ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDIÇÃO DE PUNIBILIDADE
CRIME OMISSIVO
CONSUMAÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
Sumário


I - As condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos do tipo situados fora do delito cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte da acção.
II - Por seu turno, os pressupostos processuais são regras do procedimento cuja existência se fundamenta na possibilidade de desenvolver um processo penal e ditar uma sentença de fundo. Como os pressupostos processuais pertencem exclusivamente ao direito processual não afectam nem o conteúdo de ilícito, nem a punibilidade do facto, limitando-se exclusivamente a condicionar a prossecução da acção penal.
III - O abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia, ou seja, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito. A norma do art. 105.º do RGIT não permite outra interpretação, e reconduzir ao núcleo da ilicitude e da tipicidade o que são condições de exercício da acção penal não está de acordo com o espírito ou a letra da lei.
IV - No que respeita ao bem jurídico tutelado, o que está em causa não é a mora, que constitui uma mera condição de punibilidade, mas sim a conduta daquele que, perante a Administração Fiscal, agindo esta no interesse público, omite um dos seus deveres fundamentais na sua relação com o Estado.
V - Assim, face à alteração legal introduzida no art. 105.º do RGIT pelo art. 95.º da Lei 53-A/2006, de 29-12 (Lei do Orçamento de Estado de 2007), encontramo-nos perante uma condição objectiva de punibilidade, na medida em que se alude a uma circunstância em relação directa com o facto ilícito, mas que não pertence nem ao tipo de ilícito nem à culpa: constitui um pressuposto material da punibilidade.
VI - Na verdade, na condição de punibilidade expressa-se o grau específico de violação da ordem jurídica, enquanto no pressuposto processual responde a circunstância que se opõe ao desenvolvimento do processo penal. A ausência da primeira conduz à absolvição e a do segundo ao arquivamento.
VII - Por qualquer forma, quer em relação à condição objectiva de punibilidade, quer em relação ao pressuposto processual, estamos em face de institutos cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções jurídico-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com a efectivação de punição, onde encontram a sua razão de ser, devendo ser dado o tratamento mais favorável (cf. art. 29.º da CRP).
VIII - Recorrendo a uma interpretação literal do art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, verifica-se que a punibilidade está dependente da condição de a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não ser paga. E o apelo ao elemento racional e histórico não deixa qualquer margem para dúvida: é o próprio legislador que, ao alterar a norma, consagra no Relatório do Orçamento de 2007 a diferença entre o sujeito passivo que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regulariza a situação tributária em prazo a conceder, e aquele que não cumpre a obrigação declarativa, denotando uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal.
IX - Assim, uma vez que, no caso, o pressuposto da actuação do ilícito fiscal imputado não reside na assunção voluntária daquela obrigação declarativa, não merece censura a decisão recorrida ao considerar ser inaplicável a exigência prevista na actual redacção da al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT, em virtude de os impostos em causa resultarem de actividade inspectiva levada a cabo pela Direcção de Finanças competente.

Texto Integral





Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, BB e CC vieram interpor recurso da decisão proferida nos presentes autos que entendeu ser inaplicável a exigência prevista na alínea b) do nº4 do artigo 105 do RGIT introduzida pela lei do Orçamento de Estado de 2007 em virtude de os impostos em causa no caso concreto resultarem de actividade inspectiva levada a cabo pela Direcção de Finanças competente.
As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:
I.Foram os arguidos, ora recorrentes, condenados pela prática do crime previsto e punido no artº 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/200 I, de 5 de Junho, abreviadamente designado por RGIT. Ora,
II.Sucede que em 1/01.2007 entrou em vigor a alteração da norma legal incriminadora dos factos apreciados nos autos, efectuada pelo art.º 95° da Lei nº 53-A/2006, de 29/12, razão pela qual, formularam os recorrentes requerimento no qual invocaram perante o Tribunal "a quo" a aplicação do novo enquadramento legal.
III.Aí alegaram que a conduta do infractor apenas deverá ser passível de sanção mediante a verificação cumulativa dos requisitos impostos pelo nº 4 do artº 105° do RGIT e que verificando-se uma verdadeira sucessão de leis penais, deverá ser trazido à colação o princípio da aplicação retroactiva da Lei Penal de conteúdo mais favorável a o arguido, consignada no artigo 29° da Constituição da República Portuguesa e no artigo r do Código Penal;
IV. Defendendo os recorrentes que o novo requisito de punição conduz à despenalização da sua conduta, por não se verificarem todos os pressupostos de punibilidade estabelecidos.
V. Sobre este requerimento proferiu o Venerando Tribunal da Relação acórdão, do qual ora se recorre, no sentido de não ser aplicável, no caso, a exigência prevista na alínea b) do nº 4 do art.º 105° do RGIT, em virtude de os impostos em causa resultarem de actividade inspectiva levada a cabo pela Direcção de Finanças competente, improcedendo, nestes termos a pretensão formulada.
VI-.Contrariamente ao entendimento propugnado pelo Venerando Tribunal "o quo" sempre a alteração do art. 105° do RGIT introduzi da pela Lei n.º 53-A/2006, de 29/12, impunha decisão contrária e. consequentemente, a extinção do procedimento criminal por inobservância da nova condição de punibilidade.
VII.De facto, constam dos autos as declarações que o Venerando Tribunal considera erroneamente como estando em falta, as quais foram, todavia, apresentadas através dos modelos legais e que se encontram juntas aos autos.
VIII.Ora, se a nova redacção da disposição legal constante do art.º 105° do RGIT não exige que esta comunicação seja efectuada em determinado prazo, mas apenas que mesma seja realizada, ao decidir de forma diversa por não ter examinado os documentos constantes dos autos existe claramente erro notário na apreciação da prova que, nos termos do disposto na alínea c) do nº 2 do artº 410° aplicável por força do disposto no art. 434°, ambos do Código de Processo Penal, constitui matéria que pode ser conhecida e apreciada pelo Tribunal "ad quem".
IX. Sendo, desta forma, inequívoca a aplicação no caso "sub judicie" da nova condição de punibilidade, sempre deverá ser proferida decisão que considere extinto o procedimento criminal, pois, a alteração legislativa ocorrida introduziu uma nova condição de punibilidade. sendo exigível que, para que se verifique um crime de abuso de confiança fiscal, para além do decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação, exista o não pagamento na sequência da notificação ora legalmente imposta.
X.Com efeito, o princípio geral do direito penal é o do tempus regit actum,por força do qual. por via de regra, os factos devem ser apreciados de acordo com a lei que estava em vigor no momento da sua prática, todavia, tal princípio não tem aplicação absoluta, pois já serão retroactivamente aplicáveis as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, conforme resulta claramente do artigo 29.°, n.º 4,2: parte da CRP.
XI. Deste modo, considerando que a alteração legislativa ocorrida é de conteúdo manifestamente favorável aos recorrentes, deverá verificar-se "in casu" o respeito do principio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido, razão pela qual, no caso sub judice, só passará a haver uma conduta criminalmente censurável e susceptível de ser punida como tal - facto típico-ilícito, culpável e punível depois de verificado o não pagamento,
XII.Para tal entendimento concorre também a definição do crime constante da alínea a) do nº 1 do art. 1 do Código de Processo Penal - como o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança -, pois. a conduta do agente só é susceptível de vir a ser considerada crime depois do preenchimento da condição ora prevista na referida alínea do citado art. 105° do RGIT.
XIII.E isto não pode deixar de ser considerado como uma descriminalização ou despenalização devendo findar o processo, visto que, por força da alteração-lei mais favorável aos recorrentes - a conduta destes deixou de ser
XIV.Pelo que deverá ser julgado extinto o procedimento criminal. sendo determinado o seu arquivamento, por inobservância da condição de punibilidade que impõe a existência de notificação para pagamento. e consequentemente por não existir qualquer conduta passível de ser considerada como crime.
Respondeu o Ministério Público advogando a manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância o ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto pronunciou-se pela forma constante de fls.
Os autos tiveram os vistos legais.
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A compreensão do tema em debate pressupõe uma recopilação dos elementos constantes dos autos por forma a permitir uma compreensão global.
Assim,
-Em 29 de Novembro de 2006 o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a decisão de primeira instância na condenação dos recorrentes pela prática, em co-autoria de um crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 24 do RGIT.
Posteriormente a algumas vicissitudes processuais, e em 10 de Janeiro de 2007, os recorrentes, face á alteração introduzida no artigo 105 do RGIT pelo artigo 95 da Lei 53-A/2006, vieram requerer a declaração de extinção do procedimento criminal por inobservância da condição de punibilidade que impõe a existência de notificação para pagamento.
Sobre tal pedido incidiu o despacho ora sob recurso e no qual consta que:
“Na verdade, já depois de publicado o acórdão deste Tribunal, foi publicada a "Lei do Orçamento do Estado" para 2007 (Lei 53-A/20006 de 29.12) que procedeu à alteração da redacção do art. 1050 do RGIT
Com a nova redacção o art. 1050 do RGlT passou a ter a seguinte redacção:
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - E aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
A redacção do preceito manteve-se, salvo o nº4 cuja redacção anterior equivale agora à alínea a), tendo-lhe sido aditada a alínea b) - redacção destacada a itálico, na transcrição efectuada.
De onde resulta claro que o preceito não foi revogado, não existindo uma descriminalização pura e simples da conduta. Mantêm-se inalterados os elementos quer do tipo objectivo quer do tipo subjectivo do crime, apenas exigindo, ex novo, a notificação do devedor para proceder ao pagamento.
Desde que verificado o respectivo pressuposto: - no caso de" prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração".
Introduzindo assim um elemento adicional, que tudo indica teve em vista proceder a uma demarcação clara entre a contra-ordenação e o crime previstos no mesmo artigo. Assim neutralizando a crítica que vinha sendo dirigida ao tipo de crime, como melhor se verá infra.
Assim, a aplicação do regime mais favorável não equivale a descriminalizar, sem mais, uma conduta que continua a ser tipificada como crime. A aplicação do regime mais favorável em concreto apenas exigirá que se assegure, processualmente, a verificação da nova circunstância introduzida, a notificação.
Não se trata de uma pura descriminalização, mas da aplicação, no tempo, em concreto de uma exigência adicional entretanto surgida no ordenamento jurídico. Não podendo exigir-se que a acusação previsse um requisito inexistente na altura em que foi deduzida. O que equivaleria, além do mais, à aplicação retroactiva da lei processual penal.
Não podendo recusar-se a aplicação da exigência da notificação aos casos não transitados em julgado. Mas não podendo ter-se por descriminalizada, sem mais, uma conduta que continua a ser punida.
O cumprimento do disposto no art. 2°, nº4 do CP apenas exigirá assim, salvo melhor opinião, na salvaguarda do cumprimento da lei substantiva, a adequação de mecanismos processuais à nova exigência da notificação.
Isto atento o princípio do princípio da instrumentalidade do processo em relação ao direito substantivo - cfr, F. Dias Direito processual Penal, ed. de 1974, p. 33),
Ou o princípio da adequação da lei adjectiva ao direito substantivo previsto no art. 265°-A do CPC, aplicável ex vi do art. 4° do CPP. o que, no caso, encontrando-se o processo numa fase em que o recurso da decisão final havia sido já julgado pelo Tribunal de 2ª instância, apenas exigiria que aqui lhe fosse dado cumprimento.
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De qualquer forma, no caso em apreço, a referida exigência de notificação não tem aplicação. Com efeito a nova exigência apenas se aplica, como resulta do enunciado do preceito, aos casos em que a caso de" prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração".
Sendo certo que a distinção agora operada pelo legislador assenta em situações materialmente diferenciadas entre si e como tal carentes de distintas formas de tutela: de um lado o devedor que colabora com a Administração Tributária, declarando, na base de uma relação de confiança, os valores que reconhece dever; de outro o devedor que sonega a declaração de imposto, mantendo-se absolutamente relapso no cumprimento dos seus deveres tributários.
Situações diferentes que como tal o legislador quis distinguir claramente, como resulta de forma explícita do próprio relatório da Lei do Orçamento (pag. 44 com destaques, como todos os do texto, do relator):
«A entrega da prestação tributária (retenções de IR/selo e IVA) está actualmente associada à obrigação de apresentação de uma declaração de liquidação/pagamento. A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração. Quando a não entrega da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal. O mesmo não se poderá dizer, quando a existência da dívida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração, que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva.
Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do posto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente.
Neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a "proliferação" de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto».
Na sequência de tal exposição de motivos, resulta da simples leitura da adicionada alínea b) do nº4 do art. 105 que a exigência da notificação apenas se aplica nos casos em que a prestação é "comunicada" à administração, pelo devedor tributário, através da competente" declaração" voluntária, procedendo à respectiva auto-liquidação, numa relação de confiança e boa-fé.
O que melhor se compreende ainda numa outra perspectiva: a de imunizar o crime das críticas que haviam sido formuladas pela doutrina, tendo-o por inconstitucional, por homogeneização das condutas puníveis como crime e como contra-ordenação, em violação do princípio da dignidade penal e carência de tutela penal- confr. Costa Andrade RLJ, Ano 134, n,os 3922-3933, p. 310 a 321.
Ora, no caso dos autos, como se adiantou supra acerca da arguição da nulidade do acórdão, os impostos relevantes para a condenação (extirpados pelo acórdão deste Tribunal os relativos a meras presunções) assentam no apuramento efectuado por uma Inspecção Tributária.
Assim, não se verifica, no caso o pressuposto de aplicação da notificação agora aditada: os impostos em causa não resultam de "declarações" apresentadas neste sentido v. o acórdão deste Tribunal proferido no Recurso nº 20/01. 8IDMGR.C1, em harmonia com o entendimento uniforme deste Tribunal.
Com efeito, como resulta da matéria de facto provada e melhor se alcança do auto de notícia (cfr. fls. 4 e segs. e 165-176 dos autos) que deu origem aos presentes autos, bem como da motivação da decisão de facto em 1ª instância e da motivação da reapreciação da decisão da matéria de facto em via de recurso, o apuramento dos valores em falta resultaram do apuramento efectuado por uma Inspecção tributária, levada a cabo pelos serviços de Finanças, precisamente com base na falta de apresentação voluntária das declarações.
Sendo certo que as declarações" referidas na matéria de facto provada foram apresentadas por efeito e para sanar vícios detectados pela referida Inspecção Tributária, não podendo, por isso, dela ser autonomizadas.
Nem faria sentido a notificação para pagamento daquilo que nunca reconheceu e sempre recusou pagar - continuando os recorrentes a fugir ao pagamento sob os mais variados pretextos.
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Pelo que, por inaplicável, no caso, a exigência prevista na al. b) do n.º4 do art. 105 do RGIT, em virtude de os impostos em causa resultarem de actividade inspectiva levada a cabo pela Direcção de Finanças competente, improcede a pretensão formulada”.
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A matéria em apreço na decisão recorrida já foi objecto de pronuncia por este Tribunal, em decisão subscrita pelo mesmo Colectivo, afirmando-se, em relação á alteração originada pela nova redacção atribuída ao artigo 105 da RGIT na a redacção atribuída pelo artigo 95 da Lei nº53-A/2006 (Lei do Orçamento) que a questão suscitada entronca directamente com a da distinção entre condição objectiva de punibilidade e pressuposto processual.
Argumentou-se, então, no sentido de que o poder punitivo do Estado é fundamentalmente desencadeado pela realização do tipo imputável ao autor.
Não obstante, em determinados casos, para que entre em acção o efeito sancionador requere-se outros elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo. Por vezes essas inserções ocasionais da lei, entre a comissão do ilícito e a sanção concreta, inscrevem-se no direito material- hipótese em que se fala de condições objectivas ou externas de punibilidade- noutros casos constituem parte do direito processual e denominam-se pressupostos processuais.
As condições objectivas do punibilidade são aqueles elementos do tipo situados fora do delito cuja presença constitui um pressuposto para que a acção anti jurídica tenha consequências penais Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção.
Por seu turno, os pressupostos processuais são regras do procedimento cuja existência se fundamenta na possibilidade de desenvolver um procedimento penal e ditar uma sentença de fundo. Como os pressupostos processuais pertencem exclusivamente ao direito processual não afectam nem o conteúdo do ilícito, nem a punibilidade do facto, limitando-se exclusivamente a condicionar a prossecução da acção penal.
Na distinção dos dois conceitos, e segundo Roxin, é elegível uma solução intermediária. Assim, parece preferível, considerar que a consagração de um elemento ao Direito material e, consequentemente, a sua eleição como condição de punibilidade, não depende de que esteja desligado do processo, nem sequer de qualquer uma conexão com a culpabilidade, mas sim da sua vinculação ao acontecer do facto,solução proposta, essencialmente, por Gallas. Este sustenta que as circunstâncias independentes da culpa podem ser consideradas condições objectivas de punibilidade se estão em conexão com o facto, ou seja, se pertencem ao complexo de facto no seu conjunto. Nesta lógica os pressupostos processuais são as circunstâncias alheias ao complexo do facto.
Schmidhauser precisou esta posição exigindo para o Direito material, e em relação á condição de punibilidade, que se trate de uma circunstância cuja ausência já em conexão imediata com o facto tenha como consequência definitiva a impunidade do agente.
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O breve excurso teórico ora elaborado habilita-nos a considerar que existe alguma confusão conceptual na segunda daquelas posições. Tal patologia resulta, desde logo, da circunstância de o crime de abuso de confiança fiscal ser um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia, ou seja, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito. A norma do artigo 105 do RGIT não permite outra interpretação e reconduzir ao núcleo da ilicitude e da tipicidade o que são condições de exercício da acção penal não está de acordo com o espírito ou a letra da lei.
A mesma confusão, expressa naquela posição, resulta da própria noção do bem jurídico tutelado. O que está em causa não é a mora, que constitui uma mera condição de punibilidade, mas sim a conduta daquele que perante a Administração Fiscal, agindo esta no interesse público, omite um dos seus deveres fundamentais na sua relação com o Estado.
Assim, entendemos que, perante esta alteração legal, nos encontramos perante uma condição objectiva de punibilidade na medida em que se alude a uma circunstância em relação directa com o facto ilícito, mas que não pertence nem ao tipo de ilícito nem á culpa. Constitui um pressuposto material da punibilidade.
Na esteira dos autores citados diferenciamos a construção relativa ao pressuposto processual. Na verdade, na condição de punibilidade expressa-se o grau específico de violação da ordem jurídica enquanto no pressuposto processual responde a circunstancia que se opõe ao desenvolvimento do processo penal. A ausência dos primeiros conduz á absolvição e a dos segundos ao arquivamento.
Por qualquer forma, quer em relação á condição objectiva de punibilidade quer em relação ao pressuposto processual na asserção de Bulow (citado por Figueiredo Dias) estamos em face de institutos cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções jurídico-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com a efectivação de punição que nesta mesma encontram a sua razão de ser, devendo ser dado o tratamento mais favorável.
Para alcançar a mesma conclusão numa outra perspectiva se coloca Taipa de Carvalho quando estabelece a destrinça entre normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais. As primeiras contendem directamente com os direitos do arguido e/ou condicionam a efectivação da responsabilidade penal, enquanto as segundas, regulamentando o desenvolvimento do processo, não produzem os efeito jurídico materiais derivados das primeiras. A aplicação do princípio da lei mais favorável estaria reservado ás primeiras enquanto que ás segundas vigoraria o princípio tempus regit actum. .
Entendemos que sendo a génese de um instituto processual ou substancial directamente equacionada com a tutela das garantias do cidadão, ou com a possibilidade de intervenção estadual no capítulo dos direitos, liberdade e garantias, é um imperativo constitucional o da aplicação da lei mais favorável-artigo 29 da Constituição.
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Do exposto derivam duas ordens de consequências:
-A primeira consubstancia-se no entendimento de que a nova redacção do artigo 105 do RGIT e, nomeadamente do seu nº 4, consagra uma condição objectiva de punibilidade.
A segunda, que radica na primeira, conduz á conclusão da aplicabilidade de tal condição ao caso vertente por aplicação directa do principio da lei mais favorável ínsito no artigo 2º nº 4 do Código Penal.
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No sentido exposto se posiciona também a decisão recorrida que, porém, num segundo momento afirma a inaplicabilidade da referida alteração legal ao caso vertente considerando que:
“Com efeito, como resulta da matéria de facto provada e melhor se alcança do auto de notícia (cfr. fls. 4 e segs. e 165-176 dos autos) que deu origem aos presentes autos, bem como da motivação da decisão de facto em 1ª instância e da motivação da reapreciação da decisão da matéria de facto em via de recurso, o apuramento dos valores em falta resultaram do apuramento efectuado por uma Inspecção tributária, levada a cabo pelos serviços de Finanças, precisamente com base na falta de apresentação voluntária das declarações.
Sendo certo que as declarações" referidas na matéria de facto provada foram apresentadas por efeito e para sanar vícios detectados pela referida Inspecção Tributária, não podendo, por isso, dela ser autonomizadas”.
A decisão recorrida traça, assim, uma diferença entre a declaração apresentada voluntariamente, e na sequência da qual é elaborada a respectiva liquidação, e a ausência de declaração em que existe uma intenção de ocultação dos factos tributários perante a Administração Fiscal. Tal lógica argumentativa equaciona, assim, a questão do caso vertente em termos de interpretação da lei, nomeadamente da nova redacção do referido artigo do RGIT.
Questão de interpretação da lei para cuja elucidação deverá resultar de uma conjugação do conteúdo concreto do preceito em causa com apelo ao elemento racional e histórico. Na verdade, como refere Ferrara (1)toda a disposição de direito tem um escopo a realizar, quer cumprir certa função e finalidade, para cujo conseguimento foi criada. A norma descansa num fundamento jurídico, numa ratio iuris, que indigita a sua real compreensão.
É preciso que a norma seja entendida no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer obter, pois que a lei se comporta para com a ratio iuris, como o meio para com o fim: quem quer o fim quer também os meios. Para se determinar esta finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei quer dar satisfação às exigências económicas e sociais que brotam das relações (natureza das coisas). E portanto ocorre em primeiro lugar um estudo atento e profundo, não só do mecanismo técnico das relações, como também das exigências que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos interesses em causa.
Recorrendo a uma interpretação literal da norma em apreço (artigo 105 nº4 b) do RGIT) verifica-se que a punibilidade está dependente da condição de a prestação comunicada á administração tributária através da correspondente declaração não ser paga. A decisão recorrida faz um apelo a uma interpretação restritiva do conceito de comunicação á administração tributária pressupondo uma actuação voluntária incursa no cumprimento das obrigações fiscais e assunção dos respectivos ónus; por seu turno os recorrentes consumam uma interpretação abrangente de qualquer tipo de declaração.
A terminologia legal ao sufragar a existência de uma declaração correspondente já converge com a interpretação recorrida. Porém, e como ali se refere, o apelo ao elemento racional e histórico não deixa qualquer margem para dúvida:-é o próprio legislador que, ao alterar a norma, consagra no Relatório do Orçamento de 2007 , a diferença entre o sujeito passivo que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regulariza a situação tributária em prazo a conceder e aquele que não cumpre a obrigação declarativa denotando uma clara intenção de ocultação dos factos tributários á Administração Fiscal (2).
Assim sendo, e considerando que no caso vertente o pressuposto da actuação do ilícito fiscal imputado não reside na assunção voluntária daquela obrigação declarativa, não merece censura a decisão recorrida que por esta forma se confirma.
Termos em que decidem os Juízes que constituem esta 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Taxa de Justiça 4 UC

Lisboa, 10 de Outubro de 2007

Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
Maia Costa

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(1) Ensaio sobre a Teoria de Interpretação da Leis pag 140
(2) Transcreve-se o texto do Relatório do Orçamento de 2007 na parte que releva:-A entrega da prestação tributária está associada á obrigação de apresentação de uma declaração de liquidação/pagamento. A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração. Quando a não entrega da prestação tributária está associada á falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal. O mesmo não se poderá dizer, quando a existência da divida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração, que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva.
Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente.
Neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a "proliferação" de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto