CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO
DESPEDIMENTO SEM JUSTA CAUSA
Sumário


I - Não constando da Lei n.º 28/98, de 26 de Junho (Lei do contrato de trabalho desportivo) a noção de «justa causa» de despedimento, deve ser feito apelo, por força do disposto no artº 3º daquela Lei e para aquisição desse conceito, ao que se encontra estipulado, no Código do Trabalho, designadamente o que vem prescrito no seu artº 396º.
II - A justa causa de despedimento que se extrai do nº 1 deste normativo legal, exige a cumulação dos requisitos consubstanciados, por um lado, numa actuação ou comportamento ilícitos do trabalhador – actuação ou comportamento esses, imputáveis ao trabalhador e violadores dos seus deveres de conduta ou dos valores inerentes à disciplina laboral, sendo que se exige um grau de acentuada gravidade, quer reportado a esses comportamento e actuação, quer referente às respectivas consequências; por outro, que, em razão de uma tal actuação, se torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho; e, por último que exista um nexo de causalidade entre a actuação do trabalhador e a situação de impossibilidade na manutenção do vínculo laboral.
III - A impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação laboral alcança-se quando, em consequência da actuação do trabalhador, se crie uma situação de absoluta quebra, por parte da empregadora, da fides que deve iluminar aquela relação, por forma a criar nela um estado de espírito de acordo com o qual a futura conduta do trabalhador, plausivelmente, não se irá desenvolver sob a regência das características de idoneidade e probidade que devem pautar tal relação.
IV - Para tal, não se deverá atentar no suporte psicológico concreto da entidade empregadora, mas sim recorrer-se a critérios a critérios de objectividade e razoabilidade em face de uma prospectiva actuação que, perante a corte das circunstâncias concretas, seria de esperar de um empregador «médio» e, também razoável.
V - Mostra-se desadequada a sanção disciplinar de despedimento com justa causa, aplicada pela ré (colectividade desportiva que disputou, na época de 2004/2005, o campeonato nacional de futebol da Liga de Honra da Liga Portuguesa de Futebol) ao autor (futebolista profissional da ré) que, de 23 de Agosto de 2004 a 5 de Março de 2005, sempre desempenhou com zelo e dedicação as suas funções de jogador e que nesta última data, no decorrer de uma jogada integrada num exercício de treino da equipa de futebol profissional da ré, após chocar e cair no relvado com um outro jogador da ré, que fazia parte da equipa de treino contrária, por considerar que o envolvimento daquele outro jogador tinha sido desleal para consigo, ficou exaltado e, estando os dois ainda caídos no relvado, agrediu-o com um pontapé, tendo-se de seguida agarrado reciprocamente, após o que vieram a ser separados por outros colegas de equipa, constatando-se ainda que o jogador que esteve envolvido com o autor não sofreu quaisquer consequências pessoais para além da dor física resultante do pontapé e não apresentou queixa contra o mesmo autor.

Texto Integral



I


1. Pelo Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz instaurou AA contra a Associação Naval 1º de Maio, acção de processo comum, solicitando que fosse declarada a ilicitude do despedimento do autor levada a efeito pela ré e a condenação desta a pagar-lhe € 6.232,91, a título de indemnização por esse despedimento, € 3.800, a título de férias não gozadas, € 10.000, a título de prémio de «subida» de divisão, € 10.000, a título de indemnização por danos não patrimoniais, além de juros.

Para tanto, invocou, em síntese, que: –
– o autor, em 23 de Agosto de 2004, foi contratado pela ré – que é uma colectividade desportiva que disputa o campeonato nacional de futebol da Liga de Honra – para, sob autoridade e direcção desta, prestar a actividade de futebolista mediante a retribuição líquida de € 34.200, paga em nove prestações, com início em 1 de Setembro de 2004 e termo em 31 de Maio de 2005, a que acresciam € 300 mensais, a título de comparticipação na renda de casa, tendo ainda direito a € 10.000 caso a ré, durante a vigência do contrato, «subisse» à Super Liga;
– na sequência de um incidente durante um treino com um colega de equipa, a ré instaurou ao autor um processo disciplinar, suspendendo-o do exercício de funções, processo esse que culminou com a decisão de despedimento com invocação de justa causa;
– porém, não só os factos invocados na «nota de culpa» não correspondem à verdade, como ainda a decisão de despedimento carece de fundamentação, pois que se limita a invocar que houve, de parte do autor, grave violação dos deveres do trabalhador, além de a sanção aplicada se não coadunar com a prática disciplinar da ré em casos similares;
– a ré não pagou ao autor a totalidade da retribuição relativa ao mês de Abril de 2005, porquanto somente lhe pagou € 1,967,09;
– tem ainda o autor direito às retribuições que deveria ter auferido até final do contrato, no montante de € 6.232,91, o quantitativo correspondente a férias não gozadas, de € 3.800, e a quantia de € 10.000, como prémio de «subida» da ré à Super Liga;
– o autor, em consequência da suspensão de funções e do despedimento de que foi alvo, viu-se impossibilitado de treinar desde 5 de Maio de 2005, perdendo a boa forma física que detinha, ficando impossibilitado de jogar e ficando confrontado com o anátema do despedimento, o que o impediu de outorgar contrato de trabalho com outro clube compatível com as suas qualidades, para além de ter ficado impedido de celebrar com outros colegas, equipa técnica e direcção, o momento da «subida» de divisão, razão pela qual sofreu danos não patrimoniais que computa em € 10.000.

Após contestação da ré, que impugnou grande parte dos factos articulados pelo autor, veio, em 4 de Janeiro de 2007, a ser proferida sentença que declarou a ilicitude do despedimento do autor, dada a inexistência de justa causa para tanto, e condenou a ré a pagar-lhe € 19.441,80.

Inconformada, apelou a ré para o Tribunal da Relação de Coimbra.

Sem sucesso, porém, já que este Tribunal de 2ª instância, por acórdão de 22 de Novembro de 2007, negou provimento à apelação.

2. Mantendo o seu inconformismo, vem a ré pedir revista, rematando a alegação adrede produzida com o seguinte núcleo conclusivo: –

1º – No caso em apreço estamos perante um contrato de trabalho desportivo da Lei nº 28/98 de 26/06 a que se aplica subsidiariamente o CCT celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, publicado no B.T.E. nº 33 de 8/9/1999 e, genericamente, o Código do Trabalho.
2º – No caso, o jogador Recorrido celebrou com a Recorrente um contrato de trabalho desportivo enquanto praticante desportivo profissional, nos termos do disposto no artº. 2º b), daquela Lei nº 28/98, sendo que o comportamento que lhe é imputado ocorreu no período normal de trabalho, não obstante ter acontecido numa sessão de treino, que não em competição (artº. 15º da Lei nº 28/98 e 158º do Código de Trabalho).
3º – No quadro específico dos deveres do praticante desportivo, releva o dever conformar-se com as regras próprias da disciplina e da ética desportiva (artº. 13º e) da Lei nº 28/98 e artº. 13º e) do CCT para o sector).
4º – O jogador Recorrido no decorrer de uma jogada integrada num exercício de treino da equipa de futebol profissional da Recorrente agrediu um seu companheiro, o jogador BB, com um pontapé (factos 12, 13 e 14) violando assim os deveres do artº. 13 e), da Lei nº 28/98, 121 nº 1 do Código de Trabalho e 13 e) do CCT.
5º – Dispõe o artº, 396º, do Código do Trabalho, que para apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e as demais circunstâncias relevantes.
6º – O primeiro aspecto enquadrador e a especial, especialíssima, especificidade da relação laboral do praticante desportivo profissional face à relação jus laboral normal.
a) Nesta especifica relação laboral o resultado do ‘trabalho’ de uma equipa de futebol é a vitória no jogo, é, em suma, a vitória numa competição.
Sendo que a vitória no jogo supõe que todos os (11) onze jogadores ‘trabalhadores’ da equipa ‘trabalhem’ conjugadamente, no mesmo sentido e com aquele comum objectivo.
E sendo que a vitória na competição supõe que todos os (25) vinte e cinco jogadores – ‘trabalhadores’ da equipa ‘trabalham’ nos treinos diários e nos jogos em que participam, por forma conjugada, para aquele objectivo.
b) Razão porque, neste sector, se é vincadamente rigoroso na disciplina, seja a disciplina de jogo, a táctica e estratégica, seja, especialmente, a disciplina ‘stricto sensu’.
Se um jogador põe em causa as regras do regulamento disciplinar do clube nos treinos, jogos, nas relações com colegas, no cumprimento das ordens de superiores hierárquicos (treinadores, p[or] exemplo) a repercussão é imediata no grupo, comprometendo (ou podendo comprometer, se não for imediatamente reprimida!) o resultado no jogo, o resultado na competição.
c) Depois há que considerar ainda a circunstância de por regra – como era o contrato dos autos – este contrato de trabalho se[r] de curta duração, uma época desportiva apenas, ou seja, 10 meses!
Daí o rigor disciplinar que é exigido neste sector de actividade, rigor disciplinar que é a argamassa do grupo e factor potenciador do resultado visado – ganhar!
d) Repare-se que esta área é tão especial que o jogador – ‘trabalhador’ com conduta disciplinar grave pode ser duplamente punido – punido internamente pela sua entidade patronal (multa, suspensão, despedimento) mas também pela entidade organizadora da competição (multa, suspensão)!
7º – O segundo aspecto será enquadrar a conduta do jogador no jogo de futebol que envolve contacto físico, confronto e emoção, ocorrendo com frequência lesões resultantes daquele confronto físico.
a) A questão é que mesmo em competição, equipa contra equipa, com muitos e valiosos interesses em jogo, há regras que disciplinam, previnem e punem o contacto físico entre adversários.
A violação de tais regras por um qualquer jogador envolve a expulsão do jogo, porventura a suspensão por vários jogos, multa pecuniária (sanções a aplicar pela instância organizadora da competição).
Mas a estas punições disciplinares externas, podem acrescer, e quantas vezes acrescem, sanções disciplinares internas, aplicadas pela entidade patronal sobre o jogador/trabalhador prevaricador.
b) Ao contrário da decisão da instância, sufragada pelo Acórdão da Relação de Coimbra ora recorrido, os factos provados não suportam a conclusão de ‘exaltação’ ‘descontrolo psicológico’ ‘alteração psicológica momentânea’ do jogador recorrido.
c) ‘Embora nada nos indique exactamente na matéria de facto que, como se refere na sentença, a conduta do autor foi assumida num quadro de descontrolo psicológico’ – lê-se no Acórdão recorrido que assim confirma que não há factos que suportem a conclusão do descontrolo psicológico.
d) A agressão dos autos ocorreu sobre um colega de equipa, num mero exercício de treino.
8º – O terceiro aspecto enquadrador tem a ver com as consequências da conduta do jogador no seio da equipa de futebol profissional da Recorrente.
a) Lê-se na sentença recorrida que ‘a equipa de futebol profissional da ré não sofreu qualquer consequência pelo facto do autor ter agredido o jogador BB em 5/3/2005’ e em 27) que ‘no final da época de 2004/2005, a equipa profissional da ré ascendeu à Superliga’.
b) Note-se que até no Acórdão ora recorrido se pode ler que ‘no que toca à avaliação dos danos à actividade desenvolvida pela ré, não é possível extrair totalmente da matéria de facto a certeza de que não houve danos para a empresa ré’.
c) Mas tal só aconteceu, não porque a conduta do Recorrido fosse irrelevante e inócua para o grupo de trabalho da Recorrente, mas antes, e isso sim!, porque ‘O director desportivo da ré, o enfermeiro ao serviço da ré e o treinador adjunto da equipa de futebol da ré – que presenciaram a agressão (FACTO Nº 15) – lavraram e entregaram à direcção da ré a participação que consta de fls. 78 dos autos’ (FACTO Nº 16) e porque de imediato ‘a ré suspendeu preventivamente o autor até à conclusão do procedimento disciplinar que lhe instaurou por ter considerado que a presença do autor no grupo de trabalho se mostrava inconveniente para o bom andamento do processo, que era essa a melhor forma de salvaguardar a disciplina no seio da sua equipa de futebol e de, assim, não deixar alastrar actos que poderiam colocar em causa o objectivo prosseguido pela ré – a subida à divisão principal (Superliga) da sua equipa de futebol’ (FACTO Nº 18).
9º – Um quarto aspecto a considerar tem a ver com a prática disciplinar da empresa (clube) à luz do disposto no artº. 396º, nº 2, do Código de Trabalho.
Releva aqui o Facto nº 19, ou seja, no decurso da época desportiva de 2004/2005 por causa de um mero confronto verbal entre dois jogadores (RR e GG) o clube empregador puniu-os com a pena de multa e não convocação para o jogo seguinte (suspensão!).
Este o quadro disciplinar na ‘empresa’ Recorrente, conhecido de todos os ‘trabalhadores’ – jogadores.
Que dizer então da mais grave infracção disciplinar – a agressão física? Ainda por cima perpetrada fora da competição, num simples exercício de treino, e visando um colega de equipa!
10º – Importa ainda considerar o comportamento anterior do jogador/trabalhador e do clube/empregador no quadro da concreta relação jus laboral decorrente do contrato de trabalho desportivo celebrado entre Recorrido e Recorrente.
Em Outubro de 2004, dois meses apenas após a outorga do contrato dos autos!, o jogador Recorrido solicitou a sua desvinculação contratual da ré o que esta não aceitou – citámos o Facto 28.
Em 5 de Março de 2005, (6) seis meses e 13 dias, apenas!, depois da outorga do contrato dos autos!, e (4) quatro meses e 5 dias, apenas!, após ter solicitado a desvinculação contratual não aceite pelo clube, o jogador Recorrido agride um colega de equipa, numa vulgar, normal e corrente sessão de treino!
O jogador recorrido, face à recusa do clube, provoca a ruptura contratual com a subversão disciplinar (agressão a colega num simples e corrente exercício de treino do dia a dia da equipa)!
O Clube Recorrente não cede e exerce, tempestiva e oportunamente, a acção disciplinar, preservando a coesão da equipa profissional de futebol que, assim!, não abana e concretiza o objectivo da subida de divisão.
11º – De tudo resulta, como muito bem registou o Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer de fls. ... ‘que o A. ao agredir um seu companheiro de trabalho com um pontapé (nº 13 dos factos assentes) infringiu os deveres elencados no artº. 13º al. e) da Lei nº 28/98 121 nº 1 do CT e 13, al. e) do CCT e tal conduta configura a causa de despedimento prevista no artº. 396º nº 3 al. i) do CT e 42 al. e) do CCT. E tal conduta, igualmente consubstanciadora de um ilícito penal (vd. artº. 143º do C.T.) é objectivamente grave, tanto mais que a qualidade de trabalhador desportivo da Ré, atenta a actividade desta e o objecto do contrato, pressupõe uma cooperação e bom entendimento entre todos os trabalhadores desportivos’.
E conclui: ‘face ao exposto, ressalvando o devido respeito por entendimento divergente, não vemos como poderá impor-se à Ré a manutenção do vínculo laboral com um trabalhador depois de este agredir um colega de trabalho com um pontapé pois tal comportamento afecta profundamente os princípios da ética desportiva e de disciplina em que assenta e radica uma organização desportiva, tendo-se respeitado, com a sanção disciplinar aplicada, o princípio da proporcionalidade a que se reportam os artº.s 17º nº 5 da Lei nº 28/98 e 367º este do Código do Trabalho.
12º – A sanção do despedimento do jogador AA pela Recorrente é assim compreensível no quadro específico do contrato de trabalho desportivo, no quadro de um contrato de trabalho de 10 meses, no quadro da conduta anterior do jogador (quis sair em Outubro!) e do clube (recusou a saída) e proporcional à prática disciplinar anterior e adequada à gravidade da conduta do jogador (agressão a colega fora da competição num simples exercício de treino) e à repercussão que poderia ter no seio da equipa de futebol.
13º – O comportamento culposo do jogador que viola grave e profundamente os princípios da ética desportiva e da disciplina, que é possível de sanção criminal, por esta gravidade e suas consequências numa equipa de futebol profissional, tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, constituiu justa causa de despedimento.
14º – O acórdão recorrido decidindo diversamente violou entre outros o disposto nos artº'.s 13º, 17º e 26º da Lei nº 28/98, 15º, 39º e 42º do CCT e 367º e 396º do Código do Trabalho.

Respondeu o autor à alegação da ré, defendendo o acerto da decisão impugnada.

A Ex.ma Magistrada do Ministério Público neste Supremo emitiu «parecer» no qual propugnou pela procedência da revista.

Notificado esse «parecer» às partes, somente o autor veio a pronunciar-se sobre ele, continuando a sustentar a manutenção da decisão recorrida.

Corridos os «vistos», cumpre decidir.

II


1. Vem, pelas instâncias, dado por assente o seguinte quadro fáctico, a que este Supremo, por aqui se não colocar qualquer das situações referidas no nº 2 do artº 722º do Código de Processo Civil, se tem de ater: –
– a) a ré é uma colectividade desportiva que disputou, na época de 2004/2005, o campeonato nacional de futebol da Liga de Honra da Liga Portuguesa de Futebol;
– b) em 23 de Agosto de 2004, mas com efeitos reportados a 1 daqueles mês a ano, o autor foi contratado pela ré para, em representação dela, sob a sua autoridade e direcção, e mediante remuneração a pagar por ela, prestar com regularidade a actividade de futebolista profissional no clube da ré, até ao dia 30 de Junho de 2005, ou seja, durante a época futebolística de 2004/2005;
– c) a ré e o autor acordaram em que a primeira pagaria ao segundo a remuneração líquida de € 34.200, em nove prestações mensais, com início em 1 de Setembro de 2004 e termo em 31 de Maio de 2005, sendo que naquela quantia estava já englobado o subsídio de Natal e de férias;
– d) apesar de no contrato escrito outorgado pela ré e pelo autor constar que na quantia referida o ponto 3. dos factos provados [agora item c)] estava englobado um subsídio de alojamento que a ré aceitou pagar ao autor, no valor de € 300 mensais, de Setembro de 2004 a Maio de 2005, o certo é que a ré e o autor acordaram, depois, em que esse subsídio acrescia à mencionada quantia e a cada uma das nove prestações em que a mesma se desdobrava;
– e) também acordaram em que a ré pagaria ao autor a quantia de € 10.000, caso o clube de futebol profissional da ré ascendesse à Superliga durante o período de vigência do contrato, ou seja, no decorrer da época futebolística de 2004/2005;
– f) desde 23 de Agosto de 2004 e até 5 de Março de 2005, o autor sempre desempenhou com zelo e dedicação as suas funções de jogador da equipa de futebol profissional da ré, tendo sido regularmente convocado para os jogos de futebol em que essa equipa participou;
– g) com fundamento em agressões físicas alegadamente protagonizadas pelo autor durante um treino de futebol, no dia 5 de Março de 2005, e que teriam tido por vítima um outro jogador de futebol da ré (BB), esta suspendeu disciplinarmente o autor a partir de daquela data;
– h) com fundamento nessas mesmas agressões, a ré instaurou ao autor procedimento disciplinar, nos termos que melhor se encontram documentados a fls. 75 e 76 dos autos, as quais aqui se dão por integralmente reproduzidas;
– i) no âmbito desse procedimento, com data de 8 de Março de 2005, a ré remeteu ao autor, que a recebeu, a nota de culpa que melhor está documentada a fls. 85 e 86 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas;
– j) a essa nota de culpa respondeu o autor, nos termos que melhor estão documentados a fls. 89 e 90 dos autos, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidas;
– k) no termo desse procedimento, em 12 de Abril de 2005, a ré decidiu proceder ao despedimento imediato e com justa causa do autor, com fundamento nos factos de que o autor tinha sido acusado na nota de culpa acima mencionada, decisão essa que foi comunicada ao autor por carta de 14 de Abril de 2005, que a ré remeteu ao autor e que este recebeu;
– l) no dia 5 de Março de 2005, no decorrer de uma jogada integrada num exercício de treino da equipa de futebol profissional da ré, o autor e um outro jogador da ré (BB) chocaram um contra o outro e caíram ao relvado, sendo que o jogador BB fazia parte da equipa de treino contrária à equipa de treino que o autor integrava;
– m) por considerar que o envolvimento do jogador BB nessa jogada tinha sido desleal para consigo, o autor ficou exaltado e, numa altura em que os dois ainda estavam caídos no relvado, o autor agrediu o seu companheiro BB com um pontapé;
– n) de seguida, o autor e o jogador BB agarraram-se reciprocamente, após o que foram separados por outros colegas de equipa;
– o) os factos descritos nos pontos 12°) a 14°) dos factos provados [agora items l), m) e n)] foram presenciados por todos os jogadores da ré que estavam a treinar, pelos treinadores principal e adjunto, pelo enfermeiro ao serviço da ré e pelo director desportivo desta;
– p) o director desportivo da ré, o enfermeiro ao serviço da ré e o treinador adjunto da equipa de futebol profissional da ré lavraram e entregaram à direcção desta a participação que consta de fls. 78 dos autos, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, tendo, no âmbito do procedimento disciplinar instaurado ao autor, prestado as declarações que estão documentadas a fls. 81 a 83 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas;
– q) o recurso à agressão física por parte de um jogador de futebol relativamente a outros jogadores dessa mesma equipa constitui comportamento que não se coaduna com as funções próprias de um jogador profissional de futebol e respectivos deveres, podendo, em determinadas circunstâncias, perturbar o salutar relacionamento entre os membros de um grupo de trabalho de jogadores profissionais de futebol, sujeitos à disciplina do clube e dos seus treinadores, no decurso dos estágios e dos treinos;
– r) a ré suspendeu preventivamente o autor até à conclusão do procedimento disciplinar que lhe instaurou por ter considerado que a presença do autor no grupo de trabalho se mostrava inconveniente para o bom andamento do processo, que era essa a melhor forma de salvaguardar a disciplina no seio da sua equipa de futebol e de, assim, não deixar alastrar actos que poderiam colocar em causa o objectivo prosseguido pela ré – a «subida» à divisão principal (Superliga) da sua equipa de futebol;
– s) no decurso da época futebolística de 2004/2005, os jogadores de futebol da ré, RR e GG, envolveram-se em confronto verbal, tendo por isso sido sancionados com multa, sem lhes ter sido instaurado qualquer procedimento disciplinar, para lá de que não foram convocados para o jogo imediatamente seguinte ao dia em que esse confronto verbal ocorreu;
– t) o jogador BB não apresentou qualquer queixa contra o autor pelo facto de este o ter agredido em 5 de Março de 2005;
– u) para lá da dor física que a agressão de que foi vítima em 5 de Março de 2005 lhe causou, o jogador BB não sofreu quaisquer outras consequências pessoais por causa dessa agressão;
– v) a equipa de futebol profissional da ré não sofreu qualquer consequência pelo facto do autor ter agredido o jogador BB em 5 de Março de 2005;
– w) têm sido noticiadas algumas agressões físicas entre jogadores de futebol da mesma equipa de futebol, seja da Super Liga de Portugal, seja de outras ligas europeias, designadamente em Inglaterra, onde dois jogadores do Newcastle se agrediram reciprocamente em pleno decurso de um jogo de futebol;
– x) na sequência dos factos relatados nos pontos 12. a 14. dos factos provados [agora items l), m) e n)], a ré não instaurou qualquer procedimento disciplinar contra o jogador BB;
– y) por conta da remuneração referente ao mês de Abril, a ré apenas pagou ao autor a quantia de € 1.967;
– z) o autor esteve impossibilitado de treinar desde 5 de Março de 2005 até 18 de Abril de 2005, data em que recebeu a carta da ré que lhe comunicava o despedimento, período em que também esteve impedido de jogar;
– aa) no final da época 2004/2005, a equipa de futebol profissional da ré ascendeu à Superliga, sendo que, pelo facto de entretanto ter sido despedido pela ré, o autor ficou impossibilitado de celebrar esse feito com aqueles que até 5 de Março de 2005 foram seus colegas de trabalho, equipa técnica e direcção;
– bb) o autor solicitou, em Outubro de 2004, a sua desvinculação contratual da ré, o que esta não aceitou.


2. A única questão colocada na vertente revista prende-se em saber se o despedimento levado a efeito pela ré deve, ou não, ser considerado como suportado em justa causa.

E, assim enfocando o problema, o acórdão sob censura discorreu como segue: –

“(…)
Decorre do exposto que a questão que importa resolver se pode equacionar da seguinte forma: existência ou não de justa causa para o despedimento face aos factos apurados.
A sentença da 1ª instância pronunciou-se pela inexistência de justa causa para o despedimento.
Vejamos:
Estamos, sem dúvida, perante um contrato de trabalho desportivo, cujo regime jurídico se encontra definido pela Lei nº 28/98, de 26/06.
Nos aspectos não regulados no referido diploma, aplicam-se subsidiariamente as regras constantes do Código do Trabalho (art.º 3.º, da Lei nº 28/98).
Bem como o CCT celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, publicado no BTE nº 33, de 08/09/1999, tal como resulta do próprio contrato escrito, outorgado pelas partes (v. fls 16 dos autos).
Contrato de trabalho desportivo é aquele pelo qual o praticante desportivo se obriga, mediante retribuição, a prestar actividade desportiva a uma pessoa singular ou colectiva que promova ou participe em actividades desportivas, sob a autoridade e direcção desta (artº 2º, al. a), da Lei nº 28/98). Sendo que, no caso, o contrato de trabalho desportivo foi celebrado com o autor enquanto ‘praticante desportivo profissional”, tal como tal conceito definido no artº 2º, al. b), da Lei nº 28/98.
Nos termos do artº 26º da mesma Lei, uma das formas de cessação do contrato de trabalho desportivo é o ‘despedimento com justa causa promovido pela entidade empregadora desportiva’. Despedimento que, como sanção disciplinar, tem de ser precedido de procedimento disciplinar (artº 17º nº 4) e deve ser proporcionado à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor (artº 17º nº 4).
A promoção indevida do despedimento pela entidade empregadora tem como consequência que esta incorra em responsabilidade civil pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato, não podendo a indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato tivesse cessado no seu termo (27º nº 1).
A Lei nº 28/98 não nos dá o conceito de justa causa de despedimento.
Importa, pois, recorrer ao Código do Trabalho, de aplicação subsidiária.
Nos termos do artigo 396º, n.º 1 do Código do Trabalho, ‘o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, constitui justa causa de despedimento’.
Importa, assim, averiguar de três elementos fundamentais: se o comportamento imputado ao trabalhador é culposo (elemento subjectivo); se ocorre uma situação de impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho (elemento objectivo); se ocorre uma relação causal (nexo de causalidade) entre aquele comportamento e aquela situação de impossibilidade.
Mais ainda: para apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes (nº 2 do citado artº 396º). Sempre de acordo com um princípio quadro, estabelecido no artigo 367º do Código do Trabalho e no artigo 17º nº 4 da Lei 28/98: o princípio da proporcionalidade, ou seja, a sanção deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor.
Sendo este o quadro legal de referência, vejamos se os factos apurados podem justificar o despedimento.
Na sentença da 1ª instância foi recortado como facto ilícito praticado pelo autor a agressão física que cometeu sobre o jogador e seu colega de trabalho.
Efectivamente, provou-se que (facto 13.) no decorrer de uma jogada integrada num exercício de treino da equipa de futebol profissional da ré, o autor agrediu o seu companheiro BB com um pontapé.
O Sr. juiz considerou que a sanção de despedimento, no caso, era desproporcionada à gravidade da conduta do autor, considerando o seguinte circunstancialismo: que o autor sempre cumpriu, com zelo e diligência, os deveres laborais a que estava sujeito (facto 6.); que a conduta ilícita assumida pelo autor foi absolutamente isolada e fortuita; que essa conduta ilícita foi assumida num quadro de descontrolo psicológico subsequente a uma jogada em que houve contacto físico com o jogador BB, por causa do qual ele e o autor acabaram por cair ao relvado (factos 12. e 13.); que a conduta ilícita que o autor assumiu, embora o pudesse ter tido, não teve qualquer reflexo negativo no grupo de trabalho em que ele se integrava, na disciplina devida por esse grupo à direcção da ré, e na consecução do objectivo final que esse grupo de propunha alcançar (factos 17., 22. e 27.); que a mesma conduta não teve qualquer consequência negativa de relevo na pessoa daquele que por ela foi visado (facto 21.); que a actividade profissional a que o autor e o jogador BB se dedicavam envolve, muitas vezes, o contacto físico entre jogadores, não raras vezes com contornos bem mais graves do que aquele que se registou no caso em apreço.
Não podemos deixar de sufragar a motivação da sentença.
O nº 3 al. i) do art. 396º do Código do Trabalho concretiza, como comportamento do trabalhador que poderá constituir justa causa de despedimento, a ‘prática, no âmbito da empresa, de violências físicas, de injúrias ou outras ofensas punidas por lei sobre trabalhadores da empresa, elementos dos corpos sociais ou sobre o empregador individual não pertencente aos mesmos órgãos, seus delegados ou representantes’.
O mesmo refere o artigo 42º al. e) do CCT: ‘prática de violências físicas, de injúrias ou outras ofensas à honra e dignidade da entidade patronal, dos superiores hierárquicos, dos companheiros de trabalho e das demais pessoas que, pelas suas funções, estejam relacionadas com a actividade exercida’.
Temos que, certamente, o autor violou um dever geral de respeito e urbanidade previsto no artigo 121º nº 1 al. b) do Código do Trabalho (para com um companheiro de trabalho) e um dever especial do praticante desportivo, de conformação no exercício da actividade desportiva com ‘as regras próprias da disciplina e da ética desportivas’ previsto no 13º al. e) da Lei nº 28/98 – também previstos no artº 13º, al. a) e e) do CCT.
Embora, nada nos indique exactamente na matéria de facto que, como se refere na sentença, a conduta do autor foi assumida num quadro de descontrolo psicológico subsequente a uma jogada em que houve contacto físico com o jogador BB, a verdade é que, pelo menos, há evidência de alteração psicológica momentânea – a seguir ao contacto físico, (facto 13.), ‘por considerar que o envolvimento do jogador BB nessa jogada tinha sido desleal para consigo, o autor ficou exaltado e, numa altura em que os dois ainda estavam caídos no relvado, o autor agrediu o seu companheiro BB com um pontapé’. Alteração psicológica a que se seguiu a atitude de desforço.
Podemos aceitar que a agressão física de um colega de trabalho é funcionalmente apta a prejudicar todo o funcionamento da equipa e deve especialmente ser evitada pelos desportistas.
Mas é verdade que num desporto como o futebol, de confronto e emoção, as lesões físicas se sucedem pela relação com outros jogadores. Embora um desportista, sobretudo profissional, tenha obrigação de controlar as suas emoções. Como se refere na sentença recorrida ‘a actividade profissional a que o autor e o jogador BB se dedicavam envolve, muitas vezes, o contacto físico entre jogadores, não raras vezes com contornos bem mais graves do que aquele que se registou no caso em apreço’. O que permite contextualizar a conduta, num quadro de culpa mais atenuado, não obstante a exigência ética, disciplinar e funcional (no âmbito de um dever prático de cooperação e bom entendimento entre todos os trabalhadores desportivos, como refere o Sr. Procurador Geral Adjunto, no seu parecer) que deve haver para que tal não possa ocorrer.
A conduta em causa é objectivamente ilícita e culposa.
Mas, na sua materialidade, pode ser integradora de justa causa para despedimento?
O despedimento, como sanção expulsória, é uma medida extrema e deve ser proporcional à gravidade da situação sancionada, quer no plano da ilicitude, quer no plano da culpa.
No que toca à avaliação dos danos à actividade desenvolvida pela ré, não é possível extrair totalmente da matéria de facto a certeza de que não houve danos para a ‘empresa’ ré. Os factos 21. e 22. (consequências pessoais para o agredido e consequências para a equipa de futebol) podem, no contexto assinalado, ser colocados em dúvida perante uma actuação disciplinar rápida e clara, a qual pode repor o espírito de equipa e de disciplina que, de outro modo, sofreria danos mais ou menos extensos. Mas não podemos afirmar, perante os factos provados, que foi graças a essa atitude disciplinar que não houve consequências para a equipa, da infracção.
É certo que a atitude disciplinar deve ser ponderada para a compreensão do quadro disciplinar de actuação da ré (396º nº 2 do Código do Trabalho). O nível de exigência do quadro disciplinar da ré tem de ser considerado, também, pela nota dada pelo facto 19., o qual revela que a ré, na mesma época, perante um mero confronto verbal entre dois jogadores da equipa, reagiu disciplinarmente, sancionando-os com multa e não os convocando para o jogo seguinte.
Mas [a] exigência de proporcionalidade da sanção, implica que, no caso de despedimento, a infracção, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (396 nº1 do Código do Trabalho). O que diferencia a justa causa subjectiva das restantes previstas na lei para o despedimento (estamos aqui no âmbito de despedimento por facto imputável ao trabalhador) é essa imediata impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho em face do quadro de incumprimento do trabalhador. É necessário que o quadro do incumprimento (não se trata de uma situação de impossibilidade material, mas sim de uma situação de inexigibilidade jurídica) revele a inviabilidade da relação laboral. E, como a doutrina e a jurisprudência vêm afirmando, a inexigibilidade de manutenção da relação laboral ocorre quando seja de concluir que deixaram de existir as condições mínimas para sustentar uma vinculação duradoura que obriga a intensos contactos funcionais entre as partes; quando não seja razoável exigir do empregador a subsistência da relação, designadamente por ter sido intoleravelmente quebrada a confiança; quando seja de concluir que as sanções conservatórias são insuficientes para sanar a crise contratual e repor a normalidade funcional.
Pode-se, atendendo ao histórico da relação contratual, observar que a ré pretendia contar com a colaboração do autor, tendo negado uma proposta de desvinculação que este lhe tinha feito cerca de três meses antes (facto 28.).
Perante uma só infracção, num contexto emocional já recortado e sem consequências graves visíveis, é normal concluir pela quebra de confiança da ré no desempenho futuro do autor?
Não parece normal.
Um ‘empregador médio’, colocado na posição da ré, não reagiria da mesma forma. A aplicação da sanção máxima de despedimento não é compreensível e proporcional.
Pelo que entendemos que o juízo da 1ª instância é o adequado.
(…)”


3. Subscrevem-se, na sua essencialidade, as considerações que foram tecidas no aresto em crise.

Na verdade, num primeiro passo, não se suscitam dúvidas que o negócio jurídico celebrado entre o autor e a associação ré e a que se reporta a factualidade supra enunciada em II 1. b) e c), deve ser subsumido na noção de contrato de trabalho desportivo a que alude a definição ínsita na alínea a) do artº 2º da Lei nº 29/98, de 26 de Junho, do qual, inter alia e para o que agora releva, emerge, para o praticante desportivo [na definição constante da alínea b) daquele mesmo artigo], o dever específico – porque expressamente consagrado naquele diploma [cfr. alínea e) do seu artº 13º] – de conformação, no exercício da actividade desportiva, com as regras próprias da actividade desportiva.

Nessa sorte de contratos laborais, sem prejuízo do disposto em convenção colectiva, a entidade empregadora desportiva [que é aquela a que se reporta a alínea d) do já citado artº 2º, que se conjugará com os artigos 22º a 25º] pode aplicar ao trabalhador, pela comissão de infracções, as sanções de repreensão, repreensão registada, multa, suspensão do trabalho com perda de retribuição e despedimento com justa causa – cfr. artº 17º, nº 1 –, sendo que a sanção disciplinar deve ser proporcionada à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor – cfr. nº 5 do antedito artº 17º.

Sufraga-se o raciocínio tomado no acórdão recorrido no que respeita a entender que, não constando da Lei nº 28/98 a noção de «justa causa», e tendo em atenção a temporalidade da prática dos factos que interessam quanto à infracção disciplinar de que curamos, deve ser feito apelo, para aquisição desse conceito, ao que se encontra estipulado no vigente Código do Trabalho (cfr. a remessa que no artº 3º daquela Lei é feita para as regras aplicáveis ao contrato de trabalho), razão pela qual se deverá tomar em consideração o que, neste corpo normativo, vem prescrito no seu artº 396º.


3.1. No nº 1 do artigo por último aludido, comanda-se que o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho constitui justa causa de despedimento. Por seu turno, rege o nº 2 que para apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes e o trabalhador e o seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.

Atenta a noção de justa causa de despedimento que se extrai do mencionado nº 1 do artº 396º, tem sido, sem divergência doutrinal ou jurisprudencial, defendido que ela exige a cumulação dos requisitos consubstanciados, por um lado, numa actuação ou comportamento ilícitos do trabalhador – actuação ou comportamento esses, imputáveis ao trabalhador e violadores dos seus deveres de conduta ou dos valores inerentes à disciplina laboral, sendo que se exige um grau de acentuada gravidade, quer reportado a esses comportamento e actuação, quer referente às respectivas consequências; por outro, que, em razão de uma tal actuação, se torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho; e, por último que exista um nexo de causalidade entre a actuação do trabalhador e a situação de impossibilidade na manutenção do vínculo laboral.

Relativamente ao segundo dos referidos requisitos, tem, igualmente sem assinaláveis discrepâncias, sido assinalado que a impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação laboral se alcança quando, em consequência da actuação do trabalhador, se crie uma situação de absoluta quebra, por parte da entidade empregadora, da fides que deve iluminar aquela relação, por forma a criar nela um estado de espírito de acordo com o qual a futura conduta do trabalhador, plausivelmente, não se irá desenvolver sob a regência das características de idoneidade e probidade que devem pautar tal relação.

Para um tal alcance, não se deverá, porém, atentar no estado anímico concreto, ou, se se quiser, ao suporte psicológico concreto da entidade empregadora – sabido, como é que tais estado ou suporte podem apresentar, perante idênticos circunstancialismos, as mais díspares reacções –, mas sim recorrer-se a critérios de objectividade e razoabilidade em face de uma prospectiva actuação que, perante a corte de circunstâncias concretas (de entre estas se não passando em claro o quadro da gestão da empresa, a lesão dos seus interesses e a «história» do próprio relacionamento laboral anterior, quer a nível do trabalhador com a empresa, quer a nível do relacionamento dele com os demais companheiros de trabalho), seria de esperar de um empregador «médio» e, também, razoável.

De outra banda, convém anotar que, não esquecendo que o despedimento invocado com justa causa constitui a sanção mais grave que pode ser imposta ao abrigo daquele poder inerente ao empregador que é, precisamente, o seu poder disciplinar, a cessação dessa relação com base naquela sanção só é legítima quando a falta imputável ao trabalhador, e para se usarem as palavras de Monteiro Fernandes (ob. cit. 581), “gere uma situação de imediata impossibilidade de subsistência da relação laboral, ou seja, quando a crise disciplinar determine uma crise contratual irremediável, não havendo espaço para o uso de providência de índole conservatória”, pois que a “graduação das sanções disciplinares deve ser feita de tal modo que, ao menos tendencialmente, a margem de disponibilidade das medidas disciplinares conservatórias se equipare à margem de viabilidade da relação do trabalho (do contrato, portanto). É exigível, por outras palavras, que se não antecipe «artificialmente» a necessidade do despedimento, por recurso a sanções-limites para infracções primárias ou cuja gravidade o não justifique” (cfr., em sentido idêntico, Júlio Manuel Vieira Gomes, in Direito do Trabalho, volume I, Relações Individuais de Trabalho, 947, para quem a “existência de sanções disciplinares menores, que, aliás, foram nascendo e expandindo-se para proporcionar uma alternativa viável em muitos casos ao despedimento, implica que o empregador só pode lançar mão do despedimento quando, em boa fé, não lhe é exigível recorrer a outra sanção, face à gravidade do comportamento e da culpa do trabalhador”)

Aliás, isso mesmo decorre do princípio da proporcionalidade que é postulado pelo artº 367º do Código do Trabalho quanto à aplicação das sanções disciplinares e pelo já citado nº 5 do artº 17º da Lei nº 29/98, especificamente direccionado para as sanções disciplinares a impor aos praticantes desportivos profissionais.


3.2. Será, pois, com base nestes parâmetros e perante a factualidade adquirida nos autos que a questão terá de ser resolvida.

Aduz a associação recorrente que na actividade de um praticante desportivo profissional de futebol, como é o caso do autor, haverá que ponderar o resultado do trabalho da equipa em que ele se encontra integrado, trabalho esse que visa, em suma, a vitória numa competição, motivo pela qual é de exigir uma rigorosa disciplina na equipa, um adequado relacionamento entre os seus membros e um estrito acatamento das ordens dos superiores hierárquicos – treinadores, por exemplo –, por forma a se não comprometer o almejado resultado.

Não se põe em dúvida que isso assim seja.

Porém, essa realidade não poderá, só por si, «apagar» toda a corte de circunstâncias que envolveram o cometimento objectivo da infracção disciplinar e, do mesmo passo, olvidar as regras da proporcionalidade que devem presidir ao exercício do poder disciplinar, sob pena de se cair num automatismo sancionatório decorrente, tão só, da verificação objectiva daquele cometimento.

Também não releva acentuadamente – e quiçá, aponta em sentido diverso – o facto de os contratos laborais como o dos autos, em normalidade, não apresentarem uma tão vincada vocação de perpetuidade.

De facto, a circunstância de esses negócios jurídicos, quantas vezes, só terem duração por uma ou por algumas, poucas, épocas «ditas desportivas», até pode constituir um factor de ponderação quanto à aplicação da mais grave sanção disciplinar, presente que seja a consideração de que os praticantes desportivos profissionais, dadas as especiais características do desempenho das suas funções, desfrutam de uma menor «segurança» no trabalho do que outros trabalhadores.

Por outro lado, a panóplia sancionatória de que, legalmente, estão providas as entidades empregadoras desportivas, não é tão minguada de sorte a levar à conclusão que, perante actuações como a dos autos, só lhes restaria a alternativa de «passar» em claro a infracção ou a sancionar com a desvinculação.

Identicamente, na óptica seguida por este Supremo, o facto de se tratar de um treino e de a ocorrência ter surgido entre o autor e um outro jogador da sua própria equipa, não constitui uma faceta altamente depoente em desfavor do infractor. Na realidade, não se deve, neste ponto, escamotear que, se semelhante ocorrência se deparasse no seio de uma competição oficial, e perante um jogador de uma outra equipa, ao menos em sede de plausibilidade, era possível que os organismos oficiais viessem a sancionar o autor, o que, nessa mesma sede, poderia comportar sanções que, eventualmente, teriam reflexo na própria entidade recorrente.

Ora, a matéria fáctica demonstrada, no tocante ao comportamento do autor, aponta para que, na vigência do contrato, com uma duração de dez meses: –
– desde 23 de Agosto de 2004 a 5 de Março de 2005, o autor sempre desempenhou com zelo e dedicação as suas funções de jogador;
– no dia referente àquela última data, no decorrer de uma jogada integrada num exercício de treino da equipa de futebol profissional da recorrente, o autor e um outro jogador desta, que fazia parte da equipa de treino contrária, chocaram um com o outro e caíram no relvado;
- o autor, por considerar que o envolvimento daquele outro jogador tinha sido desleal para consigo, ficou exaltado e, estando os dois ainda caídos no relvado, agrediu-o com um pontapé;
– o autor e o outro jogador, de seguida, agarraram-se reciprocamente, após o que vieram a ser separados por outros colegas de equipa;
– os três últimos factos foram presenciados por todos os jogadores da ré que se encontravam a treinar, pelos treinadores principal e adjunto, pelo director da ré e pelo enfermeiro de serviço;
– o jogador que esteve envolvido com o autor não sofreu quaisquer consequências pessoais para além da dor física resultante do pontapé e não apresentou qualquer queixa contra o mesmo autor;
– não resultaram quaisquer consequências para a equipa profissional de futebol da ré no seguimento daqueles factos.

Convém-se que a actuação do autor consubstancia a prática de uma infracção ao dever que lhe é imposto pela já referida alínea e) do artº 13º da Lei nº 28/98.

A questão, todavia, é a de saber se, pesando aquilo de que acima se deu nota, no sentido de não poder proceder um raciocínio segundo o qual da prática de uma infracção não poderá, sem mais, e por mero automatismo, resultar a imposição de uma dada sanção – e muito menos se esta for a de maior gravidade –, o envolvimento global da dita actuação do autor justifica a medida disciplinar que lhe foi imposta.

Neste particular, anuímos ao juízo decisório que se contém no acórdão recorrido.

Efectivamente, outras medidas disciplinares que não a mais severa se perfilavam como detendo um suficiente grau de censura e de prevenção, de modo a criar no autor um sentimento de que, na sua actuação futura, se não deveria comportar de modo semelhante ao que prosseguiu.

Vale por dizer que a sanção de despedimento aplicada pela ré foi desadequada em relação à conduta infraccional do autor. E, sendo o despedimento ancorado nessa não adequada punição, não é essa forma de cessação da vinculação laboral de ser tida como baseada em justa causa.

III


Em face do que se deixa dito, nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 18 de Junho de 2008

Bravo Serra (Relator)
Mário Pereira
Sousa Peixoto