CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
TESTE DE ALCOOLEMIA
RECUSA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário


I- Impendendo sobre a Companhia de Seguros, em ordem a excluir a sua responsabilidade, o ónus de provar que o condutor do veículo segurado estava sob o efeito do álcool no momento do acidente e que este estado foi causal da ocorrência do mesmo, dá-se a inversão do ónus da prova, nos termos do artº 344º, nº 2 do Código Civil, se aquele condutor se recusar a efectuar o teste de alcoolémia, passando a recair sobre o segurado o encargo de fazer a demonstração de que a condução não estava a ser feita sob influência do álcool.
II- Tal sucede também no caso de o veículo pertencer a uma sociedade por cotas de que condutor era sócio gerente, até porque, fazendo ele parte do órgão de administração e representação da sociedade segurada, de que era elemento, incumpriu o dever acessório de cooperação, ao impedir a fiscalização do cumprimento da obrigação contratual de não conduzir sob a influência do álcool.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

... - Comércio de Madeiras e seus Derivados, Ldª propôs acção ordinária contra a Companhia de Seguros F...M..., S.A. pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 24.349,94, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.
Alegou danos patrimoniais decorrentes do acidente de viação que descreveu e se traduziu num choque entre vários veículos, um dos quais o veículo matrícula ...-...-RZ, conduzido por AA e na altura propriedade da C... - Banco de Crédito ao Consumo, S.A. com quem a A. tinha celebrado o contrato de locação financeira documentado nos autos.
Mais alegou a A. que, em 7 de Abril de 2004, usou o direito de compra do referido veículo tendo-a a locadora sub-rogado em todos os direitos que tivesse sobre a ré resultantes do sinistro em discussão nos autos.
Aduziu, ainda, que à data do acidente se encontrava em vigor o contrato de seguro do ramo automóvel que celebrara com a ré, titulado pela apólice nº ..., pelo qual transferira para esta a responsabilidade civil pelos danos emergentes da circulação do referido veículo, incluindo danos próprios, existindo franquia contratual (à data 803,06 €) em conformidade com o que consta do doc. de fls. 11-12.
Sustentou, por fim, que em consequência do acidente, o referido veículo, que tinha o valor venal de 40.135 €, sofreu estragos tendo os salvados o valor de 15.000 €.
Na contestação a ré, além de se defender por impugnação, invocou como causa de exclusão da obrigação de pagamento, que o condutor do veículo conduzia sob influência do álcool razão pela qual se recusou a submeter-se, de imediato, a exame de pesquisa de álcool no sangue, tendo, devido a tal recusa injustificada, impedido a fiscalização quanto ao cumprimento da obrigação de não condução sob influência do álcool.
Houve réplica.
A final foi proferida sentença que julgou improcedente a excepção invocada pela ré e a acção procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de 24.349,94 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento.
Discordando, a ré apelou para a Relação do Porto, que revogou a sentença, absolvendo-a do pedido.
Recorre agora a autora de revista, concluindo:
1º- O contrato de seguro em causa nestes autos está titulado na apólice nº ..., foi celebrado entre a A. e a R. e respeita a danos próprios do veiculo seguro;
2º- O problema que se discute neste processo é um problema de responsabilidade por alegada falta de cumprimento do contrato, por parte da ré, que se nega a indemnizar os danos sofridos pela viatura RZ no acidente ocorrido em 22/06/2002;
3º- A ré excepcionou, como justificativo do seu inadimplemento que o respectivo condutor conduzia o RZ sob a influência do álcool o que foi causal do sinistro, em virtude deste se negar a submeter-se ao respectivo teste, o que realmente aconteceu;
4º- O acórdão recorrido, considerando que a recusa do condutor do RZ a submeter-se ao teste do álcool representa uma violação dos deveres da boa fé, de cooperação que devem presidir e emanam ao contrato de seguro, fez incorrer o condutor "segurado" (?) no artº 344º nº 2 do CC considerando a inversão do ónus da prova em combinação com a clausula 37ª nº 1 al. e) do contrato de seguro e com o artº 516º do CPC como prova de que ele conduzia com álcool;
5º- Tal decisão assentou, porém, num erro, porquanto o condutor do RZ não é o segurado ou tomador do contrato de seguro em causa, não estando por isso vinculado a qualquer obrigação do contrato de seguro que apenas obriga as partes nela intervenientes;
6º- Por isso a julgada inversão do ónus da prova é ilegal e viola o artº 342º do CC por errada aplicação do artº 344º nº 2 do mesmo diploma legal;
7º- Não estando provado nos autos que o condutor do RZ conduzisse influenciado por álcool, nem que este se tenha negado a fazer o teste por ter ingerido álcool, não pode ser equiparada tal atitude à condução sob a influência do álcool;
8º- Não estando também provado qualquer facto donde possa concluir-se que a A. violou qualquer preceito legal ou dever contratual que sobre si impendesse, nomeadamente interferindo na recusa do condutor do RZ, um terceiro não parte no contrato de seguro, e a quem este não obriga,
9º- Não se verifica a causa de exclusão do dever de indemnizar invocada pela ré que deve ser condenada a pagar à A. os danos resultantes do acidente dos autos que se acham comprovados;
10º- O acórdão recorrido violou os artºs 342º do CC todos, aqueles em que se funda a presente acção, tendo aplicado erradamente o artº 344º nº 2 do CC e 516º do CPC, devendo ser revogado, confirmando-se a decisão da 1ª instância.
Contra - alegou a recorrida F...M..., S.A., pedindo a confirmação do acórdão recorrido.
Com os vistos, cumpre decidir.
São os seguintes os factos considerados provados pela Relação:
1. No dia 24 de Junho de 2002, pelas 4 h 10m, na Rua do Amial, no Porto, ocorreu um choque que envolveu os seguintes veículos:
- o veículo ligeiro de passageiro, de matrícula ...-... -RZ, propriedade da aqui autora, na altura conduzido por AA;
- o veículo ligeiro de passageiros de matrícula...-...-16, propriedade de BB e na altura conduzido pelo mesmo;
- o veículo ligeiro de passageiros de matrícula CX-...-..., propriedade e na altura conduzido por CC;
- e o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ...-...-PG, propriedade de DD (A));
2. No dia e hora referidos o RZ circulava na Rua da Telheira, no sentido poente - nascente a uma velocidade de não mais de 50 Km/h (B) e 1º e 2º);
3. Na altura, a cerca de 100 m do cruzamento com a Rua do Amial, estava colocado na Rua da Telheira, do lado direito, atento o sentido poente -nascente, um sinal de sentido proibido por motivo de obras (C));
4. O condutor do RZ passou esse sinal sem dele se aperceber (D));
5. Depois de passar o referido sinal, o condutor do RZ seguiu em direcção à Rua do Amial, a velocidade não superior a 50 Km/h (6º);
6. Após, deu-se o embate entre os veículos RZ e XH (E) e 5º e 8º);
7. Em consequência deste embate o RZ foi projectado contra o PG que se encontrava estacionado do lado direito da Rua Coronel Almeida Valente, atento o sentido nascente - poente (F));
8. À data do acidente o valor venal do RZ era de 40.153 € (G));
9. Em consequência do acidente o RZ ficou danificado, tendo o mesmo, após o acidente, o valor de 15.000 € (H));
10.O agente da PSP que se deslocou ao local do acidente pretendeu submeter o condutor do RZ ao exame da pesquisa de álcool no sangue (I));
11.Tal condutor recusou-se a submeter-se ao referido teste, mesmo depois de advertido das consequências legais da sua recusa (J));
12.Acabou por ser julgado pelo crime de desobediência no processo nº 207/03.6TPRT da Pequena Instância Criminal do Porto e condenado conforme sentença de que se encontra junta certidão a fls. 33 a 40, cujo teor se dá por reproduzido (K));
13.Entre a autora e a C... foi celebrado em 6 de Julho de 2001 o contrato de locação financeira documentado a fls. 6, cujo teor se dá por reproduzido, tendo por objecto o veículo matrícula ...-...-RZ (L));
14.Em 7 de Abril de 2004 a autora usou do seu direito de compra antecipada do veículo objecto do referido contrato, tendo-a a locadora sub-rogado em todos os direitos emergentes do mesmo, nomeadamente nos direitos que tenha sobre a ré resultantes do sinistro em discussão nestes autos - doc. de fls. 7 a 10 ( M));
15.Dá-se aqui por integralmente reproduzida a declaração junta a fls. 11-12, de 6/7/2001, onde a ré declara que celebrou com a autora um contrato de seguro do ramo automóvel, relativamente ao veículo ligeiro de passageiros marca Mercedes Benz modelo C 220 CDI Station Wagon, de Julho de 2001, com a matrícula ...-...-­RZ, titulado pela apólice nº ... pelo qual esta transferiu para si a responsabilidade civil pelos danos emergentes da circulação do referido veículo, incluindo a de danos próprios no veículo seguro em consequência de choque ou colisão, pelo valor de 57.361,75 €, com a franquia de 1.147,23 € (N));
16.Dão-se aqui por integralmente reproduzidas as condições gerais da apólice juntas a fls. 23 a 32 (O)).
Quid iuris?
Ficou provado que o agente da PSP que se deslocou ao local do sinistro pretendeu submeter o condutor do RZ ao exame de pesquisa de álcool no sangue, e que este se recusou a submeter-se a esse teste mesmo depois de advertido das consequências legais da recusa, acabando por ser julgado pelo crime de desobediência e por ser condenado.
Concluiu a Relação que em consequência dessa conduta a recorrida ficou impossibilitada de provar a alegada condução sob o efeito do álcool por parte daquele condutor, no sentido de tal estado anómalo ter sido causal do acidente.
E acrescentou a Relação que, impendendo sobre a recorrida o ónus de provar que o condutor estava sob o efeito do álcool no momento do acidente e que este estado foi causal da ocorrência do mesmo, em ordem a excluir a responsabilidade perante o tomador do seguro (artº 37º, nº 1, e) das Condições Gerais da Apólice), devido ao descrito circunstancialismo se deu a inversão do ónus da prova, nos termos do artº 344º, nº 2 do CC, passando a recair sobre o segurado o encargo de fazer a demonstração de que a condução não estava a ser feita sob influência do álcool, prova que não realizou, tendo por isso de concluir-se, face ao artº 516º do CPC, que essa não prova equivale à admissão processual de que o condutor conduzia sob influência do álcool, o que conduz à exclusão da responsabilidade contratual da recorrida nos termos daquela condição geral, da qual resulta ficarem excluídos da responsabilidade da seguradora os sinistros em que o condutor conduza sob influência do álcool.
Daí que a Relação tenha julgado a acção improcedente, absolvendo a recorrida do pedido.
Conclui porém a autora/recorrente que a decisão assentou num erro, por o condutor do RZ não ser o segurado ou tomador do contrato de seguro, não estando por isso vinculado a qualquer obrigação imposta por tal contrato, o qual apenas obrigava as partes, não se verificando consequentemente a inversão do ónus da prova, e, não estando provado que o condutor do RZ conduzia influenciado pelo álcool, nem que se negou a fazer o teste por ter ingerido álcool, não pode a atitude dele ser equiparada à condução sob a influência do álcool, inverificando-se consequentemente a invocada causa de exclusão do dever de indemnizar.
O recurso não merece provimento.
Na verdade, provou-se que o veículo ...-...-RZ era conduzido por AA.
Ora, a procuração que a autora/recorrente juntou aos autos a favor do seu Advogado, a fls. 14, foi outorgada pelos sócios gerentes, um dos quais justamente o referido condutor, que, como se respiga também da proposta do ajuizado contrato de seguro, a fls. 85 vº, foi quem, em 6.7.2001, a assinou na qualidade de gerente da autora/recorrente, assinatura e qualidade que esta não impugnou aquando da junção aos autos desse documento pela recorrida.
Nesta conformidade, não se pode dizer que o AA, condutor do RZ na altura do sinistro, é um terceiro estranho ao contrato de seguro, para daí concluir que não estava obrigado a proceder de boa fé, a colaborar sujeitando-se a fazer o teste da alcoolémia.
Era sócio-gerente da autora à data da celebração do contrato de seguro, à data do ajuizado sinistro estradal, e à data da propositura da demanda.
Fazia e faz parte do órgão de administração e representação da autora/recorrente (artº 252º, nº 1 do CSC), era elemento da própria sociedade, através do qual esta se manifestava (e manifesta), actuava (e actua), devendo praticar os actos necessários ou convenientes para a realização do objecto social (artº 259º do CSC), e os actos por ele praticados em nome da sociedade, dentro dos poderes que a lei confere, vinculavam-na para com terceiros (artº 260º, nº 1 do CSC).
Ele interveio na formação do contrato de seguro, na indicada qualidade, e tem interesse na coisa segura, pertença da autora, da qual era e é sócio - gerente (como se constata ainda do documento de fls. 9, por ele também assinado na referida qualidade, com a assinatura notarialmente reconhecida em 8.4.2004).
Encontrava-se por conseguinte vinculado, à data do acidente, a proceder de boa fé para com a recorrida/seguradora, tendo violado o artº 762º, nº 2 do CC, incumprindo o dever acessório de cooperação ao impedir a fiscalização do cumprimento da obrigação contratual de não conduzir sob a influência do álcool.
Recaindo em princípio sobre a recorrida, para ver a sua responsabilidade afastada, a obrigação de provar que aquele condutor conduzia sob a influência do álcool, a verdade é que, face à recusa do referido condutor em se submeter ao aludido exame, ficou impedida de efectuar essa prova.
Por isso, bem ajuizou a Relação ao considerar que se deu a inversão do ónus da prova, nos termos do nº 2 do artº 344º do CC, e que, como a prova negativa do facto não foi feita pela recorrente, isso permite concluir, face ao artº 516º do CPC, que o condutor do veículo seguro conduzia sob a influência do álcool, o que conduz à exclusão da responsabilidade da recorrida.
Tudo visto e ponderado, acordam em negar a revista, condenando a recorrente nas custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Novembro de 2007

Faria Antunes (Relator)
Moreira AlveS
Alves Velho