ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
POSSE
USUCAPIÃO
IGREJA
INDIVISIBILIDADE
Sumário


I - A nossa lei adoptou a concepção subjectivista da posse, sendo que só a posse em sentido estrito - já não a posse precária ou mera detenção - é susceptível de conduzir à aquisição de uma coisa por usucapião.
II - Para se adquirir por usucapião o direito de propriedade ou outro direito real de gozo sobre coisa determinada, necessário se torna que sejam praticados actos eivados daquela intenção - animus possidendi -, não bastando a prática reiterada de actos materiais correspondentes ao conteúdo do direito - corpus possessório.
III - Tendo a Ré, Fábrica da Igreja, ora recorrente, exercido actos de posse sobre a capela edificada em parte do terreno reivindicado, conducentes ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a mesma - aquisição originária, na modalidade da usucapião -, tal facto conduzirá, por si só, e independentemente dos provados actos de posse sobre a parte do terreno adjacente aqui denominado por “adro”, a que se considere ser a Ré proprietária do prédio urbano constituído por “capela e adro”.
IV - Com efeito, para que uma “coisa” possa ser tida como divisível, necessário se torna que estejam reunidos os requisitos do art. 209.º do CC.
V - Ora, nada tendo sido alegado (e muito menos provado) sobre a divisibilidade do prédio urbano, a propriedade, por força do instituto da usucapião, consolidou-se em relação ao todo.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – No Tribunal Judicial da comarca de Resende, Companhia das Águas das Caldas de AA, S.A. (antes Sotermal – Sociedade Turística e Termal, S.A.), em acção com processo ordinário, intentada contra Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de Miomães e Câmara Municipal de Resende (corrigindo-se depois para Município de Resende), pediu que, com a procedência da acção:
“a) Seja reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre a capela e terreno adjacente, objecto de justificação notarial pela 1ª Ré, como parte integrante do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Resende sob o nº 00096;
b) Seja declarado que a Autora, por si e antecessoras, adquiriu por usucapião a propriedade sobre a capela e terreno adjacente, alegadamente considerado adro, condenando-se os RR. a reconhecê-lo (este pedido resultou de ampliação na réplica, que foi admitida);
c) Seja declarada nula ou sem efeito a escritura pública de justificação notarial outorgada pelos representantes da 1ª Ré e restantes outorgantes, em 25.09.2000, no Cartório Notarial de Resende, e exarada a folhas 13 a 14 verso do Livro de Notas nº 305-A daquele cartório, nos termos do qual justificaram notarialmente o direito de propriedade sobre o prédio urbano composto por capela de rés do chão amplo e adro, situada no lugar de Caldas de AA, com a superfície coberta de 110 m2 e descoberta de 1394 m2, inscrito na matriz sob o artº 387º;
d) Seja ordenado o cancelamento do registo predial efectuado em consequência da referida escritura pública, que deu origem à descrição nº 00252/051200, da Conservatória do Registo Predial de Resende;
e) Sejam as Rés condenadas a abster-se de praticar quaisquer actos susceptíveis de ofender o direito de propriedade da Autora”.

Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, que, em 04.06.1997, adquiriu, por arrematação em hasta pública, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Resende sob o nº 00096, da freguesia de Miomães, tornando-se proprietária do terreno a que se reporta a descrição, incluindo balneário e capela.
Por si e antecessores, exerceu actos próprios de proprietária do terreno, na convicção de o ser.
A capela sempre esteve integrada no complexo termal e os utilizadores e funcionários do balneário sempre circularam por toda a extensão do terreno sem qualquer limitação ou entrave – funcionava como capela privada para aquistas e hóspedes. Também sempre estiveram a cargo dos antepossuidores da Autora as obras de reparação da capela e o fornecimento de energia eléctrica. Sem prejuízo, refere que o culto religioso foi ali aberto a quaisquer populares, mas com a permissão da Autora e antepossuidores.
A 1ª Ré celebrou, em 25.09.2000, uma escritura de justificação notarial e, com base nela, procedeu ao registo da capela, a que fez acrescer um adro, tendo, após, exigido da 2ª Ré obras de restauro dessa mesma capela – declarou gozar da posse da capela e adro, por forma pacífica, continuada e pública, desde há mais de vinte anos, o que sabia ser falso, tal como falsa a invocação de que o prédio justificado não se encontrava descrito na Conservatória do Registo Predial.

Na sua contestação, a 1ª Ré pugnou pela improcedência da acção, alegando, resumidamente, o seguinte:
Pelas descrições prediais mais antigas se comprova que a capela e adro em discussão nos autos nunca integraram o prédio agora da Autora, tendo a capela e espaço envolvente apenas sido incluídos nas ditas descrições a partir de 1946, o que foi feito à revelia da 1ª Ré.
O prédio adjudicado à Autora também não engloba na sua descrição a capela.
A 1ª Ré adquiriu a propriedade do referido imóvel, englobando capela e adro, por usucapião, que invoca.

Em reconvenção, pede que se declare que a primeira Ré adquiriu por usucapião a propriedade do prédio identificado nos artigos 68º e seguintes, condenando-se a Autora a reconhecê-lo (deduziu ainda um outro pedido, do qual viria a desistir).

Por sua vez, a Ré Câmara Municipal de Resende defendeu-se por excepção, arguindo haver da sua parte “falta de personalidade e de capacidade judiciária”, tendo em conta ser apenas o órgão executivo da pessoa colectiva “Município de Resende”, e por impugnação, defendendo a improcedência da acção.

Houve réplica e tréplica.

A Autora deduziu o incidente de intervenção principal do Município de Resende, o que foi indeferido, por se entender que, realmente, a acção é dirigida contra o Município de Resende, pelo que “a questão da falta de personalidade judiciária sempre seria uma falsa questão”.

A final, foi proferida sentença, onde, na procedência parcial da acção e da reconvenção, se decidiu:
“1º - Absolver os Réus do pedido de reconhecimento da autora como proprietária da capela e do terreno adjacente que foram objecto da escritura de justificação celebrada pela 1ª ré em 25/09/2000 (no Cartório Notarial de Resende).
2º - Declarar, ainda assim, tal escritura de justificação parcialmente nula e inválida na parte atinente ao dito terreno adjacente (mantendo-se válida na parte restante, ou seja, quanto à capela).
3º - Ordenar o cancelamento parcial do registo que a ré Fábrica da Igreja efectuou a seu favor (descrição nº 00252/051200), na parte relativa ao terreno adjacente (ou adro).
4º - Absolver os réus dos demais pedidos formulados pela autora (incluindo o que deduziu, em ampliação, na réplica).
5º - Condenar a autora a reconhecer a ré Fábrica da Igreja como proprietária da indicada capela com a superfície coberta de 110 m2, por ter adquirido tal direito por usucapião.
6º - Absolver a autora do restante pedido reconvencional”.

Após recursos da Autora e da Ré Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de Miomães, foi, no Tribunal da Relação do Porto, proferido acórdão, a julgar improcedentes, por não provados, os interpostos recursos de apelação e, consequentemente, a confirmar a sentença recorrida.

Ainda inconformados, vieram a Autora e a referida Ré (esta subordinadamente) interpor recurso de revista do acórdão proferido, tendo ambos os recursos sido admitidos.

Ambas as recorrentes apresentaram alegações, formulando as respectivas conclusões, tendo a Autora contra-alegado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - São os seguintes os factos dados provados no acórdão recorrido:
A – Por escritura de 09.09.1915, a Cª das Águas das Caldas de AA adquiriu os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Resende sob os nºs 9241 e 18223, que a seu favor foram inscritos no registo em 06.04.1918, sob a inscrição nº 3953.
B – O prédio descrito sob o nº 18223 era constituído por “um prédio denominado Galiza, que se compunha de terra lavradia, casa de habitação de caseiro, moinho e respectiva casa e duas hortas, limites de Caldas de AA, freguesia de Miomães, a confrontar no seu todo pelo Nascente com a estrada e adro da Capela de Stª Mª Madalena, com herdeiros de D. AS e os de JM, Poente com MM e CM, Norte com o ribeiro e Sul com a estrada”.
C – Com o averbamento nº 3 daquela descrição, passou a constar “pelos documentos mencionados … verifiquei que o prédio nº 18223, conjuntamente com o prédio nº 9241, formam hoje o Grande Hotel do Parque, da Cª das Águas das Caldas de AA – Soc. Anónima de Responsabilidade Limitada, e que vai ser descrito no Livro B-72, sob o nº 27.514”.
D – O prédio descrito sob o nº 9241 denominava-se Campo do Barreiro e confrontava a Nascente com a levada dos Moinhos de AS – o actual Ribeiro da Cesta.
E – Porque esses dois prédios confrontavam entre si e porque o Campo do Barreiro sofreu alterações com a construção de uma variante à então Estrada Nacional e cedência de terreno para aumentar o Hotel Costa (hoje Douro Park Hotel), situado a Sul daquele campo, a Cª das Águas, em 17.07.1946, reuniu os dois prédios numa descrição actualizada, requerendo para tanto a criação da descrição nº 27514, de onde constava: “um edifício que serve de hotel, com suas dependências, casa do motor, casa de arrumações, capela e jardim, denominado Grande Hotel do Parque”, mencionando nesse requerimento que o prédio a descrever estava inscrito sob os artºs urbanos 202 a 206 da freguesia de Miomães e 374 da freguesia de Anreade.
F – Igual processo aconteceu com o prédio descrito sob o nº 27513, adquirido pela Cª das Águas por escritura de 04.02.1933 e inscrito a seu favor pela inscrição nº 7504.
G – E com o prédio descrito sob o nº 27511, adquirido pela Cª das Águas em 29.09.1943 e inscrito a seu favor pela inscrição nº 7503.
H – Que, por serem confrontantes (confinantes) entre si e neles ter sido construído um novo balneário, foram também reunidos num novo prédio, descrito com o nº 27515, constituído fisicamente pelo edifício que serve de balneário, inscrito na matriz urbana sob o nº 374 da freguesia de Anreade.
I – Por fim, a Cª das Águas reuniu os dois prédios 27514 e 27515, que eram confrontantes entre si, num novo e único prédio, o descrito sob o nº 27518, cujo teor englobou tudo quanto fazia parte daqueles dois prédios, cuja composição era “um prédio que serve de hotel e balneário, com suas dependências, casa de motor, casa de arrumações, capela e jardim, com a denominação de Grande Hotel do Parque e Hotel Portugal, situado no lugar de Caldas de AA, freguesias de Miomães e Anreade, e que confronta “a Nascente com caminho público e avenida em construção, Poente com J... e Federação Nacional dos Produtores de Trigo, Norte com a mesma avenida em construção e D. M... e do Sul com J... e caminho público”, inscrito na matriz sob os artºs urbanos 202 a 206 e 374 da freguesia de Miomães e 1/10 do artº 3º e ¼ do artº 9º da freguesia de Anreade.
J – Em 21.031989, a Cª das Águas das Caldas de AA, S.A., requereu na Repartição de Finanças de Resende inscrição matricial para o terreno urbano resultante da eliminação dos artºs urbanos 202º a 206º, referindo possuir uma área de 15.000 m2, a que foi atribuído o artº 357º.
L – Em 13.071989, foi adquirido pela Famisa – Aglomerados de Madeiras F. Mil Homens, S.A., que era então a concessionária da exploração das águas termais das Caldas de AA, à Cª das Águas das Caldas de AA, “um terreno para construção com a área de 15.000 m2”, aí se esclarecendo que nesse terreno estavam edificados os prédios urbanos 202 a 206 de Miomães e o 374 de Anreade.
M – Em 02.111993, a Famisa requereu a inscrição matricial do construído balneário, dando a superfície coberta de 2.500 m2 e descoberta de 12.500 m2, a que foi atribuído o artº urbano 377, provindo do 357.
N – No prédio referido em L), decidiu a Famisa construir um novo balneário e um novo hotel, para o que tinha que previamente demolir todas as construções existentes no prédio nº 27.518.
O – E consequentemente actualizar as descrições matriciais e prediais de acordo com a nova realidade.
P – Como desapareciam por demolição os prédios urbanos, o prédio passava a ser um terreno para construção, pelo que foi feita a respectiva participação matricial.
Q – Paralelamente, como restava uma construção que não ia ser demolida, o denominado Hotel Portugal, dividiu-se o prédio em dois, dando lugar às descrições 00096 e 130.
R – Ficando o Hotel Portugal a fazer parte da descrição 130 e tudo o restante a fazer parte da descrição 00096/101089, a parte situada a Norte da estrada nacional, este descrito como “terreno para construção do complexo turístico e termal de Caldas de AA, área – 1500 m2, Norte – Rio Douro, Sul – estrada nacional 222, Nascente – Ribeira da Cesta, Poente – Mª T... e irmão (matriz – omisso; desanexado do nº 27.518)”.
S – Estas confrontações compreendem terrenos que sucessivamente fizeram parte das descrições 9241, 18223, 27511, 27513, 27515 e 27518 e que, desde 1918, se encontravam inscritos a favor da Cª das Águas, antecessora da Autora.
T – No mesmo prédio 00096, existem três furos artesianos de captação de água explorada e, em tempos, existiu uma torre de arrefecimento das águas.
U – Em 04.06.1997, a Autora adquiriu, por arrematação em hasta pública, o prédio a que se reporta a descrição 00096 e os bens que nele se encontravam e que dele não estivessem excluídos, aquisição que foi registada no competente registo predial em regime de provisoriedade por dúvidas, registo de aquisição este que caducou em 22.05.2002.
V – Em 1998, o Réu Município de Resende candidatou ao programa Prodouro a construção de um porto fluvial nas Caldas de AA e o arranjo de parte de uma zona de acesso, tendo incluído nessa candidatura o restauro da capela e da zona envolvente.
X – A Autora, quando soube dessa intenção do Município de Resende, de imediato se opôs à realização de quaisquer obras na capela.
Z – Em 25.092000, a Ré Fábrica da Igreja Paroquial da freguesia de Miomães celebrou uma escritura de justificação notarial e, com base nela, registou a capela, a que fez acrescer um adro, a seu favor (fls. 346 a 349).
AA – Após o facto mencionado em Z), o Réu Município de Resende realizou as obras de restauro da capela, que tiveram início em 13.02.2002.
BB – Em 15.02.2002, a Autora procedeu ao embargo extrajudicial das obras, o qual foi inicialmente ratificado por decisão judicial da comarca de Resende e depois, na sequência de oposição dos Requeridos (aqui Réus) foi ordenado o levantamento do embargo.
CC – Em 21.092000, a Ré Fábrica da Igreja preencheu uma requisição de certidão de descrição ou omissão na Conservatória do Registo Predial de Resende de um prédio que identificou como capela e adro, a confrontar de Norte e Poente com Companhia das Águas, do Nascente com Ribeiro da Cesta e do Sul com E.N. nº 222, declarando-se como actual possuidora e afirmando desconhecer o artigo matricial anterior respectivo.
DD – E a Conservatória do Registo Predial de Resende, com as informações escritas na requisição da certidão, certificou como não descrito o prédio identificado por aquela Ré.
EE – No artº 376 da matriz predial urbana da freguesia de Miomães, encontra-se inscrita a favor da Ré Fábrica da Igreja “capela, composta de rés-do-chão amplo, com a superfície coberta de 90 m2”.
FF – Em 28.10.1998, aquela Ré requereu a rectificação da descrição matricial do artº 376, “no sentido de nela passar a constar: Nascente – Ribeira da Cesta, Sul – Estrada Nacional 222, Poente e Norte – Cª das Águas e a superfície coberta de 110 m2 e descoberta (adro) de 1.394 m2”.
GG – No artº 376 da freguesia de Miomães e no nº 00252/051200 da Conservatória do Registo Predial de Resende encontra-se inscrita e descrita, em nome da Ré Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de Miomães uma capela de rés-do-chão amplo e adro, com a superfície coberta de 110 m2 e descoberta de 1394 m2, a confrontar de Norte e Poente com a Autora, do Sul com a Estrada Nacional 222 e do Nascente com Ribeiro da Cesta.
HH – Nas décadas de 1930 e 1940, foi construído, em parte do terreno adjacente à capela, próximo da Ribeira da Cesta, um túnel para abastecimento das águas quentes que, a partir da década de 1950, terminava numa chaminé/ torre colocada a Nascente da capela, dentro do mesmo terreno (4º).
II – Este túnel e torre mantiveram-se até à década de 1980 (5º).
JJ – Na década de 1960, a Famisa, antecessora da Autora, fez um furo artesiano de captação de água numa parte do terreno situada a Nascente da dita capela e próximo da aludida Ribeira da Cesta, que a Autora e seus antecessores usam e usaram para abastecimento diário do seu balneário e a cuja limpeza e controlo analítico procederam e procedem (6º e 7º).
LL – Este furo encontrava-se protegido por uma barraca de madeira que a Autora, durante o ano de 2000, substituiu por uma estrutura em alvenaria de tijolo (8º).
MM – A Famisa, antecessora da Autora, manteve, entre 1989 e 1994, o terreno adjacente à capela vedado em todo o seu perímetro com rede de malha de ferro e aí implantou dois barracos em madeira, um dos quais, pelo menos, funcionou como depósito de materiais e equipamentos (9º).
NN – A Autora e os seus antecessores mandaram sempre limpar as ervas e o lixo, pelo menos na parte do terreno adjacente à capela situada mais próxima do balneário (10º).
OO – A A. e seus antecessores sempre o utilizaram (ao terreno adjacente) para acederem e saírem livremente do balneário e hotel que lhe eram contíguos (11º).
PP – Uma das antecessoras da Autora, durante período de tempo não apurado, situado nas décadas de 1970 e 1980, forneceu energia eléctrica à capela e em data não apurada da década de 1970 uma outra antecessora da Autora contribuiu com telhas para a reparação da capela (12º).
QQ - Os utilizadores e funcionários do balneário sempre circularam por toda a extensão do terreno sem qualquer limitação (19º).
RR – A Autora demoliu um pavilhão que albergava equipamento do balneário (20º).
SS – A Autora continua a explorar os três furos de captação de água termal que abastecem o balneário, um dos quais é o referido em JJ) (22º).
TT – Os actos referidos nas respostas aos quesitos 4º a 12º, 19º e 20º foram praticados ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, há pelo menos 50 anos, tendo a falta de oposição aos actos referidos na resposta ao quesito 9º cessado com a prática do acto mencionado nas respostas aos quesitos 37º e 38º (23º, 24º, 25º e 26º).
UU - Na convicção, quer a Autora, quer os seus antecessores, de estarem a exercer um direito próprio correspondente ao de donos do terreno adjacente à capela (27º).
VV – A Famisa apresentou na Câmara Municipal de Resende um projecto de construção de um complexo termal e turístico no prédio descrito sob o nº 0096, que comportava a edificação de um novo balneário, um novo hotel e uma nova capela, todos interligados, constituindo uma única unidade (29º).
XX – Foram demolidas construções existentes dentro dos limites das confrontações referidas no prédio 00096 (30º).
ZZ – A construção do balneário foi iniciada em 1989 e concluída em 1992 (31º).
AAA – O hotel e a capela referidos na al. TT) nunca foram edificados (33º).
BBB – Do complexo termal fizeram parte dois hotéis, suas dependências, casa do motor, casa de arrumações e jardim (34º).
CCC – As obras referidas em AA) foram solicitadas pela Ré Fábrica da Igreja (36º).
DDD – Em data não apurada de 1994, a Ré Fábrica da Igreja, com populares, destruiu a vedação de malha de ferro referida em MM) (37º e 38º).
EEE – A Ré Fábrica da Igreja sabia que o terreno que designa como adro era utilizado, em parte, pela Famisa, para estaleiro de construção do balneário, onde depositara equipamentos e materiais de construção (40º).
FFF – Numa parte desse terreno, próximo da Ribeira da Cesta, mantém-se o furo de captação referido em JJ), protegido por uma construção em alvenaria de tijolo, edificada pela Autora em 2000, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém (41º).
GGG - Sabia ainda a Ré que a capela e o terreno adjacente se encontravam dentro dos limites estabelecidos na descrição 00096 da Conservatória do Registo Predial de Resende, sendo parte do prédio aí descrito (42º).
HHH – Pelo menos desde o início da década de 1940 até ao final da década de 1980, a capela e um pedaço de terreno situado à sua volta, designado de adro, este com área que não foi possível apurar, estiveram delimitados e separados do complexo termal e turístico ora da Autora (antes, das suas antecessoras), a Poente, por uma vedação com rede, orientada no sentido Sul-Norte, alinhando com a face Nascente da casa do motor referida em ZZ) (47º).
III – Para aceder aos furos de água e plataforma existia nessa estrema uma abertura por onde passavam os funcionários da Autora e seus antecessores (48º).
JJJ – Aquando das obras de construção do novo balneário, a Ré Fábrica da Igreja não se opôs a que a construtora colocasse no adro materiais, envolvendo o espaço com uma malha-sol e levantasse um barraco amovível para guarda dos mesmos (49º).
LLL – Após a prática do acto referido em BBB, o terreno em volta da capela foi limpo e dele foram retirados os barracos mencionados em MM) (50º).
MMM – Dos inventários dos bens paroquiais da freguesia de Miomães de 1939 e 1964, existentes na Cúria de Lamego, consta descrita a capela de Stª Luzia, antigamente designada de Stª Mª Madalena, situada no centro de AA, à beira da Ribeira da Cesta, na linha Norte-Sul, a confrontar de Nascente com o dito Ribeiro, do Sul com a estrada, do Poente e Norte com Hotel Parque (51º).
NNN – Desde tempos imemoriais, há mais de 90 anos, que a Ré Fábrica da Igreja, através do seu pároco ou capelão de AA ou de pessoas por eles nomeadas e confirmadas pelo Bispo Diocesano, tem administrado a capela e, pelo menos, uma parte do adro que a envolve (52º).
OOO – É ela (Ré Fábrica da Igreja) quem tem a guarda da chave, define as horas de abertura e fecho ao público ou escolhe as pessoas a quem confia tais tarefas e quem cuida da sua manutenção e conservação com dinheiro das ofertas e peditórios feitos na freguesia (53º e 54º).
PPP – Desde tempos imemoriais que a população de AA e outros ali participam nos actos de culto, sempre que o desejem e o capelão esteja disponível (55º).
QQQ – Algumas pessoas de AA velam e sufragam os familiares mortos na referida capela, dela fazendo casa mortuária (56º).
RRR – É na capela e no adro que o povo de AA efectua as suas festividades anuais, é no espaço do adro que estacionam as viaturas quando frequentam os actos de culto e é aí que organizam, iniciam e terminam as procissões (57º, 58º e 59º).
SSS – Tudo de forma continuada e sem hiatos, ao longo dos tempos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (60º).
TTT – A Ré Fábrica da Igreja actua na convicção de exercer sobre a capela e o adro situado à volta desta – à excepção da parte que está ocupada pelo dito furo artesiano e estrutura que o protege (em alvenaria de tijolo) e de um pedaço de terreno (com área não apurada) que se situa entre as portas principais de acesso à capela e ao balneário – um direito próprio e de não lesar ninguém (61º).
UUU – A capela referida em GG) corresponde à mencionada nas als. III) a QQQ) (62º).
VVV – O extracto da escritura de justificação notarial referida em Z) foi publicado no Jornal de Resende nº 206, de 31.10.2000 (fls. 52 ss.).
XXX – A Ré Fábrica da Igreja inscreveu a capela e o terreno adjacente (adro) – objectos da referida escritura de justificação notarial – a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Resende, em 05.12.2000 (fls. 85 e v.).

III – 1. As questões suscitadas nos presentes recursos de revista são as seguintes:
Recurso da Autora:
- Aquisição, por usucapião, por parte da Autora, da totalidade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Resende sob o nº 00096 (incluindo a Capela e o adro);
- Relevância de tal aquisição em face da escritura de justificação notarial celebrada pela Ré Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de Miomães.

Recurso da Ré:
- Natureza dos provados actos de posse por parte da Autora, relativamente ao “adro adjacente à Capela”, os quais, na sua óptica, não passam de meros actos acessórios destinados a possibilitar a utilização da água minero-medicinal, insusceptíveis de conduzirem à aquisição da compropriedade de tal espaço.

2. Todas estas questões foram objecto de apreciação no acórdão recorrido, onde pode ler-se:
“A questão juscivilística posta pelo presente recurso resume-se a conhecer da propriedade da capela e do designado adro da capela e da relevância ou irrelevância da escritura de justificação notarial outorgada pela Ré Fábrica da Igreja, visando a aquisição da propriedade (por via da usucapião) dos já mencionados capela e adro.
Quid juris?
Não valerão seguramente as regras do registo predial para a solução a dar à questão.
O registo, nos termos do artº 7º C.R.Pred. apenas confere uma presunção de titularidade que cede perante prova da aquisição originária, ou seja, pela prova da usucapião – ut S.T.J. 3/6/92 Bol.418/773, S.T.J. 9/1/97 Col.I/37, S.T.J. 3/2/99 Bol.484/384, Ac.R.P. 9/3/00 Col.II/187 ou Ac.R.P. 7/12/00 Col.V/123.
Ou seja: quem tem a seu favor o registo beneficia da presunção de que o direito lhe pertence; cabe ao interessado em elidir a presunção derivada do registo alegar e provar factos demonstrativos do contrário – artº 350º C.Civ.
Por outro lado, a escritura de justificação notarial, nos termos do artº 116º C.R.Pred., tem o valor apenas de justificar uma aquisição por mera declaração precária de testemunhas, apenas para efeitos de registo; desta forma, se o registo ceder pela melhor prova decorrente da posse usucapiativa, a escritura de justificação perde o seu valor.
Assim, tem afirmado a doutrina que a referida escritura só assume valor para o referido registo, isto é, para a prova do direito (Ac.R.L. 29/9/05 Col.IV/112) e que não confere nem tira direitos a terceiros que não hajam intervindo nessa escritura – em termos concretos, à Autora sempre poderia ser reconhecido o direito a opor-se ao conteúdo da escritura, invocando e provando a usucapião, como efectivamente se propôs invocar e provar na acção (o que consagrou na prática, de resto, no primeiro pedido que formulou de reconhecimento do direito de propriedade dela mesma Autora sobre a capela e terreno adjacente).
E que se demonstrou nos autos em matéria de aquisição originária?
Da prova realizada, e das respostas aos quesitos nºs 4º, 12º, 19º, 20º e 23º a 27º, no que concerne a pretensão da Autora e, de outra banda, das respostas aos quesitos nºs 52º a 59º e 61º, no que concerne a pretensão da Ré Fábrica da Igreja de Miomães, verifica-se o seguinte:
A Ré justifica actos de posse pública (artº 1262º C.Civ.) e pacífica (artº 1261º nº1 C.Civ.), à semelhança de um proprietário, sobre a capela de AA e sobre parte do respectivo terreno adjacente, ou adro.
Igualmente a Autora justifica tais actos, mas apenas sobre o terreno adjacente à capela.
Não se encontra em causa o decurso dos prazos de usucapião, e a consolidação da propriedade pelo decurso desses prazos – artº 1287º C.Civ. (a questão não é suscitada pelos Recorrentes e tornou-se apodíctica no raciocínio do Mmº Juiz “a quo”).
Logo, a Ré, como lhe competia e decorria do pedido reconvencional que formulou, logrou obter vencimento quanto à pretensão respectiva de ser declarada proprietária da denominada Capela de Stª Luzia de AA (ao caso também se não aplica a hipótese excepcional da 2ª parte do nº1 do artº 1268º C.Civ.).
Mas quanto ao terreno adjacente ou adro, ambos os litigantes justificaram sobre o mesmo determinados actos de posse, que são conducentes à aquisição da propriedade por usucapião.
Tais actos não se mostram excludentes entre si – a Autora, por si e antecessores, utilizou o local para a exploração de águas minerais, o que fez, ao longo dos anos, por diversas formas; aí realizou obras e construiu um balneário; limpou o local de ervas e lixo; utilizou-o também para aceder livremente ao balneário e ao hotel. A Ré, por sua vez, leva a cabo festividades anuais naquele sobredito espaço e autoriza aí o estacionamento de viaturas, designadamente para o acesso aos actos de culto.
Desta forma, assim como os direitos reais definitivos podem ter mais que um sujeito (sendo exemplo típico o da compropriedade), também na posse exercida à sua imagem se pode admitir a contitularidade – é a chamada figura da composse, que pressupõe a compatibilidade dos exercícios possessórios (referida, v.g., no artº 1286º C.Civ.; cf. M.H. Mesquita, Direitos Reais, pg. 88 e Ol. Ascensão, Reais, § 60). À composse aplicam-se, supletivamente, as regras relativas à compropriedade – artº 1404º C.Civ.
Ora, não se encontra em causa no processo a absoluta compatibilidade das posses exercidas sobre o espaço adjacente à Capela – a Autora, visando o exercício da respectiva actividade económica, de exploração de águas minero-medicinais e de actividade hoteleira; a Ré, visando a prossecução do culto religioso regular e das festas populares que, à volta do culto, os povos usualmente promovem, sob orientação das entidades religiosas.
A referida composse e o decurso do tempo que se lhe associou consolidou na esfera jurídica da Autora e da Ré Fábrica da Igreja uma verdadeira compropriedade sobre o espaço adjacente à Capela de AA, compropriedade essa na qual as quotas são quantitativamente iguais, na falta de indicação em contrário do título – artº 1403º nº2 C.Civ.
Resta assim concluir pelo bem fundado da decisão recorrida:
- a Autora não pode ser reconhecida, perante a Ré, titular única do direito de propriedade sobre o terreno adjacente à capela;
- não pode também ser declarada titular do direito de propriedade sobre a capela, direito esse que já quadra ser declarado, na forma peticionada em reconvenção, em benefício da Ré;
- a escritura de justificação notarial e os registos que com base nela foram efectuados apenas se devem manter na estrita medida do que se logrou demonstrar nos presentes autos (logo, cumprindo afastar o registo da Ré efectuado sobre o espaço do adro da Capela, na medida em que baseado numa escritura insubsistente na parte em que os declarantes afirmaram que a Ré exerceu actos de posse “com exclusão de outrem” e “como sua única dona”); a escritura reveste-se, nessa parte, de verdadeira ineficácia relativa face à Autora, como res inter alios acta.
Uma nota final para sublinhar que os autos não curaram de conhecer da propriedade de águas minerais ou minero-medicinais e da exploração respectiva, efectuada ao abrigo de actos administrativos, mas da verdadeira propriedade de edificações e de tractos de terreno (ainda que propriedade adquirida em função de uma expectativa de exploração de águas medicinais), titulada por documentos e actos de posse, que os autos abundantemente demonstram.
Em suma, a decisão recorrida merece ser confirmada na íntegra.

Resumindo a fundamentação:
I - Quem tem a seu favor o registo beneficia da presunção de que o direito lhe pertence; cabe ao interessado em elidir a presunção derivada do registo alegar e provar factos demonstrativos do contrário – artº 350º C.Civ.
II - A escritura de justificação notarial, nos termos do artº 116º C.R.Pred., tem o valor apenas de justificar uma aquisição por mera declaração precária de testemunhas, apenas para efeitos de registo; desta forma, se o registo ceder pela melhor prova decorrente da posse usucapiativa, a escritura de justificação perde o seu valor.
III – Se ambos os litigantes justificaram sobre o mesmo terreno determinados actos de posse, que são conducentes à aquisição da propriedade por usucapião, e se tais actos não se mostram excludentes entre si, assim como os direitos reais definitivos podem ter mais que um sujeito (sendo exemplo típico o da compropriedade), também na posse exercida à sua imagem se pode admitir a contitularidade – é a chamada figura da composse, que pressupõe a compatibilidade dos exercícios possessórios.
IV – Se a referida composse e o decurso do tempo que se lhe associou consolidaram na esfera jurídica dos litigantes uma situação de verdadeira compropriedade, as quotas respectivas devem considerar-se quantitativamente iguais, na falta de indicação em contrário do título – artº 1403º nº2 C.Civ”.

3. Na sua conclusão BB), a Autora/recorrente diz o seguinte:
“como assinalou – e bem – o acórdão recorrido, as respostas aos quesitos nºs 4º, 12º, 19º, 20º, 23º a 27º, acima reproduzidas, justificam actos de posse por parte da Autora, por si e antecessores, posse que é pública, pacífica, ininterrupta, titulada e de boa fé, há pelo menos 50 anos, sobre a capela de Santa Luzia e o terreno adjacente ou adro (também designado de jardim), com animus domini, ou seja na convicção da Autora e seus antecessores de estarem a exercer um direito próprio correspondente ao de donos da capela e do terreno adjacente a esta”.

Só uma leitura pouco cuidada do acórdão recorrido pode ter levado a referida recorrente a fazer tal afirmação.

Na verdade – e como pode ver-se do excerto do acórdão acima transcrito –, o que aí se escreveu é completamente diferente.

Aí se diz:
“Da prova realizada, e das respostas aos quesitos nºs 4º, 12º, 19º, 20º e 23º a 27º, no que concerne a pretensão da Autora e, de outra banda, das respostas aos quesitos nºs 52º a 59º e 61º, no que concerne a pretensão da Ré Fábrica da Igreja de Miomães, verifica-se o seguinte:
A Ré justifica actos de posse pública (artº 1262º C.Civ.) e pacífica (artº 1261º nº1 C.Civ), à semelhança de um proprietário, sobre a capela de AA e sobre parte do respectivo terreno adjacente, ou adro.
Igualmente a Autora justifica tais actos, mas apenas sobre o terreno adjacente à capela”.

Convenhamos que é bem diferente…

4. Segundo o artigo 1316º do Código Civil, “O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei”.

“A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião” – artigo 1287º.

“A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” – artigo 1251º.

Temos, assim, que a posse é integrada por dois elementos: o corpus – seu elemento material –, que consiste no domínio de facto sobre a coisa, que se traduz no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela, ou na possibilidade física desse exercício, e o animus (ou animus sibi habendi) – seu elemento psicológico ou subjectivo –, que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente àquele domínio de facto, isto é, aos actos praticados.

“A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem” – artigo 1252º, nº 1.

“Em caso de dúvida, presume-se a posse daquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 1257º” – nº 2 do mesmo artigo.

O acórdão deste STJ de 14.05.1996, publicado no DR, II Série, de 24.06.1996, (cfr. também BMJ 457º-55), uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.

Daqui decorre que – por se tratar de uma presunção iuris tantum – teria de ser ilidida essa mesma presunção.

Não tendo sido ilidida, temos de concluir que, feita a prova da posse, o possuidor goza da presunção da titularidade do direito real em termos do qual possui (cfr. artigo 1268º, nº 1, do Código Civil).

A nossa lei adoptou a concepção subjectivista da posse, sendo que só a posse em sentido estrito – já não a posse precária ou mera detenção – é susceptível de conduzir à aquisição de uma coisa por usucapião.

Para se adquirir por usucapião o direito de propriedade ou outro direito real de gozo sobre coisa determinada, necessário se torna que sejam praticados actos eivados daquela intenção – “animus possidendi” –, não bastando a prática reiterada de actos materiais correspondentes ao conteúdo do direito – “corpus possessório”.

Sufragamos, assim, a tese sustentada nas instâncias: a Ré adquiriu o direito de propriedade da capela por usucapião.

Ao contrário do que defende a Autora/recorrente, a resposta ao quesito 61º não altera esta posição.

A redacção de tal quesito é a seguinte:
“Actuando a Ré Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de Miomães na convicção de exercer sobre capela e o adro um direito próprio e de não lesar ninguém, comportando-se como sua dona?”.

Aquando do julgamento, o Senhor Juiz deu-lhe a seguinte resposta:
“provado apenas que a ré Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de Riomães actua na convicção de exercer sobre a capela e o adro situado à volta desta – à excepção da parte que está ocupada pelo dito furo artesiano e estrutura que o protege (em alvenaria de tijolo) e de um pedaço de terreno (com área não apurada) que se situa entre as portas principais de acesso à capela e ao balneário –, um direito próprio e de não lesar ninguém, comportando-se como sua dona”.

Impugnada a decisão sobre a matéria de facto, incluindo a resposta a este quesito, escreveu-se no acórdão da Relação:
“A expressão “comportando-se como sua dona” é efectivamente de eliminar, já que, por excessivamente conclusiva, deveria ser integrada por outros factos, mais substantivados, que conduzissem à conclusão de que o comportamento da Ré é o de “um verdadeiro dono”.
No mais, pensamos que a resposta é escrupulosa e respeita integralmente o sentido da prova produzida (tal como já atrás explicitado, a Ré, ao longo dos tempos, nunca se opôs, sequer emitiu opinião, para que, no espaço do designado adro, a Autora pudesse realizar quaisquer trabalhos de captação de águas, como efectivamente fez, ao longo dos anos)”.

Continua a manter-se a já assinalada presunção, relativamente ao animus.

Igualmente não pode ter o alcance que a Autora/recorrente deseja o teor do documento de fls. 564 e 565 sobre a intenção dos actos possessórios, relativamente à capela.

Refere a recorrente que a Ré confessou, em documento certificado em 22 de Novembro de 2004 por autoridade eclesiástica, que não agiu com a intenção de se haver como proprietária, atribuindo-se expressamente a propriedade da capela à freguesia, pelo que tal revela inequivocamente que a Fábrica da Igreja “não agia nem age com animus domini”.

Aquando da apreciação da impugnada resposta ao quesito 51º, a Relação pronunciou-se sobre tal documento, dizendo:
“…; nem o documento de fls. 564 e 565, atribuindo a pertença da Capela à “freguesia”, lança uma dúvida fundamental sobre a questão já que as capelas descritas o são, nesse documento, sempre por referência aos seus donos (Pe. Afonso Guedes de Almeida ou herdeiros de Alfredo Ribeiro Botelho), não existindo referência à pertença da Capela em causa nos autos à Cª das Águas das Caldas de AA”.

Acresce que se desconhece a data de tal documento, sabendo-se apenas que o pároco da freguesia (e paróquia) de “Meiomãis” (designação da época) era, então, o Padre Manuel Cardoso, nomeado em Maio de 1928, pelo que se trata de um documento muito antigo, sem qualquer valor para os presentes autos.

5. No tocante à questão do adro da capela, afigura-se-nos que a solução encontrada para a mesma nas instâncias não é a mais correcta, sendo certo que ela foi colocada ao tribunal de forma não consentânea com a legislação em vigor.

O nº 1 do artigo 204º do Código Civil enumera, de forma taxativa, o que são coisas imóveis, encontrando-se logo na sua alínea a) “Os prédios rústicos e urbanos”.

Segundo o nº 2 deste artigo, “Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”.

Se assim é, teremos de considerar o adro em causa como um terreno que serve de logradouro à capela, pelo que faz parte do prédio urbano “capela”.

Aliás, o termo adro é tido como “terreno em frente ou à volta da igreja” (cfr. Dicionários Editora, “Dicionário da Língua Portuguesa”, 6ª edição, pág. 41).

De acordo com o nº 1 do artigo 12º do Código do Imposto Municipal Sobre Imóveis, “as matrizes prediais são registos de que constam, designadamente, a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos proprietários e, sendo caso disso, os usufrutuários e superficiários”.

Certo que o prédio aqui em causa está inscrito na matriz predial urbana, em observância do nº 2 deste artigo, tem-se por adquirido que o mesmo é mesmo um prédio urbano.

Daqui se retira a conclusão de que, tendo a Ré/recorrente exercido actos de posse sobre a capela (propriamente dita), conducentes ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a mesma – aquisição originária, na modalidade da usucapião –, tal facto conduzirá, por si só, e independentemente dos provados actos de posse sobre parte do terreno adjacente a que aqui se denomina por “adro”, a que se considere ser a Ré proprietária do prédio urbano constituído por “capela e adro”.

Acresce que, de outra forma, estar-se-ia a violar o artigo 209º do referido Código, o qual prescreve que ”São divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”, por não estar demonstrado que o imóvel em causa é susceptível juridicamente de divisão.

O Prof. Manuel de Andrade faz notar que os prédios urbanos são, em regra, indivisíveis (cfr. “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. I, pág. 257).

Com efeito, para que uma “coisa” possa ser tida como divisível, necessário se torna que estejam reunidos os requisitos do referido artigo 209º.

Isto é: são divisíveis juridicamente as coisas que possam ser cindidas em partes, sem que percam a substância, sem que se reduza o seu valor e sem que o seu uso próprio seja prejudicado.

Ora, nada foi alegado (e muito menos provado) sobre a divisibilidade do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 376, pelo que se torna irreal falar em usucapião de uma parte de uma coisa indivisível.

A propriedade, por força do instituto da usucapião, consolidou-se em relação ao todo.
Precisamente por se tratar de um único prédio, encontrando-se, no artigo 376 da matriz predial urbana da freguesia de Miomães, inscrito a seu favor o prédio constituído por “capela, composta de rés-do-chão amplo, com a superfície coberta de 90 m2”, a Ré Fábrica da Igreja, em 28.10.1998, requereu a rectificação dessa descrição matricial “no sentido de nela passar a constar: Nascente – Ribeira da esta, Sul – Estrada Nacional 222, Poente e Norte – Cª das Águas e a superfície coberta de 110 m2 e descoberta (adro) de 1.394 m2” (cfr. EE e FF dos Factos Provados).

6. Infere-se, pois, do exposto que improcede o recurso da Autora e, com o provimento do recurso da Ré, terá de se julgar procedente o seu pedido reconvencional.

IV – Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista da Autora e em conceder a revista da Ré e, em consequência, revogando-se parcialmente o acórdão recorrido (e a sentença que o mesmo confirmou), decide-se julgar totalmente improcedente, por não provada, a acção, de cujos pedidos se absolve a Ré, e totalmente procedente, por provada, a reconvenção, declarando-se que a Ré/reconvinte Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de Miomães adquiriu, por usucapião, a propriedade do prédio urbano composto por capela de rés-do-chão e adro, situado no Lugar de Caldas de AA, inscrito na matriz sob o artigo 376, condenando-se a Autora/reconvinda Companhia das Águas das Caldas de AA, S.A., a reconhecer tal direito de propriedade.

Custas, aqui e nas instâncias, a cargo da Autora.


Lisboa, 1 de Julho de 2008


Moreira Camilo (relator)
Urbano Dias
Paulo Sá