I - Perante o art. 12.º da Lei n.º 24/2007 de 18-07 é hoje claro que, em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária.
II - Esta norma tem o carácter de interpretativa pelo que deve ter aplicação imediata.
III - Entendemos ser impróprio falar-se que a Lei introduziu a responsabilidade objectiva para a concessionária. Não o fez, apesar de se considerar, face ao nosso entendimento, ter-se tornado mais difícil, mas não impossível, o afastamento da presunção de incumprimento que impende sobre si.
IV - A Concessionária só afastará essa presunção, se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem. Terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento.
30ª- Entender, como foi entendido pelas instâncias, que tais medidas são suficientes e afastam a presunção de culpa, é permitir, objectivamente, que acidentes deste tipo se voltem a repetir sendo, aliás, do conhecimento geral que se têm repetido.
31ª- Daí que se imponha a condenação da R.. Esta sabe, e não pode ignorar que a colocação de urna rede com 2, 00 metros de altura à volta da AE já consegue evitar a entrada de um cão de grande porte na via de circulação automóvel. É certo que tal medida traz custos. Mas também se podem evitar a perda de vidas humanas.
32ª- Ainda que se visse nos acidentes de viação em AE provocados por animais um caso de eventual responsabilidade extracontratual da concessionária, parece-nos também manifesto que a base XXXVI, n°2. do diploma de 1997 (que mantém literalmente a redacção normativa anterior) consagram uma inversão do ónus da prova presumindo a culpa da concessionária. E a B... não ilidiu tal presunção.
33ª- De facto, a B... é obrigada a assegurar permanentemente em boas condições de segurança....a circulação nas auto-estradas, excepto em caso de força maior devidamente verificado.
34ª- Sobre a B... recai a obrigação permanente de garantir a segurança rodoviária nas AE que lhe são concessionadas, responsabilizando-se pelos danos sofridos por utentes (condutores e não condutores -, como se infere da base LIII do diploma de 1991) em virtude de qualquer quebra danosa de segurança só lhe sendo possível eximir-se de responsabilidade se se comprovar que a quebra de segurança adveio de caso de força maior.
35ª- No caso dos autos, o aparecimento do cão no meio da AE corresponde a uma grosseira violação da segurança do tráfego, não só porque é suposto que nenhum animal circule numa via rápida como também porque esta permite velocidades superiores às de uma estrada normal.
36ª- A previsibilidade do evento está, por conseguinte, fora do panorama do utente: daí que a quebra de segurança seja de imputar à Ré.
37ª- Caberia a esta provar que a presença do cão não se deveu a falta obrigacional sua; para tanto deveria provar que o cão surtiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na AE intencional ou neg1igentemente por alguém
38ª- Essa prova incumbia à Ré. O simples patrulhamento no local, de duas em duas horas, não impediu, nem é apto a impedir este tipo de eventos. Nem, tão pouco, uma rede de protecção com 1,10 de altura, como é manifesto.
39ª- A concessionária só ficará justificada pela sua falha em caso de força maior devidamente verificado ou seja, devidamente comprovado por ela própria já que só ela está interessada em prová-lo.
40ª- Caso de força maior será não apenas aquele que obedece aos parâmetros exemplificativos desta norma mas também um auto de terceiro que a concessionária não pode condicionar, inverter ou impedir.
41ª - Por isso, qualquer animal abandonado por alguém numa AE, qualquer apedrejamento executado de fora ou no interior da própria via ou outro acto similar da autoria de terceiros enquadrará o caso de força maior se tiver sido “devidamente verificado”. Não o foi, no caso concreto dos autos.
42ª- A repartição do ónus da prova deverá ser feita do modo seguinte: à A. cabe demonstrar a existência objectiva do facto ilícito (que acarreta consigo a presunção de culpa do agente), dos danos e do nexo de causalidade adequada entre o facto e os danos; à R. cabe comprovar a existência de um caso de força maior devidamente verificado, que exclui a sua culpa e a irresponsabilize.
43ª- A norma que protege interesses alheios e que se viola é precisamente a do nº 2 da referida base XXXIX do diploma de concessão de 1991; e a ilicitude objectiva que emerge dessa violação acarreta a culpabilidade no acto praticado.
44ª- Também aqui a violação objectiva de disposição legal que tutela interesses alheios faz presumir a culpa do agente infractor é a ele, pois, que cabe provar a sua própria ausência de culpa para ser irresponsabilizado.
45ª- O cão apareceu na A1 sem se saber como veio e de onde veio, o que equivale a dizer que a Ré B... não ilidiu a presunção devendo sofrer os efeitos do incumprimento desse ónus
46ª- A douta decisão recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos arts. 342° nº 1, 483°, 486°, 487° nº 2 , 491°, 493° e 570° e 799° do Código Civil, 659° nºs 2 e 3 e 660° nº 2 do Código de Processo Civil e as referidas Bases dos Dec.Lei n°315/91 de 20/8 e Dec-Lei nº 294/97 de 24/10.
A parte contrária contra-alegou, sustentando a negação da revista. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº1 e 684º nº 3, ex vi do disposto no art. 726º do C.P.Civil).
Nesta conformidade serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Ónus da prova do cumprimento das obrigações.
- Presunção de culpa e sua elisão.
2-2- Vem provada das instâncias a seguinte matéria de facto:
1- No dia 27 de Janeiro de 2000, pelas 10h e 15 m. o veículo de matrícula ...-...- ML, propriedade de “S... - Sociedade de Montagens Eléctricas e Construção Civil S.A.” conduzido por AA, seguia pela auto-estrada do Norte, sentido Norte-Sul, ao Km. 270, circulando à sua frente um veiculo ligeiro.
2- No local, a auto-estrada dispõe de duas filas de trânsito, atento o sentido Norte-Sul, de uma berma à direita e do lado oposto dispõe de um separador central composto por uma guia metálica.
3 - Os veículos acima referidos circulavam a uma velocidade de, pelo menos, 100 km hora, pela hemi-faixa direita, atento o seu sentido de marcha.
4 - Um cão vindo da berma direita penetrou na faixa de rodagem e procedeu ao seu atravessamento a correr, iniciando a travessia à frente do veículo que precedia o ML
5- O veículo que precedia o ML travou.
6- O condutor do ML, certificando-se previamente que nenhum veículo circulava nessa hemi-faixa, desviou-se para a hemi-faixa da esquerda.
7- O cão conseguiu fugir ao impacto com o veículo que precedia o ML e avançou para a hemi-faixa esquerda, onde já circulava o ML, interpondo-se à frente deste a uma distância inferior a 10 metros
8- O condutor do ML tentou travar, mas embateu com a parte frontal do veículo no cão.
9- Um ou dois segundos após o embate no cão, o veículo ML foi embatido na parte traseira pelo veículo de matrícula ...-...-FF, o que provocou a projecção do ML a cerca de 40/50 metros, de encontro aos “rails” do separador central, onde chocou com a sua parte frontal; depois disso rodopiou e acabou por se imobilizar na hemi-faixa esquerda da via, mais de dez metros para além do local onde chocou com os “rails”
10- O veículo FF circulava atrás do ML a urna distância inferior a 20 metros, seguia carregado com mercadorias de peso superior a cinco toneladas e não travou
11- O local do embate configura uma curva à esquerda com visibilidade superior a 50 metros.
12- O condutor do ML conduzia sob as ordens, instruções, conhecimento e consentimento de “S... - Sociedade de Montagens Eléctricas e Construção Civil S.A.”
13- O veículo FF era conduzido por BB sob as ordens, instruções, comando e com o consentimento de M..., Logística e Transportes de Mercadorias Lda.
14- Em consequência do embate, o ML ficou destruído na parte frontal e traseira, tendo o custo da sua reparação sido orçado, sem desmontagem, em 4.000.000$00.
15- A A. pagou à “S... Sociedade de Montagens Eléctricas e Construção Civil S.A.” a quantia de 3.724.000S00 e recebeu de CC a quantia de 726.000$00 correspondente aos salvados do ML.
16- A A. pagou a quantia de 11.423$00 relativa ao reboque do veículo do local do embate até à oficina e a quantia de 4.995$00 relativo a despesas do foro clínico do condutor do ML.
17- A R. B... procede ao patrulhamento da auto-estrada durante 24 horas por dia.
18- À data do embate, os patrulhamentos da R. B..., passavam no local de 12 a 15 vezes por dia a intervalos regulares; na manhã do acidente, o cão não foi avistado pelo patrulhamento de tal R. em nenhuma das suas passagens.
19- À data do embate, a GNR/BT patrulhava o local e não comunicou à R. “B...” a presença do cão.
20- A R. “B...” verifica periodicamente o estado de conservação das redes de vedação laterais e procede à sua reparação imediatamente após a detecção de algum rompimento.
21- No dia, hora e local do acidente a rede de vedação da auto-estrada encontrava-se em perfeito estado de conservação, não tendo sido detectada na mesma qualquer anomalia que permitisse a entrada de animais.
22- A vedação existente junto ao local do embate tinha a altura de 1,10 metros: a mesma obedece ao modelo aprovado pela (então) JAE.
23- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ... a “S... - Sociedade de Montagens Eléctricas e Construção Civil S.A.” transferiu para a A. a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ...-..-ML, o qual abrangia, para além do mais, os riscos de choque e colisão sendo, quanto a esta garantia, mediante o pagamento de uma franquia de 2%: tal contrato abrangia ainda o valor de substituição em novo durante os primeiros dois anos.
24- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 87/38299, foi transferida para a interveniente Companhia de Seguros F... Mundial, S.A., a responsabilidade pelo pagamento das indemnizações devidas a terceiro pela R. “B...” na sua qualidade de concessionaria de exploração da auto-estrada A1, com uma franquia a cargo da segurada de 748,20 euros.
2-3- A questão que debate no presente processo, responsabilidade das concessionárias de auto-estradas por acidentes nelas ocorrido em razão de animais que aí se introduzem, tem sido amplamente debatida na nossa jurisprudência e na doutrina. As decisões proferidas nos tribunais têm sido numerosas e nem sempre coincidentes.
Segundo uns, nas auto-estradas com portagens (o que sucede no caso vertente), existe um contrato inominado de utilização da via, celebrado entre o utente, pagador da taxa de utilização, e a concessionária que fornece o serviço. Ainda na tese contratual, deve inscrever-se a que considera existir um contrato de concessão celebrado entre a concessionária e o Estado, mas sendo beneficiário o utente da auto-estrada. Seria como um contrato a favor de terceiro que tinha por base o contrato de concessão celebrado entre a concessionária (B...) e o Estado, sendo terceiros os utentes das auto-estradas. Mediante este contrato os contratantes atribuem a terceiro um direito subjectivo que este pode autonomamente exercer contra a concessionária. Por fim, a tese da responsabilidade aquiliana, segundo a qual a concessionária responderá perante terceiros se, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (art. 483º nº 1 do C.Civil, diploma de que serão as disposição a referir sem menção de origem). Perante esta tese, o único contrato que existe é o que se estabeleceu entre o Estado e a concessionária (a que é alheio o utente), pelo que a responsabilidade a considerar será a extracontratual.
A adesão a cada uma das teses, designadamente às contratuais ou extracontratual tem evidente relevância prática, visto que, se se considerar que estamos no âmbito da responsabilidade contratual da concessionária, funciona contra ela a presunção de culpa a que alude o art. 799º, pelo que caberá à concessionária a prova de que agiu sem culpa, invertendo, assim, a presunção juris tantum imposta por lei (arts. 342º, 344º nº 1 e 350º). Se pelo contrário nos circunscrevemos na responsabilidade extracontratual, então, nos termos do art. 487º nº 1, é ao lesado que cabe provar a culpa do autor da lesão.
Neste Supremo Tribunal, também as diversas teses foram sendo adoptadas, sublinhando-se que a que defendia a tese da responsabilidade extracontratual se revelou predominante (entre muitos, Acórdãos 20-05-2003 (www.dgsi.pt/jstj.nsf, relator Conselheiro Ponce de Leão e de 12-11-1996 BMJ 461, 411 relator Conselheiro Cardona Ferreira) se bem que ultimamente se tenha esboçado uma tendência de adesão à tese contratualista, designadamente a partir da prolação do Acórdão de 22-06-2004 (www.dgsi.pt/jstj.nsf, relator Conselheiro Afonso Correia), altura a partir da qual o acórdão passou a ser regularmente citado por arestos posteriores.
Igualmente a doutrina se pronunciou sobre a questão debatida, da natureza jurídica da responsabilidade cível das concessionárias de auto-estradas, sustentando uns ocorrer a responsabilidade extracontratual (v.g. os Profs. Meneses Cordeiro - in Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas, Estudo do Direito Civil Português, 2004, pág. 56 e Carneiro da Frada in parecer apresentado na Revista deste STJ nº 650/07) e outros a responsabilidade contratual (v.g. Prof. Sinde Monteiro in Revista de Legislação e Jurisprudência anos 131- 41 e segs., 132º 29 e segs. e 133º 27 e segs.).
Entendemos ser desnecessário alongarmo-nos sobre estas teses, visto que foi, entretanto, publicada a Lei 24/2007 de 18/7 que veio estabelecer no seu art. 12º:
“1- Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais”.
Quer dizer e para o que aqui interessa, perante esta disposição é hoje claro que em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária. Ou seja, este dispositivo pôs fim à polémica relativa ao ónus da prova, remetendo a discussão sobre a natureza jurídica da responsabilidade civil das concessionárias de auto-estradas para fundamentos meramente teórico/académicos.
Claro que antes discutia-se o ónus da prova da culpa e hoje a lei fala em ónus da prova do cumprimento. Entende-se, porém ser irrelevante esta particularidade, visto que também na responsabilidade contratual, como decorre do disposto no art. 799º nº 1, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua. Resulta desta presunção que ela abrange não só a culpa como também a ilicitude do devedor. Na origem do não cumprimento existe uma conduta ilícita do devedor e que essa conduta é também culposa (vide Prof. Carneiro da Frada in Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra 1994, págs. 92 e segs. referido no dito parecer).
Terá aquela disposição aplicação ao caso vertente?
Como se sabe, nos termos do art. 12º nº 1 as normas, em regra, não têm aplicação retroactiva, razão porque não de deveria aplicar, em princípio, à situação em causa, já que ocorreu antes da entrada em vigor do dito preceito. Todavia as leis interpretativas devem integrar-se na lei interpretada e consequentemente têm aplicação imediata. A lei interpretativa deve considerar-se como remontando à data da lei interpretada. Assim o entende a doutrina dominante, não só nacional, mas também estrangeira (vide a este propósito “Da Aplicação das Leis no Tempo, Emídio Pires da Cruz, Lisboa, 1940). A retroactividade neste âmbito resulta de as leis interpretativas fazerem corpo com a lei interpretada, constituindo uma única lei. Não contêm nenhum princípio novo de direito. Consequentemente, os tribunais aplicando as leis interpretativas, estão, no fundo, a empregar a lei interpretada.
Assim, se se entender a disposição referenciada como uma norma interpretativa a mesma, por ter aplicação imediata (retroactiva), terá aplicação ao caso vertente.
As leis interpretativas podem ser assim definidas pelo legislador. Se o fizer não se levantará qualquer dúvida sobre essa sua natureza. Porém existem outras que, pese embora o legislador não as apode assim, dada a sua índole, terão que ser dessa forma qualificadas.
Quanto ao critério definidor destas leis, têm-se vindo a aceitar depender da existência cumulativa de dois elementos: a) a lei regular um ponto de direito acerca do qual se levantam dúvidas e controvérsias na doutrina e jurisprudência; b) a lei consagrar uma solução que a jurisprudência pudesse tirar do texto da lei anterior, sem intervenção do legislador (vide Emídio Pires da Cruz, obra citada, pág. 246). No mesmo sentido o Prof. Batista Machado (in Sobre a Aplicação no Tempo do novo Código Civil, 1968, págs. 286 e segs.) sustenta que a lei interpretativa, para ser assim considerada, exige-se o seguinte:
“1º- Ela intervém para decidir uma questão de direito cuja solução era controvertida ou incerta no domínio da vigência da L.A (lei antiga). Significa isto, antes de tudo, que, para que a LN (lei nova) possa ser interpretativa de sua natureza, é preciso que haja matéria de interpretação. Se a regra de direito era certa na legislação anterior, ou se a prática jurisprudencial lhe havia de há muito atribuído um determinado sentido, que se mantinha constante e pacífico, a LN que venha resolver o respectivo problema jurídico em termos diferentes deve ser considerada uma lei inovadora….
2º- A lei interpretativa, para o ser, há-de consagrar uma solução que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado no domínio da lei anterior. Significa este pressuposto, antes de mais, que se a LN vem na verdade resolver um problema cuja solução constituía até ali matéria de debate, mas a resolve fora dos quadros de controvérsia anteriormente estabelecida, deslocando-o para um terreno novo ou dando-lhe uma solução que o julgador ou o intérprete não estavam autorizados a dar-lhe, ela será indiscutivelmente uma lei inovadora….
Para que a LN possa ser concebida como uma lei interpretativa, será preciso que ela consagre uma forte corrente jurisprudencial ou doutrinal anterior? Não necessariamente…” A LA não tem de consagrar uma corrente doutrinal prevalecente, sendo suficiente a adopção de uma interpretação defendida anteriormente.
Face a estes pressupostos, somos em crer que a referenciada norma é interpretativa, consagrando uma das soluções controvertidas pela doutrina e jurisprudência. Resolveu um problema, cuja solução constituía até ali matéria de debate, dando-lhe uma solução dentro dos quadros de controvérsia anteriormente estabelecida. Não se trata de uma lei inovadora visto que não resolve o conflito em termos diferentes, no sentido de renovar a posição antes assumida pela jurisprudência e doutrina.
Este mesmo entendimento teve o Acórdão deste Supremo Tribunal de 13-11-2007 (www.dgsi.pt/jstj.nsf, relator Conselheiro Sousa Leite).
Como lei interpretativa, a mesma deve ter aplicação imediata e, por conseguinte, deve aplicar-se ao caso vertente.
Assim, face à disposição referenciada, tendo um canídeo entrado na auto-estrada e determinado o acidente, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária, isto é, à R. B....
Resulta da Base XXXVI, nº 2 do contrato de concessão (DL 294/97 de 24/10) que “a concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, assegurar permanentemente em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham por si sido construídas, quer lhe tenham sido entregues para conservação, sujeitas ou não ao regime de portagem”.
No que toca a caso de força maior excludente da responsabilidade da concessionária na manutenção das auto-estradas em boas condições de comodidade e segurança, deveremos sublinhar que o conceito de «caso de força maior» não aparece definido naquela Base. Porém, a Base XLVII nº 2 a propósito de isenção de responsabilidade da concessionária em razão da falta, deficiência ou atraso na execução do contrato, o legislador define o «caso de força maior», dizendo que “…se consideram casos de força maior unicamente os que resultem de acontecimentos imprevistos e irresistíveis cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou circunstâncias pessoais da concessionárias, nomeadamente actos de guerra e subversão, epidemias, radiações atómicas, fogo, raio, graves inundações, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que directamente afectem os trabalhos de concessão”.
Em sentido idêntico estabelece o nº 3 do art. 12º da mencionada Lei 24/2007 que são excluídos da responsabilidade da concessionária “os casos de força maior que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra”.
Face ao estabelecido nesta Lei, pode-se dizer que hoje é permitido à concessionária a elisão da presunção de incumprimento em todos os casos e não apenas nos casos de força maior.
Para o que aqui interessa, devemo-nos focar, tão só, na presunção de incumprimento das obrigações de segurança com que o nº 1 do referido art. 12º onera a concessionária.
No caso vertente, como se refere no acórdão recorrido sem qualquer polémica, provou-se que o embate e consequente despiste do veículo em causa, resultou do facto de um cão estar a atravessar a auto-estrada.
Provou-se ainda que A R. B... procede ao patrulhamento da auto-estrada durante 24 horas por dia, à data do embate, os patrulhamentos da R. B..., passavam no local de 12 a 15 vezes por dia a intervalos regulares; na manhã do acidente, o cão não foi avistado pelo patrulhamento de tal R. em nenhuma das suas passagens e a GNR/BT que patrulhava o local e não comunicou à R. “B...” a presença do cão. A R. “B...” verifica periodicamente o estado de conservação das redes de vedação laterais e procede à sua reparação imediatamente após a detecção de algum rompimento. No dia, hora e local do acidente a rede de vedação da auto-estrada encontrava-se em perfeito estado de conservação, não tendo sido detectada na mesma qualquer anomalia que permitisse a entrada de animais. A vedação existente junto ao local do embate tinha a altura de 1,10 metros: a mesma obedece ao modelo aprovado pela (então) JAE.
A pergunta que se nos coloca é a de saber se, face a estes factos, a R. logrou elidir a presunção de incumprimento que sobre si impende, provando que actuou com diligência e sem qualquer culpa de sua parte.
Nas instâncias respondeu-se afirmativamente à questão, concluindo-se ter a R. provado que agiu sem culpa, tendo cumprido, dentro do exigível, o seu dever de vigilância que lhe competia.
No recurso a recorrente sustenta que caberia à R. B... provar que a presença do cão não se deveu a falta obrigacional sua. Para tanto deveria provar que o cão surtiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na AE intencional ou negligentemente por alguém. O simples patrulhamento no local, de duas em duas horas, não impediu, nem é apto a impedir este tipo de eventos. Nem, tão pouco, uma rede de protecção com 1,10 de altura, como é manifesto.
Temos para nós que a R. B... provou genericamente ter cumprido as suas obrigações de vigilância e de conservação das redes laterais da via. Mas o certo é que, mesmo assim, o cão se introduziu na auto-estrada, o que nos leva a concluir que, em princípio, existe um incumprimento concreto por parte da R., pois ela mediante o contrato que celebrou com o Estado, comprometera-se, para além do mais, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas. E fora de qualquer dúvida, a introdução numa auto-estrada, via por essência de trânsito automóvel rápido, de um cão coloca sérios problemas de segurança rodoviária. Por outro lado, o aparecimento daquele animal na via, nega a obrigação de segurança viária que cabe a R. proporcionar aos utentes da via, correspondendo esse surgimento a uma perigosa violação da segurança do tráfego automóvel. Ou seja, pese embora tenha provado que genericamente cumpriu as suas obrigações decorrentes do contrato de concessão, o certo é que não demonstrou, no caso concreto, a observância desses mesmos deveres.
Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 22-06-2004 já acima referido “o aparecimento de um cão de elevado porte na faixa de rodagem de uma auto-estrada constitui reconhecido perigo para quem ali circula. Cabe à B... evitar essa (e outras) fonte de perigos, essa anormalidade. Não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da B... ou da origem do cão porque não foi a prestação dele que falhou nem ele tem a direcção efectiva, o poder de facto sobre a auto-estrada (como um todo, incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço). Como acima ficou dito, só em «caso de força maior devidamente verificado» exonera o devedor (a concessionária) da sua obrigação de garantir a circulação em condições de segurança e, na hipótese de inexecução, o dever de reparar os prejuízos causados. Isto significa, no essencial, que não será suficiente (ao devedor, a B...) mostrar que foi diligente ou que não foi diligente: terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento. Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente”.
Para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria pois a R. provar, em concreto, que o canídeo surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na auto-estrada, negligente ou intencionalmente, por outrem. Isto é, sempre que há um acidente devido a um cão (ou outro animal) que se introduziu numa auto-estrada, presume-se o incumprimento da concessionária. Esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem. Ou, como se refere no acórdão de 22-6-2004, “terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento”.
Parece-nos ser esta posição a mais equilibrada e justa, já que, de contrário, considerando-se suficiente a prova genérica de que a R. cumpriu as obrigações decorrentes do contrato de concessão, acabaria por se colocar nos ombros do lesado a produção de uma prova que se revelaria de todo difícil, ou até impossível, de fazer.
Nos acidentes com animais (ou com outros objectos) em auto-estradas quem mais facilmente pode provar a proveniência do animal (ou objectos) é a concessionária. Só ela tem, pode ou deve ter, os meios idóneos à monitorização do tráfego, da circulação viária e da segurança, meios que lhe devem permitir detectar a introdução na via de animais ou de objectos nocivos à circulação automóvel. O utilizador da via depara-se com a óbvia e notória dificuldade natural em recolher meios ou elementos de prova. Não pode, como é notório, permanecer na auto-estrada com vista a determinar a causa da introdução do animal aí, nem sequer tem, normalmente, equipamentos técnicas de recolha de prova.
Respondendo, de forma resumida, às objecções da R. B..., somos em crer que a obrigação que impende sobre si é uma obrigação de resultados, já que existe, por banda da concessionária, a obrigação de promover e concretizar uma boa circulação rodoviária nas auto-estradas. A este propósito convém repetir que a referida Base XXXVI, nº 2 do contrato de concessão (DL 294/97 de 24/10) estipula que a concessionária será obrigada assegurar permanentemente em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas (sublinhado nosso).
De forma muito sintética, diremos que entendemos não ser inconstitucional o art. 12º da Lei 24/2007, não atentando contra a igualdade rodoviária porque, contra o que sustenta a recorrida, as regras estabelecidas para as auto-estradas justifica-se serem diversas das designadas para as estradas comuns. De resto o princípio da igualdade (que tem consagração constitucional no art. 13º da Constituição) diz respeito aos cidadãos e não a empresas.
Por outro lado, a Lei em causa, a nosso ver, não desrespeita qualquer convenção assumida. Como acima já referimos, a presunção de culpa a que alude o art. 799º, já inclui não só a culpa como também a ilicitude do devedor, pelo que não existe qualquer inovação teórica na referida Lei.
Acresce que não vemos que tenha existido, por banda do legislador ordinário, o propósito e atingir selectivamente determinadas categoria de pessoas ou entidades.
Entendemos ser impróprio falar-se que a Lei introduziu a responsabilidade objectiva para a concessionária. Não o fez, apesar de se considerar, face ao nosso entendimento, ter-se tornado mais difícil, mas não impossível, o afastamento da presunção de incumprimento que impende sobre si. De sublinhar ainda que nem sequer se pode dizer que, com a publicação, ficou numa situação de desfavor, visto que com as normas que antes vigoravam, já tinham existido decisões, designadamente o Acórdão deste STJ acima citado de 22-06-2004, que assumiu uma posição semelhante à do presente acórdão (que aplicou o estipulado nessa Lei).
Em síntese:
Perante a posição que assumimos não basta à R., para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, a demonstração genérica de ter cumprido as suas obrigações de vigilância e de conservação das redes laterais da via. Para além do caso de força maior devidamente verificado a poder desonerar das suas obrigações, apenas a demonstração em concreto das circunstâncias que levaram a intromissão do animal na via é que poderão conduzir a um juízo conclusivo de que ela não deixou de realizar o cumprimento das suas obrigações. Só assim estabelecerá “positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento”
Quer dizer que o recurso procederá.
III- Decisão:
Por tudo exposto concede-se a revista e, em consequência, julga-se acção procedente, condenando-se, solidariamente, a R. e a Seguradora interveniente, Companhia de Seguros F..., S.A., no pagamento à A. da quantia 15.035,85 €, acrescida de juros de mora contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento, à taxa legal.
Custas na acção e nos recursos pela R..
Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Setembro de 2008
Garcia Calejo (Relator)
Mário Mendes
Sebastião Póvoas