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FRAUDE FISCAL
Sumário
Na criminalização da fraude fiscal (Artº 103º RGIT), o legislador tomou como referência a vantagem patrimonial ilegítima em valor igual ou superior a 15.000€, relativamente a cada declaração a apresentar à administração tributária.
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I.- RELATÓRIO.
1. No PCS n.º 67/09.6IDPRT do Tribunal de Judicial de Baião, em que são:
Recorrente: Ministério Público
Recorrido/Arguido: B…
foi proferida sentença em 2011/Fev./25 a fls. 184-192, que condenou o arguido, para além da taxa de justiça e custas, pela prática, na forma consumada, de um crime de fraude fiscal, da previsão do art. 103.º, n.º 1, al. b) do RGIT, numa pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 5,50, num total de € 930,00.
Nessa mesma sentença foi considerada que a conduta do arguido cuja vantagem patrimonial foi inferior a € 15.000 não era punível.
2. O Ministério Público interpôs recurso em 2011/Mar./09 a fls. 196-201 pugnando “pela revogação da sentença e decidir-se pela condenação do arguido pela prática de um crime de fraude fiscal, levando em conta na medida concreta da pena a aplicar a vantagem patrimonial ilegítima obtida pelo arguido nos períodos 04.06t, 04.09t, 04.12t, 05.03t, 05.06t, 05.012t.”, que correspondem aos meses cujo valor patrimonial é inferior a € 15.000, concluindo, resumidamente que:
1.º) Em face da prova efectuada nos autos, consideramos que o Tribunal a quo deveria ter considerado criminalmente relevantes, para a prática pelo arguido de um crime de fraude fiscal, os períodos 04.06t, 04.09t, 04.12t, 05.03t, 05.06t, 05.09t e 05.12t [1];
2.º) O Tribunal a quo decidiu, ao invés, não dar relevância criminal àqueles períodos considerando que o n.º 2 do artigo 103.º do RGIT consagra uma cláusula objectiva de extinção da responsabilidade criminal, que nos termos do artigo 103.º, n.º 3 os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária e que no caso dos autos cada uma das declarações a que o arguido falhou são de valor inferior a €15.000, faz uma interpretação errada destes segmentos normativos [2, 3, 10-13]
3.º) O artigo 103º nº3 do RGIT não é uma norma especial relativa ao concurso de crimes; se assim a considerássemos, então por cada declaração de imposto em causa teríamos um crime de fraude fiscal em causa, e, aí sim, faria sentido considerar o valor de cada declaração como o valor em causa em cada infracção criminal [4-6]
4.º) A unidade ou pluralidade de infracções no âmbito do crime de fraude fiscal, e também no de abuso de confiança fiscal, deverá ser analisada com recurso às normas e princípios gerais (tendo em conta artigo 3.º, alínea a) do RGIT) [7]
5.º) Quando estivermos perante um só crime, é face aos valores que a prática da infracção envolve, à soma de todos eles, que devemos aferir da dignidade penal da conduta, à luz do artigo 103º nº2 do RGIT, e não encarando cada declaração de per si, sob pena de se atirar pela janela o que não se quis deixar sair pela porta, tornando o sistema sancionatório intoleravelmente incongruente [8]
6.º) O artigo 103º nº3 do RGIT limita-se a fornecer o critério de aferição da conduta do agente, critério que tem de ser o estipulado e não outro – face a determinada conduta, a aferição terá por base a declaração que o agente devesse apresentar, se tivesse agido correctamente e cumprindo a legislação, declaração com a qual deve ser comparada a por ele apresentada; e é face ao contraponto entre uma e outra que se apreciará a conduta, apurando os valores em causa; não tendo esta norma qualquer pretensão a estabelecer uma regra especial de concurso, para efeitos da fraude fiscal, continuando este a aferir-se pelas regras gerais, a soma dos valores das várias declarações envolvidas na prática de um crime é imposta pelo artigo 103º nº2 do RGIT. [9]
3. O arguido não respondeu, tendo os autos sido autuados nesta Relação em 2011/Mai./26, onde o ilustre PGA emitiu parecer em 2011/Jun./07 no sentido de que o recurso não merece provimento, porquanto e em suma “o valor patrimonial se reporta a cada declaração, embora deva incluir todas as facturas falsas ou demais comportamentos típicos relativos ao período da declaração”.
4. Cumpriu-se o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, nada obstando que se conheça deste recurso.
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O objecto do recurso passa exclusivamente por saber se nos crimes de fraude fiscal é possível adicionar os valores de cada uma das declarações devidas ao fisco, quando cada uma delas singularmente representa uma vantagem patrimonial ilegítima inferior a € 15.000.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
Nesta parte transcrevem-se os factos provados:
1. O arguido exerceu, nos anos de 2004 e 2005, a actividade de Construção de Edifícios – CAE …..-, possuindo o nº de identificação fiscal ……… e o domicílio fiscal no …, …, Baião;
2. No que concerne ao IVA, o arguido estava enquadrado no regime de periodicidade trimestral:
3. Estava ainda o arguido obrigado a possuir, escriturar, manter actualizados e proporcionar à Administração tributária para inspecção, pelo menos os livros a que alude o artigo 50º do CIVA;
4. Enquanto manteve a sua actividade, o arguido efectuou vendas e prestação de serviços pelos quais cobrou importâncias que integraram montantes devidos a título de IVA, que acresceram aos preços das mercadorias transaccionadas ou dos serviços prestados;
5. Tais importâncias, pertença do Estado Português, ascenderam ao montante global de € 46.957,79, resultante da soma dos quantitativos de IVA cobrados pelo arguido nos trimestres referidos e devidos ao Estado, tal como a seguir mais bem especificado:
Período IVA Cobrado
04.03t € 15.509,47
04.06t € 13.389,53
04.09t € 5.473,93
04.12t € 4.261,13
05.03t € 3.870,46
05.06t € 304
05.09t € 1.208,95
05.12t € 2.940,30
TOTAL € 46.957,79
6. Tendo apurado, nos termos dos artigos 19º a 25º, 27º e 41º do CIVA que estas quantias eram pertença do Estado Português, o arguido não comunicou a sua existência ao Estado nem lhas entregou, em cada trimestre, como devia, até ao dia 10 do 2º mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitavam;
7. Estas quantias de IVA foram pelo arguido integradas no seu património, fazendo-as suas e delas dispondo, gastando-as em proveito próprio como lhe aprouve;
8. Tomou tal decisão embora soubesse que tais montantes de IVA eram pertença do Estado Português e que a este estava obrigado a entregá-los, através da Direcção de Serviços de Cobrança do IVA, até às datas supra referidas;
9. Ainda por força de tal comportamento, só em 2008, no decurso de acção inspectiva efectuada ao arguido, a Administração Tributária logrou proceder ao apuramento dos montantes devidos pelo mesmo a título IVA;
10. Foi com o intuito de evitar o pagamento do IVA, que era por si devido, e a sua consequente não entrega ao Estado, que o arguido agiu do modo descrito supra;
11. Levou a cabo tal comportamento embora soubesse da obrigação de participar e entregar ao Estado Português as quantias facturadas e recebidas a título de IVA;
12. Mais sabia carecer de autorização do Estado Português para levar a cabo a conduta que se descreveu;
13. Agiu o arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, indiferentes às lesões que causava no património do Estado;
14. Sabia proibidas as suas condutas;
15. O arguido não pagou até hoje as referidas importâncias;
16. O arguido não tem registo de antecedentes criminais;
17. O arguido recebe o subsídio social de desemprego com o valor diário de € 11,78;
18. O arguido tem inscrito a seu favor a propriedade de um prédio sito na freguesia de ….
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2. Os fundamentos do recurso
A Constituição e o catálogo dos direitos fundamentais vinculam não só o legislador, como o intérprete dos actos legislativos, procurando-se aí o sentido jus-fundamental da “ratio legis” [8.º, 16.º, 17.º, 18.º, n.º 1 Constituição], de modo não só a compatibilizar a função legislativa e judicial com os efeitos jurídico-fundamentais de natureza “erga omnes” dali provenientes, como a preservar a integridade e a validade do direito [9.º Código Civil].
Daí que toda a interpretação da norma legal penal, cuja estrutura comporta, em regra, uma descrição típica da conduta proibida e a sua consequência jurídico-penal, esteja sujeita e vinculada às “ingerências” constitucionais que para aí se dirigem, com destaque para as respectivas directivas jus-fundamentais.
E isto quer se parta da sua estrutura lógica ou estática (norma primária dirigida ao cidadão/norma secundária dirigida ao juiz) ou então, como ultimamente tem sido proposto, da sua estrutura comunicativa ou funcional, decorrente de um sistema de processos de interacção e comunicação entre os seus destinatários (sujeito activo, sujeito passivo, Estado), em que surge uma norma de conduta (“Steuerung”) e uma norma de regulação (“Regelung”).(1)
Assim, ao interpretar-se a lei e quando esteja em causa a eficácia dos direitos fundamentais, não se devem encontrar restrições onde as mesmas não existem no texto legal e onde possam existir espaços de imperceptibilidade em se extroverter o seu sentido legislativo (“austerlegen”), os mesmos devem ser preenchidos pelo conteúdo útil dos direitos fundamentais em concurso.
Tudo isto para que, num primeiro momento, se catalisem os “efeitos de irradiação” [18.º, n.º 1 Constituição] dos direitos fundamentais, de modo que os mesmos não fiquem irremediavelmente bloqueados e, num segundo momento, se preservem o seu “núcleo essencial” [18.º, n.º 3 Constituição], obstando a que os mesmos surjam esvaziados ou completamente inócuos.(2)
Por outro lado, o direito penal, atento o ancoramento que o mesmo deve ter na actual narrativa constitucional, não é um fim em si mesmo, mas antes um sistema normativo ao serviço da convivência e das necessidades humanas no âmbito de um Estado de Direito Democrático [1.º, 2.º, 17.º, 18.º, 29.º e 30.º Constituição].
A isto acresce que a legitimidade do direito penal tem sempre o seu fundamento e validade na Constituição e na própria vigência dos direitos fundamentais, sobressaindo daí e como critério interpretativo o princípio constitucional da proporcionalidade [18.º, n.º2; 19.º, n.º 4 e n.º8; 30.º, n.º 5 parte final; 270.º; 272.º, n.º 2,todos da Constituição; 29.º, n.º 2 DUDH] (3), designadamente quando estão em conflito ou em colisão direitos fundamentais, ainda que sujeito a critérios operativos de adequação, necessidade e razoabilidade (4) [Ac TC 25/84, 85/85, 64/88, 287/90, 349/91, 363/91, 426/91, 152/93, 634/93, 370/94, 441/94, 494/94, 59/95, 572/95, 574/95, 758/95, 958/96, 1182/96, 195/2003, 594/2003, 38/2004, 219/04, 159/2005, 640/2005, 698/05, 67/2007, 471/2007, 556/2007, 557/2007, 278/2008, 164/2008, 512/2008, 62/2011, 95/2011].(5)
Aliás, encontra-se actualmente expresso que “As penas não devem ser desproporcionadas em relação à infracção” [49.º n.º 3CDFUE; 8.º, n.º 4 Constituição], o que se projecta na justa medida das reacções penais (dimensão positiva) e na proibição do excesso (dimensão negativa) na tutela dos bens jurídico-penais.(6)
Esse confronto é por demais patente quando, por um lado, está em causa o exercício do “jus puniendi” do Estado, para protecção dos direitos e interesses fundamentais dos cidadãos ou mesmo públicos (bens jurídicos carentes de tutela penal) e, por outro lado, surge a compressão de outros direitos e interesses fundamentais dos cidadãos, seja directamente (individuais) ou indirectamente (colectivos), como sucede quando os mesmos são alvo de medidas coactivas ou de reacções penais restritivas ou excludentes da liberdade.
Assim, tomando como referência o princípio da dignidade da pessoa humana [1.º; 24.º, n.º 1, 25.º da Constituição; 5.º da DUDH; 3.º, n.º 1 da CEDH; 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do PIDCP; 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º da CDFUE] e a directriz decorrente do princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal [18.º, n.º 2 Constituição], tanto a definição normativa do crime, como a subsequente estatuição de uma reacção penal, apenas encontram justificação se estiver em causa a protecção de um bem jurídico-penal.
Tal só sucederá se o mesmo tiver a suficiente importância social para ser protegido (processo de selecção) e se for necessária a correspondente tutela penal, já que esta sempre implica um controlo social jurídico-penal.(7)
Por outro lado, daquele princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal resultam dois limites ao fundamento funcional do direito penal de protecção dos bens jurídico-penais.(8)
O primeiro é que o direito penal deve ser sempre uma “ultima ratio” (carácter secundário ou subsidiário) para a tutela do interesses sociais que se pretendem acautelar, só devendo intervir quando não existirem ou sejam insuficientes outros meios ou mecanismos que assegurem essa protecção.
O segundo corresponde à natureza fragmentária do direito penal (carácter primacial ou exclusivo), mediante o qual o “jus puniendi” apenas se deve exercer na medida em que for necessário para a protecção da sociedade, excluindo-se, por isso, da sua tutela as lesões insignificantes ou menos relevantes.
Este princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal, nestas duas vertentes, tem, naturalmente, reflexos nos pressupostos de punibilidade, incluindo as condições objectivas da punibilidade.(9)
Partindo dos mesmos constrangimentos constitucionais e estando em causa a protecção do mesmo bem jurídico, só tem aceitação a incriminação distinta e plúrima de condutas que protejam o mesmo bem jurídico-penal, se existir uma relevante justificação social e jurídico-penal para se diferenciarem as condutas criminosas que violem tal bem jurídico.
Nesta conformidade, atento o princípio geral da dignidade da pessoa humana e o princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal, tanto na vertente da exclusiva protecção dos bens jurídico-penais, como na vertente da necessidade das penas, só um maior ou menor desvalor dos factos, seja ao nível da acção, seja ao nível do seu resultado, que seja revelador de uma maior ou menor ilicitude e culpa, justifica uma maior ou menor gravidade de punição.
Também não nos podemos esquecer que o fundamento constitucional último do direito penal, que neste caso será o direito penal tributário, é gerar espaços de liberdade, bem como de segurança e, através destes, de convivência social [3.º DUDH; 9.º PIDCP; 5.º CEDH; 6.º CDFUE] e não o exercício do “jus puniendi” estadual.
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Por outro lado, tanto o princípio da legalidade [29.º, n.º 1 e 3 Constituição], como a exclusividade da actividade legislativa [112.º, 161.º, 164.º, 165.º, Constituição] e da separação de poderes [111.º, Constituição], não permitem interpretações dos tipos legais de crime que sejam autênticos actos legislativos sem soberania legislativa [Ac. TC n.º 173/85].
A ser assim, atento este princípio constitucional da legalidade e o princípio democrático da reserva de lei, o limite da interpretação da lei penal deve conter-se entre o “sentido possível das palavras” descritas no correspondente tipo legal e o “mínimo de correspondência legal” a que se refere o art. 9.º do Código Civil.(10)
Em suma, a aprovação da lei penal e as suas opções político-criminais, enquanto norma de valoração negativa de uma conduta humana e norma de determinação que proíbe essa mesma conduta, ao mesmo tempo que estabelece a correspondente reacção penal, são da exclusiva competência do poder legislativo e não do poder judicial.
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O crime de fraude fiscal da previsão do art. 103.º, n.º 1 do RGIT pune “as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias”.
Mais aí acrescenta-se que “A fraude fiscal pode ter lugar por: a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável; b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária; c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
Porém e de acordo com o subsequente n.º 2 “Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15000”(11), considerando-se como tal os valores “que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.” [103.º, n.º 3].
Por sua vez, já ocorrerá uma contra-ordenação de falsificação, viciação e alteração de documento fiscalmente relevante da previsão do art. 118.º, n.º 1 do RGIT, relativamente a “Quem dolosamente falsificar, viciar, ocultar, destruir ou danificar elementos fiscalmente relevantes, quando não deva ser punido pelo crime de fraude fiscal”, punindo-se esta conduta “com coima variável entre € 500 e o triplo do imposto que deixou de ser liquidado, até € 25.000”.
O bem jurídico tutelado nestes crimes de fraude fiscal tem uma natureza complexa, em que está subjacente a ideia de cidadania fiscal e a preservação do núcleo essencial do dever fundamental de pagar impostos [12.º, n.º 1; 13.º; 81.º, al. b; 103.º, n.º 1 e 3, 104.º, n.º 1; Constituição], os quais são extensíveis às pessoas colectivas [12.º, n.º 2 Constituição], partindo-se principalmente de dois pressupostos.
O primeiro é que o apuramento da matéria colectável tem por base e essencialmente as declarações apresentadas pelo contribuinte, enquanto sujeito passivo da relação tributária, impondo-se ao mesmo um dever de verdade tributária, já que é a partir dessas declarações, nomeadamente os factos ou valores que aí são inscritos, que se vai permitir à administração fiscal controlar os rendimentos tributáveis e se necessário determiná-los ou avaliá-los [57.º e 66.º do CIRS; 16.º, 70, 96.º, 97.º do CIRC, 28.º n.º 1, al. c), 40.º, n.º 1 e 82.º do CIVA; 48.º do CIMSISD].
O segundo é que é através da cobrança de impostos que se preserva o património fiscal do Estado e sabido que os fins perseguidos e fixados no nosso ordenamento constitucional fiscal apontam para a realização tendencial de uma justiça distributiva, em que é patente a necessidade de implementação de um sistema de repartição justa dos rendimentos [103.º, n.º 1 da Constituição].(12)
Em conformidade, podemos assentar que nos crimes de fraude fiscal tutela-se essencialmente a preservação da transparência e da verdade fiscal, mediante a criminalização das condutas aí tipificadas como de defraudação tributária, e, de um modo reflexo, protege-se o património fiscal do Estado [Ac. STJ 1999/Nov./10; 2000/Out./12 CJ (S) III/194; 2001/Mar./14, 2001/Jul./05, 2003/Mai./21].(13)
Trata-se, tanto no seu tipo base, como qualificado da previsão do art. 104.º, de um crime de perigo [Ac. STJ 2007/Nov.27], pois estão em causa as condutas que sejam “susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias” [103.º, n.º 1 parte final RGIT], não se exigindo que haja o efectivo prejuízo resultante de uma real diminuição das receitas fiscais, mas antes que as respectivas condutas típicas sejam aptas a causar essa diminuição.(14)
No entanto e por razões de conveniência político-criminal fixou-se como pressuposto da criminalização da conduta de defraudação tributária, através daquele art. 103.º, n.º 2, que esta não seria punível se “a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15.000”.
Tal patamar provoca, naturalmente, algumas perplexidades interpretativas, porquanto num crime de perigo, em que se prescinde do resultado, estar-se-ia a exigir um resultado mínimo (uma vantagem patrimonial ilegítima igual ou superior a € 15.000) para a perfeição da sua descrição típica ou então para a sua punibilidade.
Mantendo a caracterização destes ilícitos como crimes de perigo, apenas será possível conceber o n.º 2 deste artigo 103.º, partindo-se do pressuposto que só é punível a conduta de defraudação fiscal se a mesma for susceptível e se mostrar idónea a causar uma diminuição de receitas tributárias cuja vantagem patrimonial ilegítima corresponda a, pelo menos, € 15.000.
Nesta conformidade, trata-se de uma circunstância que foi adicionada aos elementos do tipo do crime de fraude fiscal, que não chega a integrar a sua descrição objectiva e muito menos subjectiva do tipo-base, mas que fundamenta a sua punibilidade, tratando-se, por isso, de uma condição objectiva de punibilidade. (15)
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Este patamar da vantagem patrimonial ilegítima corresponder a cada declaração legalmente devida tem também reflexos a nível de direito comparado, sendo certo que o legislador português acercou-se do legislador espanhol na previsão dos “delitos contra la Hacienda Pública y contra la Seguridad Social”, designadamente no estabelecido no 2 do art. 305.º do seu Código Penal.(16)
Mas aproximou-se sem transpor totalmente o que se encontra aí estipulado, porquanto no caso das declarações legalmente devidas corresponderem a um período inferior a 12 meses, sempre se atenderia à totalidade das declarações do respectivo ano natural.
Nesta conformidade, fica claro que o RGIT, pelo menos nesta vertente da atendibilidade ou da relevância penal do valor manifestado nas declarações fiscais por parte do contribuinte, quis afastar-se das declarações tributárias respeitantes ao “ano natural”, quando o respectivo período for inferior a um anos, dos “delitos contra la Hacienda Pública y contra la Seguridad Social”.(17)
Daí que esta referência legal “à declaração a apresentar à administração tributária”, seja, sem dúvida, um obstáculo legal à configuração de uma resolução criminal única, como já se tem entendido(18), ou então à existência de um crime de execução permanente – mormente quando a vítima é o Estado –, como enuncia o recorrente Ministério Público, mas da qual diverge o ilustre PGA junto desta Relação.
Mas mais relevante que qualquer leitura sistémica da tipologia criminal é a leitura jusfundamental, partindo-se das exigências constitucionais que condicionam qualquer interpretação legislativa, as quais deixámos anteriormente sublinhadas.
Por isso, atento os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da intervenção mínima do direito penal, que lhe confere uma natureza fragmentária, reforçado por ponderações constitucionais de proporcionalidade, sem esquecer o princípio democrático de reserva de lei, temos igualmente de sujeitar o crime de fraude fiscal à respectiva condição de punibilidade, tendo subjacente cada declaração a apresentar à administração tributária.
Assim e quer se entenda que a não punibilidade dos factos de defraudação do fisco susceptíveis de causar uma “vantagem patrimonial ilegítima … inferior a € 15.000” [103.º, n.º 2], corresponde a uma condição objectiva de punibilidade ou integra antes o elemento descritivo do crime de fraude fiscal, o certo é que o legislador foi claro em ter optado pela criminalização dessa conduta “antitributária” a partir de certo valor, tomando como referência cada declaração a apresentar à administração tributária.
Nesta conformidade, em nenhum momentos o valor de cada uma dessas declarações pode ser somado para integrar o tipo-base ou o tipo-qualificado, pelo que não existe qualquer censura a fazer à sentença recorrida.
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III.- DECISÃO.
Nos termos expostos, não se concede provimento ao presente recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Não é devida tributação.
Notifique
Porto, 28 de Setembro de 2011
Joaquim Arménio Correia Gomes
Carlos Manuel Paiva do Espírito Santo
______________________
(1) MIR PUIG, Santiago, Introducción a Las bases del Derecho Penal, Editorial BdeF, Montevideu-Buenos Aires, 2007, p. 20 e ss., com destaque para p. 26 a 29.
(2) NOVAIS, Jorge Reis, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 80 e ss.; MOREIRA, Isabel, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, Almedina, Coimbra, 2007, p. 91.
(3) Esta perspectiva de princípio como critério interpretativo não advém de uma consagração expressa mas antes de dispersas referências constitucionais quando está em causa a limitação dos direitos fundamentais, com destaque para o art. 18.º, n.º 2 Constituição quando se alude a “limitar-se ao necessário”, mas que também se encontram noutras proposições constitucionais respeitantes à suspensão do exercício de direitos (“respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, …, ao estritamente necessário” do art. 19.º, n.º 4 ou “providências necessárias e adequadas” do art. 19.º, n.º 8), aos limites das penas e das medidas de segurança (“e às exigências próprias da respectiva execução” do art. 30.º, n.º 5 parte final), às restrições do exercício de direitos (“na medida das exigências” do art. 270.º) e às medidas de policia (“para além do estritamente necessário” referidas no art. 272.º, n.º 2); 29.º, n.º 2 DUDH].
(4) Estes subprincípios da adequação ou idoneidade, necessidade ou exigibilidade e da racionalidade ou proporcionalidade em sentido estrito, são comummente reconhecidos entre nós: MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional” Tomo IV – Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 218; CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 392/393; Veja-se também ALEXANDRINO, José de Melo, Direitos Fundamentais – Introdução Geral, Principia, Cascais, 2010, p. 78;CORTÊS, António Ulisses, Jurisprudência dos Princípios – Ensaios Sobre os Fundamentos da Decisão Jurisprudencial, UC Editora, Lisboa, 2010, pp. 272/273. Mas também de um modo geral: ALEXY, Robert, A theory of Constitucional Rights, Oxford UP, 2002, p. 66 a 69: Em particular MIR PUIG, Santiago, “O Princípio da Proporcionalidade enquanto Fundamento Constitucional de Limites Materiais do Direito Penal”, na Revista Portuguesa Ciência Criminal (RPCC), 19 (2009), pp. 12 e 13, 27.
(5) Acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
(6) Esta ideia de proporcionalidade entre delito e pena já remonta a Cesare Beccaria, Dei Delitti e Delle Pena, Edição de Harlem, Livorno, 1766, traduzido em português sob o título Dos Delitos e das Penas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1998, p. 72.
(7) STRATENWERTH, Günther, Derecho Penal, Parte General, I – El Hecho Punible, Edersa, Madrid, 1982, p. 3 a 9; JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal – Parte General, Editorial Comares, Granada, 1993, 6, 7; JAKOBS, Günther, Derecho Penal Parte General – Fundamentos y teoria de la imputación, Marcial Pons, Madrid, 1997, p. 44 e ss., relativamente à legitimação material do direito penal; MIR PUIG, Santiago, Estado, Pena y Delito, Editorial BdeF, Montevideo, Buenos Aires, 2006, p. 334, o qual parte da concepção de um direito penal democrático ao serviço dos cidadãos; FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, Direito Penal Parte Geral, Tomo I, 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 127 e ss., onde se alude ao critério da “necessidade” da tutela penal; FERREIRA da CUNHA, Maria da Conceição, Constituição e Crime – uma perspectiva da criminalização e da descriminalização, UCP – Editora, Porto, 1995, p. 217 e ss, que se reporta essencialmente ao grau de danosidade social e da necessidade de tutela penal, sendo certo que são os valores constitucionais que legitimam, mas também limitam, o poder criminalizador do Estado.
(8) MIR PUIG, Santiago, Introducción a las Bases del Derecho Penal, Editorial BdeF, Montevideo, Buenos Aires, 2007, p. 108 a 112.
(9) ANDRADE, Manuel da Costa, “A Dignidade Penal e a Carência de Tutela Penal como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime”, Revista Portuguesa Ciência Criminal (RPCC), 2 (1999), p. 200.
(10) BRITO, José de Sousa, em “A lei penal na constituição”, em “Estudos sobre a Constituição”, Livraria Petrony, Lisboa, 1978, p. 252.
(11) Redacção da Lei n.º 60-A/2005, de 30/Dez., que, no seu artigo 60.º, veio alterar o primitivo valor de € 7.500 para o actual.
(12) “O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”.
(13) Acessíveis em www.dgsi.pt quando não seja indicada qualquer outra localização.
(14) Atente-se que é para aqui que remete o proémio do art. 104, n.º n.º 1 do RGIT, ao estabelecer que “Os factos previstos no número anterior…” são punidos de modo mais grave se se verificaram, pelo menos, duas das circunstâncias qualificativas aí enunciadas.
(15) Neste sentido, AIRES de SOUSA, Susana, em Os Crimes Fiscais – Análise Dogmática e Reflexão Sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 89; Em sentido similar, na anotação ao art. 305.º § 1.º do Código Penal Espanhol MUNÕZ CONDE, Francisco, Derecho Penal – Parte Especial, Tirant lo Blanch, Valência, 1999, p. 993; Em sentido distinto, de que aquele prejuízo ou valor é um elemento do tipo, mas sem dar qualquer justificação, MARQUES DA SILVA, Germano, em Direito Penal Tributário, UC Editora, Lisboa, 2009, p. 234; Em Espanha, MORALES PRATS, Fermin, Comentários al Nuevo Código Penal, Thomson-Aranzadi, Navarra, 2005, p. 1546, considera que aquele valor integra o resultado típico do crime; Sobre esta controvérsia PÉREZ, Derecho Penal Económico y de la Empresa – Parte Especial, Tirant lo Blanch, Valência, 2005, p. 557 e ss. e sobre a noção de condição objectiva de punibilidade Roxin, Claus, Derecho Penal – Parte General, Tomo I, Editorial Civitas, 1997, p. 970 e ss.
(16) Aí se diz que “A los efectos de determinar la cuantía mencionada en el apartamento anterior, si se trata de tributos, retenciones, …, se estará a lo defraudado en cada período impostivo o de declaración, y se éstos son inferiores a doce meses, el importe de los defraudados se referirá al año natural”.
(17) A propósito das diversas questões suscitadas com o referido “delito contra la Hacienda Pública” veja-se PRATS, Fermin Morales, Comentários al Nuevo Código Penal, Thomson-Aranzadi, Navarra, 2005, pp. 1544-1547.
(18) “Comete um só crime de abuso de confiança fiscal o agente que, em obediência a uma única resolução tomada em 1999, deixa de entregar à administração fiscal, dando-lhes outro destino, as prestações tributárias deduzidas e liquidadas desde essa altura até 2004”, Ac. R. Porto de 2008/Jul./09, relatado pelo Des. Francisco Marcolino, acessível em www.dgsi.pt.