DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Sumário


A declaração dos autos, que foi dirigida à A. pela R., é uma declaração receptícia. Assim, tornou-se eficaz logo que chegou à destinatária ou foi dela conhecida. A declaração é irrevogável (depois de ser recebida pelo destinatário ou ser dele conhecida – arts. 228º nº 1 e 230º nº 1 do C.Civil -), pelo que não pode a declarante retirá-la. Assim, ela fica sujeita a ver-se envolvida na relação contratual que desencadeou, caso o destinatário exerça o direito potestativo de aceitação da proposta, mesmo que, entretanto, ela, declarante, se arrependa.
A declarante só poderá anular e tornar ineficaz a declaração que
fez através de invocação e demonstração de vícios de vontade.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I- Relatório:
1-1- AA, residente na Travessa ……….., 271, 4465-169 S. Mamede Infesta, propõe a presente acção com processo ordinário contra a Companhia de Seguros Fidelidade Mundial, SA, com sede no Largo do ……., nº …., …..-…. Lisboa, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 99.735,04, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% sobre o montante de € 96.870,00
Fundamentam este pedido, em síntese, alegando que é proprietária de um veículo de marca Volvo, modelo S80, matrícula …-…-…, segurado na R., através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ……., que cobre danos a terceiros e danos próprios da viatura, assim como veículo de substituição, furto e roubo. Acontece que no dia 12 de Agosto de 2004, em Espanha, a viatura da A. desapareceu, facto que a A. participou à R., sendo que esta não assumiu a sua responsabilidade, não lhe tendo pago o valor da viatura desaparecida, no prazo estipulado, nem lhe tendo posto à disposição uma viatura de substituição. Por isso, teve de contratar um serviço de transporte alternativo para a sua vida diária, no que despendeu a quantia de € 22.000,00. Além disso sofreu desgosto e transtorno com a situação, que computa em € 3.000,00. O valor do veículo desaparecido era de 71.476,00 €.
A R. contestou aceitando ter celebrado com a A. um contrato de seguro titulado pela apólice nº ……, através do qual assumiu a responsabilidade da A. pelos danos causados na e pela sua viatura, melhor identificada na p.i., incluindo situações de furto e roubo da mesma. Aceita também que a A. lhe participou o desaparecimento da referida viatura, em Espanha. Não aceita, no entanto, pagar à A. a quantia por ela solicitada, porque não admite que a viatura tenha sido furtada, contrariamente ao alegado pela A. Diz tratar-se de um acto simulado, destinado a extorquir-lhe dinheiro. Impugna também os factos relativos aos danos alegados, dizendo que colocou à disposição da A. uma viatura, durante 15 dias.
Termina pedindo a improcedência da acção.
Na réplica a A. reiterou todos os factos por si alegados na p.i., concluindo pela procedência total da acção
O processo seguiu os seus regulares termos com a elaboração do despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e a base instrutória, se procedeu à audiência de discussão e julgamento, se respondeu à matéria de facto controvertida e se proferiu a sentença.
Nesta julgou-se improcedente a acção, absolvendo-se a R. do pedido.
Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação de Porto, tendo-se aí, por acórdão de 31-1-2008, julgado parcialmente procedente o recurso, alterando-se a sentença recorrida, condenando-se a R. Seguradora a pagar à A. a quantia de 71.476,00 € acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e até integral pagamento.
1-2- Não se conformando com este acórdão, dele recorreu a R. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A proposta de que a Relação se serviu para dar provimento ao recurso não tem o alcance que o acórdão lhe atribui.
2ª- Por essa proposta da R., aceite pela A., ficou apenas acordada entre ambas o valor da indemnização a pagar pelo furto.
3ª- Não ficou acordada entre ambas nem a existência do furto, nem a dispensa da sua prova pela A. – que lhe incumbia como facto constitutivo do seu direito.
4ª- Não é caso também de inversão legal de ónus da prova – demais um facto negativo a cargo da R., na prática impossível de satisfazer.
5ª- Não estando em causa a discussão do valor da indemnização a pagar pela recorrente, proposto e aceite, não tem cabimento a colocação do problema perante o art. 235º do C.Civil. Isso só teria cabimento se a R. viesse discutir na acção a bondade do acordado sobre o valor da indemnização a pagar pelo desaparecimento da viatura.
6ª- Continua, assim, de pé o ónus da prova do alegado furto – que compete à A., por ser um facto constitutivo do seu direito.
7ª- Ao decidir em contrário, o acórdão recorrido violou as disposições citadas.
A parte contrária contra-alegou, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº1 e 684º nº 3, ex vi do disposto no art. 726º do C.P.Civil).
Nesta conformidade será a seguinte a questão a apreciar e decidir:
- Qual o valor jurídico a atribuir à declaração de pagamento da indemnização, dada pela R. à A. e aceite por esta.
2-2- Das instâncias vem fixada a seguinte matéria de facto:
1- A A. celebrou com a R. um contrato de seguro, sob a apólice nº …………, nos termos e condições especificadas no documento de fls. 42, que aqui se dá por integralmente reproduzido, relativo ao veículo de marca Volvo, modelo S80, matrícula …-…-….
2- Esse acordo incluía a responsabilidade por danos a terceiros e danos próprios.
3- Tendo sido fixado como valor do veículo seguro o montante de € 71.476,00.
4- Do mesmo acordo constam ainda as condições especiais de “Veículo de Substituição” e “Furto e Roubo”.
5- Ficou estipulado no acordo referido em 1) que em caso de desaparecimento do veículo, o segurado adquiria o direito ao pagamento da indemnização devida, decorridos 60 dias sobre a data da participação à autoridade competente, se no termo desse período o veículo não tivesse sido recuperado.
6- A A. enviou à R. (ao tempo Cª de Seguros Mundial Confiança) em 16 de Agosto de 2004 o documento cuja cópia consta de fls. 26, denominada “participação de sinistro”.
7- Em consequência da mesma comunicação, por carta datada de 19 de Novembro de 2004, a R. propôs à A. como indemnização, para ressarcir o desaparecimento da viatura, o montante de € 71.476,00, conforme documento junto a fls. 27.
8- A A. respondeu que aceitava tal proposta logo, em 30 de Novembro de 2004, por escrito, inserto no original da referida carta, que entregou na companhia, conforme consta de fls. 27.
9- Nessa altura, para além da minuta da queixa apresentada às autoridades policiais espanholas a A. entregou à R. as chaves, o título de registo e o livrete referente ao veículo.
10- Nos termos do acordo mencionado em 1) ficou estipulado que a R. colocava à disposição da A. um veículo de substituição durante 30 dias.
11- A R. colocou à disposição da A. um veículo de substituição durante 15 dias, entre os dias 28.9.04 e 12.10.04.
12- A A. comunicou às autoridades policiais o desaparecimento da viatura.
13- O Volvo é uma viatura com sistema de segurança, não sendo fácil accionar o motor com chaves falsas.
14- Ninguém em Vigo se apercebeu de o veículo ter sido rebocado.-----
2-3- Na 1ª instância, depois de se referir que as partes celebraram um contrato de seguro, entendeu-se que caberia à A. provar, para fazer funcionar o contrato celebrado, que a sua viatura tinha sido furtada (ou tinha desaparecido), sendo certo que não efectuou tal prova. Tratando-se de factos constitutivos do seu direito, cabia-lhe fazer a sua prova (art. 342º nº 1 do C.Civil). Não o tendo feito, a acção teria de improceder, o que se declarou, absolvendo-se a R. do pedido.
Na Relação considerou-se face aos factos provados, que não existe qualquer dúvida que a R. Seguradora fez uma proposta de indemnização que a A. aceitou, razão para que se tenha por eficaz (e irrevogável) essa proposta. A partir desse momento a Seguradora ficou obrigada a realizar o pagamento, até porque essa proposta não foi sujeita a qualquer condição ou prazo, nomeadamente de se vir a apurar em determinado período de tempo que, afinal, um dos pressupostos não exista, ou seja que não havia furto do veículo. Acrescentou-se ainda que quando a seguradora se obriga a realizar o pagamento e essa obrigação é aceite, a eventual questão de repartição do ónus da prova não se coloca, porque, nesse caso, a seguradora tem o direito de haver da Seguradora o pagamento da indemnização que esta declarou querer realizar e isto independentemente de ter de provar se existiu ou não furto do veículo, porque aquilo que vale é exclusivamente a declaração de vontade de pagar a indemnização, tornada eficaz pela aceitação da recorrente. Para que a Seguradora pudesse eximir-se da obrigação assumida de pagar, seria necessário que invocasse uma causa justificativa, v.g. o dolo previsto no art. 253º do C.Civil (por patente lapso referiu-se art. 235º), uma circunstância reveladora de ao ter declarado como o fez, incorreu em erro provocado pela outra parte. Teria, assim, que alegar e provar a existência de erro relevante para tornar nula e ineficaz a declaração produzida, designadamente dizendo que só emitiu essa declaração de vontade de pagar porque julgava, sem culpa sua, que o veículo da segurada havia sido furtado, por ter sido disso convencido (intencionalmente e com má fé) por esta. Como isto não foi feito, fica intacta a obrigação de pagamento por parte da R. relativamente ao montante que declarou pretendeu pagar. Assim entendeu-se que o valor referido pela R. na mencionada declaração, seria o valor da indemnização que a R. deveria pagar à A., proferindo-se uma condenação em conformidade.
Na presente revista, a recorrente defende que pela proposta da R., aceite pela A., ficou apenas acordada entre ambas o valor da indemnização a pagar pelo furto. Não ficou acordada entre ambas nem a existência do furto, nem a dispensa da sua prova pela A.. Não é caso também de inversão legal de ónus da prova – demais um facto negativo a cargo da R., na prática impossível de satisfazer. Não estando em causa a discussão do valor da indemnização a pagar pela recorrente, proposto e aceite, não tem cabimento a colocação do problema perante o art. 235º do C.Civil. Isso só teria cabimento se a R. viesse discutir na acção a bondade do acordado sobre o valor da indemnização a pagar pelo desaparecimento da viatura. Continua, assim, de pé o ónus da prova do alegado furto – que compete à A., por ser um facto constitutivo do seu direito.
Somos em crer que a posição assumida pela Relação é absolutamente certa.
Com efeito, tendo sido proferida pela R. uma proposta de pagamento da indemnização e tendo esta sido aceite pela A., formou-se o contrato. Como refere Galvão Telles, em relação à formação do contrato, “uma das partes exprime o seu querer, com a vinculação de se vincular contratualmente, e a outra parte dá a sua concordância. A manifestação de vontade do primeiro chama-se proposta e a do segundo aceitação. Do encontro e coincidência entre ambas nasce o contrato” (in Direito das Obrigações, 7ª edição, pág. 64).
O art. 224º nº 1 do C.Civil (diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem), dispondo sobre a eficácia da declaração negocial, refere que “a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta de forma adequada”.
As primeiras declarações de que trata a disposição (e com interesse para o caso vertente), são as receptícias ou recipiendas, cuja validade e eficácia depende da chegada ao poder ou conhecimento do destinatário, as segundas, não receptícias ou não recipiendas, cuja validade e eficácia se bastam com a manifestação de vontade do autor da declaração.
A declaração dos autos, que foi dirigida à A. pela R., é, patentemente, uma declaração receptícia. Assim, tornou-se eficaz logo que chegou à destinatária ou foi dela conhecida. Nesta conformidade, tal declaração, no caso vertente, tornou-se eficaz logo que a A. recebeu a declaração (constante da carta enviada pela R.).
O art. 228º nº 1 estabelece que a proposta obriga o proponente. Mas, como refere Galvão Telles (obra citada pág. 65) “dela não emerge qualquer vínculo creditório. O proponente não tem que realizar qualquer prestação positiva ou negativa, pelo simples facto de haver feito uma proposta. Esta não constitui, por si, fonte de obrigação. O que a lei pretende significar é que a proposta é irrevogável. O seu autor não pode retirá-la, sendo irrelevante a declaração que faça nesse sentido. Portanto, o proponente não fica obrigado seja ao que for; fica sim, em estado de sujeição, submetido como está a ver-se efectivamente envolvido na relação contratual que desencadeou, se o destinatário exercer, nos termos da lei, o seu direito potestativo à aceitação da proposta, e mesmo que entretanto ele, proponente, se arrependa”. Isto é, a proposta em si, não obriga contratualmente o proponente, pois não constitui fonte de obrigação. Porém, como a declaração é irrevogável (depois de ser recebida pelo destinatário ou ser dele conhecida – arts. 228º nº 1 e 230º nº 1-), não podendo, assim, o declarante retirá-la, este fica sujeito a ver-se envolvido na relação contratual que desencadeou, caso o destinatário exerça o direito potestativo de aceitação da proposta, mesmo que, entretanto, ele, declarante, se arrependa.
Aceite (tácita ou expressamente) a proposta pelo destinatário, o contrato nasce ou concretiza-se. Com aceitação, originou-se “um acordo vinculativo de vontades opostas, mas harmonizáveis entre si” (Das Obrigações em Geral, Antunes Varela, Vol. I, 9ª edição, pág. 227), ou seja, surgiu o contrato.
No caso dos autos, a A. ao aceitar expressamente a proposta efectuada pela R., fez nascer o contrato e, consequentemente, através dele originou-se a vinculação da R. em pagar-lhe a indemnização constante da proposta.
Portanto, a existência do furto/desaparecimento do veículo, como elemento nuclear ao pagamento de indemnização decorrente do contrato de seguro, foi ultrapassado pela proposta efectuada pela R. e correspondente aceitação pela A.. Por isso, é destituído de sentido falar-se e discernir-se sobre ónus da prova em relação e esse elemento.
Claro que, como se refere no acórdão recorrido, a R. podia anular e tornar ineficaz a declaração que fez por vício de vontade. Designadamente poderia alegar que a declaração havia sido realizada através de erro (isto é, supondo incorrectamente ter existido o furto do veículo), engano provocado por sugestão ou artifício provocado voluntariamente pela parte contrária (art. 253º nº 1).
Alegando e provando as respectivas circunstâncias factuais, é evidente que o negócio poderia e deveria ser anulado (art. 254º nº 1).
A R., na sua contestação, referiu (apesar de não ter sido muito peremptória no sentido da alegação de factos relativos ao dolo e ao seu engano) circunstâncias que punham em dúvida a veracidade do alegado desaparecimento ou furto da viatura, acrescentando não aceitar a ocorrência desse furto e considerar este (conclusivamente) um acto simulado destinado a extorquir-lhe o dinheiro da viatura. Sucede que os factos (concretos) alegados foram levados à base instrutória, recebendo, contudo, resposta negativa (vide factos referenciados sob os nºs 21 a 28).
Quer dizer, a R. não logrou demonstrar o vício de vontade e, assim, obter a anulação da declaração.
O recurso improcede.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Junho de 2007

Garcia Calejo (Relator)
Mário Mendes
Sebastião Póvoas