Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
POSSE
POSSE PRECÁRIA
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I) Com base numa posse precária, conferida por acto de mera tolerância do dono de um imóvel só se pode alcançar uma posse em nome próprio, relevante para usucapião, se houver inversão do título da posse, inexistindo, o detentor será sempre um detentor precário.
II) Tratando-se de posse em nome alheio, irreleva para fins de usucapião, o mero corpus ou relação material com a coisa, não existindo no caso animus presumido, pelo que sempre inexistiria conflito de posses.
III) Para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, seria necessário que a conduta dos pretensos abusantes – em particular a do reivindicante – fosse no sentido de criar, razoavelmente, nos Réus uma expectativa factual, sólida, de que lhes tinha sido consentida uma posse passível de conduzir à usucapião, demitindo-se o Autor da sua condição e poderes de dono do imóvel que agora reivindica.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA e;
Santa Casa da Misericórdia de Murça intentaram, em 13.2.2002, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Murça, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra:
BB e mulher, CC.
Alegando, em resumo e no essencial, que são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, que identificam, estando como tal inscrito na respectiva Conservatória de Registo Predial.
Porque tal imóvel vem sendo ocupado pelos réus que se negam a restituí-lo, pedem que sejam reconhecidos como seus legítimos proprietários, condenando-se os réus a desocuparem e entregarem o referido prédio, ordenando-se ainda o cancelamento de quaisquer registos que os réus hajam efectuado sobre o mesmo (tudo como melhor consta da sua petição inicial, que se dá por reproduzida).
Contestaram os réus impugnando os factos da petição inicial e alegando, também em resumo, que tal prédio lhes foi doado verbalmente há mais de vinte anos pelo autor AA e falecida mulher, vindo desde então, a ocupá-lo e usufruí-lo como se de verdadeiros de donos se tratassem, adquirindo-o por usucapião, que expressamente invocam.
Em consequência, formularam reconvenção, pedindo que os autores sejam condenados a reconhecer que tal prédio é sua propriedade, ordenando-se o cancelamento do registo efectuado em nome deles (tudo também como melhor consta da sua contestação-reconvenção de fls. 77 e ss).
Os autores replicaram à contestação-reconvenção (fls. 113 e sgs.), mantendo a posição que haviam já assumido na petição inicial.
Findos os articulados, a fls. 193 e ss. foi proferido despacho saneador, especificados os factos assentes e delimitada a base instrutória, que não mereceram reclamações.
***
A final foi proferida sentença que:
- julgou a acção procedente e improcedente a reconvenção e, consequentemente, decido:
A) - Condenou os réus a reconhecerem que os autores AA e Santa Casa da Misericórdia de Murça, são donos e legítimos proprietários do imóvel acima descrito em 1, 2, 11 e 12 dos factos provados, condenando ainda os réus a devolver aos autores o referido imóvel devoluto de pessoas e bens e ordenando o cancelamento de quaisquer registo que os réus hajam feito sobre o mesmo prédio;
B) - Absolveu os autores dos pedidos contra eles formulados pelos réus em sede de reconvenção.
***
Inconformados recorreram os RR. para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 25.1.2007, fls. 411 a 426, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão apelada.
***
De novo inconformados recorreram os RR. para este Supremo Tribunal e, alegando, formularam as seguintes conclusões:
1ª) Salvo o respeito por opinião contrária, entendem os aqui recorrentes que, atendendo ao quadro factual dado como provado, não foi pelo Douto Acórdão em mérito efectuada uma correcta aplicação do direito.
2ª) Tal como os autores configuram o pedido e articulam a causa de pedir, estamos em face de uma típica acção de reivindicação, que é instaurada pelos proprietários não possuidores, contra os possuidores do imóvel em discussão nos autos, invocando, além da inscrição tabular, também a aquisição por usucapião da propriedade do imóvel, ou seja, que a coisa lhes pertence por um dos títulos admitidos em direito.
3ª) Portanto, incumbindo aos autores a prova do seu direito de propriedade sobre o imóvel, pretenderam estes logo demonstrá-lo pelo benefício do registo de transmissão do mesmo a seu favor, decorrente do preceituado pelo art. 7º do Código de Registo Predial, mas porque sabiam da natureza ilidível desta presunção, pretenderam também demonstrar que tinham adquirido o direito sobre o mesmo por uma das formas originárias de aquisição, ou seja, pela usucapião.
4ª) E, para demonstrarem esta forma originária de aquisição, alegaram a aquisição de uma quarta parte indivisa de um prédio rústico (como consta do ponto nº2), onde edificaram um armazém e a prática sobre este de determinados actos materiais (resumidos nos quesitos 2° a 7º da base instrutória).
5ª) Actos de posse estes que os autores alegam na petição inicial como tendo sido por si directamente praticados, sem fazerem sequer a mínima alusão que alguma vez tenham sido praticados por outros em seu nome ou até mesmo que por eles tenham sido consentidos.
6ª) Ora, em face da presunção do registo em nome dos autores e da alegação de uma causa originária de aquisição da propriedade, os réus, ou seja, os possuidores, só poderiam evitar a restituição da coisa se conseguissem provar uma das três coisas: que a coisa lhe pertence, por qualquer dos títulos em direito; que têm sobre a coisa outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou, então, que detêm, a coisa por virtude de direito pessoal bastante — neste sentido: Prof. Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1979-1993, pág.593.
7ª) E, para obstarem à restituição do imóvel, vieram então os réus, em sede reconvencional, pedir que sejam declarados donos e legítimos possuidores do mesmo prédio, filiando a causa de pedir na usucapião, visto terem acrescentado que também pela posse, conducente à usucapião, se operou a aquisição originária do mesmo a seu favor.
8ª) Portanto, ao invocado direito de propriedade dos autores contrapuseram os réus a aquisição por usucapião da propriedade do imóvel em discussão, ou seja, que a coisa lhes pertence por um dos títulos admitidos em direito, incumbindo-lhe a partir daqui a prova do seu direito de propriedade, para o que urgia demonstrar que, pela posse, tal como invocaram, se operou a aquisição originária, pela usucapião.
9ª) Sendo certo que a circunstância de um imóvel se encontrar registralmente inscrito a favor de alguém, não obsta à aquisição por usucapião a favor de outrem, visto que esta inutiliza por si todas as situações registrais existentes, em nada sendo prejudicadas pelas vicissitudes do registo — neste sentido: Prof. Oliveira Ascensão —“ Direito Civil — Reais” 5ª Edição, págs. 358 e 382.
10ª) Como é sabido, a posse é integrada por dois elementos: o corpus “— seu elemento material — que consiste no domínio de facto sobre a coisa e se traduz no exercício de poderes materiais sobre ela e o “animus" — seu elemento psicológico — que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente àquele domínio de facto, isto é, aos actos praticados.
11ª) E os réus conseguiram então demonstrar que ocupam o imóvel discutido nos autos a partir, pelo menos, de 1985, estando desde então no uso e fruição do mesmo, praticando todos os actos de posse elencados nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 e nos quesitos nº14º, 15º, 16º, 17º, 18°, 19°, 20°, 21°, 22°, 23°, 24°, 26°, 27º, 28°, 30° e 31º da base instrutória.
12ª) Como demonstraram também que, pelo menos desde 1985 até à presente data, nenhum dos autores mais se ocupou do imóvel ou tratou alguma vez do mesmo.
13ª) Portanto, tendo-se operado a transmissão do imóvel para os réus, pela entrega que do mesmo lhes foi feita pelo autor AA e sua falecida mulher, não podemos deixar de concluir que isto representou um acto dos antigos possuidores, ou seja destes, que materialmente envolveu a atribuição da posse aos novos possuidores (portanto, aos réus), pela transmissão da situação de facto e que os habilitou a praticar sobre o imóvel actos correspondentes ao exercício do direito possuído, ou seja ao direito de propriedade.
14ª) Sendo assim, como é, os réus lograram efectivamente comprovar o “corpus possessório” sobre o identificado imóvel, visto que inquestionavelmente existiu e existe por parte deles o domínio de facto sobre a coisa através do exercício de poderes materiais sobre a mesma.
15ª) Domínio de facto este que nos termos dos arts. 1.252°, nº2, e 1.268°, nº1, ambos do Código Civil, leva a estabelecer uma presunção de posse em nome próprio a favor dos réus.
16ª) Quer isto dizer, portanto, que a pessoa que retém ou frui uma coisa goza do direito correspondente — é titular do direito correspondente aos actos que pratica sobre ela —, salvo se existir a favor de outrem presunção prioritária, fundada em registo anterior ao início da posse, como preceitua aquele n°1, parte final, do art. 1.268° do Código Civil.
17ª) Ora, os réus demonstraram que, sem embargo de não disporem de registo de inscrição do imóvel ao seu favor, se encontram na retenção e fruição do mesmo, gozando assim da presunção da titularidade, enquanto que os autores, por seu turno, provaram a inscrição dominial do mesmo, na sua titularidade, por força da transmissão mortis causa.
18ª) E quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz, razão pela qual competiria aos autores a elisão da presunção da outra parte, isto é, de que os réus não eram possuidores, mas sim meros detentores, e a estes de que gozam de uma posse mais antiga, em relação aqueles, titulares do registo de aquisição, em conformidade com o estipulado no art. 350º, n°1 e 2, do Código Civil.
19ª Chegando assim a este conflito de presunções, ou seja, a dos autores, por um lado, derivada, essencialmente, do registo, e a dos réus, pelo outro, proveniente, apenas, da posse, entendemos que as Instâncias deveriam tê-lo resolvido em termos favoráveis aos réus, face até ao que dispõe o n°2, do art. 1.252° do Código Civil.
20ª Isto porque, e como já se deixou dito, desde pelo menos 1985 que os réus estão no uso, fruição e posse do imóvel, exercendo sobre ele os poderes materiais supra elencados em nome próprio, com exclusão de outras pessoas e como quem usa, frui e possui coisa própria, bem como de forma reiterada, ininterrupta, pública e pacificamente, porque à vista, com conhecimento de todos, sem oposição de ninguém e de boa fé, pois ignoram lesar direito alheio.
21ª E mesmo que se entenda a posse dos réus como uma posse não titulada, a qual, nos termos do art. 1.260°, n°2, do Código Civil se presume como posse de má fé, não podemos deixar de considerar que os réus ilidiram esta presunção, tanto mais que ficou provado que quando adquiriram a posse do imóvel, pela entrega que dos mesmos lhe foi efectuada pelo autor AA e sua falecida esposa, ignoravam, como ignoram ainda, estar a lesar direito.
22ª) E tendo, nos termos do art. 1.296° do Código Civil, se verificado toda esta situação pelo prazo mínimo de 15 anos, mais não resta concluir que os réus adquiriram efectivamente o direito de propriedade do imóvel discutido nos autos, pela via da usucapião.
23ª) Ficando ainda também demonstrado que os réus, e como lhes competia, ilidiram a presunção de posse dos autores derivada do registo, pois que ficou amplamente provado que quando estes levaram ao registo a aquisição deste imóvel, já o direito de propriedade do mesmo se consolidara nos réus, pela via da usucapião, pois que gozam de posse mais antiga.
24ª) Como é entendimento uniforme, a presunção de propriedade derivada do art. 7° do Código de Registo Predial é meramente iuris tantum, cedendo necessariamente perante a prova da usucapião.
Aliás, resulta explicitamente da alínea a), do nº2, do art. 5° do Código de Registo Predial, que a usucapião produz efeitos contra terceiros, independentemente de registo e, nos termos do art. 1.288° do Código Civil, que os efeitos da usucapião se retrotraem à data do início da posse, isto é, no caso dos réus, a 1985.
25ª) Ao invés não lograram os autores, em nosso entendimento, demonstrar que os réus não passaram de meros detentores do imóvel, sendo até infundado entendimento que se fez nas Instâncias de que os actos de posse praticados pelos réus não foram acompanhados da convicção de serem verdadeiros titulares do imóvel.
26ª) E a não se entender assim, sempre teria que se analisar a problemática à luz do abuso de direito, designadamente do venire contra factum proprium, que se traduziria, no caso concreto, no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelos autores, nomeadamente pelo autor AA.
27ª) O art. 334° do Código Civil contempla a base legal de tal comportamento e, ao abrigo do princípio da boa fé aí enunciado, impediria que os autores (em particular, o autor AA) exercessem um direito em contradição com o comportamento anterior, designadamente aquele que envolveu a atribuição da posse aos réus, pela transmissão da situação de facto e que os habilitou a praticar sobre o imóvel actos correspondentes ao exercício do direito possuído, ou seja ao direito de propriedade, e que despertou, neles réus, uma confiança juridicamente tutelável.
28ª) Os réus não só se arrogaram proprietários (animus) do imóvel em discussão nos autos, como também demonstraram que praticaram actos que apontam objectivamente nesse sentido.
29ª) E fizeram-no à vista de todas as pessoas da freguesia de Noura, dos seus amigos e familiares, onde se inclui o agora autor AA, ininterruptamente desde o ano de 1985 — e senão até mesmo antes desta data —, sem que ninguém se tenha oposto à prática de tais actos.
30ª) E só ao fim de mais de 15 anos de posse pública dos réus é que os autores se insurgem contra a situação.
31ª) Estamos assim, no que respeita aos réus, perante uma posse de boa fé, pública, porque exercida à vista de toda a gente, sendo os réus reconhecidos como donos do imóvel e pacífica, porque, tal como ficou provado, foi autorizada pelos autores, nomeadamente pelo autor AA e sua falecida esposa.
32ª) Os réus agiram, portanto, desde pelo menos 1985 com a convicção de serem os verdadeiros titulares do imóvel discutido nos autos, de modo pacífico, público e reiterado e actuaram de acordo com essa convicção, tendo, assim, portanto, nos termos do disposto nos arts. 1.316°, 1.317°, alínea e), 1.251° e seguintes, todos do Código Civil, adquirido o prédio discutido nos autos, por usucapião.
33ª) Verificou-se pois uma incorrecta interpretação e aplicação da lei.
34ª) O Douto Acórdão em mérito violou o disposto nos arts. 1.311°, n °1 e 2, 1.316°, 1.317°, alínea e), 1.251°, 1.252°, nº2, 1.260°, nº1 e 2, 1.261°, nº1, 1.262°, 1.268°, 1.296°, 1.287°, 1.288°, 350°, nº1 e 2, 344°, nº1, todos do Código Civil e al. a), do n ° 2, do art. 5° do Código do Registo Predial.
Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o Douto Acórdão do Tribunal da Relação, assim fazendo serena e objectiva Justiça.
Não houve contra-alegações.
***
Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta a seguinte matéria de facto:
1) - Mostra-se inscrita a favor dos autores desde 17.05.2000 a aquisição do prédio urbano sito no lugar do Ratiço, freguesia de Noura, concelho de Murça, composto de casa de habitação de r/c, com área coberta de 150 metros, a confrontar do Norte com Móveis J..., de Nascente com Herdeiros de M...C...M..., de Sul com I...G... e de Poente com Herdeiros de J...P...B..., com o valor patrimonial de 1.425.600$00, inscrito na respectiva matriz sob o art. 592 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Murça sob o n°00793 (doc. de fls. 14 a 18);
2) - Por escritura pública de compra e venda lavrada a 20.04.1976 no cartório Notarial de Murça e constante de fls. 183 v. do Livro 261, o autor AA e seu cônjuge DD, já falecida, adquiriram a EE e esposa FF, uma quarta parte indivisa de um olival e monte, sito no vale de Miguel, freguesia de Noura, concelho de Murça, que confronta de Nascente com herdeiros de M...da C...M..., sul e poente com L...G..., descrito na Conservatória do Registo Predial do concelho de Murça sob o n° 10.732, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 1938, com o valor matricial de 2.880$00 (doc. de fls. 19 a 23);
3) - Por óbito de DD, em 13.04.2000, sucederam-lhe como herdeiros o seu cônjuge AA, na qualidade de herdeiro legitimário, e a Santa Casa da Misericórdia de Murça, na qualidade de herdeira testamentária (doc. de fls. 28 a 30 e fls. 34 a 37);
4) - Os réus requereram, junto da Câmara Municipal de Murça, em 07.08.1988, a licença de construção da casa de habitação;
5) - Concluídos os trabalhos em 1989, os réus apresentaram na Repartição de Finanças de Murça a declaração para a inscrição matricial do imóvel em causa;
6) - Ao mesmo foi atribuído o art. 592, o qual ficou inscrito em nome do réu marido e assim se manteve até ao ano de 2000;
7) - Os réus submeteram os projectos para a construção do primeiro andar à aprovação da Câmara Municipal de Murça, os quais foram aprovados em reunião datada de 02.11.1999;
8) - Após a aprovação dos referidos projectos os réus requereram o alvará de licença de construção e iniciaram a obra;
9) - O alvará de licença de construção para ampliação da edificação foi passado em nome do réu marido (doc. de fls. 24);
10) - Para tanto, apresentou como “comprovativo” da sua propriedade sobre o imóvel em questão, um atestado da Junta de Freguesia de Noura declarativo de usucapião (doc. de fls. 25);
11) - Posteriormente à conclusão da obra, os réus apresentaram na Repartição de Finanças de Murça, em 07.04.2000, a declaração para a alteração da inscrição matricial do referido art. 592;
12) - Em virtude dessa participação, o artigo matricial em referência deu origem ao art. 657º, composto por “casa de habitação composta de r/e com quatro divisões e 1° andar com quatro divisões e quintal anexo” (doc. de fls. 49), confrontações e demais elementos descritivos constantes da certidão de teor matricial do mesmo junta com a petição inicial como doc. n°14, figurando como titular o réu marido;
13) - Também após a conclusão da obra, os réus requereram à Câmara Municipal de Murça a emissão de alvará de licença de utilização, a qual foi emitida em 07.04.2000 em nome do réu marido com n° 16/00;
14) - Mal as obras ficaram concluídas, AA e esposa foram residir para o 1º andar, durante cerca de meio ano, tendo lá permanecido até ao agravamento da doença da DD, altura em que esta foi para a Santa Casa da Misericórdia de Murça, para aí indo também o autor AA, posteriormente;
15) - Em 21.12.2000, os autores requereram a notificação judicial avulsa dos réus para que estes restituíssem o prédio urbano sub judice (doc. de fls. 31 a 33);
16) - Em 09.04.2001, o autor AA, por requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Murça, solicitou a rectificação do alvará de licença de construção emitido em nome do réu marido (doc. de fls. 38 a 40);
17) - Requereram os réus a isenção do pagamento da contribuição autárquica referente à ampliação que levaram a efeito no mencionado imóvel, a qual lhes foi concedida;
18) - O prédio rústico descrito em 2) foi onde os autores edificaram um armazém composto de r/c com a superfície coberta de 150 metros, hoje adaptada para a casa de habitação identificada em 1);
19- O que fizeram com o conhecimento de toda a gente na povoação em que o mesmo se situa, em oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, na convicção de que fruíam e possuíam o prédio em causa porque o mesmo lhes pertencia e pertence;
20) - Em relação aos antepossuidores, a posse e fruição do mesmo prédio verificou-se da forma acima descrita;
21) - Os réus BB e mulher foram emigrantes em França, tendo regressado definitivamente a Portugal cerca do ano de 1985;
22) - Nessa altura, uma vez que não tinham habitação no país, os réus pediram aos seus tios AA, autor, e sua cônjuge, DD, e estes autorizaram-nos a ocupar o dito imóvel;
23) - Posteriormente, o autor AA e a sua falecida mulher DD acordaram com os réus BB e mulher CC que estes continuassem a ocupar a casa e que fosse construído um piso superior na mesma de modo a criar condições de habitabilidade para todos eles e a fim de que o autor e esposa pudessem ser auxiliados pelos réus, face ao avançar da sua idade;
24) - Nos finais do ano de 1978, o autor AA e a sua falecida esposa começaram a construir, num prédio rústico composto por vinha, sito no lugar do Ratiço, com a área de mais de 1.000 metros, um armazém, cuja construção foi confiada ao empreiteiro R...A...V..., prédio que é o mesmo a que se refere o n°1 – supra;
25) - Após o regresso de França e com vista a ocuparem a habitação nos termos acima referidos, os réus, com autorização do autor AA e mulher, procederam ao seu divisionamento interior em madeira, tendo pago as respectivas obras;
26) - Desde que habitam o imóvel acima referido passaram também os réus a cuidar da vinha aí existente e colhendo os seus frutos com autorização do autor e falecida mulher;
27) - A iluminação fazia-se inicialmente à luz de candeia e depois mediante o fornecimento de energia eléctrica da casa de F...M...M...de O..., de onde também se abasteciam de água potável;
28) - Em 1988, os réus decidiram melhorar a casa de habitação, dotando-a de mais e melhores condições de habitabilidade e, em consequência, demoliram as divisões interiores existentes e em sua substituição, por meio de alvenarias, construíram três quartos, uma cozinha e sala comum e uma casa de banho;
29) - Posteriormente, requereram os réus, em seu nome, as baixadas de electricidade e de água canalizada e adquiriram verbalmente ao mencionado F...M... uma parcela de terreno por onde estabeleceram o caminho de acesso directo à E.N. n° 15;
30) - Para levar a cabo a construção do referido 1° andar, AA e DD contrataram um construtor civil, L...A...A...T..., que após orçamentar a obra, a realizou, tendo sido pago o seu trabalho por DD.
Fundamentação:
Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso, afora as questões de conhecimento oficioso, importa saber:
- se os RR. fizeram prova de terem adquirido o imóvel em litígio por usucapião (pedido que formularam em sede reconvencional);
- se a actuação do Autor exprime abuso do direito.
Vejamos:
Os AA. intentaram a acção em apreço visando a reivindicação de um imóvel que afirmam estar na detenção ilícita dos RR.
Nas acções de reivindicação a causa de pedir é complexa, consistindo no acto ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade, e a posse ou detenção abusiva da coisa reivindicada.
Dispõe o art. 1311º do Código Civil.
“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.
“I -A acção de reivindicação desdobra-se em dois pedidos: um, o do reconhecimento do direito de propriedade; o outro, o da restituição da coisa.
II – Demonstrado pelo autor o seu direito de propriedade o réu só pode evitar a restituição da coisa desde que demonstre que tem sobre ela outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que a detém por virtude de direito pessoal bastante.” - Ac. deste S.T.J. de 26.4.1994, CJSTJ, 1994, II, 63.
Autores e RR. pretendem, aqueles através da acção, e estes através da reconvenção, o reconhecimento do direito de propriedade do imóvel identificado.
Os autores ancoraram a sua pretensão em duas vertentes.
Uma, a aquisição derivada do direito de propriedade através de contrato de compra e venda, celebrado por escritura pública notarial, de 20.4.1976, aquisição devidamente registada em seu nome desde 17.5.2000.
[O contrato de compra e venda de imóveis celebrado através de escritura pública é válido e translativo do direito de propriedade - arts. 874º, 875º e 879º a) do Código Civil].
Outra, alegando uma forma originária de aquisição daquele direito real – a usucapião arts. 1287º e 1316º do citado diploma.
Por sua vez, os RR. alegaram, como forma de aquisição do direito em disputa, a usucapião, fundada em actos de posse.
O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
O Código Civil perfilha, como é dominantemente entendido, um conceito subjectivo de posse – art. 1251º do Código Civil.
A posse pode ser exercida em nome próprio ou em nome alheio – art. 1252º do Código Civil.
Em caso de dúvida, presume-se a posse em quem exercer o poder de facto – nº2 do citado artigo.
Sobre este normativo escreveu o Professor Mota Pinto, in “Direitos Reais”, 1970, 191: “Como a prova do “animus” poderá ser muito difícil, para facilitar as coisas, ao possuidor a lei estabelece uma presunção. Diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto. Daqui decorre que, sendo necessário o corpus e o animus, o exercício daquele faz presumir a existência deste”.
Os que exercem a posse em nome alheio só podem adquirir o direito de propriedade se ocorrer inversão do título de posse (“interversio posssionis”) – art. 1263º d) do Código Civil – ou seja, se, a partir de certo momento, passarem a exercer o domínio, contra quem actuava como dono, com a intenção, agora, de que o oponente actua como dono da coisa.
Tal inversão também pode ocorrer por acto de terceiro, hábil para transferir a posse.
“A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse” – art. 1265º do Código Civil.
O art. 1287º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”.
A posse conducente a usucapião, tem de ser pública e pacífica, influindo as características de boa ou má-fé, justo título e registo de mera posse, na determinação do prazo para que possa produzir efeitos jurídicos.
A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja a relação material com a coisa e o “animus”, ou seja, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.
“…Sabe-se também que o direito real se pode definir como a afectação jurídico-privada de uma coisa corpórea aos fins das pessoas individualmente consideradas, caracterizando-se, assim, a relação de natureza real por um direito de domínio ou de soberania (total ou parcial) sobre a coisa em que incida, por um poder que todos os outros têm de respeitar (cfr. Profs. Pires de Lima, Lições de Direito Civil-Direitos Reais, p.50; Menezes Cordeiro, Direitos Reais, p.351; Henrique Mesquita, Direitos Reais, p.10, e Oliveira Ascensão, Direitos Reais, p. 72)” – citámos do Ac. deste Supremo Tribunal de 10.12.1997, in BMJ, 472, págs. 483 a 492; RLJ, Ano 132 (1999/2000), nºs 3898-3909, 121-126, com anotação de Henrique Mesquita.
“ A doutrina dominante (Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado., III, 2.ª ed., pág.5; Mota Pinto Direitos Reais, p. 189; Henrique Mesquita, Direitos Reais. 69 e ss; Orlando de Carvalho. RLJ, 122."-65 e ss; Penha Gonçalves, Direitos Reais. 2ª ed., págs. 243 e ss.) entende que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes necessários o “corpus" e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4ªed., págs. 42 e ss.).
O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252.º n." 2).
Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257.", n.º1).
Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em que o “corpus” se traduz. pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” – cfr. Abílio Neto, in Código Civil Anotado, 12ª edição 1999, pág.971.
Estando registada, a favor do autor, a aquisição do direito de propriedade, por via do contrato de compra e venda, de harmonia com a regra do art. 7º do C.R. Predial, beneficia o registante da presunção de que o direito de propriedade existe na sua titularidade, nos exactos termos em que o registo o define.
Tal presunção, é ilidível pois que, como afirma, o Professor Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 5ª edição, pág.382;
- “É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si.
Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a usucapião”.
Para ilidir tal presunção os RR. propuseram-se demonstrar que haviam adquirido o prédio por usucapião, a partir da prática de actos de posse, com início em 1985, em nome próprio.
Só a posse exercida em nome próprio e que revista as características de posse pacífica, titulada, de boa-fé e exercida durante certo lapso de tempo conduz à usucapião.
“A usucapião, que é uma forma de constituição de direitos reais e não de transmissão, baseia-se numa situação de posse – corpus e animus – exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé” – Ac. deste STJ, de 14.12.1994, in. CJSTJ, 1994, III, 183.
No que respeita aos factos alegados pelos Autores, relativos à aquisição do direito de propriedade, apurou-se que adquiriram o prédio, por contrato de compra e venda celebrado em 20.4.1976, que beneficiam de registo a seu favor desde 17.5.2000, e que sempre dispuseram do prédio, por si e antepossuidores, de forma pública, pacífica e contínua.
Beneficiam da presunção registral que se considerou não ter sido ilidida pelos RR.
Os recorrentes sustentam que ilidiram essa presunção já que exerceram actos de posse desde 1985, pelo que conflituam no caso, a presunção do registo, que beneficia os AA., e a presunção conferida pelos art. 1252º,nº2, e 1268º, nº1,do Código Civil.
Nos termos daquele primeiro normativo, em caso de dúvida presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do nº2 do art. 1257º.
Decorre do segundo normativo citado, que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
É bem certo que se provou que os RR., tendo retornado de França em 1985, porque ao tempo não tinham onde morar pediram ao Autor e à falecida mulher dele DD, autorização para ocuparem o imóvel pertença do Autor, tendo aí permanecido por acto de mero favor.
Essa ocupação foi autorizada pelo Autor que, de igual modo, autorizou os RR. a fazerem a construção de um piso superior, a fim de que todos aí pudessem morar e os RR. pudessem auxiliar o Autor e sua mulher, pessoas de avançada idade – cfr. facto provado 23).
Provou-se que os RR. requereram em seu nome a licença de construção e apresentaram em 1989 declaração para inscrição matricial do imóvel ampliado.
Mas apresentaram como “comprovativo” da sua propriedade um atestado que requereram à Junta de Freguesia de Noura, visando a prova de serem titulares do direito de propriedade do imóvel reivindicado pelo Autor, por via de usucapião o que, insolitamente, foi aceite.
Este facto de modo algum pode conferir aos RR. qualquer direito, já que a posse que desde sempre exerceram foi consentida pelo Autor e sua mulher – alegadamente tios dos RR.
Ademais, provou-se que não obstante os RR. terem praticados aqueles actos em seu nome, a construção foi contratada e paga pelos AA.- cfr. item 30) dos factos provados – sinal inequívoco de que o Autor e a sua mulher não se demitiram de actuar como donos.
A posse conducente à usucapião necessita, desde logo, de ter corpus e animus.
Com base numa posse precária, conferida por acto de mera tolerância do dono, só se pode alcançar uma posse em nome próprio, relevante para usucapião, se houver inversão do título da posse. Inexistindo o detentor será sempre um detentor precário.
A ocupação do prédio deveu-se, pois, a um acto de tolerância do proprietário, em nome de quem os RR. exerceram a posse.
Tratou-se de uma posse precária.
Nenhuns factos se provaram que possam fazer concluir que os RR. actuaram com intenção de se tornarem donos do prédio.
Nos termos do art. 1253º als. a) b) e c) do Código Civil; são havidos como detentores ou possuidores precários: os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; os que se aproveitam da tolerância do titular do direito, os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.
Por tudo quanto foi dito, temos de concluir que a presunção legal do direito de propriedade, que promana do registo e favorece o autor, não foi ilidida pelos RR. a quem competia o respectivo ónus – art. 350º,nº2, do Código Civil.
Por outro lado, os AA. fizeram prova de terem adquirido o imóvel por usucapião decorrente da prática de actos de posse, desde pelo menos 1978, com as características descritas nos itens 18) a 20) dos factos provados.
Mas mesmo que a posse dos RR. não tivesse sido exercida com animus possidendi, porque este se presume em quem exerceu o poder de facto sobre a coisa, poderiam invocar em seu favor o Ac. deste STJ, de 14.5.96, in D.R. II Série, de 24.6.96, [valendo como Uniformizador de Jurisprudência], que estabeleceu:
“Podem adquirir por usucapião se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.
Sucede, todavia, que essa presunção de posse se acha ilidida, desde logo, porque se trata de posse em nome alheio a exercida pelos RR., pelo que irreleva o mero corpus ou relação material com a coisa; não existe no caso animus presumido, nos termos do citado AUJ.
Temos, assim, que inexiste qualquer conflito de posses, porquanto a posse nunca deixou de radicar na esfera jurídica dos AA. e a que foi exercida pelos RR. foi-o por mera tolerância, logo insusceptível de que conduzir à usucapião.
Finalmente, sustentam os RR. que os AA. actuam com abuso do direito – art. 334º do Código Civil – na modalidade venire contra factum proprium – porquanto “exercem um direito em contradição com o comportamento anterior, designadamente aquele que envolveu a atribuição da posse aos réus, pela transmissão da situação de facto e que os habilitou a praticar sobre o imóvel actos correspondentes ao exercício do direito possuído, ou seja ao direito de propriedade, e que despertou, neles réus, uma confiança juridicamente tutelável”.
Dispõe o art. 334º do Código Civil – “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.
Como ensina o Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536:
- “Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido”, em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.
Neste sentido, entre outros, os Acs. deste STJ, de 7.1.93, in BMJ 423-539 e de 21.9.93, in CJSTJ, 1993, III, 19.
No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória – “venire contra factum proprium” – que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
O abuso do direito – “como válvula de escape” que deve ser, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações clamorosas do direito.
Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses – pág.745 – “o “venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo.
O primeiro – o factum proprium – é, porém contrariado pelo segundo.”
“In casu”, para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, seria necessário que a conduta dos pretensos abusantes – em particular a do Autor – fosse no sentido de criar, razoavelmente, nos Réus uma expectativa factual, sólida, de que lhes tinha sido consentida uma posse passível de conduzir à usucapião demitindo-se, o Autor da sua posição de dono do imóvel que agora é reivindicado.
A conduta do recorrido, para ser integradora do “venire” teria de, objectivamente, trair o “investimento de confiança” feito pelos Réus, importando que os factos demonstrassem que a conduta do pretenso abusante, constituiu, em concreto, uma clara injustiça.
Como lapidarmente ensina o Professor Menezes Cordeiro, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
“ (...) 1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
- 2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
- 3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
- 4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”
Não foi feita qualquer prova de que os AA., sobretudo o Autor AA, ele que, com a sua mulher, permitiu aos RR., num momento de dificuldade na vida destes, habitarem a casa e que custeou as obras que os RR. abusivamente requereram em nome próprio, tivesse ao reivindicar o imóvel, traído a confiança que antes, putativamente incutira, mediante actos que seriam contrariados pelo seu actual comportamento.
O abuso do direito sanciona comportamentos que revelam, pelas concretas circunstâncias em que se inserem, uma afronta censurável aos princípios da boa-fé, do agir leal, e do dever de não trair a confiança incutida.
No caso dos autos a conduta dos AA., mormente do Autor, de modo algum se pode considerar abusiva do direito, desde logo, porque ao invés do afirmado pelos RR. os actos consentidos não envolveram qualquer transmissão da posse, ou de situação de facto que os persuadisse a praticar irreversíveis actos próprios de titulares do direito de propriedade.
Só trai a confiança quem a incute.
Os RR. não têm base factual em que possam considerar terem sido traídas as expectativas que criaram em relação ao imóvel, já que sempre actuaram como meros detentores precários.
O contexto em que os AA. reivindicam não evidencia actuação abusiva do direito.
Soçobram, destarte, as conclusões do recurso.
Decisão.
Nestes termos nega-se a revista
Custas pelos RR. sem prejuízo do apoio judiciário com que litigam – cfr. fls. 64/65.
Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Outubro de 2007
Fonseca Ramos (Relator)
Azevedo Ramos
Silva de Salazar