiva, se são deduzidos antes da efectivação da diligência judicial executiva; ou uma função repressiva, se são opostos depois da realização desse, cfr. art.º 359.º n.º 1 do C.P.Civil.
A determinação do direito incompatível deve ser feita tendo em conta a função e a finalidade concreta, quer do direito pretensamente ofendido, quer da diligência ou acto judicial que alegadamente o ofende.
A legitimidade para deduzir embargos de terceiro é conferida somente a terceiro, ou seja, a quem não seja parte na execução, nem como exequente nem como executado, cfr. art.º 351.º n.º1 do C.P.Civil e devem ser deduzidos contra a partes primitivas na execução. A qualidade de terceiro é aferida exclusivamente pela sua posição processual: só é terceiro quem não for parte na causa de que emana a diligência. Assim, se essa causa for uma execução, é terceiro quem não for parte na execução, ainda que pudesse sê-lo, porque, por exemplo, figura no título executivo, como credor ou como devedor.
Se aquela diligência emanar de acção executiva, os embargos de terceiro devem ser deduzidos, em litisconsórcio necessário contra o exequente e contra o executado e contra qualquer outra parte dessa execução, cfr. art.ºs 28.º n.ºs 1 e 2 e 357.º do C.P.Civil.
Como se disse, decorre do n.º 1 do art.º 351.º do C.P.Civil, que os embargos de terceiro se fundamentam numa posse ou num direito incompatível do terceiro sobre o bem objecto cuja apreensão ou entrega tenha sido ordenado e têm por finalidade impugnar a legalidade desse acto e provocar o seu levantamento. São, assim, dois os fundamentos invocáveis pelo terceiro embargante: -1) - a sua posse sobre os bens atingidos pela diligência judicialmente ordenada; -2) - a titularidade de um direito sobre aqueles bens que é incompatível com o direito do executado, suposto por aquela diligência executiva.
A incompatibilidade da posse ou do direito invocado pelo terceiro com tal diligência afere-se pela sua oponibilidade, ou não, à venda executiva e à correlativa eficácia extintiva da mesma sobre esses direitos. Assim, são incompatíveis com a penhora todos os direitos de terceiro sobre os bens penhorados que sejam oponíveis à execução e que, portanto, se não devam extinguir com a venda executiva, cfr. n.º 2 do art.º 824.º do C.Civil, caso contrário, inexiste incompatibilidade, já que o direito que o terceiro possua sobre os bens penhorados não afecta a penhora e não impede a sua eventual venda executiva.
Tal incidente, na sua tramitação, desdobra-se em duas fases:
- uma fase introdutória, desde a sua dedução ao despacho de recebimento ou de rejeição dos embargos, e
- uma fase subsequente, de estrutura contraditória, a partir do despacho de recebimento.
A fase introdutória ocorre sem a exigência do contraditório, encontrando-se disciplinada no art.º 354.º, do C.P.Civil, o qual dispõe: “Sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante.”, destina-se, assim, a apreciar a tempestividade da dedução dos embargos, a legitimidade do embargante e a viabilidade daqueles.
A fase contraditória (após o recebimento dos embargos) tem a natureza de uma verdadeira acção declarativa enxertada, a tramitar segundo os termos do processo declarativo comum, ordinário ou sumário conforme o valor, cfr. n.º 1 do art.º 357.º, do C.P.Civil.
No caso dos autos, estamos na referida fase introdutória e a embargante – massa insolvente de B… - apresenta-se a defender a alegada propriedade de um bem imóvel que diz integrá-la como património autónomo que é, penhorado nos autos de execução de que este é um apenso, como sendo património dos executados D… e mulher. Portanto, a embargante apresenta-se a defender a alegada propriedade de tal bem face aos referidos executados. Sendo que aquela penhora que do ponto de vista da sua realização quer do seu âmbito da ofende esse seu direito de propriedade.
Para demonstrar a probabilidade séria da existência desse seu direito de propriedade a embargante alega que o acto de transmissão do dito bem realizado por B… para os supra referidos executados é nulo e de nenhum efeito, por vício de simulação absoluta do mesmo, razão pela qual a titularidade desse direito de propriedade ter-se-á, em consequência da declaração de nulidade, de ter por mantida até à data da declaração de insolvência na esfera jurídica da transmitente e posteriormente passou a integrar a ora embargante. Mais invoca a embargante na demonstração da probabilidade séria da existência desse seu direito que intentou e está pendente a respectiva acção com vista à referida declaração de nulidade do acto de transmissão.
Ora, contrariamente ao entendido em 1.ª instância, julgamos que a embargante demonstrou, desde já, e face aos documentos juntos aos autos, a probabilidade séria da existência do alegado direito de propriedade e consequentemente a alegada violação do mesmo pela penhora efectuada nos autos executivos. Logo, não concordamos com a afirmação feita de que a embargante, face ao que alegou, tem uma mera expectativa de adquirir a propriedade do imóvel penhorado, caso a decisão da acção que intentou lhe venha a ser favorável, mas antes, face ao alegado, carece neste momento apenas a mesma que o referido direito lhe venha a ser reconhecido e declarado na dita instância, o que não retira a probabilidade séria da sua existência no actual momento.
É certo que sentença transitada em julgado reconheceu à exequente o direito potestativo de penhorar o dito bem no património dos executados na medida do seu interesse, sem afectar o acto da sua transmissão efectuado para estes por B…, ora insolvente. E dúvidas não restam também de que face ao cariz pessoal da impugnação pauliana, a referida decisão apenas aproveita à ora exequente, a qual actua no seu único e exclusivo interesse. Contudo, a eficácia de tal decisão, sem pôr em causa os efeitos do respectivo caso julgado, poderá ser arredada, face aos efeitos da eventual decisão de nulidade do acto de transmissão do bem, por simulação absoluta, (designadamente o efeito retroactivo da declaração de nulidade) na acção intentada pela ora embargante e acima referida.
Logo, parece-nos evidente que os presentes embargos de terceiro têm de ser recebidos e suspensos os termos da execução relativamente ao imóvel penhorado. Parecendo-nos também claro que oportunamente ter-se-á que ponderar a suspensão dos termos da presente instância em face da pendência da acção corre termos sob o n.º 1068/10.7TBVCD do 2.º juízo do Tribunal Judicial de Vila do Conde, pela qual a ora embargante pede que seja judicialmente declarada a invalidade (nulidade), por simulação absoluta, do contrato de compra e venda do referido imóvel.
Pelo exposto, sendo a embargante manifestamente terceira em face da execução de que este é um apenso e tendo a mesma demonstrado a probabilidade séria da existência do direito de propriedade invocado, há que receber os presentes embargos de terceiro e consequentemente suspender os termos da execução relativamente ao bem penhorado, devendo ainda proceder-se à notificação, nos termos e para os efeitos legais de exequente e executados partes, para contestarem, querendo, cfr. art.ºs 354.º, 356.º e 357.º, n.º1, todos do C.P.Civil, revogando-se a decisão recorrida.
Procedem as respectivas conclusões da apelante.

IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, recebendo-se os presentes embargos de terceiro; ordena-se a suspensão dos termos da execução relativamente ao bem penhorado, devendo proceder-se à notificação, nos termos e para os efeitos legais das partes primitivas, para contestarem, querendo.
Custas da apelação pela parte vencida a final.

Porto, 2011.09.13
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas