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DIREITO AO BOM NOME
LIBERDADE DE IMPRENSA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário
I - O conceito jurídico fundamental de dignidade da pessoa humana, em que cabem os direitos constitucionais ao bom-nome e à reserva da vida privada, integra uma decisão de valor válida para toda a ordem jurídica.
II - No apuramento da gravidade do dano e na sua, consequente, concretização para efeitos indemnizatórios tem o julgador que interpretar e decidir à luz dos preceitos da lei civil (arts. 70.º, 484.º e 496.º do CC).
III - Apesar de serem ilícitos todos os actos lesivos de direitos fundamentais, os danos decorrentes dessa violação podem, pela sua irrelevância, não merecer a tutela do direito.
IV - No caso dos autos, embora estejam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por violação do direito de personalidade ao bom-nome, reputação e imagem da Autora, em consequência da publicação na capa de revista de que o Réu é proprietário de título segundo o qual a Autora e um seu amigo “assumem relação”, tal não implica que os danos - no caso arrelias e incómodos - daí resultantes assumam gravidade bastante para justificar a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
A aqui recorrente intentou contra “I... Gest, SGPS, SA” acção declarativa de condenação com processo ordinário pedindo a condenação da R no pagamento de uma indemnização de € 15000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento, vindo, posteriormente, requerer a intervenção principal provocada de AA, na qualidade de proprietário da revista “N...G...”, a qual foi admitida.
Alega para tanto que na capa da mencionada revista (edição de 17 de Julho de 2002) foi referida a existência de uma relação amorosa entre ela (A) e um individuo que identifica, facto esse que sendo falso, abalou o seu prestigio e bom nome pessoal e profissional.
Contestaram a R I... e o interveniente AA deduzindo, ambos, excepção da sua ilegitimidade e impugnando os factos alegados pela A; acrescentam que ao assinalar-se uma relação amorosa entre duas pessoas não se representa a imputação de facto ofensivo ou que abale o crédito e bom-nome dessas pessoas.
Findos os articulados foi proferido despacho saneador considerando a instancia regular procedendo-se, de seguida, à selecção da matéria de facto.
Realizado julgamento com observância do formalismo legal foi, em sua sequência, proferida sentença na qual se julgou a acção parcialmente procedente, absolvendo-se a R I... do pedido e condenando-se o interveniente AA a pagar à A a quantia de € 4000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora legais.
Inconformado recorreu o interveniente tendo o Tribunal da Relação de Lisboa dado provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e absolvendo-o do pedido.
Do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa interpôs a A o presente recurso de revista.
Nas conclusões da sua alegação diz, em síntese, a recorrente que:
a) O Acórdão recorrido violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 70º, 26º, 483º e 496º nº 1 CCv;
b) Face á matéria de facto provada estão preenchidos os pressupostos de aplicação do artigo 483º supracitado;
c) Resultando, igualmente, a existência de danos patrimoniais graves e, consequentemente, merecedores de tutela jurídica;
d) Ao restringir-se a aplicação do artigo 496º CCv o Acórdão viola o preceituado os artigos 25º nº 1 e 26º da CRP, sendo inconstitucional a interpretação perfilhada.
Contra-alegou o interveniente/recorrido argumentando pela improcedência do recurso.
É a seguinte a matéria de facto provada:
a) A R (I... Gest) tem por objecto a gestão de participações sociais de outras sociedades como forma indirecta de exercício de actividades económicas;
b) Na edição nº 1348, de 17 a 23 de Julho de 2002, a revista “N...G...” apresentava na sua capa uma fotografia da A e de BB, com o seguinte título aposto: “Um ano depois de se conhecerem CC e Icas ASSUMEM RELAÇÃO!”;
c) No interior da revista referida em b), cuja cópia consta de fls.14 e seguintes dos autos e cujo teor se dá por reproduzido, encontra-se o seguinte texto: “uma amizade assumida. CC e BB. Um ano depois falam sobre a sua relação. Conheceram-se por razões profissionais há um ano e hoje são grandes amigos. Actualmente com profissões bem distintas: ela actriz e ele finalista do curso de história, viajaram até ao Egipto para, sob os intensos 47 graus do deserto, nos revelarem todos os pormenores de uma amizade e cumplicidade comuns…”.
d) O Instituto da Comunicação Social emitiu, com data de 15 de Julho de 2004, a certidão de fls. 74 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, onde consta, para além do mais, “… a publicação periódica semanal “N...G...”, se encontra registada neste serviço desde 8 de Setembro de 1976, sob o nº ..., é propriedade de AA …”;
e) A A foi apresentadora de um programa de televisão;
f) e trabalha num órgão de comunicação social;
g) em data que não foi possível apurar de Junho de 2002, a autora recebeu um telefonema de DD, seu amigo e jornalista, no qual este lhe perguntou qual a sua disponibilidade para se deslocar ao Egipto convidada pela revista N...G...;
g) Tendo afirmado que a referida viagem teria como objectivo a realização de uma entrevista à revista “N...G...” juntamente com BB (Icas), vencedor do segundo “Big Brother” a amigo da A;
h) Que teria como tema central a amizade entre a A e BB;
i) e o facto de tal amizade ter tido início numa relação de trabalho, aquando da realização de diversas reportagens realizadas pela A relacionadas com o programa “Big Brother”;
j) e que a ida ao Egipto permitiria ilustrar com imagens a referida entrevista;
l) em data não apurada de Junho de 2002 a autora recebeu novo contacto do DD, através do qual este confirmou o convite por parte da revista “N...G...”;
…
m) A autora recebeu por parte daquela revista a confirmação da sua partida com destino ao Cairo no dia 27 de Junho;
n) No dia 27 de Junho a autora deslocou-se para o Aeroporto de Lisboa onde se deveria encontrar com os seus companheiros de viagem – BB, DD e EE;
o) DD e EE acompanharam a A ao Egipto em representação da revista “N...G...” na qualidade, respectivamente, de repórter e repórter fotográfico;
…
p) Durante a estada no Egipto, e conforme o combinado, a A e o BB (Icas) tiraram várias fotografias juntos com o objectivo de ilustrar a entrevista;
q) Ao posar para essas fotografias a A e o BB tiveram sempre cuidado para que se percebesse bem a relação de amizade existente entre ambos;
r) O dia 3 de Julho de 2002 foi reservado para terminar a entrevista para a “N...G...”;
s) A entrevista centrou-se, conforme combinado, na estada da A e do BB no Egipto e na amizade entre ambos;
…
t) No dia 4 de Julho de 2002 a A deixou o Cairo tendo chegado a Lisboa nessa mesma tarde;
u) No dia 17 de Julho a A, ao ouvir as mensagens no seu telemóvel, foi confrontada com uma mensagem, de FF, em que era questionada s obre o que se passava e se esta e o BB realmente namoravam;
v) A autora foi confrontada ao longo de todo esse dia com telefonemas em que lhe falavam da capa da revista “N...G...” …;
w) Com intuito de tentar perceber o que se passava decidiu comprar a revista;
x) Foi diversas vezes abordada na rua por pessoas que procuravam saber a veracidade da notícia;
y) A autora ficou espantada quando viu o título da capa da revista “N...G...” nº 1348;
z) Desde o dia da publicação dessa revista, e durante o período de cerca de duas semanas, a A recebeu telefonemas em que era interrogada sobre a veracidade da relação amorosa entre ela e o “Icas”;
aa) A mãe, filho e amigos da autora foram abordados por pessoas que pretendiam saber a veracidade da relação amorosa entre a A e o Icas;
bb) A autora foi abordada por alguns jornalistas que pretendiam saber a veracidade dessa relação;
cc) Em consequência directa da capa e reportagem referidas foi motivo de chacota na rubrica “pilita” do programa Herman SIC de domingo, 21 de Julho;
dd) o que incomodou a A;
ee) A autora, embora trabalhe num órgão de comunicação social e o seu trabalho seja publico, tem preocupação de preservar a sua intimidade e a dos familiares e amigos;
ff) o que é do conhecimento da R;
gg) Em consequência da referida publicação, a autora viu-se obrigada a ter de se justificar perante os seus familiares e amigos;
hh) e, publicamente, através de desmentidos publicados em diversos jornais;
ii) e ficou sujeita a comentários públicos;
jj) Com toda a situação descrita a autora ficou triste;
ll) e sentiu mal estar perante familiares, amigos e colegas de trabalho;
mm) O teor do texto e fotos publicados na referida revista, relativos à autora e ao BB eram do prévio conhecimento de ambos;
nn) Incluindo a foto da capa da revista.
Tendo em conta as conclusões da alegação e o demais tido por relevante, nomeadamente as decisões das Instâncias e as contra-alegações do recorrido, são as seguintes as questões que se colocam:
1º) Estão ou não preenchidos todos os pressupostos determinantes da obrigação de indemnizar?
2º) Perante o circunstancialismo concreto apurado tem o dano não patrimonial gravidade merecedora de tutela jurídica?
3º) É inconstitucional a interpretação perfilhada no Acórdão recorrido?
As decisões das instâncias são concordantes relativamente ao facto de estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por violação do direito (de personalidade) ao bom-nome, reputação e imagem da A (recorrente) – artigos 70º e 484º CCv – em consequência da publicação na capa da revista “N...G...” do título “Um ano depois de se conhecerem CC e Icas ASSUMEM RELAÇÃO”.
Fica assim respondida a 1ª questão.
A divergência entre as decisões resulta do facto de na 1ª instância se ter valorado para efeitos indemnizatórios a gravidade do dano não patrimonial daí resultante enquanto a 2ª instância (em decisão tomada por maioria) desvalorizou esse mesmo dano colocando-o, por irrelevância, fora da tutela do direito (artigo 496º nº 1 CCv); é, precisamente, esta a questão nuclear no presente recurso.
O preceito legal supracitado (nº 1 do artigo 496º) impõe que o julgador, para efeitos de concessão de indemnização patrimonial destinada a ressarcir danos morais, avalie a gravidade desse dano de forma a considerá-lo merecedor ou não de tutela jurídica; a ponderação da gravidade do dano deve ser efectuada através de um padrão objectivo, necessariamente temperado com juízos subjectivos resultantes das circunstâncias concretas em que a ofensa se verificou Neste sentido Antunes Varela, Obrigações, vol. I, página 428 e Acórdão do STJ, de 3/12/92, in BMJ 422/365..
No caso concreto, o título que foi inserido na capa da revista em causa Trata-se de uma publicação que integra a chamada “imprensa cor-de-rosa” ou “imprensa social” que a nossa jurisprudência vem entendendo desligada da chamada “função pública” da imprensa. insinua publicamente (ainda que de forma ambígua ou dúbia) uma relação (amorosa) entre a A e o tal Icas e destinar-se-ia (conclusão nossa!), porque parcialmente Dizemos parcialmente porque a alusão a uma “relação” é feita de forma ambígua. desinserido do texto da reportagem constante no seu interior Texto esse do conhecimento prévio da A e onde se fala de uma relação de amizade. , a um maior impacto apelativo junto do consumidor desse tipo de publicações.
Independentemente da veracidade ou não da imputação feita (e no caso tudo aponta para a falta de veracidade) e da existência ou não de intenção ofensiva a inserção absolutamente injustificada (por desnecessária) desse título na capa da revista o facto é, em si, potencialmente lesivo do direito à honra e bom nome da A e consequentemente susceptível, ainda que em abstracto, de gerar obrigação de indemnizar nos termos do artigo 484º CCv; na verdade existe uma insinuação culposa de um facto efectuada em condições qualificáveis como desleais e deformadoras, uma vez que não suportada pelo teor da reportagem efectuada.
Apreciando, agora, as circunstâncias em que tudo ocorreu, os factos que estão a montante do que foi publicado, e elas importam, como já referimos, para efeitos de ponderação da gravidade do dano, temos, em primeiro lugar, que considerar que a A, ainda que com preocupação pela salvaguarda da esfera da sua vida privada, se assumiu, no caso concreto e ao aceitar a viagem ao Egipto e a consequente reportagem, como “figura publica” Aqui usada no sentido de uma pessoa cujos factos da vida pessoal e (ou) afectiva interessam a certos sectores da sociedade. sendo nessa condição que aceitou participar; para essa reportagem, e em acordo com a revista “N...G...” ou, pelo menos, com colaboradores desta, concedeu autorização para uma invasão (ainda que limitada aos objectivos que lhe foram indicados) da sua esfera privada.
Serve isto para dizer que não estamos perante uma reportagem não autorizada (“modelo paparazzi”) mas uma reportagem previamente autorizada por ambos os intervenientes Ambos, ela como apresentadora e ele como concorrente, participaram num programa de televisão; Big Brother, cujo tema resultava numa exposição publica da vida privada dos concorrentes, sendo o tema da reportagem, realizada na Grécia a relação de amizade sedimentada nesse programa., por certo ponderada por eles relativamente aos riscos que a interpretação subjectiva dos leitores da revista comportaria, independentemente do título dado à mesma.
O texto da reportagem contém-se dentro dos limites acordados ou consentidos e, tanto assim é, que foi objecto do prévio conhecimento (anterior à publicação) e consentimento da A e do referido Icas, já que, pelo menos tacitamente, nenhum deles reagiu ao seu conteúdo.
Por outro lado, e conforme decorre, também, dos factos provados, as consequências da publicação do dito título para a A traduzem-se apenas no facto de ela e familiares próximos terem sido abordados por amigos e outras pessoas que pretendiam saber da veracidade da noticia, ter sido objecto de comentários (não determinados) e na circunstância de a situação ter sido objecto de “chacota” num programa humorístico de televisão (neste caso, porque não concretizado em que consistiu a “chacota” poderá colocar-se a questão de isso poder resultar do título inserido na capa ou da própria reportagem??) .
Não se nos afigura que, neste circunstancialismo, e como se decidiu no Tribunal da Relação de Lisboa, tenham resultado, para ela A, mais do que incómodos ou arrelias cuja gravidade não é merecedora de tutela jurídica não se justificando, consequentemente, que se arbitre indemnização por danos não patrimoniais.
Não merece, pois, censura o Acórdão recorrido.
Afirma, ainda e por outro lado, a recorrente ser esta interpretação (do Acórdão recorrido e também nossa) inconstitucional porque violadora dos artigos 25º nº 1 e 26º da Constituição da Republica.
É certo que o conceito jurídico fundamental de dignidade da pessoa humana, em que cabem os direitos constitucionais ao bom-nome e à reserva da vida privada, integra uma decisão de valor válida para toda a ordem jurídica; sucede porém que, apesar de nessa conformidade serem ilícitos todos os actos de entidades privadas (é o que está em causa!) lesivos de direitos fundamentais (aliás em conformidade com o nosso entendimento deixado expresso), a concretização dos efeitos dessa violação, nomeadamente para reparação de danos, se efectua junto dos meios comuns de justiça cível (ou criminal, por recurso aos preceitos da lei comum aplicáveis (no caso os artigos 70º, 484º e 496º CCv.
No apuramento da gravidade do dano e na sua, consequente, concretização para efeitos indemnizatórios tem o julgador que interpretar e decidir à luz dos preceitos da lei civil.
Não há, pois, qualquer inconstitucionalidade na interpretação efectuada do disposto no artigo 496º CCv.
Nestes termos, acorda-se em negar a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 13 de Março de 2008
Mário Mendes (Relator)
Moreira Alves
Sebastião Póvoas (Concederia a revista por entender ter sido violado o direito de personalidade-intimidade privada, «right to be alone»)