PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SOCIEDADE
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
GERENTE
DESPEDIMENTO SEM JUSTA CAUSA
Sumário


I - Para que o STJ possa ordenar a ampliação da matéria de facto é necessário que, atendendo às questões de direito concretamente colocadas no recurso, se constate que aquando da elaboração da base instrutória ou, na sua ausência, da própria fixação dessa matéria, tenha havido preterição de matéria de facto relevante, articulada ou de conhecimento oficioso.
II - Estando apenas em causa no recurso de revista a vinculação, ou não, da ré, ao despedimento verbal de que terão sido alvo as autoras, inexiste fundamento para ordenar a ampliação da base instrutória com vista a apurar a categoria profissional que as autoras pretendem ver reconhecida através da acção, ou os prémios de produtividade e respectivo pagamento, ou ainda o pretenso abandono do trabalho por parte das autoras.
III - Nas sociedades por quotas, a lei não impõe que a designação dos gerentes integre o conteúdo obrigatório do contrato societário.
IV - E os poderes específicos de gestão – que não a própria qualidade de gerente – constituem uma questão interna da sociedade, não tendo, por isso, que ser levados, à inscrição registral correspondente.
V - Uma sociedade pode tacitamente aceitar a actuação de quem, não sendo seu representante “de jure”, se comporte, na prática, como tal: basta, para isso, que se evidencie uma reiterada aceitação tácita dessa representação, correspondente à sua ratificação.
VI - É de classificar como verdadeiro e único gerente da ré, sociedade por quotas, o sócio maioritário, que, embora não tendo sido nomeado gerente “de jure”, contratou duas trabalhadoras, para trabalharem sob as ordens, direcção e fiscalização da ré (vindo uma das trabalhadoras a ser classificada profissionalmente de gerente), sendo ele, sócio maioritário, quem assinava mensalmente os cheques para pagamento dos salários das trabalhadoras, que lhes dava ordens, aprovava os orçamentos e todas as compras da ré.
VII- Na situação descrita, os poderes de representação e consequente ratificação dos actos praticados pelo sócio maioritário, e gerente “de facto” da ré, foram por esta tácita e reiteradamente assumidos.
VIII - Por isso, tendo aquele sócio procedido ao despedido verbal das autoras, este, embora ilícito por não ter sido precedido de processo disciplinar, é eficaz e vinculativo para a ré.

Texto Integral


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. RELATÓRIO

1.1.
AA e BB intentaram separadamente, no Tribunal do Trabalho de Aveiro, acções declarativas de condenação, com processo comum, emergentes de contratos individuais de trabalho, contra “CC Ld.ª”, pedindo, com fundamento na ilicitude dos despedimentos de que dizem ter sido alvo por parte da Ré e, bem assim, em omissões retributivas, que aquela seja condenada a reintegrá-las nos seus postos de trabalho e a pagar-lhes as quantias discriminadas nas PI’s, incluindo a indemnização de antiguidade se, eventualmente, as Autoras por ela vieram a optar, em detrimento da reintegração.
A Ré, nas suas contestações, nega que tenha despedido as Autoras, a quem acusa de terem abandonado os respectivos postos de trabalho e de quem reclama, em sede reconvencional, o pagamento de uma indemnização por inobservância do pré-aviso legal.
1.2.
Apensadas entretanto as duas acções procedeu-se, já em conjunto, à instrução e discussão da causa, após o que a 1ª instância veio a conceder integral ganho de causa às Autoras, afirmando a ilicitude dos seus despedimentos e condenando a Ré a pagar-lhes todas as quantias que dela eram reclamadas.
Sob o impulso recursório da demandada, o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou integralmente a sentença apelada.
1.3.
Continuando irresignada, a Ré pede a presente revista, cujas alegações remata com o seguinte núcleo conclusivo:
1- a matéria alegada pela Ré nos art.s 4º, 16º, 29º, 36º a 40º, 43º, 49º a 51º, 57º a 59º, 63º, 65º e 73º da sua contestação à acção da A. BB e, bem assim, nos arts. 4º, 16º, 31º, 32º, 38º a 42º, 45º, 50º, 52º, 57º a 59º, 62º, 63º, 70º a 72º e 79º da sua contestação à acção da A. AA constitui matéria de facto com interesse para a decisão de mérito e não meras conclusões ou simples argumentos;
2- pelo que, nada se decidindo sobre ela, existe insuficiência da matéria de facto, em violação do art.º 660º n.º 2 do C.P.C., o que constitui a nulidade prevista no art.º 668º n.º 1 al. D) do mesmo Código;
3- além disso, a matéria de facto não permite concluir que os actos praticados pelo Prof.DD lhe conferissem o estatuto e qualidade de gerente de facto da Ré;
4- ou que, mesmo que assim pudessem ser considerados, diminuíssem ou se sobrepusessem, anulando-os, aos poderes de gerência da Autora e ora recorrida AA, única gerente da Ré;
5- pelo que o despedimento verbal praticado pelo Prof.DD não pode ser oponível, vincular ou, por qualquer forma, prejudicar a Ré, nem devia ter sido acatado pelas AA., manifestamente conhecedoras dessa situação;
6- tanto mais que não ficou provado que a A. e gerente AA actuasse, enquanto tal, subordinadamente ao Prof.DD;
7- assim não se entendendo, o Acórdão recorrido violou os arts. 64º e 252º do Código das Sociedades Comerciais;
8- deverá ser revogado o mesmo Acórdão, substituindo-o por outro que anule a sentença da 1ª instância, a fim de se apurar a questionada matéria de facto ou, quando assim se não entenda, absolvendo-se a Ré do pedido por não ter despedido as Autoras.
1.4.
Não foram apresentadas contra-alegações.
1.5.
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, cujo douto Parecer mereceu a resposta discordante da Ré, sustenta a negação de revista.

1.6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2- FACTOS
As instâncias fixaram a seguinte factualidade:
A-)
A Ré dedica-se a actividade de construção civil.
B-)
Desde a sua constituição tem exercido a actividade de consultadoria, sondagens e estudos geotécnicos elaborando relatórios, a pedido e consulta de diversos clientes, incluindo os relatórios sobre as características dos solos e indicações sob a viabilidade e fiabilidade de implantação de obras (fundações) nos mesmos.
C-)
Possui e explora por sua conta e risco um estabelecimento industrial sito à Av. ............., n.º 3, Zona Industrial de Oiã.
D-)
No exercício da sua actividade industrial, admitiu, em Abril de 1997, a A. AA ao seu serviço, e em Janeiro de 2000, a A BB.
E-)
Sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré, as AA exerceram com zelo, assiduidade e competência as respectivas actividades profissionais, no estabelecimento explorado pela Ré.
F-)
A AA cumpria, de Segunda a Sexta feira, o seguinte horário de trabalho:
Até Junho de 2001: entrada às 9h00 e saída às 18h30, com intervalo para o almoço das 12h30 às14h00.
A partir de Junho de 2001: entrada às 8h, saída às17h30m, com intervalo para almoço das 12h00 às13h30m.
G-)
A A BB cumpria, de segunda a sexta feira o seguinte horário de trabalho: entrada às 9h00 saída às18h00, com intervalo para almoço das 12h30 às13h30.
H-)
No dia 7 de Outubro de 2003, cerca das 9h30m, as AA foram despedidas verbalmente pelo sócio da Ré, Prof.DD.
I-)
Despedimento esse confirmado mais uma vez, nesse mesmo dia, pelo referido sócio, cerca das 15h00, quando as AA solicitaram que lhes fosse passado o modelo 346.
J-)
A Ré não pagou às AA qualquer indemnização por antiguidade.
K-)
Como não lhes pagou o salário relativo aos 7 dias de trabalho por elas prestados durante o mês de Outubro de 2003.
L-)
O mesmo sucedendo com o subsídio de Férias vencido em 01.01.2003.
M-)
À AA, a título de Férias vencidas em 01.01.2003, apenas lhe concedeu e pagou 17 dias úteis, e em relação à A BB, em relação às férias vencidas na mesma, apenas lhe concedeu e pagou 14 dias úteis.
N-)
A Ré não pagou a ambas as AA as quantias relativas às férias, subsídio de férias e de natal proporcional ao tempo de trabalho prestado durante o ano de 2003.
O-)
A AA desempenhou, desde a data da sua admissão, com autonomia as funções de:
consubstanciadas em levar a cabo campanhas de prospecção geológica/geotécnica, realizar ensaios do subsolo no respectivo local para análise da resistência dos terrenos e caracterização geológica dos materiais e das especificidades do meio envolvente; elaborar os respectivos relatórios técnicos, fiscalizar obras, até Dezembro de 2000.
A partir de Janeiro de 2001, para além dessas funções, procedeu à distribuição dos trabalhadores pela empresa pelas diversas obras, depois da aprovação do sócio prof. DD; compilar elementos necessários à atribuição do prémio de produtividade; elaborar a relação das faltas de todos os trabalhadores para posteriormente se proceder ao seu desconto nos respectivos salários.
P-)
A Ré classificou a A. AA do seguinte modo:
- sondadora desde Abril de 1997 a Dezembro de 2000;
- Gerente a partir de Janeiro de 2001;
Q-)
Desde a data da sua admissão a A. BB desempenhou com autonomia funções consubstanciadas em levar a cabo campanhas de prospecção geológica/geotécnica, realizar ensaios do subsolo no respectivo local para análise da resistência dos terrenos e caracterização geológica dos materiais e das especificidades do meio envolvente; elaborar os respectivos relatórios técnicos, fiscalizar obras.
R-)
A Ré classificou a Requerente BB do seguinte modo:
Sondadora de Janeiro a Dezembro de 2000.
Engenheira de Grau III partir de Janeiro de 2001;
S-)
A Ré pagou à AA os seguintes salários base mensais:
299,28 euros de Abril a Dezembro de 1997;
399,04 de Janeiro de 1998 a Dezembro de 1999;
498,80 de Janeiro a Dezembro de 2000;
588,56 de Janeiro de 2001 a Janeiro de 2002;
800,00 a partir de Fevereiro de 2002.
T-)
A Ré pagou à A BB os salários base mensais
399.04 euros de Janeiro de 2000 a Janeiro de 2001;
498,80 euros de Fevereiro de 2001 a Janeiro de 2002 e
700,00 a partir de Fevereiro de 2002.
U-)
Deste Maio de 1998, a A AA começou auferir um prémio de produtividade e a A BB passou a recebê-lo a partir de Julho de 2000, que a partir de Setembro de 2002 passou a ser atribuído de acordo com o regulamento junto aos autos.
V-)
A esse título, a Ré pagou à A AA as seguintes quantias:
152,13 euros de Maio a Dezembro de 1998;
93.74 euros em 1999;
1.658,94 euros em 2000;
5.241,35 euros em 2001;
3.508,00 de Janeiro a Agosto de 2002;
230,00 euros de Setembro a Dezembro de 2002;
1.055,00 euros em 2003.
W-)
A título de prémio de produtividade, a Ré pagou à A BB as seguintes quantias:
1733.32 euros em 2000;
4.125,06 euros em 2001;
1705,00 euros de Janeiro a Agosto de 2002;
320,00 de Setembro a Dezembro de 2002;
1.460,00 euros em 2003;
X-)
A Ré nunca pagou às AA a média dos referidos prémios de produtividade nas Férias, subsídio de Férias e subsídio de Natal.
Y-)
Durante o ano de 2003, a A BB prestou as seguintes horas de trabalho suplementar:
Durante o ano de 2003, a Requerente BB prestou as seguintes horas de trabalho extraordinário
Janeiro de 2003:
Dia 14- 2,00 horas
Fevereiro de 2003:
Dia 4 - 6 horas;
Dia 24 - 2,50 horas
Dia 25-1,00 hora
Dia 26 - 1,50 horas
Março de 2003:
Dia 7 - 4,00 horas
Dia 24 -1,50 horas
Abril de 2003
Dia 2 - 2,50 horas
Dia 3 -2,50 horas
Dia 9 - 6 horas
Dia 10 -1.50 horas
Maio de 2003
Dia 5 - 2,00 horas;
Dia 9 - 2,50 horas.
Dia 14- 1.75 horas
Dia 19 -1.50 hora
Dia 20 - 2,00 horas;
Dia 21 - 2,00 horas
Dia 23 - 4,00 horas
Junho de 2003
Dia 2 -1,00 hora
Dia 3 - 1,00 horas
Dia 4 - 1.00 horas
Dia 5 -1,00 horas
Dia 11 -1,50 hora
Dia 16 - 2,00 hora
Dia 17 - 4,00 horas
Dia 30 - 4,00 horas
Julho de 2003
Dia 1 - 5,00 horas
Dia 2 - 2,50 horas
Dia 3 - 4,00 horas
Setembro de 2003
Dia 3 - 0,5 horas
Dia 9 - 3,00 hora
Dia 11 - 4 horas
Dia 12 - 4 horas
Dia 15 - 3 horas
Dia 16 - 3 horas
Dia 22 - 3 horas
Z-)
A Ré não pagou à A BB tais horas.
AA-)
Foi o Prof.DD quem contratou as AA para trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré.
AB-)
Era ele quem assinava mensalmente os cheques para pagamento dos seus salários.
AC-)
Era ele quem, em geral, determinava as tarefas que as AA deviam desempenhar e lhe clava ordens.
AD-)
Era ele quem aprovava os orçamentos.
AE-)
O mesmo sucedendo com todas as compras e reparações de máquinas e automóveis, os quais, fosse qual fosse o seu montante tinham que ser previamente autorizadas pelo Prof.DD.
AF-)
A BB esteve inscrita na Ordem dos Engenheiros, como estagiária, na especialidade ele engenharia de mina.
AG-)
O Prof. DD é sócio da Ré, mas não figura como sócio gerente da mesma. Na competente certidão do registo comercial.
AH-)
À data do despedimento, quem figurava como gerente e legal representante da Ré era a AA, o que se verificava desde 19 de Janeiro de 2001, mantendo-se no cargo até ser destituída por deliberação datada de 9 ele Outubro ele 2003.
AI-)
Aquando da celebração da escritura de aumento de capital e alteração parcial do pacto social, a A. AA foi mantida no cargo de gerente, naquela escritura.
AJ-)
A Ré enviou à A AA, carta registada com aviso de recepção, datada de 24 de Outubro ele 2003, comunicando-lhe a cessação do contrato de trabalho por abandono.
AK-)
A Ré fez constar da Declaração Modelo 346 que subscreveu e enviou à A BB, em 17 ele Outubro de 2003 que a A abandonou o seu posto ele trabalho e também da carta que enviou em 24 de Outubro de 2003.
AL-)
Alguns relatórios elaborados pelas AA necessitaram de emendas, sendo submetidos ao Prof.DD para o efeito.
AM-)
As AA foram alunas do Prof.DD.
AN-)
Concluída a licenciatura de cada uma delas, o Prof. convidou-as para trabalhar na ora Ré, na qual é detentor da maioria do capital social e à qual presta assessoria técnica, sendo pessoa prestigiada na actividade de geotecnia.
AO-)
O Prof.DD subscrevia os relatórios referidos em AL-).
AP-)
Numa altura em que a AA se encontrava de férias, mas em momento anterior ao dia 7 de Outubro de 2003, o Prof. DD comunicou à A BB e a outra colega, que deveriam assumir a responsabilidade pelos relatórios, sem a assinatura do Prof. DD, que elaborassem e foi exigida a prova de estarem inscritas na Ordem dos Engenheiros.
AQ-)
A AA regressou de férias e retomou a sua actividade em 6 de Outubro de 2003, dia em que o Prof. DD fez saber novamente que deixaria de assumir a responsabilidade e correcção dos relatórios, que as licenciadas deveriam assumir por inteiro.
AR-)
A Ré sofreu prejuízos após a saída das AA.
São estes os factos.
3- DIREITO
3.1.
Já sabemos que a 1ª instância, ao conferir provimento integral às pretensões das Autoras, afirmou a ilicitude dos seus despedimentos e condenou a Ré a pagar-lhes as quantias que dela eram reclamadas.
No seu recurso para a Relação, a demandada suscitou três questões:
1ª- impugnou, sobre os pontos de factos que discriminava na sua minuta alegatória, a decisão que sobre eles recaiu;
2ª invocou a insuficiência da própria decisão factual por ter omitido pronúncia sobre a matéria, que também ali discriminava, condensada nas suas contestações aos petitórios das Autoras;
3ª aduziu a irrelevância do despedimento verbal das Autoras, uma vez que o mesmo terá sido ordenado por quem não é representante legal da Ré.
Na presente revista, por seu turno, retoma as duas últimas questões mas despreza a primeira, reconhecendo quanto a esta – e bem – que não cabe ao S.T.J. sindicar o segmento do Acórdão que apreciou – rejeitando-a – a assinalada impugnação da decisão factual.
Por isso, o objecto da revista circunscreve-se, naturalmente, às duas últimas questões supra enunciadas.
3.2.1.
Retomando a censura que já produzira na apelação, sustenta a Ré que a 1ª instância desconsiderou indevidamente a matéria de facto discriminada na conclusão 1ª da sua minuta alegatória.
E, à semelhança do que também fez naquele recurso, continua agora a entender que essa pretensa desconsideração integra a nulidade decisória prevista no art.º 668º n.º 1 al. D) do Cod. Proc. Civil – omissão de pronúncia – (a este diploma pertencem os demais preceitos a citar sem menção de origem).
Neste âmbito, deixou a Relação referido que os vícios enunciados naquele inciso – omissão ou excesso de pronúncia – se reportam às “questões” suscitadas pelas partes, tal como as define o art. 660º n.º 2, não abarcando já os “argumentos ou razões” que elas tenham invocado em abono das suas teses, como, segundo diz, se verifica no caso vertente.
Por aqui se ficou a pronúncia do Acórdão sobre a matéria.
Perante esta decisão, uma de duas:
- ou se entende que a 2ª instância, cingindo-se ao enquadramento jurídico perfilhado pela Ré, se limitou a exarar que não ocorria a nulidade aduzida;
- ou se entende que tal decisão comporta o entendimento de que a factualidade em causa não carecia de ser seleccionada por integrar meros “argumentos ou razões” sem relevância para a decisão jurídica do pleito.
No primeiro caso, estaríamos perante uma nulidade do Acórdão: uma vez que o Tribunal se move sem constrangimentos alegatórios no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art.º 664º -, importaria dizer que a impugnação da matéria de facto, haja ou não reclamações, deve ser integrada, como aqui aconteceu, no recurso interposto da sentença final – arts. 684º n.º 2 e 690º-A n.º 1 – havendo que enfrentar, por isso, a questão suscitada efectivamente pela Ré, traduzida em saber se a factualidade coligida pela 1ª instância se mostrava, ou não, suficiente para a decisão do mérito.
No segundo caso, teria havido uma pronúncia concreta sobre a questão.
Todavia:
1- em caso de nulidade, impunha-se a sua arguição autónoma no próprio requerimento de interpretação da revista – o que não foi feito, sob pena de precludir o seu conhecimento pelo tribunal “ad quem” – art.º 77 n.º 1 do Cod. Processo do Trabalho;
2- em caso de efectiva pronúncia, a decisão da Relação não seria passível de recurso – art.º 712º n.º 6.
Como se vê, este Supremo Tribunal sempre estaria impedido, por uma razão ou por outra, de apreciar a questão em análise, não fosse estarem-lhe igualmente cometidos poderes próprios – e oficiosos – neste domínio.
Com efeito, o art.º 729º n.º 3 permite que o Supremo anule a decisão de facto quando entenda que esta “… pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito”.
Trata-se de uma prerrogativa em tudo idêntica àquela que o art.º 712º n.º4 confere à Relação, ainda que circunscrita, aqui, aos casos em que os citados vícios afectam ou impossibilitam a correcta solução de mérito.
Deste modo, haverá que enfrentar os reparos da recorrente.
3.2.2.
Para que possa ser ordenada a ampliação da matéria de facto, é imperioso constatar-se que, aquando da elaboração da base instrutória ou, na sua ausência, da própria fixação dessa matéria, tenha havido preterição de “matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito”, nos precisos termos do art. 511º n.º 1.
Ademais, a faculdade dessa ampliação, no tocante ao tribunal de recurso, só pode ser exercida no tocante a factos que tenham sido articulados pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, de harmonia com o exarado no artigo 264º.
Porém, se é certo que cabe ao Juiz, na fase da condensação, seleccionar a factualidade relevante para decidir todas as questões que então se mostrem colocadas, já na fase de recurso apenas relevará a factualidade atinente às questões de direito concretamente ali colocadas, isto é, àquelas que restem por decidir.
Na verdade, não faria o menor sentido ponderar a suficiência ou insuficiência factual relativamente a todas as questões de fundo que, tendo sido decididas sem impugnação, se mostrem já definitivamente resolvidas.
No caso concreto, as pretensões das Autoras suscitam, desde o início, duas questões fundamentais (para além da falta de pagamento de específicas prestações remuneratórias):
1ª- a de saber se as demandantes foram alvo de um despedimento ilícito;
2ª- em caso afirmativo, a de saber em que termos há-de ser correctamente reparado esse despedimento.
Nas fases recursórias – tanto na apelação, quanto na revista – a Ré não censura minimamente as prestações que foram atribuídas às Autoras, quer as decorrentes dos afirmados despedimentos, quer as que resultam de outros créditos retributivos.
O que ela questiona, a montante disso, é a própria ocorrência dos despedimentos e, destarte, a sua qualificada ilicitude, dizendo que os mesmos terão sido ordenados por quem não representava a Ré.
Sendo esta a única questão de mérito que nos é colocada, já se vê que o desfecho da acção, nesta fase recursória, depende, em exclusivo, da resposta que lhe vier a ser dada:
- ou se conclui que não houve despedimentos (enquanto actos susceptíveis de vincular a Ré) e a pretensão das Autoras, no que toca à sua reparação, soçobra sem mais;
- ou se conclui que as Autoras foram ilicitamente despedidas pela Ré e, nesse caso, as consequências reparatórias serão aquelas que a 1ª instância, sem oposição, já cuidou de fixar.
Quanto ao pagamento de prestações remuneratórias em falta (designadamente trabalho suplementar e prémios de produtividade), trata-se de matéria também já resolvida em definitivo.
3.2.3.
Não tendo elaborado “Base Instrutória”, o M.mo Juiz fixou a matéria de facto com referência a cada um dos articulados apresentados pelas partes e, no final dos mesmos, exarou como segue:
“Não se responde à demais matéria por ser conclusiva, de direito ou não ter relevância para a boa decisão da causa”.
Esta fundamentação habilita-nos a concluir que os factos (articulados) excluídos das respostas não chegaram a ser objecto de indagação probatória, o que nos permite sindicar, na parte ora útil, a bondade dessa exclusão.
Examinando a factualidade que, segundo a recorrente, terá sido indevidamente excluída do crivo probatório, verifica-se que:
- parte dela reporta-se à categoria profissional que as Autoras pretendem ver reconhecida por via da presente acção;
- outra parte relaciona-se com os prémios de produtividade (e, no caso da Autora BB, também com o trabalho suplementar) e à forma como se processaria o respectivo pagamento, cuja liquidação integral a Ré sustenta ter realizado;
- por fim, a restante factualidade relaciona-se com o pretenso abandono, por parte das Autoras, dos seus postos de trabalho, cuja matéria sustenta o pedido reconvencional da Ré.
Como se vê, nenhuma da factualidade preterida se reporta à sobredita questão de mérito que resta por decidir: a vinculação da Ré ao despedimento verbal de que terão sido alvo as Autoras.
Sendo assim, torna-se patente a sua completa irrelevância para a discussão jurídica que ainda subsiste.
3.3.1.
Basta a ler as conclusões da revista para constatar que a Ré não questiona o “despedimento verbal” de que as Autoras terão sido alvo por parte do Prof.DD: o que ela afirma é que esses despedimentos não a vinculam, visto que o seu emissor não detinha poderes para a representar.
Por isso, a nossa atenção não deve incidir sobre os actos de despedimento, enquanto tais, mas antes sobre a virtualidade, ou não, que os mesmos teriam de vincular a demandada.
Apesar disso, não deixaremos de retomar a questão, se vier a ser necessário, discorrendo sobre as formas que pode revestir o acto de despedimento.
Neste contexto, cabe referir que não assume particular relevância a factualidade vertida nos pontos H) e I) da matéria assente, quando ali se diz que “… as AA. foram despedidas verbalmente”.
Ainda que esta expressão seja notoriamente conclusiva, a verdade é que a respectiva matéria, pela razão mencionada, não integra, verdadeiramente, o “thema decidendum”, minguando razões para que se proceda à sua eliminação, nos termos do art.º 646º n.º 4 extensível ao Supremo por virtude do disposto no art.º 722º n.º 2.
Centremo-nos, pois, nos poderes que cabiam ao Prof.DD, de quem emanaram as ordens de despedimento.
3.3.2.
Em termos orgânicos, as sociedades comerciais por quotas apresentam uma estrutura bicéfala, visto que a lei as dotou de dois órgãos essenciais: a assembleia geral e a gerência.
Compete especificamente à gerência a prática dos actos necessários à gestão, administração e representação da sociedade – art.º 252º do Cod. Soc. Comerciais.
Pressupondo a distinção entre órgão e titular do órgão, a lei não impõe que a designação dos gerentes integre o conteúdo obrigatório do contrato societário.
Por outro lado, os poderes específicos de gestão – que não a própria qualidade de gerente – constituem uma questão interna da sociedade, não tendo que ser levados, por isso, à inscrição registral correspondente.
Acresce que os gerentes tanto podem ser escolhidos de entre os sócios, como de entre pessoas estranhas à sociedade, tornando-se apenas mister que a escolha recaia sobre pessoas singulares com capacidade jurídica plena.
Por fim, cabe recordar que são aplicáveis às sociedades, nos termos do art.º 157º do Cod. Civil as disposições do capítulo deste diploma relativas às pessoas colectivas.
Entre essas disposições, avulta o art.º 165º, segundo o qual as pessoas colectivas respondem civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários, nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus mandatários.
E, neste contexto, ao menos por virtude do art.º 268º do Cod. Civil, é certo que uma sociedade pode tacitamente aceitar a actuação de quem, não sendo seu representante “de jure”, se comporte, na prática, como tal: basta, para isso, que se evidencie uma reiterada aceitação tácita dessa representação, necessariamente correspondente à sua ratificação, cujo acto não exige a observância de forma especial – n.º 2 do citado preceito e art.º 262º n.º 2 do mesmo Código.
À luz dos princípios expostos, nada impede, neste tipo de sociedades:
- que as funções de gerente sejam efectivamente exercidas por quem, sendo sócio, não tenha aquela qualidade “de jure”;
- que o gerente registral o seja apenas formalmente: é o que acontece quando esse “gerente” não partilha efectivamente dos poderes patronais.
Por outra banda, também é pacífica a admissibilidade legal da co-existência, na mesma pessoa, das qualidades de trabalhador – por força de contrato laboral – e de gerente de uma sociedade por quotas - designadamente quando se não é sócio.
A este respeito, escreve o Prof. Monteiro Fernandes (in “Noções Fundamentais de Direito do Trabalho”, 4ª ed. 1º vol., pág. 65):
“Constitui orientação pacífica a de que os administradores das sociedades anónimas e os gerentes das sociedades por quotas, enquanto tais, preenchem as características de mandato e não as de contrato de trabalho. Entende-se, no entanto, também que a titularidade da gerência comercial pode cumular-se, na mesma pessoa, com a posição de trabalhador, maxime quando nela não concorra a qualidade de sócio”.
Enfim – e revertendo ao concreto dos autos – é dizer que, independentemente dos títulos registrais, o Prof.DD bem podia comportar-se como o único gerente efectivo da Ré – e por esta aceite como tal – detendo a Autora AA a mera qualidade formal desse cargo.
3.3.3.
A factualidade dada como provada evidencia que:
- o Prof.DD é sócio maioritário da Ré, foi professor das Autoras e foi ele que, após a licenciatura das mesmas, as convidou para trabalhar na empresa;
- as Autoras foram contratadas pelo Prof.DD para trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré;
- estavam sujeitos a horário de trabalho, eram remuneradas mensalmente e recebiam subsídios de férias e de Natal, bem como um denominado prémio de produtividade;
- o eventual trabalho suplementar das Autoras seria pago autonomamente;
- era o Prof.DD quem assinava mensalmente os cheques para pagamento dos salários das Autoras e era ele quem, em geral, determinava as tarefas de que as Autoras deviam incumbir-se e lhes dava ordens;
- era ainda ele quem aprovava os orçamentos e autorizava todas as compras e reparações de máquinas e automóveis, fosse qual fosse o seu montante;
- as Autoras foram “despedidas verbalmente” pelo Prof.DD no dia 7/10/03, pelas 9h30, despedimentos esses que por ele voltaram a ser confirmados pelas 15h do mesmo dia, quando as Autoras solicitaram que lhes fosse passado o modelo 346;
- a Autora AA foi classificada profissionalmente pela Ré como sondadora (de Abril de 1997 a Dezembro de 2000) e como gerente (a partir de Janeiro de 2001);
- após a sua classificação como gerente, aquela Autora continuou a exercer as funções anteriores, a par de outras, sob aprovação do Prof.DD;
- a Autora BB foi classificada profissionalmente pela Ré como sondadora (de Janeiro a Dezembro de 2000) e como Engenheira de Grau II (a partir de Janeiro de 2001).
A factualidade transcrita não permite concluir que a Autora AA, como gerente, tivesse mais do que a qualidade formal desse cargo: é que ela, após essa investidura, continuou a trabalhar sob as ordens e fiscalização do Prof.DD, a quem reportava e prestava contas da sua actividade profissional.
Em contrapartida, essa factualidade também esclarece, à saciedade, que o verdadeiro e único gerente da Ré era, de facto, o Prof.DD, cujos poderes de representação e a consequente ratificação dos seus actos foram por ela tácita e reiteradamente assumidos ao longo dos anos.
De resto, a Ex.ma Juíza fez mesmo consignar, na sua sentença, que o Prof.DD referira, na audiência de julgamento, “… que não podia assumir a gerência da Ré por incompatibilidade com o Ministério da Educação, pois é professor na Universidade de Aveiro”.
Aqui chegados, somos levados a concluir que os actos praticados pelo Prof.DD, designadamente em matéria disciplinar, vinculavam necessariamente a Ré.
3.3.4.
A solução ora alcançada leva-nos a discorrer, por fim, sobre a validade do despedimento verbal.
O despedimento constitui, estruturalmente, um negócio jurídico unilateral receptício, através do qual o empregador revela a vontade de fazer cessar o contrato de trabalho.
Sabe-se que “A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade; é tácita quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, os revelam” – art. 217º n.º 1 do Cod. Civil.
Essencial, para a relevância da declaração tácita, é a inequivocidade dos chamados “facta concludentia”.
Dir-se-á que ela tem lugar sempre que a um comportamento seja atribuído um significado legal tipicizado, sem admissão de prova em contrário (cfr. Mota Pinto in “Teoria Geral”, 1967, pág. 174).
Diversa da declaração tácita, é a declaração presumida, que ocorre sempre que a lei liga a determinado comportamento o significado de exprimir uma vontade negocial em certo sentido, podendo ilidir-se tal presunção mediante prova em contrário (cfr. Autor e ob. Citados, pág. 173).
No domínio do despedimento promovido pela entidade patronal, tem-se entendido que a vontade de pôr termo ao vínculo laboral há-de ser “inequívoca”, razão por que se não tem admitido o despedimento tácito, com a amplitude que é conferida às declarações negociais tácitas pelo falado art.º 217º (e, muito menos, o despedimento presumido).
Neste particular, apenas se admitem os chamados “despedimentos de facto”, corporizados numa atitude inequívoca do empregador, de onde decorra necessariamente a manifestação de uma vontade de fazer cessar a relação laboral.
E, se assim é relativamente aos “despedimentos de facto”, por maioria de razão sucederá com os despedimentos verbais.
Em qualquer dos casos, a manifestação negocial da entidade patronal só se torna eficaz se for levada ao conhecimento da outra parte, por forma a que esta fique a conhecer essa declaração de vontade – art.º 224º do Código Civil.
No caso dos autos, a declaração do Prof.DD foi transmitida directamente às Autoras, que nenhuma dúvida tiveram sobre o seu alcance, a ponto de logo terem peticionado a emissão do modelo 346.
Sendo o despedimento das Autoras eficaz, e vinculativo para a Ré, resta afirmar a necessária improcedência do recurso.
4- DECISÃO
Em face do exposto, acordam em negar a revista, confirmando o Acórdão da Relação.
Custas pela recorrente.
Lisboa 17 de Outubro de 2007
Sousa Grandão (Relator)
Pinto Hespanhol
Vasques Dinis