Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Sumário
I - O conceito de negligência grosseira referido no art. 7.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro não representa realidade diversa daquela que era entendida pela jurisprudência e pela doutrina relativamente ao conceito de “falta grave e indesculpável” pressuposto na Base VI da Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965. II - Considera-se negligência grosseira o prosseguimento de comportamentos traduzidos na omissão de cuidados e diligência necessários a obstar à produção de um resultado indesejado e que seriam de exigir a um homem dotado de conhecimentos médios, em face das circunstâncias concretas que se lhe deparavam, sendo ainda mister que aquela falta de cuidados se revele como acentuada e indesculpável face ao circunstancialismo rodeador da actuação (aqui se incluindo as circunstâncias que a antecederam e, até, motivaram), por tal forma que, num juízo de prognose póstuma, um homem dotado de boa diligência, colocado na posição do sinistrado, não teria prosseguido idêntico comportamento. III - Exige-se, ainda, que o comportamento verificado seja causa adequada e exclusiva do sinistro. IV - Não basta para o efeito a simples imprudência, inconsideração, irreflexão ou impulso leviano que não considera os prós e os contras. V - A temeridade comportamental do trabalhador que se desloca de bicicleta a pedais numa parte do percurso cuja circulação a veículos e peões estava interdita no momento (por aí operar uma máquina empilhadora), revela uma falta de consideração pelo perigo que, objectivamente, se abria para a integridade física de quem aí circulasse, mas não conduz, porém, a que se considere que um bom e diligente pai de família que desejava, com presteza, satisfazer o solicitado (ir com urgência buscar as chaves de um elevador, sendo que o outro percurso possível se apresentava com cerca do dobro da distância), de todo em todo, não adoptaria similar actuação, por ser esta absolutamente inútil, desnecessária e injustificada em face do desiderato de bem servir. VI - Não pode descaracterizar-se o acidente de trabalho, se não existem elementos firmes dos quais se possa extrair que a falta de cuidado e diligência do sinistrado deve qualificar-se como grosseira.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. Pelo Tribunal do Trabalho de Setúbal instaurou AA contra Companhia de Seguros Empresa-A, acção emergente de acidente de trabalho, solicitando a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 17.903,96, bem como juros até integral pagamento.
Invocou, para tanto e em síntese, que ele, autor – que é um trabalhador independente que, por sua própria conta e proveito exerce a actividade de consultadoria e fiscalização de obras de construção civil –, contratou com a ré um seguro para cobertura de riscos de acidentes que ocorram no exercício da sua actividade profissional e que, quando, em 18 de Dezembro de 2002, desempenhava as suas funções numa obra a decorrer nas instalações do estabelecimento fabril da ..., no Parque Industrial da Mitrena, em Setúbal, ao se deslocar num velocípede, que utilizava dentro daquelas instalações, foi colhido por um empilhador que ali procedia a operações de transporte de mercadorias, em consequência sofrendo fractura da tíbia e esmagamento muscular da coxa, lesões que causaram incapacidades temporárias e uma incapacidade parcial permanente de grau não inferior a 15%, sendo que a ré se recusa a pagar-lhe a indemnização devida por aquela última incapacidade.
Contestou a ré, dizendo, em súmula, que o acidente se deveu a «negligência grosseira» do autor
Prosseguindo os autos seus termos, foi efectuada, pelo autor, ampliação do pedido por sorte a que na solicitada condenação da ré se abrangessem as prestações pecuniárias devidas pelos períodos de incapacidade temporária.
Por sentença de 4 de Outubro de 2006 foi a acção julgada parcialmente procedente, condenando a ré a pagar ao autor, a título de incapacidades temporárias, € 5.418,82 e, a título de incapacidade parcial permanente, o capital de remissão da pensão anual e vitalícia de € 733,24, correspondente a € 11.279, 43, além de juros sobre essas quantias desde 30 de Novembro de 2004 e até integral pagamento.
Do assim decidido apelou a ré para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 6 de Março de 2007, julgou improcedente a apelação.
2. Continuando inconformada, pediu a ré revista, tendo, na alegação adrede produzida, formulado as seguintes «conclusões»: –
“a) Vem provado que na via onde ocorreu o acidente se encontravam colocadas barras de protecção amovíveis que vedavam o acesso a essa mesma via bem como colocado se encontrava um sinal de proibição de circulação de peões e que a zona em causa estava vedada ao tráfego quer de veículos, quer de bicicletas; b) Assim, a empresa tornou as medidas adequadas a que, na zona em causa, não se processasse qualquer tráfego que não fosse o resultante das manobras que os empilhadores efectuavam; c) Pelo que não pode ser imputado à empresa qualquer contribuição causal para o evento;
d) Por outro lado, vem igualmente provado, que o A., ora Recorrido, decidiu atravessar a zona em causa na sua bicicleta a pedais, passou pelas barreiras de protecção e, embora soubesse que os manobradores dos empilhadores tinham a visão para a sua frente obstruída, conduziu esse mesmo velocípede por forma a não se ter apercebido da presença duma máquina empilhadora que aí manobrava sendo por ela colhido; e) Acresce que igualmente resulta da matéria de facto provada que o A. poderia adoptar percursos alternativos que implicariam ter de percorrer, em velocípede, mais 700 metros em cada sentido; f) A utilização da via na qual o tráfego de peões, velocípedes e veículos estava vedada e a violação do sinal e barreiras de protecção revela uma conduta consciente de violação das normas de segurança impostas; g) Acresce que o A., embora soubesse que os manobradores dos empilhadores não podiam ver para a frente, conduzia o velocípede por forma desatenta já que se não apercebeu da aproximação de uma máquina empilhadora que acabou por o atropelar; h) A conduta do A. tem pois de ser considerada não só única e exclusiva mas também temerária e indesculpável pelo que integra negligência grosseira; i) Não obstante a matéria de facto que se deixa enunciada o douto Acórdão recorrido entendeu negar a apelação com o fundamento de que o A/Recorrido havia tido um comportamento negligente mas que tal negligência não podia ser qualificada de grosseira; j) A verdade, porém, é que se entende por negligência grosseira a que traduz grave violação do dever de cuidado, de atenção ou de prudência ou seja, a grave omissão das cautelas necessárias para evitar a realização do facto antijurídico (cfr. Ac. S.T.J. de 29.04.1998, in Articulado Jurídico, nº 18, págs. 13). k) Ora, como se extrai da matéria de facto enunciada nestas conclusões o A. utilizou uma via que estava vedada ao tráfego na qual se encontravam em marcha diversas empilhadoras, passando pelas barreiras de protecção e violado a sinalização que lhe proibia a utilização de tal via, sabendo que os manobradores das empilhadoras tinham a visão obstruída e sem se aperceber da presença de uma máquina empilhadora que aí se deslocava sendo por ela colhido; l) Assim, é manifesta a violação do dever de cuidado, de atenção e de prudência em circunstâncias que têm de ser qualificado como traduzindo grave omissão das cautelas necessárias para evitar a ocorrência do acidente; m) Ou seja, verifica-se que, por força do disposto da alínea b) do nº 1 do art. 7º da Lei 100/97, de 13/9 e do nº 2 do artigo 8º do Dec-Lei nº 143 [/]99, de 30/4, o acidente a que os autos se reportam tem de ser descaracterizado como acidente de trabalho dada a conduta gravemente negligente do A., ora Recorrido; n) Não o entendendo assim, o douto Acórdão Recorrido, à semelhança do que havia sucedido com a douta sentença de 1ª Instância, violou as supra-referidas disposições legais; o) Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso e revogar-se o douto Acórdão recorrido proferindo-se Acórdão em que, considerando-se descaracterizado como de trabalho o acidente ocorrido, se absolva a Ré, ora Recorrente, do pedido, com as inerentes legais consequências.”
Respondeu o autor à alegação da recorrente defendendo o acerto do acórdão impugnado.
O Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Supremo exarou «parecer» no qual propugnou por não dever ser concedida a revista
Notificado esse parecer às partes, sobre o mesmo não efectuaram elas pronúncia.
Corridos os «vistos», cumpre decidir.
II
1. É o seguinte o quadro fáctico tido por apurado pelas instâncias e que, por se não colocar qualquer das situações previstas no nº 2 o artº 722º do Código de Processo Civil, este Supremo tem de acatar: –
– a) o autor, que nasceu em 19 de Setembro de 1963, é um trabalhador independente que, sem subordinação hierárquica, presta a terceiros, por sua própria conta e proveito, a sua actividade profissional de consultadoria e fiscalização de obras de construção civil, mediante o recebimento de uma remuneração;
– b) o autor contratou com a ré um contrato de seguro, titulado pela apólice nº 1910/317438/19, para cobertura de riscos de ocorrência de acidentes no exercício da sua actividade profissional, cobrindo uma remuneração mensal de € 748,20, auferida catorze vezes por ano;
– c) no dia 18 de Dezembro de 2002 o autor estava a desempenhar a sua função profissional de consultor fiscal da construção civil, fiscalizando obras que a ... – que era a única cliente do autor – tinha em curso no local do seu estabelecimento fabril, sito no Parque Industrial da Mitrena, em Setúbal;
– d) o autor, nas suas deslocações dentro dessas instalações fabris, utilizava, usualmente, um velocípede, de sua propriedade, que aí mantinha guardado;
– e) durante a manhã daquele dia 18 de Dezembro de 2002, quando o autor se encontrava nas indicadas instalações fabris, num gabinete do Departamento de Projectos, foi contactado por um director de tais instalações, que lhe deu a conhecer a iminência da visita do Presidente do Conselho de Administração da ..., ao qual pretendia mostrar um novo elevador VIP, que acabara de ser instalado no edifício fabril dos «digestores» – que dista do edifício do Departamento de Projectos cerca de setecentos metros em linha recta –, tendo dito ao autor que fosse, o mais rapidamente possível, buscar as chaves do referido elevador ao mencionado edifício, afirmando “vai num pé e volta noutro”;
– f) perante esse pedido, o autor, porque pretendia dirigir-se ao local onde havia sido instalado aquele equipamento o mais rapidamente possível, a fim de satisfazer o solicitado, desejando mostrar presteza e eficácia, utilizou o velocípede referido em d), já que, a pé, demorava cerca de quinze minutos a lá chegar;
– g) o autor, quando seguia no velocípede, atravessou, a fim de encurtar caminho e chegar ao local para onde se deslocava, uma zona, situada entre os dois edifícios e em que se situam os pavilhões destinados a cargas e descargas, onde circulavam empilhadores que procediam à operação de transporte de mercadorias destinadas a um embarque, em cuja via se encontravam colocadas umas barras de protecção amovíveis, que vedavam o acesso à mesma, bem como um sinal de proibição de circulação de peões, não transitando em tal local quaisquer meios de locomoção, incluindo bicicletas a pedais;
– h) essa zona estava também, à data, vedada ao tráfego, quer de veículos, quer de bicicletas, já que nela se encontravam em permanente manobra diversos empilhadores;
– i) face às barras de protecção e ao sinal de proibição indicados em g), o acesso ao edifício dos «digestores» fazia-se através de vias que contornavam a área de descargas, o que implicava um percurso de cerca do dobro da distância, em linha recta, havendo trajectos alternativos em que a bicicleta a pedais poderia ser utilizada;
– j) atravessando a zona de descargas, a distância era de cerca de setecentos metros;
– k) o autor passou pelas barreiras de protecção da zona de descargas, atravessou essa zona e alcançou o edifício fabril dos «digestores»;
– l) no regresso, o autor decidiu usar o mesmo trajecto, pelo que, de novo, conduzindo a bicicleta, entrou na zona de descargas;
– m) quando ali circulava, o autor não se apercebeu da presença de uma máquina empilhadora que aí manobrava, em cujo movimento não atentou, sendo colhido pela mesma;
– n) o autor sabia que os manobradores dos empilhadores tinham a respectiva visão para a frente obstruída, dado o grande volume das cargas que manuseavam;
– o) em consequência da colhida referida em m), o autor sofreu uma fractura da tíbia e esmagamento muscular da coxa, de que resultou atrofia dos respectivos músculos;
– p) o autor foi submetido a tratamento nos serviços médicos da ré, incluindo intervenções cirúrgicas e internamentos hospitalares;
– q) o autor, em consequência do acidente, sofreu lesões que lhe determinaram períodos de incapacidade temporária para o trabalho até 29 de Novembro de 2004, nesta data lhe conferindo a ré alta:
– r) o autor sofreu, pelo menos, os seguintes períodos de incapacidade temporária: –
– ITA de 19 de Dezembro de 2002 a 2 de Abril de 2003;
– ITP de 50%, por vinte e oito dias, de 3 a 30 de Abril de 2003;
– ITP de 40%, por vinte e três dias, de 1 a 23 de Maio de 2003;
– ITP de 35%, por quarenta e cinco dias, de 24 de Maio de 2003 a 7 de Julho de 2003;
– ITP de 30%, por cento e noventa e um dias, de 8 de Julho de 2003 a 14 de Janeiro de 2004;
– ITA de 15 de Janeiro de 2004 a 13 de Fevereiro de 2004;
– ITP de 30%, por setenta e sete dias, de 14 de Fevereiro de 2004 a 30 de Abril de 2004;
– s) o autor, pelo menos nos períodos compreendidos entre 1 de Maio de 2004 a 18 de Outubro de 2004 e entre 4 a 29 de Novembro de 2004, esteve sem incapacidade temporária para o trabalho;
– t) o autor, nos dias 8, 9 e 10 de Julho de 2003, esteve afectado de uma ITP de 50%;
– u) o autor, no período compreendido entre 19 e 27 de Outubro de 2004, esteve afectado de ITA, período esse no qual foi submetido a intervenção cirúrgica com internamento;
– v) o autor, no período compreendido entre 28 de Outubro e 3 de Novembro de 2004, esteve afectado de ITP de 30%;
– w) o autor, no período compreendido entre 3 e 6 de Abril de 2003, esteve afectado de ITP de 50%;
– x) o autor, no período compreendido entre 17 e 25 de Junho de 2003, esteve afectado de ITP de 35%;
– y) o autor, no período compreendido ente 26 de Junho de 2003 e 7 de Julho de 2003, esteve afectado de ITP de 35%;
– z) a ré, que participou o acidente ao tribunal, nos termos que constam de fls. 1 dos autos, não pagou ao autor qualquer indemnização pelos períodos de incapacidade temporária, entre estes se contado o período de 19 de Outubro a 3 de Novembro de 2004.
2. Para o acórdão ora impugnado – tendo em conta o disposto na alínea b) do nº 1 do artº 7º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, segundo o qual, na perspectiva daquele aresto, ao se referir a “negligência grosseira, quis afastar a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contra” –, a matéria fáctica apurada, conquanto aponte no sentido de a actuação do autor representar “um acto pura e simplesmente imprudente”, não poderia conduzir a que o seu comportamento fosse qualificável como “um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil, indesculpável”, pelo que se não poderia concluir pela ocorrência, no caso, de uma negligência grosseira.
É contra isto que a ré se rebela.
De harmonia com aquela disposição legal, não dá direito a reparação o acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
No domínio anterior à Lei nº 100/97, prescrevia-se na alínea b) do nº 1 da Base VI da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965 que não dava direito a reparação o acidente que proviesse exclusivamente de falta grave e indesculpável da vítima.
A diferença de redacção dos dois preceitos não significa, porém, que sejam antagónicos os conceitos de «negligência grosseira» e «falta grave e indesculpável».
Efectivamente, neste último, como reconhecido era (cfr. Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho, 1995, em anotação à indicada Base VI), muito embora pudesse, abstractamente, abarcar os casos de comportamento doloso do sinistrado, não os visava seguramente, sob pena de se tornar redundante em face do que se estatuía na alínea a) do nº 1 que, justamente, curava das situações de provocação dolosa do acidente pela vítima.
E, por isso, as gravidade e indesculpabilidade haveriam de traduzir-se na adopção de um comportamento imprudente, temerário e não explicável por parte do sinistrado, sem relacionamento directo com o trabalho.
Não se descortina que ao referir-se agora a Lei nº 100/97 à negligência grosseira do sinistrado, queira representar uma diversa realidade daquela que era entendida pela jurisprudência e doutrina no domínio da Lei nº 2127.
Na verdade, haverá, desde logo, que considerar a negligência grosseira como o prosseguimento de comportamentos traduzidos na omissão de cuidados e diligência necessários a obstar à produção do resultado indesejado e que seriam de exigir a um homem dotado de conhecimentos médios em face das circunstâncias concretas que se lhe deparavam. Todavia, não basta essa mera omissão, pois que, tratando-se, como se trata, de negligência grosseira, para que este qualificativo legal se alcance, mister é que a falta de cuidados, diligência e zelo se revele como acentuada e indesculpável face ao circunstancialismo rodeador da actuação, por tal forma que, num juízo de prognose póstuma, se alcance um juízo segundo o qual um homem já dotado de boa diligência, se estivesse colocado na posição do sinistrado, não teria prosseguido idêntico comportamento, tendo em conta todas as circunstâncias rodeadoras do evento, aqui se incluindo aquelas que antecederam e até motivaram a actuação.
E, a par disto, exige-se ainda que o comportamento verificado seja causa (adequada, claro está) e exclusiva do sinistro.
É por isso que o diploma regulamentar da Lei nº 100/97 – o Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril –, no seu artº 8º, nº 2, vem consagrar que se entende por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancia em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Não basta, assim, para citar as palavras do mencionado autor, desta feita em anotação ao artº 7º da Lei nº 100/97 (in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, reimpressão, 63) “a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contra”.
E é essa senda que trilha este Supremo Tribunal.
A título de exemplo citar-se-ão os Acórdãos de 22 de Junho de 2005 (Revista nº 360/2005) – em que se entendeu que para se poder afirmar que um acidente de trabalho proveio exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado haverá que verificar, cumulativamente, a existência de dois requisitos, quais sejam um comportamento temerário em elevado grau e a adequação dele, exclusiva, à eclosão do sinistro –, de 6 de Julho de 2006 (Revista nº 578/2006) – onde se disse que nesse mesmo plano de consideração [reportava-se às modalidades de negligência] “a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligênciaparticularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo. Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares. Essa negligência grosseira, a anteriormente denominada «falta grave e indesculpável» [alínea b) do n.º 1 da Base VI da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965], deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta. Assim, para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um acto ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento” –, de 14 de Fevereiro de 2007 (Revista nº 3545/2006) – para o qual, de acordo com o número I do seu sumário disponível em www.dsgi.pt/jstj, a“negligência grosseira que a lei exige para descaracterizar o acidente de trabalho corresponde a culpa grave, pressupondo, para a sua verificação, que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum”, nele se escrevendo que a “negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente). Segundo a terminologia clássica, a negligência também pode assumir diferentes graus, em função da ilicitude e da culpa: será levíssima quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado, será leve quando o parâmetro atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e, enfim, será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria também incorrido.” –, e de 18 de Abril de 2007 (Revista nº 52/2007) – em que se sumariou que a “negligência grosseira corresponde em termos clássicos à culpa grave, a qual pressupõe a omissão pelo agente de um dever de cuidado que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria deixado de observar, ou seja, pressupõe um comportamento temerário, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil e indesculpável, mas voluntária, embora não intencional”.
3. Com este balizamento, é ocasião de volver a atenção para o caso dos autos, atenta a matéria de facto demonstrada.
Não se põe minimamente em causa que a actuação do autor, ao se deslocar de bicicleta a pedais numa parte do percurso cuja circulação a veículos (com ou sem motor) e peões estava interdita no momento, pois que aí operava maquinaria empilhadora (e interdição essa devidamente assinalada e com barreiras de protecção amovíveis), revela, de forma inequívoca, uma falta de consideração pelo perigo que, objectivamente, se abria para a integridade física de quem circulasse nessa parte do percurso, pelo que a vontade do recorrido em percorrer aquela parte da via consubstancia um desprezo pelo risco de sofrer um acidente, já que era perfeitamente previsível, em abstracto, essa ocorrência.
Daí que o comportamento negligente do autor não possa ser minimamente arredado.
A questão que se coloca, porém, é a de saber se esse comportamento foi temerário e acentuado, por sorte a que se atinja a conclusão de que um homem de bastante diligência e bonus pater familiae, colocado na mesma situação do recorrido, a quem foi dito para ir de urgência buscar as chaves do elevador (tendo-lhe sido referido por um Director da empresa à qual prestava serviço, em exclusivo, como trabalhador independente, para ir «ir num pé e voltar noutro») e sendo que, se tivesse de utilizar um outro percurso, este se apresentava com cerca do dobro da distância em linha recta, não actuaria de idêntico jeito.
Não se pode escamotear que se encontra provado que o autor desejou mostrar presteza e eficácia na rápida satisfação do pedido das chaves e que, tinha já, na ida, utilizado o percurso que voltara a utilizar na vinda.
A temeridade comportamental do recorrido, num tal circunstancialismo, não conduz, porém a que se considere que um homem de diligência acentuada e bom pai de família, que desejava, com presteza, satisfazer o solicitado, de todo em todo, não adoptaria similar actuação, por isso que esta era absolutamente inútil, desnecessária e injustificada em face do desiderato de bem servir.
Não existem, por conseguinte, elementos firmes de facto dos quais se possa extrair que a falta de cuidado e diligência do recorrido deva ser qualificada como grosseira, o que consequência a não descaracterização do acidente em causa.
III
Perante o que se deixa exposto, nega-se a revista.