I - A declaração de excepcional complexidade do processo continua a estar prevista no CPP após a alteração a este introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, enquanto pressuposto de elevação dos prazos de prisão preventiva, embora em moldes mais reduzidos comparativamente com o regime antecedente, e tem como traço distintivo só poder ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do MP, ouvidos o arguido e o assistente – art. 215.º, n.º 6, do CPP –, perdendo o carácter automático que, na hipótese prevista no art. 54.º do DL 15/93, de 22-01, se lhe associava.
II - O legislador não forneceu razão para esse decretamento preclusivo só nessa fase processual, mas alcança-se que a oportunidade da declaração obedece a razões de maior protecção da liberdade individual, coarctando a possibilidade de, noutra fase processual, aquela declaração ter ainda lugar, estimulando a uma maior celeridade processual, desincentivando esse último recurso de elevação do prazo da prisão preventiva.
III - A declaração de excepcional complexidade havida em 1.ª instância, à sombra da lei antiga, é inteiramente válida e eficaz; a lei processual nova aplica-se de imediato a todos os processos pendentes, nos termos do art. 5.º, n.º 1, do CPP, mas salvaguardando as situações em que da sua aplicabilidade imediata resulte quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo, um agravamento da posição do arguido ou uma limitação do seu direito de defesa.
IV - É pacífico o entendimento por parte deste STJ de que o mesmo não pode substituir-se ao juiz que ordenou a prisão em termos de sindicar os seus motivos, com o que estaria a criar um novo grau de jurisdição.
V - E a afirmação da inexistência de relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso sobre medidas de coacção e a providência de habeas corpus, independentemente dos seus fundamentos, em face do estipulado no art. 219.º, n.º 2, do CPP, na redacção trazida pela Lei 48/2007, de 29-08, reforça aquela proibição de sindicância, reservando-a às instâncias em processo ordinário de impugnação das decisões judiciais.
VI - As leis sobre a prisão preventiva apresentam uma natureza mista, a um tempo de índole processual e substantiva, verdadeiro direito constitucional aplicado, processual penal formal e material, repercutindo-se a alteração dos prazos de duração daquela medida cautelar na liberdade individual, postulando, na sua sucessão, a determinação da lei de tratamento mais benévolo, nos termos do art. 2.º, n.º 4, do CP.
VII - A prisão preventiva a impor ao arguido, já submetido a julgamento, condenado, por acórdão de 17-07-2007 ainda não transitado em julgado, na pena única de 14 anos de prisão, à face da lei antiga tinha a duração de 4 anos (art. 215.º, n.ºs 1, al. d), 2 e 3, do CPP); a alteração introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, encurtou essa duração para 3 anos e 4 meses.
VIII - Encontrando-se longe de se mostrar exaurido o prazo máximo de prisão preventiva, o que só terá lugar em 14-09-2009, é de indeferir o pedido de habeas corpus, por falta de fundamento, nos termos do art. 223.º, n.º 4, al. a), do CPP.
Acordam em audiência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :
AA , actualmente preso à ordem do P.º comum , com intervenção do tribunal colectivo , do Tribunal Judicial de Esposende, sob o n.º 436/06.OGAEPS , intentou a presente providência excepcional de “ habeas corpus “ , alegando para o efeito que :
-Foi detido pela PJ de Braga , á ordem do P.º n.º 436/06 .OGAEPS , que corre seus termos pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende , no dia 13 /5/2006 ;
-Foi –lhe imposta , neste mesmo dia , a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação , com recurso a meios de vigilância electrónica ;
-Por despacho de 12.4.2007 foi revogada a medida de coacção arbitrada e , em sua substituição , e imposta a de coacção de prisão preventiva , situação em que se acha actualmente ;
-Nestes termos o requerente em 15 de Maio de 2008 excedeu já o prazo de prisão preventiva de 2 anos , que apenas podia ter sido elevado para os prazos previstos no n.º 3 do art.º 215.º , do CPP , se , em 1.ª instância , por despacho fundamentado , depois de ouvido o arguido , tivesse sido declarada a excepcional complexidade do processo .
-E tal não sucedeu .
Por isso se impõe a sua imediata restituição à liberdade, por ter excedido o prazo legal de duração da prisão preventiva .
O M.º Juiz prestou a informação a que se faz menção no art.º 223.º n.º 1 , do CPP , e dela se extrai que :
O requerente foi detido em 14 de Maio de 2006 e não em 13 .
Nessa data , após interrogatório judicial foi sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação , e , por despacho de 13.11.2006 , foi determinada a elevação do prazo máximo daquela medida de coacção para 8 meses ao abrigo do art.º 215.º n.ºs 2 e 3 , do CPP .
Por despacho de 19.12.2006 foi determinada a elevação do prazo máximo da medida de coacção imposta para 12 meses e , atenta a gravidade dos factos , seu modo de execução , declarada a especial complexidade do processo . Em 30 de Março de 2007 foi deduzida a acusação contra o requerente , imputando-se –lhe a prática de :
35 crimes de roubo qualificado , p . e p . pelos art. ºs 210.º n.º s 1 e 2 b) , com referência ao art.º 204.º n.º 2 als. f) e g) , do CP ;
5 crimes de roubo tentado , qualificado , p.e p . pelos art.ºs 22.º n.ºs 1 e 2 , 23.º , 24.º n.ºs 1 e 2 b) , com referência ao art.º 204.º n.º 2 , als . f) e g) , do CPP ;
1 de detenção de arma proibida , p. e p . pelos art.ºs 2.º n.º 1 als . a), b), c) , n) , s) , t) 3.º n.º 2 als. e) , f) , g) , h) , 1) , j) e n) , n.º 7 , als . a) e b) e 86.º n.º 1 , als .c) e d) , da Lei n.º 5/2006 , de 23/2 e ;
4 crimes de falsificação de documento , p . e p . pelos art.ºs 255.º a) , 250.º n.ºs 1 a) e 3 , do CP .
Por despacho de 12.4.2007 foi-lhe revogada a medida de coacção de permanência obrigatória na habitação e imposta a de prisão preventiva .
Em 17.7.2007 foi condenado na pena única de 14 anos de prisão .
Por acórdão de 22.10.2007, o Tribunal da Relação de Guimarães determinou à 1.ª instância que proferisse novo acórdão .
Em 6 de Dezembro de 2007 a 1.ª instância , obedecendo ao decidido superiormente , aplicou-lhe a pena única de 14 anos de prisão , mantendo-se a medida de coacção de prisão preventiva
Mas , em novo recurso , a Relação, por acórdão de 7.4.2008 , ordenou o reenvio do processo para novo julgamento .
O prazo de prisão preventiva , por a situação se enquadrar no art.º 215.º n.º 1 d) , do CPP , expirava em 14.11.2007 , “ ex vi “ do art.º 218.º n.º 3 , do CPP, porém , por força da declaração de excepcional complexidade ( fls. 1873, VI, vol.) eleva-se para 3 anos e 4 meses , pelo que o prazo de duração de prisão preventiva ainda se não esgotou .
I . Convocada a Secção Criminal , notificados o M.º P.º e o defensor , cumpre decidir em audiência .
II . A argumentação do arguido sucumbe , sem esforço de análise , porque parte de um pressuposto errado, apoiado na omissão intraprocessual da declaração de excepcional complexidade do processo mas que teve lugar por despacho fundamentado de 19.12. 2006 , depois de a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação ser revogada sujeitando o requerente à medida de prisão preventiva , àquela equiparável ( art.ºs 218.º n.º3 , do CPP, na redacção anterior à alteração introduzida pela Lei n.º 48/07 , de 9/8 e 215.º n.º 8 , do CPP à face desta última Lei ) , despacho elevando os prazos de prisão preventiva até 4 anos , elevação essa “ ope judicibus “ .
Aquela declaração , continua a ser prevista no CPP , após aquela alteração legislativa enquanto pressuposto de elevação dos prazos de prisão preventiva , mas em moldes mais reduzidos , quando comparativamente com o regime antecedente e tem como traço distintivo só poder ser declarada durante a 1.ª instância , por despacho fundamentado , oficiosamente ou a requerimento do M.º P.º , ouvidos o arguido e o assistente –art.º 215.º n.º 6 , do CPP -, perdendo o carácter automático que , na hipótese prevista no art..º 54.º , do Dec.º -Lei n.º 15/93 , de 22/1 , se lhe associava .
O legislador não forneceu razão para esse decretamento preclusivo , só em sede de 1.ª instância podendo ser declarada , mas alcança -se que a oportunidade da declaração obedece a razões de maior protecção da liberdade individual , coarctando a possibilidade de , noutra fase processual , aquela declaração ainda ter lugar , estimulando a uma maior celeridade processual , desincentivando esse último recurso de elevação do prazo da prisão preventiva .
III . A declaração de excepcional complexidade havida em 1.ª instância , à sombra da lei antiga , é inteiramente válida e eficaz ; a lei processual nova aplica-se , de imediato , a todos os processos pendentes , nos termos do art.º 5.º n.º 1 , do CPP , mas não atinge , salvaguardando da aplicabilidade imediata da lei nova a hipótese derivada da quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo .
O respeito pelo desenvolvimento dos actos e seus efeitos praticados e produzidos à sombra da lei antiga enquanto integrados numa dinâmica unitária , até como forma de se evitarem contradições normativas , repudiadas pela unidade do sistema , que proscreve corpúsculos que a contradigam , justifica que se mantenham e com o sentido que lhes presidiu , prescreve a doutrina , em especial o Prof. Castanheira Neves , in Sumários de Processo Penal , págs. 65 e segs . , citado no Ac. deste STJ , de 24.10 . 2007 , prolatado no P.º de Habeas Corpus sob o n.º 4001 /07 , desta Secção .
Mas sempre que da aplicabilidade da lei nova resulte um agravamento sensível da posição do arguido ou limitação do seu direito de defesa rege a lei antiga , doutrina o Prof. Figueiredo Dias , in Direito Processual Penal , I , 111/112 , consequência , de resto, com tradução na al. b) , do n.º 2 , do art.º 5.º , do CPP .
IV. A providência de “ habeas corpus “ , é o processo com dignidade constitucional assegurado à face do art.º 31 .º n.º1 , da CRP , para reagir contra o abuso de poder , por virtude de prisão ou detenção ilegal.
A lei ordinária , no art.º 222.º , n.º 2 do CPP , als. a) , b) e c) , enuncia os pressupostos da sua concessão :
-ter a prisão sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente ;
-ser motivada por facto pelo qual a lei não permite ; e
-manter-se para além dos prazos fixados por lei ou decisão judicial.
A medida comporta uma dimensão de interesse público porque a restrição da liberdade pessoal só é aceitável se comunitariamente tolerável ; em via de regra todas as legislações do mundo livre estabelecem limites à duração da prisão preventiva
Por definição , o processo de " habeas corpus " traduz uma providência célere contra a prisão e vale , em primeira linha , contra o abuso de poder por parte das autoridades policiais , designadamente as autoridades de polícia judiciária , mas não é impossível conceber a sua utilização como remédio contra o abuso de poder do próprio juíz , apresentando-se tal medida como privilegiada contra o atentado do direito à liberdade , comentam Gomes Canotilho e Vital Moreira , in Constituição Anotada , Ed. 93 , Coimbra Ed., em anotação ao art.º 31.º précitado.
A medida , assinala o Prof. Cavaleiro de Ferreira , in Curso de Processo Penal , I , Ed. Danúbio , 1986 , 268 , tem como pressuposto de facto a prisão efectiva e actual ; como fundamento de direito , a sua ilegalidade .
Prisão efectiva e actual compreende toda a privação de liberdade , quer se trate de prisão sem culpa formada , com culpa formada ou em execução de condenação penal ou seja aquela que se mantém na data da instauração da medida e não a que perdeu tal requisito , como decidiu este STJ , com geral uniformidade -cfr. Acs. de 23.11.95, P. º112/95 ; de 21.5.97, P. º 635/97 , de 910.97 , P. º1263/97 e de 21.12.97 , in CJ , STJ , Ano X , III, 235.
O processo tem como antecedente histórico , entre nós – recuadamente é um afloramento da Magna Carta , do ano de 1215 – a Constituição de 33 , e , menos remotamente , o Dec.º Lei n.º 35.043, de 20.10.45 , que lhe reservou um papel residual , só funcionando quando o jogo dos meios legais normais de impugnação das condições da prisão estiver exaurido , apresentando-se como um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade .
Originariamente ele assume-se como garantia de que nenhum cidadão podia ser preso ou processado a não ser em virtude de um “ julgamento legal por seus pares e na forma da lei do país “ , aproximando-se do conceito do devido processo legal ( due processo of law).
Assume-se o processo , como de natureza residual , excepcional e de via reduzida : o seu âmbito restringe-se à apreciação da ilegalidade da prisão , por constatação e só dos fundamentos taxativamente enunciados no art.º 222.º n.º2 , do CPP
Reserva-se-lhe a teleologia de reacção contra a prisão ilegal , ordenada ou mantida de forma grosseira , abusiva , por chocante erro de declaração enunciativa dos seus pressupostos , estando fora do seu propósito assumir-se como um recurso dos recursos ou contra os recursos .
V. É pacífico o entendimento por parte deste STJ que este Tribunal não pode substituir-se ao juíz que ordenou a prisão em termos de sindicar os seus motivos , com o que estaria a criar um novo grau de jurisdição ( cfr. Ac. deste STJ , de 10/10/90, P. º n.º 29/90 -3.ª Sec.) ;
E a afirmação da inexistência de relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso sobre medidas de coacção e a providência de “ habeas corpus “ , independentemente dos seus fundamentos , em face do estipulado no art.º 219.º n.º 2 , do CPP , na alteração trazida pela Lei n.º 48/07 , de 29/8 , reforça aquela proibição de sindicância , reservando-a às instâncias em processo ordinário de impugnação das decisões judiciais .
VI. Isto posto resta ponderar que as leis sobre a prisão preventiva apresentam uma natureza mista : a um tempo de índole processual e substantiva , verdadeiro direito constitucional aplicado , processual penal formal e material , repercutindo-se a alteração dos prazos de duração daquela medida cautelar na liberdade individual , postulando , na sua sucessão temporal , a determinação da lei de tratamento mais benévolo , nos termos do art.º 2.º n.º 4 , do CP .
A prisão preventiva a impõr ao arguido , já submetido a julgamento , condenado por acórdão ainda não transitado em julgado, à face da lei antiga tinha a duração de 4 anos – art.º 215.º n.ºs 1 d) , 2 e 3 , do CPP-; a alteração introduzida pela Lei n.º 48/07 , de 29/8 , encurtou essa duração para 3 anos e 4 meses .
Está longe , pois , neste tratamento “ in mellius “ , de se mostrar exaurido o prazo máximo de prisão preventiva , o que só terá lugar em 14.9.2009 e encontrado fundamento legal para o arguido ter por excedido o prazo máximo por que é consentida a sua manutenção em regime de privação em liberdade , só invocada por inconsideração daquela declaração .
VII . Nestes termos , por falta de bastante fundamento , nos termos do art.º 223 .º n.º 4 a) , do CPP , se indefere ao pedido excepcional de “ Habeas corpus” , de resto manifestamente improcedente , o que se declara .
Taxa de justiça : 5 UC,s , acrescendo a soma de 10 Uc,s.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Maio de 2008
Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral
Pereira Madeira