CORRECÇÃO DA DECISÃO
ACLARAÇÃO
RECUSA
COMISSÃO NACIONAL DE ELEIÇÕES
CONSTITUCIONALIDADE
IMPARCIALIDADE
Sumário


I - A correcção da sentença (art. 380.º do CPP) pressupõe a menor inteligibilidade da decisão a corrigir, em função de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade.
II - A ininteligibilidade reporta-se não ao conteúdo, ou mérito, do julgado mas sim, e tão-somente, à sua exteriorização formal, ao discurso qua tale, podendo perfilar-se situações de ambiguidade expositiva, de obscuridade, de excessivo gongorismo impeditivo de univocidade ou, no limite, de meros lapsos ou erros de escrita.
III - Por outro lado, o incidente de correcção, bem como o de aclaração, não pode ser usado quando resulta do requerimento onde é deduzido que o requerente alcançou o sentido da decisão e compreendeu o seu conteúdo, pretendendo apenas «reagir contra desacertos em pontos concretamente tomados e isolados, para os rebater e sustentar outros diversos do decidido» (Ac. do STJ de 12-03-1998 – 097B895), procurar, «ainda que por via oblíqua, a modificação do julgado» (Ac. do STJ de 24-04-1991 – 002680) ou traduzir discordância sobre a decisão (Ac. do STJ de 13-05-1992 – 0151599).
IV - Se o pedido de correcção, formulado na sequência de decisão que incidiu sobre um pedido de recusa – negando-o, por se ter entendido que a intervenção dos membros da Comissão Nacional de Eleições em deliberação de conteúdo instrutório e posteriormente em deliberação decisória (de aplicação ou não de sanção contra-ordenacional) não implicava uma perda de imparcialidade –, se baseia na exigência de ver apreciada uma pretensa inconstitucionalidade na estrutura orgânica da CNE, por estar desadaptada ao princípio da imparcialidade, e que seria a razão de ser da patologia que em concreto se entendeu não existir, deve o mesmo ser indeferido.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Rádio e Televisão de Portugal S.A. veio, ao abrigo do disposto no artigo 380 do Código de Processo Penal, aplicável “ex vi” do artigo 41 nº1 do Regulamento Geral das Contra-ordenações requerer a correcção da decisão proferida nos presentes autos invocando que:
O pedido de recusa apreciado nos presentes autos tem dois fundamentos essenciais:
1º(i) A reprovação prévia, por parte do mesmo órgão que convola o inquérito em auto e ao qual está atribuída a competência de aplicar uma coima, constitui uma inequívoca tomada de posição sobre o objecto do presente processo - o que se considera «motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade»;
(ii) A estrutura mono-orgânica da CNE potencia a perda de garantias de imparcialidade, estando, por isso, inquinada de inconstitucionalidade, por cerceamento do direito de defesa expressamente consagrado no artigo 32.°, nº 10, da Constituição, a interpretação do artigo 203.°, nº 1, da Lei Orgânica n.o 1/2001, de 14 de Agosto (lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais - LEOAL) - em conjugação com o artigo 2.° da Lei n.o 71/78, de 27 de Dezembro, na sua actual redacção -, segundo a qual um mesmo membro da CNE pode participar numa deliberação de autuação, numa deliberação com conteúdo instrutório e numa deliberação decisória (de aplicação ou não aplicação da sanção contra-ordenacional).
2.° Quanto à primeira, respondeu o Supremo Tribunal de Justiça, independentemente do nosso desacordo, de forma que não carece de esclarecimento: «[n]o caso vertente temos, assim, uma entidade que se pronunciou nos termos que lhe eram permitidos, e imposto pela lei, pela necessidade de instaurar um processo contra-ordenacional. Tal pronúncia foi efectivada de forma abstracta e sem que, por qualquer forma, se tenha concretizado um juízo sobre a existência, ou inexistência, de responsabilidade contra ordenacional».
3ª Já quanto à segunda questão, não se compreende, com a indispensável clareza, quais os fundamentos da decisão, tendo em conta o que foi invocado pela ora requerente.
4ª Na verdade, uma vez que foi invocada a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação da lei, torna-se imprescindível saber se a mesma foi ou não acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
5.°Assim, no douto acórdão escreve-se que «[o] facto de a Comissão Nacional de Eleições se ter pronunciado sobre a existência e fundamento objectivo para instauração de processo contra-ordenacional não tem qualquer significado em termos de pronúncia sobre o desenvolvimento formal do mesmo processo ou do apuramento da respectiva responsabilidade»,
6.° Para concluir que «[a] recusa formulada só assumiria significado se estivesse adquirido que a constatação da existência de indícios eleitorais com fundamento numa competência legal tivesse o significado de um juízo antecipado sobre a existência da correspondente responsabilidade contraordenacional. Não é assim, porém, que se estrutura o processo relativo a tal infracção e é neste espaço processual que o requerente pode apresentar, com toda a liberdade, o seu argumentário conducente a factualidade que, na sua perspectiva, conduz à inexistência da mesma responsabilidade».
7.° A leitura de tais afirmações não permite saber com clareza se o Tribunal sufraga a interpretação do artigo 203.°, nº 1, da LEOL - em conjugação com o artigo 2.° da Lei n.o 71/78, de 27 de Dezembro, na sua actual redacção -, segundo a qual um mesmo membro da CNE pode participar numa deliberação de autuação, numa deliberação com conteúdo instrutório e numa deliberação decisória (de aplicação ou não aplicação da sanção contraordenacional).
8.° Na verdade, fica-se na dúvida sobre se as últimas afirmações transcritas são meras reafirmações ou corolários do facto de a CNE se ter pronunciado «de forma abstracta e sem que, por qualquer forma, se tenha concretizado um juízo sobre a existência, ou inexistência, de responsabilidade contra ordenacional» ou se, pelo contrário, o douto Acórdão vai além disso e se pronuncia também sobre a segunda questão colocada pela Recorrente.
9.° Fincando, desta forma, sem se saber se o Supremo Tribunal de Justiça omitiu a pronúncia quanto a uma das alegações de recusa, ou acolhe ou não acolhe, total ou parcialmente, a alegação supracitada.
10.°Questão que é, aliás, absolutamente imprescindível para a determinação dos exactos direitos processuais de que a Recorrente pode lançar mão.
11.°Assim, é preciso esclarecer se, para além de entender que a «pronúncia foi efectivada de forma abstracta e sem que, por qualquer forma, se tenha concretizado um juízo sobre a existência, ou inexistência, de responsabilidade contra ordenacional», o Supremo Tribunal de Justiça fundou também a sua decisão na interpretação da lei segundo a qual um mesmo membro da CNE pode participar numa deliberação de autuação, numa deliberação com conteúdo instrutório e numa deliberação decisória (de aplicação ou não aplicação da sanção contra-ordenacional).
12.0 Apontada claramente a obscuridade que não permite saber ao certo qual o pensamento do Tribunal, deve o presente requerimento de aclaração ser atendido, na esteira, aliás, de jurisprudência anterior deste mesmo Tribunal (<< .. .para poder ser atendido o requerimento de aclaração, é necessário que se aponte concretamente a obscuridade e ambiguidade cujo esclarecimento se pretende .... », sendo que « ... uma decisão judicial só enferma de ambiguidade quando alguma passagem sua se presta a interpretações diferentes e não se sabe ao certo qual o pensamento do juiz ... » - nesse sentido, Acórdão do STJ, de 26 de Março de 2003, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
13.0 Como o esclarecimento inequívoco do arrimo interpretativo do acórdão é imprescindível para o exercício do direito de recurso junto do Tribunal Constitucional, só a aclaração do douto acórdão permitirá ultrapassar a obscuridade ora identificada.
Os autos tiveram os vistos legais.
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Cumpre decidir.
A correcção da sentença pressupõe a menor inteligibilidade da decisão a corrigir em função de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade.
A ininteligibilidade reporta-se não ao conteúdo, ou mérito, do julgado mas sim, e tão-somente, à sua exteriorização formal, ao discurso “qua tale”. Aqui, podem perfilar-se situações de ambiguidade expositiva, de obscuridade, de excessivo gongorismo impeditivo de univocidade ou, no limite, de meros lapsos ou erros de escrita.
Igualmente é exacto que o incidente de correcção, bem como de aclaração, não podem ser usados quando resulta do requerimento que o deduz que o requerente parte alcançou o sentido da decisão, compreendeu o seu conteúdo mas pretende, apenas, “reagir contra desacertos em pontos concretamente tomados e isolados, para os rebater e sustentar outros diversos do decidido” (Acórdão do STJ de 12 de Março de 1998 – 097B895), ou procurar “ainda que por via oblíqua, a modificação do julgado” (Acórdão do STJ de 24 de Abril de 1991 – 002680), ou traduzir discordância sobre a decisão (Acórdão do STJ de 13 de Maio de 1992 – 0151599 – “inter alia”).
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No caso vertente a decisão do pedido de recusa formulado tinha como pressupostos os fundamentos invocados pelo requerente no sentido de que os membros da Comissão Nacional de Eleições que participaram na deliberação de 30 de Outubro de 2007 constituía uma inequívoca tomada de posição sobre o objecto do processo contra ordenacional.
Esse o fundamento a aferir em função do artigo 43 do Código de Processo Penal o que implica uma apreciação da existência de imparcialidade em função de uma perspectiva subjectiva-demonstração de interesse pessoal no destino da causa ou um preconceito sobre o mérito da causa- ou objectiva-apreciação do comportamento em função da perspectiva do cidadão normal.
Tal apreciação sucede no contexto relacional entre a concreta situação do juiz ou, no caso, o decisor e o pressuposto da norma citada. Tal sucede em função de um comportamento, independentemente da génese desse comportamento que é irrelevante para a finalidade em causa.
O que foi decidido, e decidido em função do pedido formulado, foi saber se a deliberação da CNE consubstanciava um motivo de recusa e a resposta foi negativa. Saber se existe uma patologia na estrutura orgânica da entidade citada que está desadaptada ao princípio da imparcialidade pressupõe que previamente se decida se essa mesma regra da imparcialidade foi violada.
Esta decisão constitui uma premissa e uma questão prévia a uma indagação posterior, pretendida pela requerente, sobre as razões de um eventual deferimento do pedido de recusa.
Aliás, sublinhe-se que é exactamente nessa sequência lógica de continuidade que o requerente situou o seu pedido de recusa quando referiu:
Tal reprovação prévia constitui uma inequívoca tomada de posição sobre o objecto do presente processo.
Por parte do mesmo órgão que convola o inquérito em auto e ao qual está atribuída a competência (dada a estrutura mono-orgânica da CNE) de aplicar uma eventual coima.
Pelo que seria forçoso reconhecer que os membros da CNE que participaram na já referida deliberação já formularam um juízo de reprovação - com base em dados de facto expressamente qualificados como "incontornáveis".
Muito antes da própria defesa da Arguida, que é neste momento apresentada.
Pelo que, sem mínimo prejuízo pelo respeito e consideração que lhes é devida e que a RTP de bom grado lhes presta - porque não é isso, consabidamente, o que está em causa no regime legal das garantias da imparcialidade -,
Não pode deixar de se considerar que, à semelhança de outros casos de intervenção processual anterior da autoridade com competência para decisão final do processo (cfr. arts. 40.° e 43.°, nº 2, do CPP, aplicáveis ex vi artº 41.° do RGCO),
É clara a existência de um "motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade" (art. 43.° do CPP, aplicável ex vi art. 41.° do RGCO).
Ou, para usar os termos do Código de Procedimento Administrativo, de uma "circunstância pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da sua isenção" (art.º 48.°, n. ° 1).
Termos em que suscita o incidente de recusa, solicitando, nesse caso, o envio do presente requerimento à entidade competente para a resolver, a saber, ao Supremo Tribunal de Justiça, por aplicação com as devidas adaptações do art. 41.°, nº 1, do CPP.
E, em seguida, lateralmente, e numa incursão sobre as razões da patologia que apontava, refere:
Diga-se, aliás, que a mencionada estrutura mono-orgânica da CNE potencia a perda de garantias de imparcialidade.
Em claro contraste com o que sucede, por exemplo, na aplicação de «coimas correspondentes a contra-ordenações cometidas por eleitos locais no exercício das suas funções» da competência de um juiz em processo instruído pelo Ministério Público (cfr. art.203.°, nº 3, da LEOAL).
Estando, por isso, inquinada de inconstitucionalidade, por cerceamento do direito de defesa expressamente consagrado no art.32.°, nº 10, da Constituição, a interpretação do art.203.°, nº 1, da LEOAL - em conjugação com o art. 2.° da lei nº 71/78, de 27 de Dezembro, na sua actual redacção -, segundo a qual um mesmo membro da CNE pode participar numa deliberação de autuação, numa deliberação com conteúdo instrutório e numa deliberação decisória (de aplicação ou não aplicação de sanção contra-ordenacional).
A referência á estrutura da CNE surge aqui como a razão abstracta e conceptual para uma perda de imparcialidade que, no caso, não foi decretada.
Concluindo, dir-se-á que o pedido de correcção deduzido se baseia em manifesto lapso decorrente do facto de se pretender ver apreciada uma pretensa inconstitucionalidade como razão de ser de uma patologia que em concreto se entendeu inexistir.
Termos em que se indefere o requerido
Taxa de Justiça 5 UC

Lisboa, 2 de Julho de 2008

Santos Cabral (Relator)
Oliveira Mendes