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DIVISÃO DE COISA COMUM
PRÉDIO URBANO
PRÉDIO RÚSTICO
USUFRUTO
EXTINÇÃO
FIDEICOMISSO
INDIVISIBILIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário
- Em regra, a perda total da coisa usufruída é causa de extinção do usufruto, mas a lei trata especialmente o caso de a coisa usufruída que sofra destruição ser um prédio urbano ou edifício incorporado em prédio rústico sobre o qual esteja constituído o usufruto, não reconhecendo a perda total e seus efeitos extintivos, sem prejuízo de, tendo o proprietário direito a indemnização, o usufruto passar a incidir sobre esta;
- Verifica-se, então, a substituição da coisa usufruída ou de parte dela, na medida da deterioração ou diminuição de valor, por um valor correspondente, o da indemnização, que a própria lei sub-roga no lugar dela, mantendo-se a divisão de direitos e poderes entre o radiciário e o usufrutuário, apenas com modificação e substituição do objecto.
- A existência de fideicomisso sobre uma quota da raiz de um prédio em regime de compropriedade não obstaculiza o direito do comproprietário do bem a requerer a respectiva divisão, nem a alienação dos bens abrangidos pela cláusula fideicomissária.
- A classificação de imóveis como “prédio misto” é apenas acolhida pelo direito fiscal. Para o direito civil os assim denominados prédios haverão de ser classificados como rústicos, urbanos ou, eventualmente, como prédios distintos consoante, segundo um critério funcional e económico, haja dependência da parte urbana em relação à rústica, desta em relação àquela, ou, porventura, se verifique autonomia entre cada uma das partes.
- O critério jurídico da divisibilidade, eleito pela lei, pressupõe o concurso de três circunstâncias cumulativas: - que não haja alteração da substância; - que não se verifique diminuição do valor (detrimento); - e, que não saia prejudicado o uso a que se destina. Quando tal não suceda a coisa não pode ser fraccionada; é naturalmente indivisível.
- Por outro lado, tais requisitos de fraccionamento – as características ou qualidades da coisa que permitem a sua divisibilidade – devem ser actuais, concorrendo no momento em que a divisão é requerida e se coloca a questão da divisibilidade.
- Finalmente, na falta de acordo, a divisibilidade, pressupõe que se possam inteirar em espécie todos os interessados, sem que haja lugar a tornas.
- Sendo a coisa a dividir um prédio urbano, a divisibilidade depende ainda da demonstração de estarem verificados os requisitos administrativos de constituição da realidade jurídica visada na acção, tal como no rústico depende da manutenção da área de cultura estabelecida para a região.
- Porque a questão da indivisibilidade é de conhecimento oficioso, pode o Supremo determinar a ampliação da matéria de facto, em ordem à superação da insuficiência da base de facto disponível para decisão dessa questão.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. - AA e mulher, BB, intentaram acção especial de divisão de coisa comum contra CC e mulher, DD e EE, pedindo se declarasse a indivisibilidade dos prédios que identificaram no artigo 1.º da petição inicial e se procedesse à sua adjudicação ou venda.
Para tanto, alegaram que são donos do usufruto e de metade da raiz de um prédio misto, composto de casa de dois pavimentos, com 383 m2 de s/c, estábulo, garagem, adega, arrecadações com 172 m2, quintal e eirado de lavradio com 21 260 m2 e de um prédio urbano, composto casa de r/c com 54 m2 e logradouro com 140 m2, sendo os primeiros Réus donos da outra metade da raiz dos referidos prédios, sendo ainda que sobre esta pertença existe uma cláusula fideicomissária inscrita. Mais alegaram que os prédios em causa formam uma única unidade murada e constituem uma única unidade económica, sendo indivisíveis.
Contestaram os Réus, alegando, ao que importa referir, que, em 2005, a casa que integra o referido prédio misto sofreu danos, por incêndio, causado por um camião, que implicaram a perda ou pelo menos a deterioração da mesma, sustentando que, em consequência, o usufruto dos Autores sobre a metade desse prédio, passou a incidir sobre a indemnização a haver da Seguradora do veículo, passando o R. a ser proprietário pleno de metade dessa parte do imóvel. Mais alegaram que os dois prédios não formam uma única propriedade murada uma vez que um e outro podem ser, como sempre foram, possuídos e utilizados com total autonomia, sendo o prédio misto susceptível de ser dividido em substância e em pelos menos duas partes de modo a formarem-se dois quinhões, porquanto é formado por uma parte urbana com área de 6.435 m2 e acesso à estrada e uma parte rústica que confina com a via pública, tipo arruamento, numa extensão de cerca de 150 m2, para onde directamente dá a entrada.
Concluíram pedindo que se julgasse improcedente a acção no que toca à indivisibilidade dos prédios da mesma objecto, decidindo-se que o Réu marido já é dono em propriedade plena de metade da casa que compõe o imóvel (prédio misto) identificado na al. a) do art. 1º da p. i., que o prédio urbano constitui uma unidade predial autónoma, sendo indivisível em substância, e que o prédio misto é divisível em substância em pelo menos duas partes, uma delas urbana e outra rústica, de modo a se formarem, pelos menos, dois quinhões.
Em resposta, os AA. alegaram ser possível a reconstituição do prédio usufruído no estado em que se encontrava antes do sinistro, sendo responsável a companhia seguradora, não se tendo extinguido o usufruto sobre as partes urbanas e as partes rústicas que não desapareceram.
Teve lugar intervenção principal do chamado FF, também fideicomissário, como a R. EE.
A final, foi decidido “julgar indivisíveis em substância” o prédio misto e o prédio urbano identificados.
Os RR. apelaram, mas a Relação confirmou o sentenciado.
Os mesmos Réus interpõem agora recurso de revista, insistindo na pretensão de verem declarado divisível em substância, formando-se dois quinhões, o “prédio misto”, ao abrigo das seguintes conclusões:
I - dado que de todo irrelevante é a qualificação como prédiomisto do imóvel como tal referenciado em A) de FACTOS ASSENTES, e compreendendo ele uma parte urbana como descrita em Q) e R), de FACTOS ASSENTES, a que, na matriz urbana da freguesia de Viatodos, do concelho de Barcelos, está atribuído o art. 272, e uma parte rústica, como se descreve em S) e T), também de FACTOS ASSENTES, a que, na matriz rústica da mesma freguesia, corresponde o art. 201, com a parte urbana desse imóvel pode formar-se, pelo menos, um quinhão, e, com a parte rústica do mesmo pode formar-se outro quinhão; II - e, porque, da matéria fáctica a ter-se em conta, não resulta que isso implique alteração da sua substância, diminuição do valor ou prejuízo para o fim a que se destinam, cujo o ónus da prova sobre os Autores impendia, nada obsta à formação de, pelo menos, esses dois quinhões; III - acontecendo até que, no que à parte urbana dele respeita, dado que toda a correlativa área, de, pelo menos, 6.435m2 é, conforme alínea Q) de FACTOS ASSENTES, apta para construção, até ela, só por si, é susceptível de divisão em lotes para construção, o que consubstancia facto notório, por isso nem sequer sujeito a alegação e prova, não tinham os Réus de lançar mão de qualquer meio de prova, maxime pericial, com vista a demonstrar que essa extensa área, que assente está ser apta para construção, é divisível, sendo tarefa da formação dos lotes a perícia a que, no art. 1054º do Cód. Proc. Civil, se alude; IV - destarte, não só o imóvel referenciado em A) de FACTOS ASSENTES, como “prédio misto”, é divisível em dois quinhões, como a parte urbana dele, sendo, como é terreno apto para construção, é ela própria divisível em lotes para esse fim; V - perante as respostas aos quesitos 2º e 3º da base instrutória, não pode deixar de se considerar que a casa aludida em A) de FACTOS ASSENTES se perdeu; VI - visto o constante de M) e N) de FACTOS ASSENTES, aos proprietários dessa casa, os Autores e o Réu CC, na proporção de ½ para aqueles e ½ para estes, assiste o direito de serem indemnizados; VII - em razão disso, por força do disposto no art. 1480º, 1 do Cód. Civil, o usufruto dos Autores sobre a ½ dessa casa, de cuja raiz é proprietário o Réu CC, passou a incidir sobre a correspondente indemnização; VIII - aquilo em que, pelo que tange à cláusula fideicomissária aludida em A) de FACTOS ASSENTES, as Instâncias assentaram, é contrariado pelo preceituado nos arts. 962º e 2286º e ss. do Cód. Civil; IX - realmente, enquanto no art. 2288º desse diploma legal, se prevê o limite de validade das substituições fideicomissárias, no art. 2291º, do mesmo Código, prevê-se a alienação e oneração de bens sujeitos a fideicomisso, sendo que quem se proponha adquirir bens, no todo ou em parte sujeitos a fideicomisso, não pode olvidar esses comandos legais; X- acontecendo até que, na observância deles, a prolação da sentença nos presentes autos, estava mesmo condicionada ao esgotamento do limite legal de validade da substituição fideicomissária em causa, ou à prévia autorização do tribunal de que, no art. 2291º do mesmo Código se fala; XI- mostra-se violado o estatuído nos arts. 209º, 1480º-1, 962º, 2288º e 2291º, todos do Cód. Civil.
Foi oferecida resposta pelos AA., louvando-se no acórdão impugnado.
2. - Como resulta da síntese conclusiva formulada pelos Recorrentes, colocam-se, para apreciação, as seguintes questões:
- Se, por extinção do usufruto dos Autores, por perda total da coisa, o Réu se tornou proprietário pleno da metade da casa;
- Se a cláusula fideicomissária incidente sobre a metade dos prédios dos RR. inviabiliza a declaração de indivisibilidade ou divisibilidade e o prosseguimento da acção de divisão de coisa comum; e,
- Se deve declarar-se a divisibilidade do “prédio misto” de que são comproprietários AA. e RR..
3. - Nas Instâncias teve-se por assente o seguinte quadrofactual:
1. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Barcelos e inscrito a favor dos Autores a totalidade do usufruto e metade da raiz, ou nua propriedade, do prédio misto, sito no lugar da Isabelinha, casa de dois pavimentos, com 383 m2 de s/c, estábulo, garagem, adega, arrecadações com 172 m2, quintal e eirado de lavradio com 21 260 m2, inscrito na matriz predial urbana no artigo 272 e na rústica no artigo 201 estando descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n.º 00350/Viatodos.
2. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Barcelos e inscrito a favor dos Autores a totalidade do usufruto e metade da raiz, ou nua propriedade, do prédio urbano, sito no lugar da Venda, casa de r/c com 54 m2 e logradouro com 140 m2, inscrito na matriz predial urbana no artigo 154 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n.º 00051/Viatodos.
3. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Barcelos e inscrito a favor dos 1.ºs Réus, metade da raiz, ou nua propriedade, do prédio misto, identificado em 1.
4. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Barcelos e inscrito a favor dos 1.ºs Réus metade da raiz, ou nua propriedade, do prédio identificado em 2.
5. Sobre esta pertença dos Réus CC e mulher existe uma Cláusula Fideicomissária inscrita, segundo a qual o R. como um dos “donatários fica obrigado a conservar a parte que lhe é doada dos bens descritos, para que reverta, por sua morte, a favor dos respectivos filhos”.
(…)
11. EE, nascida a 26.01.86, e FF, nascido a 16.09.96, são filhos dos 1.ºs Réus - alínea L) dos factos assentes.
12. Em 15.03.2005, a casa a que se alude em 1 foi atingida por incêndio de grandes proporções, que provocou a sua deterioração, ao ponto de a tornar inabitável – alínea M).
13. Esse incêndio foi provocado pelo derrame, seguido de incêndio, do combustível transportado por um veículo pesado, tipo “camião cisterna”, que, por essa estrada transitava, e que, nas imediações da falada casa, entrou em despiste – alínea N) dos factos assentes.
14. Tal veículo, pertencente a “T... – Sociedade Transportadora e Revendedora de Produtos Petrolíferos, L.da”, estava seguro na Companhia de Seguros Tranquilidade – alínea O).
15. O prédio identificado em 1. é formado por uma parte urbana e por uma parte rústica – alínea P) dos factos assentes.
16. A parte urbana tem uma área de, pelo menos, 6.435 m2, toda ela apta para construção (cfr. a planta topográfica de fls. 71) – alínea Q).
17. O acesso a ela a partir da estrada, e vice-versa, faz-se por diversas entradas que, para essa mesma estrada directamente dão, três das quais com dimensões para o trânsito de veículos motorizados, cfr. a planta topográfica de fls. 71 – alínea R) dos factos assentes.
18. Na parte rústica o terreno respectivo de regadio arvense, tem a área de pelo menos 22 029 m2, cfr. a planta topográfica de fls. 71 – alínea S).
19. Essa parte rústica confina com a via pública, tipo arruamento, numa extensão de cerca de 150 m2, para onde directamente dá a entrada, que consente todo o tipo de trânsito – alínea T).
20. O prédio identificado em 2. tem uma área total (coberta e descoberta) de, pelo menos, 455 m2 – alínea U) dos factos assentes.
21. Em consequência do predito incêndio, a parte da aludida casa mais próxima da estrada ficou totalmente destruída – resposta ao 2.º quesito da base instrutória.
22. O que dela restou ficou de tal modo afectado que de todo inviabiliza restabelecer-lhe condições de habitabilidade – resposta ao 3.º quesito.
23. Não existe entre os prédios identificados em 1 e 2 comunicação alguma, processando-se o acesso a ambas directamente a partir da via pública – resposta ao 4.º quesito.
24. Um e outro sempre foram utilizados com total autonomia - resposta ao 5.º quesito da base instrutória.
3. - Mérito do recurso.
3. 1. - A propriedade da casa que compõe o prédio misto.
O R. pediu que se declarasse ser ele já o proprietário pleno de metade da casa que compõe o prédio misto por ter ficado destruída em consequência de um incêndio provocado por terceiro, estando inviabilizado o restabelecimento de condições de habitabilidade, pelo que o usufruto dos Autores sobre tal casa passou a incidir sobre a indemnização a haver da Seguradora do causador do sinistro.
Ficou demonstrado que, devido a incêndio, provocado por um camião cisterna, a parte da casa mais próxima da estrada ficou totalmente destruída e “o que dela restou ficou de tal modo afectado que de todo inviabiliza restabelecer-lhe condições de habitabilidade”.
A pretensão do R. assenta, como alega, no pressuposto de que a casa se perdeu, ocorrendo a causa natural, por destruição material, de extinção do usufruto prevista na al. d) do n.º 1 do art. 1476º C. Civil.
As Instâncias consideram estar-se apenas perante perda parcial, decidindo pela manutenção do usufruto, subsumindo a situação de facto ao regime dos arts. 1478º e 1479º C. Civil.
Não se diverge da conclusão.
Efectivamente, a lei trata especialmente o caso de a coisa usufruída que sofra destruição ser um prédio urbano ou edifício incorporado em prédio rústico sobre o qual esteja constituído o usufruto.
Em ambos os casos, se a construção for destruída, tem o usufrutuário o direito de desfrutar o solo e os materiais restantes, podendo o proprietário da raiz reconstruir o prédio, ocupando o solo e os materiais, desde que pague ao usufrutuário, durante o usufruto, os juros correspondentes ao valor do mesmo solo e dos materiais – art. 1479º C. Civil.
Não reconhece, em tais casos, o regime legal, a perda total e seus efeitos extintivos, sem prejuízo de, quando o direito usufruído se deteriorar ou diminuir de valor, tendo o proprietário direito a indemnização, o usufruto passar a incidir sobre esta, como previsto no n.º 1 do art. 1480º.
O que se verifica, então, é a “substituição” da coisa usufruída ou de parte dela, na medida da deterioração ou diminuição de valor, por um valor correspondente, o da indemnização, que a própria lei sub-roga no lugar dela, mantendo-se a divisão de direitos e poderes entre o radiciário e o usufrutuário, apenas com modificação e substituição do objecto.
Resta acrescentar que, no caso, a inviabilidade da pretensão deduzida é ainda sobremaneira manifesta e flagrante atendendo a que, dado o regime de compropriedade existente, o usufruto não incide sobre a casa, nem sequer sobre o prédio urbano, mas sobre uma quota do “prédio misto”, composto pelas descritas partes rústica e urbana, o que, sem prévia divisão, se mostra de todo incompatível com a reivindicação da propriedade plena sobre qualquer das suas partes integrantes.
Nada pode, pois, ser alterado relativamente à titularidade do prédio, nomeadamente no tocante à reclamada propriedade plena de metade da casa pelo Recorrente CC.
3. 2. - Repercussão da cláusula fideicomissária na acção de divisão.
Os Recorrentes sustentam que não podia ser proferida sentença nos autos sem se esgotar o limite legal da validade da substituição fideicomissária ou sem a prévia autorização do tribunal.
Sobre a metade da raiz dos prédios doada aos RR. CC e mulher existe um fideicomisso a favor de seus filhos, a co-Ré EE e o Chamado FF, ou seja, o encargo, imposto pelo doador, de conservação dos bens, para reverterem, por sua morte, a favor dos filhos (arts. 962º e 2286º C. Civil).
É certo que só excepcionalmente é permitida a alienação de bens sujeitos a fideicomisso, estabelecendo-se no art. 2291º-1 que, em caso de evidente necessidade ou utilidade para os bens da substituição, poderá o tribunal autorizar, com as devidas cautelas, a alienação ou oneração dos bens abrangidos pelo fideicomisso.
Crê-se, porém, que uma tal disciplina relativa aos excepcionais requisitos de celebração de negócios de disposição tendo por objecto bens sujeitos a fideicomisso não briga directamente com o direito do comproprietário desses bens a requerer a respectiva divisão.
Com efeito, é princípio geral que nenhum comproprietário é obrigado a permanecer na indivisão, salvo por via de convenção, renovável, por períodos máximos de cinco anos – art. 1412º-1 e 2 C. Civil.
Consagrando um princípio de interesse público, a violação das normas do art. 1412º determina a nulidade de quaisquer condições que, fora do âmbito dos por ela admitidos pactos de indivisibilidade, conduzam à manutenção de indivisão dos bens.
Consequentemente, o que poderá acontecer é que se, como consequência do desenvolvimento da acção de divisão de coisa comum, houver lugar à adjudicação ou à venda a pessoa diferente do fiduciário dos bens sujeitos a fideicomisso, poderá o tribunal ser chamado a fixar «as devidas cautelas» (medidas destinadas a prevenir a preservação do valor do que for obtido na alienação), nos termos a que se alude no citado art. 2291º.
Conclui-se, pois, que a cláusula fideicomissária não obstaculiza o direito à divisão nem a alienação dos bens por ela abrangidos.
3. 3. - A (in)divisibilidade do “prédio misto”.
3. 3. 1. - Os Recorrentes insistem na pretensão, desde o início tomada e defendida, de verem declarada a divisibilidade do “prédio misto”, em, pelo menos, duas partes, uma urbana e outra rústica, de modo a, também pelo menos, se formarem dois quinhões.
O prédio que os Réus pretendem ser divisível vem definido como um prédio misto, classificação que a lei civil não conhece.
Esta efectivamente, qualifica os prédios em rústicos e urbanos, presidindo à distinção um critério funcional, de sorte que o prédio será rústico se se tratar de uma porção de solo, neste (solo) residindo a sua utilidade, enquanto que a denominação de urbano caberá às construções implantadas, “servindo o solo apenas de seu suporte físico ou logradouro” (cfr. PAIS DE VASCONCELOS, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª ed. 220 e ss.).
O “prédio misto” reflecte apenas uma realidade de facto, acolhida pela lei fiscal, que serve para classificar os prédios que, tendo parte rústica e urbana, não possa nenhuma delas ser classificada como parte principal – art. 5º do Cód. do IMI, aprovado pelo DL n.º 287/2003, de 12/11, antes do Cod. Contribuição Autárquica.
Sendo o “prédio misto” apenas uma classificação acolhida pelo direito fiscal, para o direito civil os assim denominados prédios haverão de ser classificados como rústicos, urbanos ou, eventualmente, como prédios distintos consoante, segundo um critério funcional e económico, haja dependência da parte urbana em relação à rústica, desta em relação àquela, ou, porventura, se verifique autonomia entre cada uma das partes.
Assim, serão de classificar como rústicos, tal como o solo em que se integram, v.g., os celeiros, adegas, instalações pecuárias e destinadas a arrumo de máquinas e alfaias agrícolas, etc., do mesmo passo que serão de classificar como urbanos os quintais e jardins que sirvam de logradouro a edifícios destinados a habitação.
A par destas situações outras existem bem mais complexas, a exigirem a devida interpretação, perante as concretas circunstâncias de facto, postulando uma averiguação que vá de encontro à “substância das coisas” (cfr. ac. deste Tribunal e Secção de 15/01/2008, proc. n.º 4320/07-1).
Assim, como se ponderou no dito aresto, a construção de uma casa de habitação num prédio apto e destinado à exploração agrícola pode significar, dependendo das circunstâncias concretas, “não uma alteração da destinação do solo, mas antes a conjugação dos interesses habitacionais dos respectivos donos com os interesses de exploração do solo na modalidade para que ele é apto”. Quando tal suceda, “a habitação surge, fundamentalmente, como meio de ligação à terra cultivada, devendo ter-se o prédio por rústico, já que se mantém a sua destinação a fins agrícolas, independentemente da natureza mista (rural e urbana) que a situação de facto lhe atribui” e com que a lei fiscal o classifica. Já “quando, do conjunto, sobressaia a construção, limitando-se o solo a ser o seu suporte ou a servir-lhe de logradouro, o prédio é urbano”.
É a situação com que habitualmente se depara no caso das “QUINTAS” rurais, em que a exploração da terra e a habitação aparecem aliadas, em harmónica relação de interdependência, sendo a última um meio essencialmente vocacionado e destinado a realizar mais adequada e proveitosamente a exploração da terra.
Pode, finalmente suceder, como dito, que uma ou outra das dependências, inicialmente existente, tenha, entretanto, desaparecido, por via da evolução de cada uma das partes do “misto” no sentido da autonomia.
3. 3. 2. - A noção de indivisibilidade resulta do art. 209.º do CC, em que se estabelece que “são divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”.
O preceito traça um critério jurídico e não físico/naturalístico ou material, uma vez que física e materialmente quase todas as coisas são divisíveis.
O critério jurídico da divisibilidade eleito pressupõe, como exige a norma, o concurso de três circunstâncias cumulativas: - que não haja alteração da substância; - que não se verifique diminuição do valor (detrimento); - e, que não saia prejudicado o uso a que se destina. Quando tal não suceda a coisa não pode ser fraccionada; é naturalmente indivisível.
Por outro lado, tais requisitos de fraccionamento – as características ou qualidades da coisa que permitem a sua divisibilidade - devem concorrer no momento em que a divisão é requerida e se coloca a questão da divisibilidade.
Como se infere da regra consagrada no n.º 1 do art. 1056.º, n.º 1, do CC, ao determinar que, na falta de acordo, se procede a realização de sorteio, a divisibilidade, além de actual, há-de permitir inteirar em espécie todos os interessados, sem que haja lugar a tornas (cfr. acs. STJ, de 5/11/2002 e de 14/10/2004, ambos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
3. 3. 3. - Face aos elementos de facto disponíveis, não se vê que o prédio em causa não possa ser materialmente dividido sem prejuízo da sua substância, nos termos preconizados pelos Recorrentes, ou seja, formando-se um quinhão com sua parte rústica e outro com sua parte urbana.
Ponto é que se verifiquem os demais requisitos legais para o efeito, vale dizer, que não se verifique detrimento do seu valor e que não resulte prejudicado o uso a que se destina, como exige o art. 209º citado.
É aqui que entra a questão de classificação do prédio, na ponderação, entre outros, dos elementos acima coligidos.
Um ponto da pretensão dos Recorrentes fica já claro.
Qualquer que seja a possibilidade material de divisão da parte urbana – casa de habitação e seu logradouro com aptidão construtiva -, não concorrem os requisitos de natureza administrativa, seja de loteamento, seja de constituição da propriedade horizontal.
Na verdade, o nosso sistema jurídico sujeita ao regime de controlo ou licenciamento prévio das Câmaras Municipais as operações de urbanização e obras particulares, nomeadamente, e ao que ao caso interessa, as operações de loteamento, de construção, reconstrução e alteração de construções ou edifícios, em que se incluem, incontornavelmente, as de modificação das características físicas de um terreno para formação de lotes destinados à implantação de construções e a modificação de edificação destinada a habitação unifamiliar para um edifício em regime de propriedade horizontal (arts. 2º, 4º, 60º, 62º a 66º e 70º, todos do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16/12, entretanto alterado pelo DL. n.º 177/2001 e pela Lei n.º 60/2007, de 4/9, mas sem reflexo no conteúdo das normas ora em aplicação).
E a própria Constituição da República comete às autarquias a definição dessas regras urbanísticas (art. 64º-4).
Não podendo, como já dito, a questão da divisibilidade ficar à mercê da verificação de situações futuras e hipotéticas, era ónus dos Réus, ora Recorrentes, interessados na divisão, demonstrar estarem satisfeitos os pertinentes requisitos administrativos de constituição da realidade jurídica que a acção visava, mediante instrução dos autos com os alvarás de loteamento e autorização de constituição da propriedade horizontal.
Trata-se, na verdade, de uma condição de procedência da pretensão, a demonstrar até ao momento em que o tribunal seja chamado a pronunciar-se sobre a questão da divisibilidade, irrelevando quaisquer outras provas como substituição dos documentos camarários.
Por outro lado, quanto ao terreno rústico, a sua indivisibilidade, que não vem posta em crise, resulta directamente do disposto no art. 1376º-1 C . Civil, conjugado com o que sobre a unidade de cultura para a Região dispõe a Portaria n.º 202/70.
3. 3. 4. - Assente que a questão da divisibilidade se restringe ao rústico e ao urbano, constata-se que a sentença da 1ª Instância não se pronunciou sobre a questão, pelo mesmo se ficando o acórdão impugnado, nessa parte meramente remissivo.
Efectivamente, naquela peça processual não se enfrentou o problema da divisibilidade do “misto” como um todo, mas, tão só, separadamente o da indivisibilidade da parte rústica, por um lado, e da parte urbana, por outro. Uma e outra foram tratadas, ao que parece, como prédios, como um prédio rústico e como um prédio urbano.
Apesar disso – de se ter analisado a divisibilidade de cada uma das partes (rústica e urbana) autónoma e separadamente – concluiu-se pela indivisibilidade do todo.
Ora, assim perspectivada a situação, parece que a conclusão poderia ter sido outra, sendo, pelo menos, admissível que o fosse, ou seja, no sentido da separabilidade de cada uma das partes que se consideraram, elas mesmas, indivisíveis, tanto mais que nenhuma alusão se faz à indivisibilidade do conjunto misto que se separou para análise.
Constata-se, assim, que os RR. formularam pretensão que a fundamentação da sentença não rejeita, antes parecendo acolher, decidindo-se, porém, pela indivisibilidade.
Tal decisão fica, então, sem fundamento, apesar de não de poder afirmar ser, ela própria, errada.
3. 3. 5. - Aqui chegados, constata-se que os elementos de facto disponíveis - – alegados pelas Partes e apurados nos autos – são manifestamente insuficientes para se poder formular um juízo sobre a divisibilidade ou indivisibilidade do denominado “prédio misto”, necessário que se mostra o conhecimento dos elementos de facto susceptíveis de preenchimento (ou não) dos requisitos legais de divisibilidade supra enunciados.
Se é certo que, como se disse, a divisibilidade material proposta é possível, também o é, como aludido, não estarem preenchidos todos os requisitos legais para a respectiva declaração, sendo igualmente certo, e aqui especialmente relevante, ser a situação de indivisibilidade de conhecimento oficioso (art. 1053º-4 CPC).
Consequentemente, perante esse conhecimento oficioso da questão da indivisibilidade, torna-se necessário, com vista à eventual confirmação do sentenciado, proceder à ampliação da matéria de facto, também no que pode e deve ser feito no estrito âmbito do que se impõe oficiosamente conhecer, ou seja, se as partes rústica e urbana do “prédio misto” reúnem condições de separação sem que haja diminuição do valor deste ou prejuízo para o seu uso.
A ampliação que se propõe e se ergue como imprescindível, desde logo atenta a natureza do processo, tem cabimento ao abrigo dos poderes inquisitórios conferidos pelo já convocado n.º 4 do art. 1053º e mediante recurso a prova pericial com o âmbito e finalidades previstos no n.º 5 do mesmo preceito do CPC.
Tem-se, assim, como configurada a situação excepcional a que alude o n.º 3 do art. 729º CPC, impondo-se o uso da faculdade aí prevista, em ordem à superação da insuficiência da base de facto para a decisão de direito nos termos indicados, com novo julgamento da causa (art. 730º).
4. - Decisão.
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em:
- Negar a revista relativamente às questões da titularidade da casa, por extinção do usufruto, e da repercussão da cláusula fideicomissária na divisão dos prédios;
- Ordenar a baixa do processo para ampliação da matéria de facto com vista ao apuramento de matéria de facto relativa ao preenchimento, ou não, dos requisitos de que depende a apreciação – oficiosa - da declarada indivisibilidade e novo julgamento da causa, sendo que a baixa será directamente à 1ª Instância, face às diligências a realizar, e
- Colocar as custas do recurso a cargo dos Recorrentes.