CONTRATO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
MORTE
ARRENDATÁRIO
Sumário

I - A falta da comunicação de morte do arrendatário não determina a caducidade do contrato de arrendamento, porque o n.° 2 do citado art.° 112.° não estabelece qualquer sanção para o não cumprimento do dever da comunicação nele previsto, muito menos se comina essa omissão com a caducidade do arrendamento.
II - Mal se compreenderia que, após a transmissão automática operada com a morte do arrendatário para o seu sucessor não renunciante, por efeito da manutenção da vigência do contrato consagrada no n.° 1, viesse a caducar o arrendamento ao fim de 180 dias, por falta daquela comunicação de quem já assumira a posição de arrendatário.

Texto Integral

Processo n.º 350/08.8TBCHV.P1

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Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró

Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:

I. Relatório

B…, economista, residente na Rua …, n.º .., Chaves, instaurou, em 11/4/2008, no Tribunal Judicial daquela comarca, onde foi distribuída ao 2.º Juízo, a presente acção de despejo, sob a forma de processo sumário, contra C…, D… e E…, melhor identificados nos autos, pedindo:
a) Que seja decretada a cessação do arrendamento do rés-do-chão do imóvel que identifica no art.º 4.º da petição inicial por caducidade, por falta de comunicação da morte do arrendatário F….
b) Se assim não se entender, que seja decretada a cessação do arrendamento do indicado rés-do-chão por resolução, por os réus não colaborarem nem permitirem a realização de obras no locado.
c) Caso ainda assim não se entenda, que seja decretada a cessação do dito arrendamento por denúncia, com fundamento no Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto.
d) E que os réus sejam condenados a despejar de imediato o arrendado e entregá-lo à autora livre e devoluto de quaisquer bens que lhe pertençam.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
É proprietária do prédio urbano sito na Rua …, composto de cave, rés-do-chão, 1.º e 2.º andares, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o artigo 329.

Os réus são o cônjuge sobrevivo e os filhos de F…, que tomou de arrendamento o rés-do-chão e a cave do referido prédio por contrato outorgado em escritura pública de 11 de Novembro de 1963.
F… faleceu em 1998, mas os réus, sucessores não renunciantes do arrendamento, jamais comunicaram a sua morte à senhoria.
O réu D… explora o estabelecimento instalado no arrendado.
A autora pretende realizar obras de recuperação e remodelação no seu referido prédio, incluindo o locado, tendo obtido os necessários projectos e licenças. Porém, os réus tudo têm feito para obstaculizar a realização das referidas obras.

Os réus contestaram, dizendo, em resumo, que a anterior senhoria há muito que soube do óbito do arrendatário, já que ocorreu em 7/9/98, durante a pendência de uma acção de despejo, onde foram habilitados como seus sucessores os ora demandados; nunca impediram a autora de realizar obras no locado, sendo que estas apenas lhe conferem o direito à suspensão do contrato. Concluíram pela improcedência da acção.

Proferido despacho saneador tabelar, dispensada a condensação e instruída a causa, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, após várias vicissitudes, tendo a matéria de facto sido decidida nos termos constantes do despacho de fls. 380 a 382, de que não houve reclamações.
Finalmente, em 16/5/2011, foi elaborada sentença que julgou a acção improcedente.

Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“I - O contrato de arrendamento a que respeitam os autos, cujo objecto é o r/c, a cave e subcave do prédio sito na Rua … com os números de polícia de 1 a 9, em que é senhoria a A. e foi arrendatário F…, caducou com a morte deste ocorrido em 1998.
II - Os efeitos da morte do arrendatário relativamente à relação contratual verificaram-se em 1998, determinando consequentemente, que a sucessão do arrendamento seja regulada pela legislação então em vigor, ou seja, pelo Dec. Lei 301-B/90 de 15/12.
III - O citado contrato caducou na data indicada do falecimento, em virtude de os réus não terem satisfeito as exigências do n.º 2 do preceito transcrito, sendo certo que a comunicação e os documentos aí mencionados não podem ser omitidos.
IV - No caso de se entender que a sucessão no arrendamento é regulado pela lei em vigor à data do óbito do arrendatário, ou seja, o NRAU, o resultado prático para a A. é idêntico.
V - Por força das disposições transitórias da citada legislação, a transmissão, por morte, dos contratos para fins não habitacionais, celebrados antes da vigência do Dec. Lei 257/95 de 30/09, rege-se pelo art. 58.º do NRAU.
VI - Assim sendo, o contrato findo com a morte do arrendatário, salvo se algum sucessor tiver explorado em comum com o arrendatário, há pelo menos três anos, o estabelecimento a transmitir e comunicar ao senhorio a vontade de continuar a exploração no prazo de 30 dias posteriores ao óbito.
VII - Sucede que, não obstante se ter provado que a R. viúva explorou com o seu marido arrendatário, o estabelecimento em apreço até à morte dele, estar casado com ele no regime da comunhão geral de bens e ter sido a única actividade que ambos exerceram ao longo da vida, nunca a R. C… alegou o estatuto de sucessora, nem comunicou a vontade de continuar a exercer a actividade comercial, como efectivamente não continuou.
VIII - Também o R. D… que é quem explora exclusivamente o estabelecimento instalado no arrendado nunca se assumiu como sucessor, nem invocou a exploração em comum com a arrendatária, nem fez qualquer comunicação à senhoria, sendo certo que é o R. D… quem tem de alegar e provar os requisitos de sucessor, por se tratar de matéria excepcional.
IX - O contrato terminou com o óbito do arrendatário F… em 1998.
X - O R. D…, ao contrário do arrendatário F…, desenvolveu todos os esforços no sentido de impedir a realização de obras no prédio da "…" onde se situa o arrendado, que se encontra em grave estado de degradação, como referem os técnicos da C.M.....
XI - Depois da A. se ter dirigido ao arrendado e ter informado o R. D… da iniciativa das obras e lhe ter solicitado para permitir a visita dos técnicos da "G…", o R. D… quando estes quiseram ir ao arrendado fazer medições, não os deixou entrar.
XII - No seguimento duma requerida vistoria técnica à C.M…., quando os técnicos e a A. se dirigiram para o arrendado o R. D… não os deixou entrar, argumentando que não estavam devidamente credenciados, muito embora fosse informado do que se passava.
XIII - Marcada nova vistoria para o dia 27 de Novembro de 2006 e após notificação pessoal feita pelos Serviços de Fiscalização da C.M., para o efeito o R. D… apenas disponibilizou o r/c do arrendado para apreciação dos técnicos, na presença da A. e do mandatário dos RR., mantendo a cave e a subcave inacessíveis pelo interior e exterior.
XIV - Dado o estado de degradação, o R. D… há muito tempo tem todas as entradas para aquelas partes inferiores pregadas com tábuas de madeira, que não se dignou despregar.
XV - A cave e subcave só puderam ser examinados porque a A. contratou um carpinteiro que possibilitou o acesso através duma porta exterior.
XVI - O R. D… não facultou ao locador e aos técnicos da Comissão de Vistoria da C.M…. o exame de todo o locado.
XVII - Junto aos autos com a p.i., sob doc.s 10 e 11, os autos de vistorias efectuadas descrevem o mau estado em que o imóvel se encontra, relacionando as várias áreas onde se deverá proceder a intervenção, factos confirmados pelo Auto de Inspecção Judicial ao Local.
XVIII - O R. D… não tolerou as obras ordenadas pela Comissão de Vistorias da C.M…. nem avisou a A. do estado em que se encontrava a cave e subcave.
XIX - Na sequência das vistorias a A. encomendou a uma empresa de arquitectura um projecto para recuperação do prédio, que foi licenciado pela C.M…. em Julho de 2007.
XX - Ao mandatário dos RR., com quem havia diálogo, o mandatário da A. no sentido das obras de remodelação ou restauro profundo puderam ser viabilizadas através da suspensão do arrendamento, de acordo com o Dec. Lei 157/2006 de 08/08, foi-lhe facultada uma cópia de todo o citado projecto, logo que obtida a respectiva aprovação.
XXI - Conseguida a concordância com o projecto, a A., para a efectivação da suspensão, fez a comunicação aos RR. a que se refere o art. 10.º do mencionado Dec. Lei, nos termos da carta que constitui doc. 12, junto com a p.i..
XXII - Na resposta a tal carta os RR. vieram informar que aceitavam as condições propostas, nos termos da carta que constitui doc. 13, junto com a p.i..
XXIII - A A. que entretanto tinha arrendado um espaço de r/c para o realojamento, com condições para o exercício do comércio, no centro da cidade, em 07 de Fevereiro de 2008 entregou ao mandatário dos RR. as chaves do espaço disponibilizado,
XXIV - Um mês depois, em Março de 2008, juntamente com uma carta em que faziam uma série de exigências que nunca tinham feito, nem na carta em que aceitaram as condições (doc. 13), nem em outra ocasião e que sabiam que não podiam ser cumpridas, devolveram as chaves do espaço disponibilizado para realojamento.
XXV - Quando parecia estar tudo resolvido, os RR. impossibilitaram a suspensão do arrendamento, o início das obras, a perda do prazo e dos benefícios fiscais, etc., etc., o que levou a A. a recorrer ao regime especial transitório do referido Dec. Lei 157/2006, já que, a situação sub Júdice se enquadra no âmbito desse regime especial.
XXVI - Essas normas aplicam-se apenas aos contratos habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU e aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Dec. Lei 257/95 de 30/09, sendo que o contrato em apreço foi celebrado em 1963 para fins comerciais.
XXVII - São obras que obrigam, para a sua realização, à desocupação do locado, portanto de remodelação ou restauro profundo, qualificação que resulta dos autos e expressamente do despacho camarário de 18/04/2008, junto com o projecto de restauro, após a notificação para os fins do art. 512.° do C.P.C., quando da apresentação dos meios de prova, sob doc.s 1 e 2, respectivamente.
XXVIII - A A. procedeu ao depósito para os fins e nos termos do art. 26.° do aludido regime especial.
XXIV - A sentença em recurso violou as disposições do Dec. Lei 301-B/90, art. 112.°, n.º 2, do NRAU, art. 58.°, art. 1038.°, alíneas b), e) e h) do C. Civil e Dec. Lei 157/2006 de 08 de Agosto.
Termos em que, deve revogar-se a sentença recorrida e substituir-se por outra que julgue procedente a pretensão da A., nos termos em que foi formulada, como é de Justiça.”

Os réus contra-alegaram pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto está delimitado pelas conclusões da recorrente (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção é posterior a 1/1/2008 – cfr. art.º 12.º do mesmo diploma), e não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, as questões que importa dirimir consistem em saber:
- se o contrato de arrendamento caducou com a morte do arrendatário;
- na hipótese negativa, se pode ser resolvido com fundamento na falta de colaboração dos réus na realização das obras que a autora se propõe efectuar no locado;
- ainda em caso negativo, se a autora pode denunciar o contrato para realização dessas obras.

II. Fundamentação

1. De facto

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

1. A autora é dona e possuidora do prédio urbano sito na Rua …, composto de cave, rés-do-chão, 1.º e 2.º andares, a confrontar de norte com herdeiros de H…, de nascente com Rua …, de sul com Rio … e de poente com Rua …, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o art. 329 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Chaves sob o n.º 131/22050930.
2. Tal prédio, conhecido como “…”, adveio ao património da autora primeiro por lhe ter sido deixada a raiz a si e aos seus cinco irmãos por testamento das suas tias I… e J… com reserva de usufruto até à morte da última.
3. I… faleceu em Junho de 1991 e, em 15/06/2003, J… doou-o à autora e aos seus irmãos.
4. A autora adquiriu aos seus irmãos a sua quota referente ao prédio descrito em 1.
5. Os réus são o cônjuge sobrevivo e os filhos de F…, falecido em 1998.
6. Em Novembro de 1963, no Cartório Notarial de Chaves, K… (ao tempo titular do imóvel referido em 1) deu de arrendamento a F… o rés-do-chão, sub-loja e cave do prédio descrito em 1.
7. Em Fevereiro de 1970, K… vendeu o referido prédio a I… e J….
8. A partir da morte de F…, a J…, sempre que se dirigia ao arrendatário fazia-o em nome de “herdeiros de F…”.
9. O réu D… é o único dos réus que permanece na loja de drogaria, agindo como verdadeiro comerciante, atendendo a clientela e procedendo à venda ao público dos seus produtos.
10. Considerando o estado de degradação de todo o prédio, considerando os pedidos que tinham sido feitos pelo arrendatário para a realização de obras, considerando o perigo que representava para os transeuntes o estado de algumas partes exteriores da construção e considerando o possível aproveitamento da parte devoluta, a autora decidiu proceder a obras de recuperação e conservação do imóvel, tendo contactado, para o efeito, o gabinete de arquitectura e engenharia “G…”.
11. Na qualidade de comproprietária e em representação dos seus irmãos e da sua tia J…, a autora dirigiu-se ao arrendado em que se encontrava o réu D…, informando-o da iniciativa das obras e solicitando-lhe que permitisse a visita dos técnicos para realização dos trabalhos.
12. Os técnicos da “G…” tentaram entrar no estabelecimento para fazerem estudos e medições, porém apenas conseguiram entrar na parte devoluta.
13. Foi comunicado aos réus que, mercê da doação de J…, a autora e os seus irmãos passaram a ser donos de todo o prédio.
14. Em 2005, a autora decidiu adquirir a totalidade do prédio e proceder a obras de restauro, procurando, se possível, aproveitar os benefícios fiscais concedidos, ao tempo, aos seus proprietários que efectuassem obras de reabilitação do património imobiliário (a parte em itálico foi aditada, por ter sido dada como provada a fls. 380 e visto ter sido omitida na sentença certamente por lapso).
15. Durante os anos de 2004 e 2005, a autora comprou as quotas dos seus irmãos.
16. A autora comunicou aos responsáveis pelo “…” a sua intenção de, sem alterar a sua estrutura, proceder ao restauro da “…” e, após (em Setembro de 2006) requereu à Câmara Municipal … uma vistoria técnica.
17. Tendo a autora designado o dia 13 de Novembro de 2006 para o efeito.
18. Realizada a vistoria à parte devoluta, quando a autora e os técnicos da Câmara se dirigiam para vistoriar o arrendado, o réu D… não os deixou aceder ao locado, muito embora os técnicos se tenham identificado e informado o que iam fazer.
19. Foi marcada nova vistoria para o dia 27 de Novembro, tendo o réu D… sido pessoalmente notificado.
20. No entanto, nesse dia, apenas conseguiram aceder ao rés-do-chão, uma vez que a cave, não sendo utilizada pelos réus há muitos anos e que tinha as portas pregadas por razões de segurança, teve a autora de arranjar um carpinteiro para arrombar as portas e voltar a pregá-las, o que ocorreu em 12 de Fevereiro de 2007.
21. A autora encomendou o projecto de restauro tendo este ficado licenciado em Julho de 2007, sendo de 2 anos o prazo para a realização das obras.
22. No ano de 2007, a autora facultou aos réus uma cópia do projecto.
23. Em 17 de Dezembro de 2007, a autora escreveu aos réus uma carta para efectivar a suspensão do arrendamento nos termos do art. 10º do Decreto-Lei 157/2006 de 8 de Agosto.
24. Tendo os réus respondido por carta de 10 de Janeiro de 2008.
25. A autora conseguiu um espaço para o realojamento com condições para o exercício do comércio na Rua … no centro da cidade.
26. E diligenciou no sentido de concretizar o início das obras quer na Câmara Municipal quer com o empreiteiro.
27. Em 7 de Fevereiro de 2008, foram entregues aos réus, na pessoa do seu mandatário, as chaves do espaço referido em 25.
28. Os réus devolveram as chaves aos autores em Março de 2008.
29. As obras dizem respeito a todo o interior do imóvel em que localiza o arrendado.
30. E não podem ser realizadas sem a desocupação do local arrendado.
31. No ano de 1997, correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Chaves, a acção sumária de despejo n.º 333/97 instaurada por J… contra F… e C…, tendo aquele falecido na pendência da mesma.
32. A autora da referida acção deduziu incidente de habilitação de herdeiros de F…, tendo indicado como seus sucessores os aqui réus.
33. Por sentença proferida no dia 4 de Maio de 1999, foram os aqui réus habilitados como sucessores do falecido na referida acção.
34. Os réus sempre estiveram de acordo com a intenção da autora de realizar as obras.
35. Tendo iniciado o processo junto da Câmara Municipal … com total desconhecimento dos réus, e tendo entrado em espaços arrendados aos réus sem disso os mesmos terem sido avisados ou tomado conhecimento dessa vistoria.
36. Razão pela qual foram os técnicos da Câmara Municipal impedidos de entrar no estabelecimento comercial.
37. Depois de informados os réus aceitaram a realização da vistoria.
38. O espaço referido em 25 apresentava buracos no soalho de madeira, faltavam portas e janelas nas traseiras, não tinha instalações sanitárias, a água e a electricidade não se encontravam ligadas e a porta principal tinha o vidro partido.
39. Desde o ano de 1963 que a ré C… explorou em comum com F… e até ao seu óbito o estabelecimento comercial aqui em crise.
40. Tendo sido a única actividade que ambos desenvolveram ao longo das suas vidas.
41. As obras que a autora pretende levar a efeito mantêm os mesmos espaços, ou seja, rés-do-chão, sub-loja e cave.

2. De direito

Estes factos não foram validamente impugnados em sede de recurso, já que a recorrente não observou os ónus impostos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 685.º-B do CPC, não só porque as conclusões da apelação, que definem o objecto e delimitam o seu âmbito, são totalmente omissas quanto à impugnação da matéria de facto, mas também porque a correspondente alegação não indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem especifica os meios probatórios, constantes do processo ou da gravação, que impunham decisão diversa sobre os mesmos, indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda, limitando-se a reproduzir factos provados e a resumir depoimentos prestados para divergir da interpretação que àqueles foi dada na sentença recorrida.

Por isso e porque não é caso para os alterar nos termos do art.º 712.º do CPC, consideram-se assentes os factos acima descritos, que são aqueles que foram dados como provados na sentença, com algumas correcções de lapsos manifestos.
Resta, pois, aplicar-lhes o direito, tendo em vista a resolução das supramencionadas questões.
É pacífico que estamos perante um contrato de arrendamento destinado a comércio, validamente celebrado, em 11/11/1963, entre um dos antecessores da autora e o antecessor dos réus, o qual teve por objecto a parte do prédio cuja entrega aquela pretende por esta via.
Porque tal contrato se foi renovando e dado que, para a sua cessação, foram invocados factos ocorridos na vigência do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15/10, e na vigência do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, impõe-se averiguar o regime aplicável a cada um desses fundamentos, tendo em vista a resolução das aludidas questões.
Para tanto, importa, desde logo, ter presente o disposto no art.º 12.º do Código Civil que estabelece o princípio geral sobre a aplicação das leis no tempo nos seguintes termos:
“1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
Este artigo obedece ao sistema disjuntivo de Enneccerus-Nipperdey, o qual distingue duas categorias de normas: as que regulam factos e aquelas que regulam direitos (cfr., no mesmo sentido, Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, pág. 354).
No primeiro caso (normas que regulam factos), incluem-se as leis que determinam os efeitos dos factos, as suas consequências jurídicas, englobando os efeitos constitutivos dos factos; e, no segundo (normas que regulam direitos), estão as leis que se reportam a direitos, independentemente dos respectivos factos constitutivos.
Em caso de dúvida, as primeiras normas só valem para futuro, na medida em que só visam os factos novos; enquanto as segundas abrangem as próprias situações jurídicas já existentes, podendo modificar ou até suprimir o respectivo conteúdo.
Fundamental é, por força do princípio da não retroactividade, evitar a valoração ex novo de factos passados, cujos efeitos se fixaram ou cristalizaram (Baptista Machado, obra citada, pág. 326), razão pela qual a 2.ª parte do n.º 1 do citado art.º 12.º autonomiza as situações jurídicas já constituídas aquando da entrada em vigor da lei nova, determinando que, mesmo que a esta seja atribuída eficácia retroactiva, se presumem ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que se destina a regular (cfr. Acórdãos desta Relação de 4/5/95, publicado na CJ, III, pág. 198, e de 25/5/2010, proferido no processo n.º 9630/08.1TBMAI-A.P1, acessível em www.dgsi.pt).
Essencial é, também, atentar nas normas transitórias estabelecidas pela nova lei.
A citada Lei n.º 6/2006, que aprovou o NRAU, embora dispondo para o futuro, prevê a sua aplicação imediata aos contratos de arrendamento subsistentes à data da sua entrada em vigor, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias (cfr. art.º 59.º, n.º 1 da mesma lei). E, apesar de ter revogado o RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, com todas as alterações subsequentes, ressalvou as matérias a que se referem os art.ºs 26.º e 28.º da mesma lei (cfr. seu art.º 60.º, n.º 1).
Entre as normas transitórias que estabelece nos art.ºs 26.º a 58.º, consta o regime dos contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU e dos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do DL n.º 257/95, de 30/9, ainda que por remissão para o regime dos contratos celebrados depois da vigência daqueles (cfr. art.º 26.º, 27.º e 28.º).
Daqui resulta que a aplicação do NRAU não é feita de forma homogénea, no que concerne aos arrendamentos celebrados antes e depois da sua vigência.
Assim, muito embora o princípio seja o da aplicação imediata do NRAU aos contratos de pretérito, essa aplicação é feita em termos adaptados, pelo que haverá de indagar-se em cada caso o tipo de regulamentação a considerar, já que em determinados sectores haverá de aplicar-se ainda a lei antiga.
Expostas estas regras, vejamos cada um dos fundamentos invocados para a cessão do contrato e o respectivo regime.

2.1. Da caducidade.

A autora fundamenta o seu pedido principal na caducidade decorrente do óbito do arrendatário, ocorrido em 7/9/1998.
Para este efeito, o momento relevante a atender, quanto à produção de efeitos jurídicos, é aquele em que se produziram os factos que desencadearam o efeito jurídico pretendido, à luz quer da segunda parte do n.º 1, quer da primeira parte do n.º 2 do art.º 12.º do Código Civil, ou seja, o momento em que se verificou o decesso do arrendatário.
Esse facto ocorreu no dia 7 de Setembro de 1998, ou seja, em plena vigência do RAU.
Logo, é este o regime aplicável e não o NRAU e as normas do Código Civil que alterou e aditou, como fez a sentença recorrida, nem a norma transitória do art.º 58.º, como também defende a recorrente, ainda que subsidiariamente.
Dispunha assim o art.º 112.º do RAU:
“1. O arrendamento não caduca por morte do arrendatário, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de 30 dias.
2. O sucessor não renunciante deve comunicar, por escrito, ao senhorio a morte do arrendatário, a enviar nos 180 dias posteriores à ocorrência e da qual constem os documentos autênticos ou autenticados que comprovem os seus direitos.
3. O arrendatário não pode prevalecer-se do não cumprimento dos deveres de comunicação estabelecidos neste artigo e deve indemnizar o senhorio por todos os danos derivados da omissão”.
Esta norma consagrava uma excepção à regra da alínea d) do n.º 1 do art.º 1051.º do Código Civil, na senda do disposto no art.º 66.º, n.º 1 do RAU.
Ao proclamar que os arrendamentos para comércio ou indústria ou para o exercício de profissão liberal (por força da remissão do art.º 121.º do RAU) não caducavam por morte do arrendatário, a lei não definia, para esses contratos, qualquer regime específico de transmissão do direito do arrendatário aos seus sucessores, limitando-se aquele preceito a disciplinar a comunicação, a efectuar por estes ao senhorio, da morte do arrendatário, estabelecendo que devia fazer-se no prazo de 180 dias, com junção de documentos autênticos e autenticados que comprovassem o direito dos sucessores, e que estes podiam renunciar ao arrendamento, comunicando a renúncia no prazo de 30 dias.
Daí que se entendesse que, nestes casos, o direito do arrendatário obedeceria ao regime geral do fenómeno sucessório (cfr. Oliveira Ascensão, in Direito Civil – Sucessões, 5.ª edição, 2000, págs. 250 e 251, e Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, vol. II, 5.ª edição, 2011, pág. 643).
Por outro lado, temos de convir que o n.º 3 do citado art.º 112.º não é claro ou inequívoco, pelo que tem dado azo a tomadas de posição contraditórias, quer na doutrina, quer na jurisprudência, relativamente à falta daquela comunicação.
Assim, para uns, a falta de comunicação a que se reporta o n.º 2 do mesmo artigo importa a caducidade do contrato de arrendamento (v.g. Abílio Neto, in “Leis do Inquilinato” pág. 250, Aragão Seia, “Regime do Arrendamento Urbano”, pág. 505, António Pais de Sousa, “Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano”, 5.ª ed., pág. 319, Mário Frota, “Arrendamento Urbano”, pág. 471 e Ac. RL de 20/6/2002, CJ, ano XXVII, tomo III, pág. 102).
Outros entendem de maneira diferente, defendendo que a falta dessa comunicação não determina a caducidade do contrato de arrendamento (v.g. Januário Gomes, in “Tribuna da Justiça”, n.º 24, págs. 1 a 4, Pereira Coelho, “Arrendamento”, pág. 221, Augusto Borges, “Regime Jurídico do Arrendamento Urbano”, pág. 210, Aragão Seia, “Arrendamento Urbano”, 7.ª ed., págs. 670 e 671, revendo posição anterior, e Acórdãos do STJ de 16 de Janeiro e 22 de Fevereiro de 2001, proferidos nas revistas n.ºs 3455/00-1.ª e 3629/00-2.ª, desta Relação de 24/6/97, de 2/11/2000, de 14/1/2003 e de 8/9/2009, processo n.º 4087/04.9TBMAI.P1, da Relação de Lisboa de 11/1/2001 e de 25/1/2007, processo n.º 9703/2006-6, todos disponíveis em www.dgsi.pt, e, ainda da Relação do Porto de 12/2/98, na CJ, ano XXIII, tomo I, pág. 210, e da RE de 25/5/2000, CJ, ano XXV, tomo pág. 259).
Afigura-se-nos que a jurisprudência está a pender maioritariamente para esta última posição. E pensamos que ela é a mais correcta por estar de acordo com a letra da lei e o espírito do legislador.
Desde logo, porque o n.º 2 do citado art.º 112.º não estabelece qualquer sanção para o não cumprimento do dever da comunicação nele previsto, muito menos se comina essa omissão com a caducidade do arrendamento.
E mal se compreenderia que, após a transmissão automática operada com a morte do arrendatário para o seu sucessor não renunciante, por efeito da manutenção da vigência do contrato consagrada no n.º 1, viesse a caducar o arrendamento ao fim de 180 dias, por falta daquela comunicação de quem já assumira a posição de arrendatário.
O n.º 3 do mesmo artigo também não determina qualquer caducidade do arrendamento.
Ali, consagra-se apenas a impossibilidade de o arrendatário se poder fazer prevalecer do não cumprimento dos deveres de comunicação e impõe-se-lhe o dever de indemnizar o senhorio por todos os danos resultantes dessa omissão.
O termo “arrendatário” ali utilizado deve ser interpretado como o sucessor que não renunciou, uma vez que se trata da comunicação da morte do primitivo arrendatário e esta ocorreu necessariamente antes da comunicação estabelecida naquele artigo.
A impossibilidade de o arrendatário se poder fazer prevalecer da omissão não significa perda da sua posição de arrendatário. Apenas quer dizer que, como arrendatário que é, não pode tirar proveito daquela omissão, eximindo-se, designadamente, ao pagamento da renda ou de qualquer indemnização ao senhorio pelos danos derivados da omissão.
Este normativo não estabelece nem a aquisição da posição jurídica de arrendatário, visto que a transmissão do arrendamento ocorreu com a morte do arrendatário, em conformidade com o n.º 1, nem a perda dessa posição, na medida em que não era necessária qualquer comunicação para a transferência operar.
E, contrariamente ao defendido por alguns, o art.º 113.º do RAU também não conduz à caducidade.
Este preceito prevê apenas que se o arrendamento caducar ou for denunciado nos casos em que há caducidade ou denúncia (que são os previstos nos art.ºs 66.º, 67.º e 68.º do RAU), o arrendatário tem direito a indemnização se tiver havido, por facto seu, aumento do valor locativo do prédio; não tendo, porém, direito a essa indemnização, mesmo que tenha aumentado aquele valor do prédio, nos casos de perda da coisa e de omissão da comunicação prevista no n.º 2 do art.º 112.º.
Nele, não se cria um novo caso de caducidade do contrato. Apenas se sanciona o arrendatário que não fez a comunicação com a perda do direito a indemnização, quando devida por aumento do valor locativo do prédio.
E a consagração dessa perda do direito a indemnização só faz sentido se houver arrendamento, o que pressupõe a não caducidade por omissão do referido dever de comunicação.
Acresce que a norma do n.º 3 do citado art.º 112.º, interpretada no sentido de que o não cumprimento do aí estatuído importaria a caducidade do arrendamento, sempre estaria ferida de inconstitucionalidade orgânica. Com efeito, tal interpretação importaria um desvio ao regime anterior, porquanto, consagrando este que o arrendamento para comércio ou indústria não caducava por morte do arrendatário (cfr. art.º 1113.º do Código Civil), nada prescrevia no sentido da caducidade por falta da comunicação do óbito do arrendatário, e tal desvio não estava abrangido pelo âmbito da lei de autorização legislativa n.º 42/90, de 10/8, ao abrigo da qual foi editado o RAU (cfr., neste sentido, os citados acórdãos do STJ de 16/1/2001, na CJ – STJ -, ano IX, tomo I, pág. 65, da RP de 12/2/98, na CJ, XXIII, I, 210, e da RL de 20/6/2002, CJ, XXVII, III, pág. 102, e Pereira Coelho, RLJ, 131, pág. 370, e Aragão Seia, Arrendamento Urbano, também já citado, pág. 671).
Cremos ter demonstrado por que entendemos que o não cumprimento do disposto no n.º 2 do art.º 112.º do RAU não determina a caducidade do contrato de arrendamento para comércio.
Mas, ainda que assim não se entendesse, no presente caso, a autora jamais poderia obter a extinção do contrato de arrendamento, por caducidade, na sequência da morte do arrendatário, como pretende a título principal, uma vez que uma das suas antecessoras (a J…) teve conhecimento desse óbito na pendência de uma acção de despejo que lhe moveu, onde foram habilitados os seus sucessores, aqui réus (cfr. matéria de facto provada sob os n.ºs 31 a 33) e nada fez para exercer aquele pretenso direito, tendo reconhecido os réus como sucessores do arrendatário, dirigindo-se-lhes como “herdeiros de F…” (cfr. facto n.º 8).
A autora também reconheceu os réus como seus arrendatários, como revelam as diligências que fez tendo em vista a mudança de instalações para a realização das obras que se propõe efectuar no local, chegando a propor-lhes a suspensão do arrendamento em 17/12/2007, o que pressupõe a vigência do contrato (cfr. facto n.º 23).
Vir, agora, pugnar pela sua caducidade por morte do arrendatário, ocorrida em 7/9/98, abusaria do seu direito, caso existisse, na modalidade de venire contra factum proprium (cfr. art.º 334.º do Código Civil).

Concluímos, assim, que não se verificou a caducidade do contrato de arrendamento por óbito do arrendatário, pelo que improcedem as conclusões atinentes a esta questão, bem como a principal pretensão recursiva da autora.

2.2. Da resolução.

Subsidiariamente, a autora pediu a resolução do contrato de arrendamento, por os réus não colaborarem nem permitirem a realização de obras no locado, invocando o incumprimento das obrigações previstas nas alíneas b) e e) do art.º 1038.º do Código Civil.
Não tendo caducado o contrato, nos termos referidos supra, e subsistindo à data da entrada em vigor do NRAU, é-lhe aplicável o regime nele previsto (cfr. art.ºs 27.º, 59.º, n.º 1 e 65.º da citada Lei n.º 6/2006), com a reintegração de normas anteriormente revogadas pelo RAU no Código Civil, ainda que com alterações.
Aliás, era este o regime em vigor na data da propositura da acção, o qual deve ser aplicado, visto que, em matéria de fundamentos da resolução do contrato, é esse o momento temporal decisivo para apurar se os factos invocados têm eficácia constitutiva do direito invocado, posto que se trata de saber se, nessa data, assistia ao senhorio o direito que se arroga.
E, nesta matéria, já é pacífica a sua aplicação, a qual é pressuposta pela própria recorrente.
A este propósito verificou-se uma profunda alteração em relação ao que resultava do regime de arrendamento anterior.
Desde logo, o NRAU veio pôr termo à taxatividade dos fundamentos para resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio, que constava do RAU e, antes, da versão originária do Código Civil de 1966, aproximando o regime dos contratos de arrendamento do regime geral dos contratos.
Assim, o art.º 1083.º, n.º 1, do Código Civil dispõe agora que “Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte”.
E o n.º 2 do mesmo normativo prevê que “É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento...”, seguindo-se o elenco de fundamentos típicos de resolução pelo senhorio, para aqui irrelevantes, por nada terem a ver com o fundamento invocado.
Consagrou-se, deste modo, o critério de resolução por justa causa, tido como próprio dos contratos duradouros, cuja estabilidade da relação obrigacional acentua a dependência de uma parte relativamente ao comportamento negocial da outra parte, para efeito da manutenção do vínculo contratual (cfr. David Magalhães, A Resolução do Contrato de Arrendamento Urbano, págs. 60 e 61).
Daqui resultam logo duas conclusões:
Uma é o carácter meramente exemplificativo das causas elencadas no n.º 2 do citado art.º 1083.º, podendo conceber-se outras situações de incumprimento do contrato de arrendamento susceptíveis de fundamentar a sua resolução.
A outra tem a ver com a inexigibilidade da manutenção do arrendamento em face da gravidade ou consequências do incumprimento. Não é qualquer incumprimento definitivo da parte contrária que permite a resolução do contrato, mas unicamente aquele que “pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento” (cfr. Pinto Furtado, obra citada, pág. 1038).
Deste modo, a verificação de qualquer situação de incumprimento não é suficiente, só por si, para fundamentar aquela resolução, sendo ainda necessário que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível a manutenção do vínculo contratual.
A este propósito importa precisar os critérios que hão-de orientar os tribunais na aplicação desta verdadeira norma em branco.
Assim, em primeiro lugar, haverá de atender a que as situações de incumprimento do contrato de arrendamento, mormente as exemplificativamente enunciadas no n.º 2 do referido art.º 1083.º, assumem à partida diferente gravidade entre si.
Depois, importará considerar que a mesma situação de incumprimento contratual é por regra susceptível de assumir maior gravidade, em termos de ter como inexigível a manutenção do vínculo contratual, nos arrendamentos de pretérito, relativamente aos quais permanece um maior vinculismo, do que relativamente aos arrendamentos posteriores ao NRAU. Com efeito, o sacrifício que é imposto ao senhorio forçado a conviver com uma situação de incumprimento contratual criada pela outra parte, é certamente maior nos contratos de pretérito, não livremente denunciáveis, do que nos contratos de arrendamento celebrados após a entrada em vigor do NRAU, já que nestes o senhorio sempre poderá, se não estiver satisfeito com a situação gerada, denunciar o contrato por simples comunicação ao arrendatário, respeitando apenas a antecedência imposta por lei - art.º 1101.º, alínea c), do Código Civil (cfr., neste sentido David Magalhães, obra citada, págs. 136-139 e acórdão da RP de
Por outro lado, a gravidade da situação de incumprimento para efeitos da eventual resolução do contrato de arrendamento, terá de aferir-se na perspectiva da execução futura do contrato, dada a vocação de permanência deste tipo de contratos, enquanto contratos duradouros, de execução continuada, com a inerente intensificação da relação entre os contratantes.
Neste contexto não poderá deixar de se perspectivar o incumprimento enquanto quebra de confiança inerente à relação contratual. A manutenção do vínculo contratual ficará comprometida quando o incumprimento implicar uma perda de confiança no cumprimento das obrigações futuras e será mais grave quanto maior for o desrespeito pelos interesses da contraparte.
Deverá, ainda, atender-se à atmosfera social envolvente, ou seja, às concepções vigentes na sociedade, sobre o que deve entender-se como sacrifício inexigível ou incumprimento incompatível com a manutenção do vínculo contratual.
Haverá sempre que ponderar o equilíbrio dos interesses em causa. Por um lado, o interesse na manutenção do contrato de arrendamento e, por outro, o motivo invocado como causa da sua resolução. Neste particular desempenhará sempre um papel relevante o princípio da boa-fé, enquanto bitola da inexigibilidade da manutenção do vínculo contratual perante determinada situação de incumprimento (cfr., neste sentido, o acórdão da RP de 3/2/2011, proferido no processo n.º 125/09.7TBLSD.P1, que aqui seguimos de perto e donde foram retiradas as citações feitas a propósito dos critérios comuns acabados de referenciar, disponível em www.dgsi.pt).
Expostos, sumariamente, os critérios comuns a todas as situações passíveis de fundamento para resolução do contrato de arrendamento, vejamos a situação concreta invocada pela recorrente.
Esta fundamenta o pedido de resolução no incumprimento das obrigações previstas nas alíneas b) e e) do art.º 1083.º do Código Civil.
Segundo o disposto nestas alíneas, são obrigações do locatário: “facultar ao locador o exame da coisa locada” [al. b)] e “tolerar as reparações urgentes, bem como quaisquer obras ordenadas pela autoridade pública” [alínea e)].
Relativamente à primeira, mostra-se provado que:
No dia 13 de Novembro de 2006, aquando da realização de uma vistoria técnica, o réu D… não deixou a autora e os técnicos da Câmara Municipal … acederem ao locado, tendo, então, sido designado o dia 27 seguinte para nova vistoria, altura em que acederam ao rés-do-chão e constataram que a cave tinha as portas pregadas, por razões de segurança, pelo que a autora teve de arranjar um carpinteiro para arrombar essas portas e voltar a pregá-las, o que ocorreu no dia 12/2/2007 (cfr. matéria de facto provada sob os n.ºs 17 a 20).
Os técnicos da Câmara Municipal foram impedidos de entrar no estabelecimento comercial, no referido dia 13, apenas porque os réus não tinham sido informados quer do processo administrativo para realização das obras, quer da vistoria, tanto assim que, depois de informados, aceitaram a realização desta, tendo sido realizada e concluída em 12 de Fevereiro de 2007 (cfr. factos provados sob os n.ºs 20, 35, 36 e 37).
O único obstáculo criado que impediu o acesso ao locado ocorreu no dia 13 de Novembro de 2006 e mostra-se perfeitamente justificado, face à ausência de informação da necessidade de realização da vistoria.
Além disso, não assumiu uma gravidade tal nem teve consequências que tornem inexigível a manutenção do vínculo contratual, tanto assim que se vem mantendo até ao presente, sem quebra da confiança inerente de tal modo que, depois da sua verificação, foram feitas diligências com vista à mudança de instalações para realização das obras que a autora se propõe efectuar.
Quanto a estas, é manifesto que não se trata de reparações urgentes, nem de obras ordenadas pela autoridade pública.
Trata-se antes de “obras de recuperação e conservação” ou “obras de restauro”, tendo designado o respectivo projecto como “de restauro” e como tal sendo classificadas pela própria autora, ora recorrente, a qual também acrescentou que as mesmas tinham por objecto o aproveitamento de benefícios fiscais (cfr. matéria de facto provada sob os n.ºs 10, 14 e 21).
Assim sendo, como nos parece, com o devido respeito por opinião contrária, jamais pode falar-se em violação das obrigações previstas nas citadas alíneas b) e e) por parte dos locatários, aqui réus/recorridos, e, consequentemente, em incumprimento contratual, muito menos que esse incumprimento seja de tal modo grave ou dele decorram consequências que tornassem inexigível a manutenção do vínculo contratual, justificando por isso a resolução do contrato de arrendamento com esses fundamentos.

Não pode, por conseguinte, a autora/recorrente obter a resolução do contrato de arrendamento com base nos fundamentos que invocou.

2.3. Da denúncia.

Ainda subsidiariamente, por fim, a autora pretende denunciar o contrato de arrendamento com base no art.º 26.º do DL n.º 157/2006, de 8/8.
Este artigo consagra o direito à indemnização do locatário e os termos em que deve ser fixada e paga, em caso de denúncia do contrato para realização de obras de remodelação ou restauro profundo ou para demolição do locado, relativo a contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do DL n.º 257/95, de 30/9, como se depreende da norma transitória constante do art.º 23.º, n.º 1, al. b) daquele diploma.
Mas não prevê todos os pressupostos necessários à denúncia dos mesmos contratos.
Por isso e porque não estão previstos na secção III, que consagra o regime especial transitório, há que aplicar o disposto na secção anterior (cfr. n.º 2 do mesmo art.º 23.º).
Segundo o art.º 4.º, para este efeito, são consideradas obras de remodelação ou restauro profundos as obras de conservação e reconstrução que obriguem, para a sua realização, à desocupação do locado (n.º 1), podendo as mesmas ser qualificadas como estruturais ou não estruturais, sendo estruturais quando originem uma distribuição de fogos sem correspondência ou equivalência com a distribuição anterior e não estruturais as restantes (n.ºs 2 e 3 na redacção actual e n.º 2 na anterior).
No entanto, a suspensão do contrato é obrigatória quando as obras de remodelação ou restauro não sejam estruturais ou quando, sendo estruturais, se preveja a existência de local com características equivalentes às do locado após a obra (cfr. n.º 2 do art.º 5.º do citado DL n.º 157/2006, na redacção inicial, vigente à data da instauração da acção).
Esta obrigatoriedade de suspensão mantém-se após a alteração introduzida pelo DL n.º 306/2009, de 23/10, prevendo o n.º 2 daquele preceito que a suspensão do contrato é obrigatória quando, no caso de obras não estruturais, estas impliquem a inexistência de condições de habitabilidade no locado durante a obra [al. a)] e, em caso de obras estruturais, quando se preveja a existência de local com características equivalentes às do locado após a obra [al. b)].
E, de acordo com o n.º 2 do art.º 8.º, exige-se, ainda, que o projecto de arquitectura relativo às obras a realizar se mostre aprovado pelo município, no momento da instauração da acção.
Do que se deixou dito, pode concluir-se que são quatro os requisitos legalmente exigidos para a denúncia de contratos de arrendamento para comércio ou outros fins não habitacionais, celebrados antes da entrada em vigor do DL n.º 257/95, por parte do senhorio para realização de obras de remodelação ou restauro, a saber:
a) Que as obras a realizar sejam de remodelação ou restauro profundos;
b) Que não haja lugar à suspensão obrigatória do contrato;
c) Que o projecto de arquitectura relativo às obras a realizar se mostre aprovado pelo município, aquando da propositura da acção;
c) E que se mostre efectuado, nos 15 dias seguintes à propositura da acção, o depósito do valor correspondente a cinco anos de renda com o limite mínimo de 60 vezes a retribuição mínima mensal garantia, bem como o depósito da totalidade se vier a apurar-se montante superior àquele.
No caso dos autos, não se mostram verificados todos estes pressupostos.
É inquestionável que estamos perante um contrato de arrendamento urbano para comércio, celebrado antes da vigência do citado DL n.º 257/95, porquanto a sua celebração ocorreu em 11/11/1963.
Apesar de poderem ser consideradas obras de restauro profundo, de acordo com o disposto no n.º 1 do citado art.º 4.º, visto que não podem ser realizadas sem a desocupação do local arrendado (cfr. facto provado sob o n.º 30), a verdade é que não passam de simples obras no interior do imóvel (cfr. facto provado sob o n.º 29) e, como tal, não estruturais.
Tratando-se de obras não estruturais, era obrigatória a suspensão do contrato, nos termos do n.º 2 do art.º 5.º, na redacção primitiva, em vigor na data a instauração da acção, aqui aplicável. Certamente por isso, a autora optou inicialmente por propor aos réus a suspensão do contrato, suspensão essa que acabou por não ser aceite em face das péssimas condições que o local oferecido apresentava, com buracos no soalho, sem portas e janelas nas traseiras, sem instalações sanitárias, sem água, nem electricidade e com o vidro da porta principal partido (cfr. factos provados sob os n.ºs 23 e 38).
E, não obstante ter ficado provado que o projecto de restauro fora licenciado em Julho de 2007 (cfr. facto n.º 21), tal como alegara no art.º 31.º da petição inicial, a verdade é que a autora não juntou com este articulado, como devia, nem posteriormente, o projecto de arquitectura relativo às obras que se propunha realizar.
Não tendo provado, como lhe competia nos termos do art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil, todos os requisitos que a lei exige para o reconhecimento do direito de denúncia que invocou, não pode ver reconhecida esta sua pretensão.
Em jeito de síntese conclusiva, apraz-nos dizer o seguinte:
I. A omissão do dever de comunicação por morte do arrendatário, prevista no art.º 112.º, n.º 2 do RAU, aqui aplicável por o óbito ter ocorrido na sua vigência, não determina a caducidade do contrato de arrendamento para comércio.
II. A mera privação do acesso ao locado para realização de uma vistoria, não comunicada, e os obstáculos à realização de obras de conservação não constituem violação das obrigações do locatário previstas nas alíneas b) e e) do art.º 1038.º do Código Civil, nem incumprimento contratual justificativo de resolução do contrato pelo senhorio.
III. As obras de remodelação não estruturais, enquanto determinantes da suspensão obrigatória do contrato de arrendamento, e a não apresentação com a petição inicial do projecto de arquitectura das mesmas não permitem o reconhecimento do direito de denúncia pelo senhorio para realização de tais obras.

Improcedem, deste modo, todas as conclusões relevantes e, consequentemente, a apelação, pelo que deve manter-se a decisão impugnada, ainda que com fundamentos raramente coincidentes.

III. Decisão

Por tudo o exposto, julga-se improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
*
Custas pela apelante.
*
Porto, 18 de Outubro de 2011
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo