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DESPEDIMENTO SEM JUSTA CAUSA
DEVER DE ZELO E DILIGÊNCIA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
CULPA GRAVE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário
I - A aplicação da sanção do despedimento somente terá cabimento se, num juízo objectivo (isto é, desligado do subjectivismo do empregador), se concluir que representaria um acentuado, incomportável ou intolerável sacrifício para o empregador manter a relação laboral com o trabalhador infractor, além de se dever ainda pesar se, face ao acervo e gravidade das infracções, outras medidas disciplinares de menor gravidade não haverá que, ainda nesse juízo, com maior adequação, proporcionem, prognosticamente, a consideração de que, uma vez aplicadas, o trabalhador irá desempenhar as suas funções sem as “faltas” que cometeu, pois que ficou ciente da sua gravidade, da sua responsabilidade e da não impassibilidade, perante elas, do seu empregador. II - Ainda que se entenda que no contrato de trabalho, como negócio jurídico bilateral que é, o incumprimento dos deveres contratuais por parte do trabalhador se deve presumir culposo nos termos do n.º 1 do art. 799.º do Código Civil, essa culpa presumida não acarreta por seu turno a presunção de gravidade. III - Não integra justa causa de despedimento o comportamento do escriturário de um departamento financeiro que não cumpriu obrigações inerentes ao exercício do seu cargo num relativamente pequeno período de tempo, revelando uma menor atenção e entrega ao mencionado exercício, mas sem revelar um desinteresse repetido quanto aquele cumprimento, nem traduzindo, por qualquer forma, a vontade de desacatamento de ordens e instruções concretas, ou o desiderato de faltar à verdade para com os seus superiores hierárquicos. IV - Muito embora aquela actuação justifique um sancionamento disciplinar, não constitui uma comportamento grave, reiterado e de consequências gravosas - pois limitou-se a causar uma desorganização nos serviços de contabilidade -, a tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. Pelo Tribunal de Trabalho de Águeda instaurou AA contra Empresa-A, S.A., acção com processo comum, solicitando a declaração da ilicitude do despedimento de que o autor foi alvo e a condenação da ré a reintegrar aquele no seu posto de trabalho, com a antiguidade e categoria que lhe pertenciam ou, em opção a efectuar oportunamente pelo autor, a pagar-lhe a indemnização substitutiva da reintegração, a calcular em função daquela antiguidade, indemnização essa provisoriamente estimada em € 26.280, além de peticionar ainda a condenação da mesma ré a pagar-lhe as retribuições que se vencessem até à data da sentença, ascendendo as já vencidas a € 2.190, sendo tudo acrescido de juros à taxa legal até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão aduziu, em síntese, que ele, autor, que fora admitido ao serviço da ré em 4 de Abril de 1982 para desempenhar as funções de escriturário no departamento financeiro desta última, foi despedido em 19 de Maio de 2004, na sequência de processo disciplinar, sendo que, para além de, em 26 de Abril do mesmo ano, ter caducado o direito de aplicação de qualquer sanção disciplinar, o despedimento ocorrido não podia ter sido baseado em justa causa, pois que o comportamento do autor não poderia ter sido sancionado com a mais grave medida disciplinar.
Prosseguindo os autos seus termos, no que ora releva, veio, em 21 de Março de 2006, a ser prolatada sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, declarou ilícito o despedimento do autor e condenou a ré a pagar-lhe as retribuições vencidas desde trinta dias antes da propositura da acção e até ao trânsito da decisão proferida, sendo as já vencidas no montante de € 5.840, e a indemnização, substitutiva da reintegração, que, no momento, foi fixada em € 14.397,22, além de juros de mora à taxa legal desde a data do despedimento.
Não anuindo ao decidido, apelou a ré para o Tribunal da Relação de Coimbra, sendo o recurso interposto atinente também à impugnação da matéria de facto, igualmente tendo o autor, subordinadamente, interposto recurso de apelação, do mesmo passo que requereu a rectificação de erros materiais em que, na sua perspectiva, incorreu a sentença impugnada.
Por decisão proferida pelo Juiz do Tribuna de Trabalho de Águeda em 7 de Junho de 2006, foi a sentença rectificada por forma a fixar os montantes constantes da condenação e referentes às retribuições vencidas e à indemnização em, respectivamente, € 8.468 e € 17.488.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 15 de Fevereiro de 2007, concedeu parcialmente provimento ao recurso no concernente à impugnação da matéria de facto e, pelo que tange ao decidido na sentença, confirmou-a inteiramente.
2. Continuando irresignada, pediu a ré revista, formulando, na alegação adrede produzida, as seguintes «conclusões»: –
“1 – O Acórdão proferido pelo douto Tribunal da Relação de Coimbra viola o direito substantivo uma vez que faz uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto no art.º 396.º n.º 1, 2 e 3 als. A), d) e e) e art.º 121.º n.º 1 al. c) todos do Código do Trabalho. 2 – O disposto na al. d) do n.º 3 do art.º 396.º do C.T. ‘desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, das obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho que lhe esteja confiado’ é o corolário do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 121.º do mesmo diploma. Ou seja a violação por parte do trabalhador do dever constante da al. c) do n.º 1 do art.º 121.º traduz-se no comportamento consignado na al. d) do n.º 3 do art.º 396.º do C.T. 3 – Da matéria dada como provada entende a recorrente que existe justa causa de despedimento, pelo que o mesmo deveria ter sido declarado l[í]cito. 4 – Os elementos subjectivo, objectivo e nexo de causalidade necessários para que se verifique a existência de justa causa existem e verificam-se no caso em apreço. 5 – O A. agiu com culpa ao não cumprir com as regras e procedimentos a que estava obrigado e dos quais tinha pleno e inteiro conhecimento. 6 – O A. agiu com dolo ao mentir. 7 – No espaço de quatro meses o A. cometeu uma série de erros graves, os quais induziram a direcção financeira em erros permanentes quanto a saldos bancários, e originou que fosse emitido um cheque que não tinha provisão. 8 – O A. antes de efectuar o pagamento de despesas não conferiu as mesmas; mentiu à directora financeira; não procedeu ao acompanhamento do processo de descontos das letras no banco; prestou informações erradas à direcção financeira e à administração, quanto aos valores disponíveis com que estes podiam contar, tendo sido emitido um cheque da conta do banco Totta para pagamento da [S]egurança Social, o qual não tinha provisão porque as informações prestadas pelo A. estavam erradas; enviou uma letra de reforma acompanhada do impresso errad[o]; apresentou a pagamento um cheque antes da data aposta no mesmo. 9 – Consequentemente o A. não desempenhou a sua actividade com zelo e diligência, demonstrando um desinteresse repetido, pelo cumprimento, com a diligência devida, das obrigações inerentes ao posto de trabalho que lhe fora confiado. 10 – A relação de confiança entre entidade empregadora e trabalhador ficou irremediavelmente comprometida, não existindo quaisquer condições para a manutenção do vínculo laboral. 11 – Consequentemente o despedimento do A. foi l[í]cito e legal, pelo que deveria o douto Tribunal da Relação de Coimbra no seu douto Acórdão ter considerado o recurso interposto pela Ré totalmente procedente e assim ter revogado a decisão proferida em 1.ª instância, e em conformidade ter declarado a existência de justa causa para despedimento do A., considerando o mesmo l[í]cito.”
Respondendo à alegação, o autor defendeu o acerto do acórdão impugnado.
A Ex.ma Representante do Ministério Público neste Supremo Tribunal exarou «parecer» no qual propugna por dever ser negada a revista, «parecer» esse que, notificado às partes, não logrou qualquer pronúncia por banda delas.
Corridos os «vistos», cumpre decidir.
II
1. Como ressalta das transcritas «conclusões» do recurso de revista interposto pela ré, a questão a decidir confina-se em saber se, atenta a matéria de facto trazida aos vertentes autos, o despedimento de que o autor foi alvo deve, ou não, ser perspectivado como suportado com justa causa.
2. Tal matéria de facto, após o recurso sobre ela incidente, foi fixada do modo adiante indicado, anotando-se que, na situação em apreço, se não coloca qualquer circunstancialismo subsumível ao nº 2 do artº 722º do Código de Processo Civil.
É a seguinte a factualidade apurada: –
– a) A ré dedica-se à fabricação de mobiliário para escritório, possuindo e explorando um estabelecimento sito na ..., Águeda;
– b) O autor iniciou a sua actividade em 5 de Abril de 1982 na firma Empresa-B, tendo transitado para a agora ré, em virtude da fusão entretanto operada entre ambas;
– c) Sob as ordens, direcção e fiscalização da ré o autor exerceu a respectiva actividade profissional, prestando serviço no estabelecimento indicado em a), onde vinha desempenhando funções de escriturário no departamento financeiro, estando, no entanto, categorizado pela ré como operador informático;
– d) Por carta datada de 8 de Março de 2004, recebida pelo autor em 12 de Março de 2004, a ré remeteu-lhe a nota de culpa;
– e) O autor não respondeu à nota de culpa nem requereu quaisquer diligências probatórias;
– f) Em 17 de Maio de 2004, através de carta registada recebida pelo autor no sequente dia 19, a ré comunicou-lhe que o despedia;
– g) O autor não é representante sindical e na ré não existe comissão de trabalhadores;
– h) A instrutora do processo refere ter ouvido em 15 de Abril de 2004 as testemunhas constantes da nota de culpa;
– i) Em data que não se pode precisar, mas terá ocorrido em Setembro de 2003, o funcionário da área comercial, BB, «meteu um vale à caixa»;
– j) Em Dezembro de 2003, o referido funcionário BB entregou ao ora autor [nota de] despesas e dinheiro que totalizavam o valor do referido «vale»;
– k) O autor, após conferir as despesas e o valor em numerário, inutilizou o vale do funcionário BB, só depois se tendo apercebido de que as despesas não se encontravam assinadas pelo chefe, Dr. CC;
– l) A partir de Dezembro de 2003, o desconto de letras passou a ser efectuado no Banco Totta;
– m) As letras eram remetidas ao banco e era da responsabilidade deste o seu desconto ou a sua devolução;
– n) A partir de Janeiro de 2004, sem que o autor disso tivesse sido informado ou tivesse conhecimento, o banco deixou de descontar as letras, não tendo, todavia, procedido à sua devolução;
o) Era frequente que o saldo constante da informação diária da tesouraria não conferisse com o saldo da conta bancária;
– p) Por outro lado, enquanto a ré «trabalhou» com o Banco Espírito Santo e com a Caixa Geral de Depósitos, quer para os aceites iniciais, quer para as reformas, era utilizado apenas um único impresso;
– r) Quando a ré começou a «trabalhar» com o Banco Totta, neste existiam dois impressos distintos, sendo um para letras iniciais e outro para reformas;
– s)O autor apresentou todas as letras no mesmo impresso;
– t) O cheque da firma Empresa-C destinava-se a reforma de uma letra;
– u) O autor estava convencido de que as reformas, acompanhadas dos respectivos cheques, deviam ser apresentadas três dias úteis antes do vencimento da letra a reformar, para que pudesse ser verificada a boa cobrança dos documentos;
– v) A partir de Abril de 2002 foram impostas ao autor as funções que ultimamente vinha desempenhando, sem que lhe tenha sido prestada, por quem quer que seja, qualquer formação adequada ao bom cumprimento das mesmas;
– w) O autor nunca tinha sido alvo de qualquer processo disciplinar;
– x) O autor sempre manteve excelentes relações profissionais com companheiros de trabalho e superiores hierárquicos, a quem sempre tratou com respeito e urbanidade;
– y) O autor vinha auferindo o salário base mensal de € 730;
– z) No dia 23 de Janeiro de 2004, a responsável pelo departamento financeiro da ré, à data a Dr.ª DD, teve conhecimento, através do director comercial, à data o Dr. CC, de que o autor havia efectuado, uma vez, no mês de Novembro, pagamentos de despesas ao funcionário da área comercial, BB, sem que tais pagamentos estivessem devidamente autorizados por aquele director;
– aa) Antes de ser realizado qualquer pagamento de despesas, era sempre necessária a autorização do director do respectivo departamento, sem a qual o autor não poderia efectuar os referidos pagamentos;
– bb) conferência das despesas era um trabalho que competia ao autor fazer;
– cc) O autor fez pagamento de duas despesas apresentadas pelo vendedor BB, cujos suportes documentais eram contraditórios quanto à possibilidade da sua ocorrência no mesmo dia, pelo que não deveriam ser autorizadas;
– dd) Quando interrogado sobre o assunto pela Drª DD, respondeu-lhe o autor que nunca tinha pago qualquer despesa sem a mesma estar autorizada;
– ee) Quando confrontado pela Dr. DD com o pagamento feito ao funcionário BB, disse que o vale por este apresentado tinha sido autorizado, embora reconhecendo que os documentos comprovativos das despesas não tinham sido supervisionados pelo director do departamento comercial;
– ff) No dia 16 de Fevereiro de 2004, o autor, após ter contactado o banco e ter sido informado pela gestora de conta de que as letras não haviam sido descontadas, informou a Drª DD que existiam letras que haviam sido apresentadas ao banco para desconto e não haviam sido descontadas, desconhecendo a razão para tal, bem como quais as letras em causa, que não havia confirmado se elas haviam sido efectivamente descontadas e que não efectuou a confirmação dos extractos de conta;
– gg) Só naquela data, ao final do dia, tendo a Drª DD tido conhecimento de tal situação, tentou de imediato contactar com a instituição bancária, o que só veio a conseguir no dia seguinte;
– hh) Assim, no dia seguinte, após a directora financeira ter perguntado à gestora de conta o que se passava, a mesma confirmou que existiam letras que não foram descontadas e remeteu-a para o director de balcão, com o qual a Drª DD só conseguiu falar no dia sequente;
– ii) No dia 18 de Fevereiro de 2004 foi a Drª DD informada pelo director de balcão de que as letras em causa tinham sido apresentadas a desconto entre 27 de Janeiro de 2004 e 9 de Fevereiro de 2004;
– jj) Competia ao autor, como aliás o mesmo bem sabia, pois tratava-se de uma tarefa básica no exercício das suas funções, verificar se no extracto bancário as letras apresentadas ao banco haviam sido descontadas ou não, o que ele não fez;
– kk) Igualmente competia ao autor efectuar todo o acompanhamento da operação de desconto;
– ll) Foi também naquela data de 18 de Fevereiro de 2004 que a Drª DD se apercebeu de que o valor de saldo na conta do banco em questão não conferia com o saldo constante da informação diária da tesouraria prestada pelo autor;
– mm) Uma vez que o autor partia do princípio de que as letras em causa tinham sido imediatamente descontadas, não procedendo, no entanto, à confirmação da operação de desconto;
– nn) E, por isso, o autor colocava o valor das letras como valores disponíveis na posição bancária diária que fornecia à direcção financeira e à administração;
– oo) O que fez com que a direcção financeira durante cerca de três semanas estivesse a trabalhar com informações relativas a saldos bancários no Banco Totta que não correspondiam à realidade;
– pp) No dia 17 de Fevereiro de 2004, após saber que havia letras que não foram descontadas, e com receio de que a conta ficasse a descoberto, a direcção financeira da ré deu instruções para que o depósito desse dia fosse efectuado naquela instituição bancária, pois já havia sido emitido um cheque para a Segurança Social, o qual, depois de descontado, tudo indicava que iria fazer com que o saldo de tal conta passasse a negativo, o que realmente sucedeu;
– qq) Sendo que tal cheque apenas foi pago devido à boa vontade do banco, uma vez que a conta em causa não tinha saldo suficiente para que esse cheque fosse pago;
– rr) O autor, aquando da apresentação de tais letras ao banco, fez tais apresentações como se todas as letras fossem iniciais;
– ss) Sendo que uma delas se tratava de uma letra de reforma, tendo, no entanto, sido acompanhada pelo impresso de uma letra inicial e não de reforma, pelo que o banco, quando recebeu tal letra, não se apercebeu de que se tratava de uma reforma, pois que o impresso que a acompanhava, por erro do autor, era o apropriado para uma letra inicial;
– tt) No dia 26 de Fevereiro de 2004, foi a Drª DD confrontada com um telefonema do Sr. EE, da firma Empresa-C, questionando-a sobre o facto de ter sido apresentado a pagamento, em 25 de Fevereiro de 2004, um cheque datado para o dia 29 desse mês, que havia emitido antes da data acordada;
– uu) A Drª DD, estupefacta com tal reclamação do cliente, e sem saber o que se passava, de imediato chamou o autor e questionou-o sobre o assunto, vindo este a confirmar que de facto havia depositado o referido cheque no dia 25 de Fevereiro de 2004, antes da data acordada e que constava do cheque – 29 de Fevereiro de 2004 –, mais referindo que tal não foi distracção, antes pelo contrário, pois até havia reparado na data, mas como tal cheque se destinava ao pagamento de uma amortização de uma letra, as reformas tinham que entrar, segundo ele, três dias antes;
– vv) Foi então dito ao autor que tal regra nunca existiu e que era sua obrigação, como sempre o foi, a de observar as datas constantes dos cheques.
3. As instâncias, sem divergência, entenderam que, no caso sub iudicio, se assistia a uma falta de diligência do autor no cumprimento das obrigações inerentes ao exercício do cargo, não consubstanciando a sua actuação, de todo o modo, um desinteresse repetido quanto àquele cumprimento, antes revelando uma mostra de menor atenção e menor entrega para o mencionado exercício, não traduzindo, por qualquer forma, a vontade de desacatamento de ordens ou instruções concretas e casuísticas ou o desiderato de faltar à verdade para com os superiores hierárquicos; e, prosseguindo, perfilharam a óptica de harmonia com a qual, muito embora aquela actuação justificasse um sancionamento disciplinar, tendo em conta que ela se não repercutiu com acentuada gravidade na situação da ré, pois que aquilo que causou foi uma desorganização nos seus serviços de contabilidade, o circunstancialismo apurado não era de molde, à míngua de factos caracterizadores de um comportamento grave, reiterado e de consequências gravosas, a tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral.
É justamente contra um tal posicionamento que a ré se insurge.
Segundo ela, como resulta das transcritas «conclusões» da alegação produzida nesta revista, o recorrido teria agido com dolo, mentindo, teria cometido, num curto espaço de tempo – quatro meses –, uma série de erros graves, manifestando repetida falta de zelo, diligência e desinteresse no cumprimento das suas funções, o que comprometeria irremediavelmente a relação de confiança da sua entidade patronal, desta arte inexistindo condições para a manutenção da relação de trabalho.
Vejamos se lhe assiste razão.
III 1. Tendo em conta a ocasio dos factos, é de considerar aplicável, à situação em espécie, o regime prescrito no Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto.
De acordo com aquele corpo de leis, o empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador que se encontre ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho (nº 1 do artº 365º), podendo aplicar determinadas sanções, elencadas no artº 366º, as quais devem ser proporcionais à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor (artº 367º).
In casu, a sanção aplicada ao autor foi a mais gravosa das previstas – o despedimento.
Segundo o artº 396º do aludido Código, constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (nº 1), devendo, na apreciação da justa causa, atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias relevantes no caso (nº 2).
Aquele mesmo artigo, por fim, faz, no seu nº 3, uma enunciação – conquanto não taxativa (cfr. a expressão aí utilizada de «nomeadamente») – dos comportamentos do trabalhador que podem constituir justa causa de despedimento, de entre elas se contando a desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores [alínea a)], o desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, das obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho que lhe esteja confiado [alínea d)] e a lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa.
São esses comportamentos a que, na óptica da recorrente, se assistiria na situação em causa, pelo que, segundo ela, o despedimento operado se haverá de ter como sustentado em justa causa.
2. Da matéria de facto assente torna-se a todos os títulos evidente que se não pode retirar que o autor adoptou um comportamento que possa ser qualificado como traduzindo uma postura de inverdade quando questionado pelos seus superiores hierárquicos acerca das «falhas» reveladas no exercício do seu cargo.
Efectivamente, e como bem anota o aresto impugnado, não se “provou a consciência da mentira, actuação dolosa consistente para encobrir a verdade”.
E, de facto, assim é.
Na realidade, aquando do seu questionamento pela responsável pelo departamento financeiro da recorrente, o recorrido, disse que nunca tinha pago qualquer despesa não autorizada e, após ser confrontado com o pagamento feito a um funcionário, não deixou de dizer que ele fora autorizado, conquanto reconhecesse que, formalmente, os documentos comprovativos da despesa não tinham sido supervisionados pelo director do departamento comercial, sendo que, também quando confrontado, por aquela responsável, acerca do facto de haver letras que não haviam sido descontadas, não deixou de dizer que, embora não soubesse se as letras apresentadas foram ou não descontadas, era certo que não havia confirmado o desconto e os extractos de conta bancários.
Traduz este acervo fáctico, pois, não um intento de faltar à verdade sobre uma actuação consistente na efectivação de pagamento de uma despesa não autorizada ou de não confirmação de desconto de letras e de conferência com os extractos bancários, mas sim uma menor diligência na observação formal dos documentos que eram presentes ao autor com vista ao pagamento de despesas, ou seja, um menor zelo no desempenho das funções atinentes a essa específica actividade.
Não se põe em causa que a restante actuação do autor, no que concerne a verificar se nos extractos bancários as letras apresentadas haviam, ou não, sido descontadas, a acompanhar os procedimentos de descontos de letras, a verificar se os valores do saldo bancário conferiam, ou não, com os valores da tesouraria, a verificar se as letras apresentadas se tratavam de letras iniciais ou letras de reforma, e a verificar se os cheques pós-datados não seriam apresentados a pagamento ou depositados na data neles aposta, igualmente configura um menos atento desempenho das suas funções e uma menor diligência no cumprimento do cargo que, se não se olvide, era o de escriturário de um departamento financeiro, representado, por isso, uma violação das sua obrigações contratuais advindas do contrato de trabalho que o vinculava à recorrente.
E, em face disso, bem poderia esta última desencadear, como desencadeou, procedimento disciplinar, com vista à aplicação de uma sanção ao autor [cfr., aliás, o princípio geral constante do artº 363º do Código do Trabalho, do qual se retira que, como afirma Pedro Romano Martinez – inCódigo do Trabalho Anotado, 5ª edição, 642 – em anotação ao artº 365º, “o poder disciplinar, não obstante as suas especificidades e particular relevância no âmbito laboral, advém da violação de obrigações contratuais por parte do trabalhador”, pelo que o “empregador, ao abrigo do poder disciplinar, sanciona o trabalhador que desrespeita deveres contratuais (tanto principais como secundários ou acessórios), razão pela qual esta matéria se relaciona com o incumprimento do contrato de trabalho”].
Já por outro lado, não redunda da factualidade apurada um intento consciente por banda do autor em não acatar a ordens específicas e concretas dadas pelos seus superiores hierárquicos, o mesmo é dizer uma desobediência ilegítima às ordens e instruções recebidas.
Efectivamente, mesmo admitindo que alguns dos procedimentos que haveriam de ser prosseguidos nas actividades acima referenciadas eram facilmente cognoscíveis por um trabalhador na posição do autor, por isso que resultantes de uma prática empresarial ou da transmissão de instruções genéricas contabilísticas e financeiras adoptadas pela ré, os factos tidos por assentes tão só apontam para um também menor cuidado na observância dessas eventuais práticas ou instruções.
Consequentemente, tudo se reconduz a uma prossecução, por parte do autor, de actividade não cabalmente diligente e exigida pelo cargo que desempenhava.
3. Ponto é, porém, que se saiba se, perante todo o condicionalismo rodeador do caso em apreço, as violações do dever de diligência que acima se retrataram se devem considerar como configuradoras de um repetido desinteresse do autor de cumprimento, com o cabido zelo, das obrigações a que se encontrava adstrito por força do contrato de trabalho que celebrara e do posto de trabalho que lhe estava confiado, consequenciando uma lesão dos interesses patrimoniais sérios da impugnante e, ainda, se aquelas violações foram de tal sorte gravosas por forma a que, atenta toda a actuação do mesmo autor, o seu passado na empresa em causa e a própria actuação desta, quer na dação de instruções, quer na formação dos seus empregados, possa, objectivamente, justificar um juízo imediato de inexigibilidade e impossibilidade na manutenção da relação laboral.
É que, como tem sido, sem discrepâncias, salientado pela jurisprudência e doutrina, não passando em claro a já assinalada exigência legal de proporcionalidade entre a sanção disciplinar e a gravidade da ou das infracções laborais cometidas e a culpabilidade do trabalhador na respectiva ocorrência, e volvendo agora à sanção aplicada – a de despedimento sem qualquer indemnização ou compensação –, esta somente terá cabimento se, num juízo objectivo (isto é, desligado de um subjectivismo da entidade empregadora) se concluir que, nesse juízo, representaria um acentuado, incomportável ou intolerável «sacrifício» para aquela entidade manter a relação laboral com o trabalhador infractor, desta arte se devendo, pois, averiguar-se se a relação de fidúcia que deve emanar do negócio jurídico firmado foi gravemente afectada pelo comportamento do trabalhador, além de se dever ainda pesar se, face ao acervo e gravidade das infracções, outras medidas disciplinares de menor gravidade não haverá que, ainda nesse juízo, com maior adequação, proporcionem, prognosticamente, a consideração de que, uma vez aplicadas, o trabalhador irá desempenhar as suas funções sem as «faltas» que cometeu e que conduziram à aplicação dessa medida, pois que ficou ciente do seu cometimento, da sua gravidade, da sua responsabilidade e da não impassibilidade, perante elas, do seu empregador.
Com uma tal parametrização, a que é que nos conduz a matéria de facto demonstrada?
Que o autor trabalhava para a empresa recorrente (começando a trabalhar numa outra que, por fusão, foi incorporada naquela) há mais de vinte anos, nunca tendo sido alvo de qualquer processo disciplinar e mantendo excelentes relações de trabalho com companheiros de trabalho e superiores hierárquicos; que, embora categorizado como operador informático, foram-lhe cometidas, a partir de Abril de 2002, as funções de escriturário no departamento financeiro da impugnante, sem que, porém, lhe fosse dada qualquer formação adequada ao bom desempenho dessas funções; que, a partir de Janeiro de 2004, e sem que tivesse ao autor sido dado qualquer conhecimento desse facto, a instituição bancária com a qual a recorrente passou a trabalhar desde o mês anterior deixou de descontar as letras não pagas e a devolvê-las, contrariamente à prática que era seguida por outras instituições bancárias com que a impugnante trabalhara e que, a nível de impressos, igualmente usavam práticas diferentes; que o autor estava convencido que, destinando-se um cheque recebido, ainda que com data posterior, à amortização de uma letra, poderia efectuar desde logo o seu desconto, para assim se obter o devido valor da amortização três dias antes.
Finalmente, neste particular, não se extrai da factualidade apurada a existência de uma efectiva e séria lesão dos interesses patrimoniais da recorrente. Certamente que, nas vezes que se retiram daquela factualidade, sucedeu – o que posteriormente veio a ser verificado – que havia informações relativas a existências fiduciárias em depósitos bancários que não correspondiam à realidade. Mas daí não resultou, nem é lícito extrair uma tal inferência, que, em face dessas informações, a empresa recorrente tivesse sofrido prejuízos ou lesões sérias. Também é verdade que somente com a boa vontade do gerente do estabelecimento bancário com que a impugnante passou a trabalhar em Dezembro de 2003 foi possível proceder-se ao pagamento de um cheque que esta sacara e cuja conta não dispunha de saldo assegurador da respectiva provisão. Simplesmente, não resultou provado que dessa circunstância decorreu uma séria lesão patrimonial da empresa.
A actuação do autor ora em apreciação e que acima já se considerou como reveladora de uma falta de zelo e diligência no exercício das suas funções, consubstanciada num não elevado número de «faltas» e circunscritas num relativamente pequeno período de tempo (Setembro e Dezembro de 2003, Janeiro e Fevereiro de 2004), não poderá, sem mais, ser considerada como traduzindo um desinteresse repetido pelo cumprimento das obrigações a seu cargo ou uma incapacidade para o respectivo desempenho, pois que se não poderá, de todo, olvidar o passado laboral do recorrido durante os vinte anos anteriores e a não propiciação de formação que a recorrente levou a efeito após lhe ter cometido as funções de escriturário no seu departamento financeiro.
Sem, uma vez mais, se por em crise que a dita actuação representa a manifestação de falta de zelo devido por parte do autor sendo, por isso, culposa (sublinhe-se aqui, ainda que se entenda que no contrato de trabalho, como negócio jurídico bilateral que é, o incumprimento dos deveres contratuais por parte do trabalhador se deva presumir culposo nos termos do nº 1 do artº 799º do Código Civil, o que é certo é que essa culpa presumida não acarreta por seu turno a presunção de gravidade – cfr. citado autor, Incumprimento Contratual e Justa Causa de Despedimento, in Estudos do Instituto de Direito de Trabalho, 2º volume, 2001, e obra acima citada, 694), todo o conjunto de circunstâncias que rodearam as «infracções» cometidas e a personalidade e passado laboral do recorrido apontam, num juízo objectivo, para que um empregador «médio» não devesse formular um raciocínio segundo o qual não era possível manter uma relação mínima de confiança no seu trabalhador que actuasse do jeito que actuou o recorrido, sendo certo que à falta de diligência revelada outras sanções disciplinares que não a de despedimento sem indemnização ou compensação seriam as adequadas, justificadas e proporcionadas.
Daí que nenhuma censura deva ser dirigida à decisão de que se recorreu.
IV
Em face do que se deixou exposto, nega-se a revista.