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ACÇÃO EXECUTIVA
LETRA
RELAÇÕES MEDIATAS
ENDOSSO
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
Sumário
I - A propósito do significado da fórmula empregada na parte final do art. 17.º da LULL têm-se desenhado duas correntes doutrinais: uma que considera suficiente que o adquirente, conhecendo as excepções, tivesse, ao adquirir a letra, consciência do prejuízo do devedor; outra que reputa indispensável que a aquisição seja feita com a intenção de prejudicar o devedor ou vontade de lhe causar prejuízo. É preferível a primeira dessas teses, sendo a que colhe apoio jurisprudencial mais consistente e se mostra mais favorável ao devedor. II - Mostrando os factos provados que o Banco exequente, ao adquirir, como endossatário, as letras sacadas e aceites, agiu de má fé e com a consciência de causar prejuízo à executada/ embargante, pois sabia que se destinavam à abertura de crédito que permitira a importação da máquina a adquirir pela aceitante e destinou-as, pelo desconto, a solver uma dívida da sacadora para com ele Banco, sabendo que assim frustraria a aquisição da máquina, tinha a embargante inteira justificação para não pagar as letras, carecendo de fundamento legal a execução destinada ao pagamento coercivo das mesmas.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I –Por apenso à acção executiva instaurada, no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda, pelo BANCO AA, SA. (agora BANCO BB, SA)contra CC – TECNOLOGIA INDUSTRIAL, LDA. e DD, LDA. com base em 16 letras de câmbio sacadas pela 1.ª executada e aceites pela 2.ª e endossadas pela sacadora ao AA, veio a DD deduzir oposição por embargos.
Alega, em síntese, a embargante:
A DD negociara com a CC a aquisição de uma máquina industrial, a ser importada por esta, pelo preço global de 51.264.000$00 (€ 255.704,00) de capital e juros, e as letras emitidas destinavam-se a entregar ao AA a fim de, com o seu desconto, ficar disponível o montante respectivo para proceder a uma abertura de crédito;
EE (representante legal da CC) convencionou com a DD que, para o AA emitir os documentos necessários à importação e à abertura de crédito, a DD entregaria letras no dito valor. As letras destinavam-se à abertura de crédito, que por sua vez permitiria a emissão dos documentos para a CC importar a máquina. Por isso, a DD entregou a EE 48 letras de 1068 contos cada uma (entre as quais as dadas à execução), o qual as entregou ao AA para este efectuar a abertura de crédito que possibilitasse a importação;
Mas o AA não procedeu dessa forma. Embora soubesse do dito negócio e da finalidade das letras, descontou-as, mas canalizando o montante para liquidar dívidas vencidas da CC ao AA. O AA sabia que assim inviabilizaria o negócio.
Até hoje a máquina não foi entregue à embargante e esta não pagou as letras.
Os embargos foram liminarmente recebidos e foram contestados pelo exequente, que sustentou:
Nunca conheceu o dito negócio, a nada se comprometeu quanto a ele; aceitou a proposta de desconto feita pela CC e, por esta via, concedeu crédito à CC, que é livre de utilizar o financiamento como entender.
Foi proferido despacho saneador, seleccionado o elenco dos factos assentes e elaborados os quesitos da base instrutória, que não vieram a ser objecto de reclamação.
Procedeu-se à realização do julgamento, com observância do legal formalismo, tendo sido dada resposta aos quesitos da matéria de facto, sem qualquer reclamação.
De seguida, foi proferida a sentença, que julgou os embargos improcedentes.
Inconformada, interpôs recurso de apelação a embargante, recurso que foi admitido.
A Relação de Coimbra veio a julgar procedente o recurso interposto e a revogar a decisão impugnada, de modo que, na procedência dos embargos, julgou extinta a execução instaurada.
Desse acórdão veio a embargada interpor recurso de revista, recurso que foi admitido.
A Recorrente remata o seu recurso com as seguintes conclusões, que, em claro desrespeito do comando do Artigo 690.º do Código de Processo Civil reproduz quase textualmente as contralegações da apelação (só o ponto 11. surge modificado):
1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou a improcedência da petição de embargos deduzida pela aqui Recorrente, em virtude de o mesmo ter entendido que a Apelante não provou o vício invocado, traduzido na utilização das letras pelo embargado para fim diverso do acordado, ou sequer o respectivo conhecimento do Exequente/embargado.
2. A Recorrente não se conformando com tal Sentença dela apelou invocando, em suma, que o ponto 15.º da base instrutória deveria ter sido dado como provado, concluindo pela aplicação da parte final do art. 17.º da LULL e que a actuação do embargado consubstancia uma situação de abuso de direito, sem, no entanto, indicar a violação de qualquer dispositivo legal.
3. Nas conclusões de recurso a que se responde não foi dado cumprimento ao vertido no n.º 2 do art. 690.º do C.P.C., pelo que deverão V. Exas. proferir um despacho nos termos do n.º 4 do citado artigo.
4. O Recorrido entende que o Tribunal a quo bem decidiu ao dar como não provado o quesito 15.º da base instrutória, pelo que deverá manter-se toda a factualidade dada como provada.
5. Também não sofre dúvida o acerto da decisão de fundo, quanto à interpretação do art.º 17.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
6. A ora recorrente, pelo só facto de apor a sua assinatura nas letras executadas, obrigou-se cambiariamente perante o endossado portador legítimo da letra (art°s. 28.º 14.º, 16.º, 47.º e 48.º da L.U.L.L).
7. No caso que se discute, a letra, quanto a Recorrente e Recorrido, situa-se no campo das relações mediatas; pelo que só se o Banco, ao adquirir essa letra pelo endosso, tiver procedido conscientemente em detrimento da aceitante, a esta é lícito opor-lhe as excepções fundadas sobre as relações pessoais dela com a sacadora ou com o próprio portador que tenha intervindo na relação extra-cartular.
8. Nos títulos de crédito abstractos as excepções ex causa podem ser invocadas entre os signatários do título que sejam sujeitos do mesmo negócio causal, mas não entre os que o não sejam, a não ser que se verifique o caso previsto na parte final do artigo 17.º da Lei Uniforme sobre Letras, isto é, que o portador ao adquirir o título haja procedido conscientemente em detrimento do devedor, o que se justifica pela ilegalidade da aquisição.
9. Não sendo Banco e Embargante sujeitos do mesmo negócio causal, improvado que aquele conhecesse, ao receber da sacadora, para desconto, as letras dadas à execução, as circunstâncias em que tais letras foram aceites e o inerente prejuízo para a aceitante, são-lhe inoponíveis tais relações e circunstâncias.
10. Acresce que os embargos sempre improcediam, pois não é o Banco portador endossado quem tem de provar que usou do mínimo de diligência para se inteirar das condições em que as letras descontadas foram adquiridas e preenchidas, antes cumpre à aceitante recorrente, nos termos do n.º 2 do art. 342.º do CC, provar a matéria exceptiva prevenida no art. 17.º da LULL.
11. Em face do supra exposto, deverá ser revogado o Acórdão recorrido e substituído por outro que julgue improcedentes os embargos de executado deduzidos pela ora recorrida.
Foi apresentada resposta, defendendo a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
II.A. De Facto
II.A.1. Foram dados como provados pelas instâncias os seguintes factos:
A) – Na execução ordinária n.º 2063/03.8TBAGD, apensa, foram apresentadas, como títulos executivos, as letras seguintes, todas sacadas pela executada “CC – Tecnologia Industrial, Lda.”, e aceites pela executada “DD, Lda.”:
1 – letra com o valor de 2.683,53 euros, emitida em 28/12/2001 e com vencimento em 28/02/2002;
2 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/12/2001;
3 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/01/2002;
4 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/12/2001;
5 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/07/2002;
6 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/08/2002;
7 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/09/2002;
8 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/01/2003;
9 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/12/2002;
10 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/10/2002;
11 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/11/2002;
12 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/02/2003;
13 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/02/2002;
14 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/03/2002;
15 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/05/2002;
16 – letra com o valor de 1.068.000$00 (5.327,16 euros), emitida em 01/02/2000 e com vencimento em 25/03/2003 (docs. de fls. 8 a 23, aqui dados por reproduzidos);
B) – Tais letras foram endossadas ao embargado, pela sacadora, para desconto bancário;
C) – Apresentadas a pagamento nas referidas datas de vencimento, tais letras não foram pagas nessas datas, nem posteriormente;
D) – A embargante acordou com a empresa “CC – Tecnologia Industrial, Lda.” adquirir uma máquina industrial denominada centro de maquinagem de marca “Hatford”, modelo “..........” – resposta ao quesito 1.º;
E) – Tal máquina iria ser importada pela “CC” – resposta ao quesito 2.º;
F) – As referidas letras destinavam-se a titular as prestações acordadas entre vendedora (“CC ...”) e compradora (a embargante) do preço da venda dessa máquina – resposta ao quesito 3.º;
G) – O referido negócio foi efectuado pela quantia de 36.000.000$00, mais IVA e juros incluídos – resposta ao quesito 5.º;
H) – Num total de esc. 51.264.000$00 (correspondente a 255.704,00 euros) – resposta ao quesito 6.º;
I) – Esta negociação entre a embargante e a referida “CC” ocorreu em Janeiro de 2000 – resposta ao quesito 7.º;
J) – O representante da “CC”, EE, referiu aos representantes da embargante que seria necessário que esta procedesse à entrega de letras no acima referido valor – resposta ao quesito 8.º;
L) – A entrega das letras teve a finalidade aludida na resposta ao quesito 3.º da base instrutória – resposta ao quesito 9.º;
M) – O embargado utilizou o montante dessas letras para liquidar dívidas vencidas da “CC” ao “AA” – resposta ao quesito 14.º;
N) – O embargado sabia do negócio entre a embargante e a CC, negócio esse tendente à aquisição da máquina pela DD e à sua importação – resposta ao quesito 15.º;
O) – E que as ditas letras se destinavam a permitir uma abertura de crédito – resposta ao quesito 16.º;
P) – Que por sua vez permitiria a libertação da documentação bancária necessária a emitir pelo próprio embargado necessária e essencial para a aquisição e importação da máquina – resposta ao quesito 17.º;
Q) – O embargado e a CC, ao utilizarem o valor proveniente do desconto das letras mencionadas para liquidação de outras dívidas daquela, já vencidas, sabiam que comprometiam irremediavelmente o negócio de aquisição e importação da máquina – resposta ao quesito 18.º;
R) – Parte dessas letras são as dadas agora à execução (referidas em A) supra) – resposta ao quesito 19.º;
S) – A referida máquina deveria ter sido entregue à embargante em Março de 2000 – resposta ao quesito 20.º;
T) – Até hoje não foi entregue – resposta ao quesito 21.º;
U) – Por esta razão a embargante não procedeu ao pagamento das letras mencionadas – resposta ao quesito 22.º.
II.B. De Direito
II.B.1. Como se sabe, o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes (art.º 684.º. n.º 3, e 690.º, n.os 1 e 3, do CPC), importando decidir as questões nelas colocadas e bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.º 660.º, n.º 2, também do CPC.
II.B.2. Está apenas em discussão neste recurso o entendimento sufragado no acórdão recorrido quanto ónus da prova e quanto à interpretação do artigo 17.º da LULL.
A primeira questão prende-se com a fixação e alteração da matéria de facto pela Relação e exorbita dos poderes deste Tribunal.
A recorrente, aliás, não diz em que medida a decisão recorrida violou o comando do artigo 342.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, sendo certo que, como se disse, a referência a tal normativo surge para corroborar a bondade do decidido na 1.ª instância (no recurso de apelação) e não para criticar a actuação da Relação.
A Relação fez uso, no caso, dos poderes conferidos pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil, não tendo o recorrente apresentado qualquer argumento contra o aí decidido.
Não vem invocada nem se vislumbra ocorrer qualquer das situações previstas no artigo 722.º, n.º 2 ou 729.º, n.º 3,do Código de Processo Civil.
Inexiste, por isso, a presumível violação da citada norma adjectiva.
Passemos, consequentemente, à questão da aplicação do artigo 17.º da LULL.
Disse-se no acórdão recorrido:
“O provado mostra que entre a DD e a CC e com conhecimento do AA se estabeleceu um negócio causal das letras e a convenção executiva: aquisição da máquina pela DD a importar pela CC, mediante antecipada disponibilização em abertura de crédito no AA, por força de capital representado nas letras emitidas, com aceite da DD a favor da CC que as endossou ao AA para tal abertura de crédito com essa finalidade. O que era do conhecimento do exequente AA, não é demais sublinhar.
A executada DD e o exequente AA estão em relação mediata. O endossado e exequente AA é portador mediato das letras aceites pela sacada e executada-opoente DD. O negócio causal não foi celebrado por estas entidades.
Por regra geral, as excepções derivadas da relação fundamental ou causal só podem ser opostas ao portador nas relações imediatas (relações nas quais os sujeitos cambiários são concomitantemente sujeitos de convenções extra-cartulares) e não ao portador mediato, pois que por essa regra operam os princípios da autonomia e literalidade nas relações mediatas. Enquanto nas relações imediatas tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, isto só em termos excepcionais e restritos pode ocorrer nas relações mediatas.
Com efeito, o artigo 17.º da LULL, consagrando aquela regra, do mesmo passo restringe-a, nos seguintes termos:
«As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas (…) com o sacador ou com os portadores anteriores (…), a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor».
A parte final deste preceito torna excepcionalmente oponíveis tais excepções pessoais ao portador mediato (…) desde que este, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento (=prejuízo) do devedor.
Para a oponibilidade da excepção ao portador mediato, pressuposto necessário não é a simples má fé, ou seja, não basta que ele conhecesse o vício ocorrido na relação anterior estabelecida entre o opoente devedor e o portador anterior ao actual demandante (…).
Os factos provados N) a Q) mostram que o exequente AA, ao adquirir as letras como endossatária, agiu de má fé e com a consciência de causar prejuízo à embargante, pois que as adquiriu para uma finalidade diferente daquela que sabia a que se destinavam as letras sacadas e aceites: sabia que se destinavam à abertura de crédito que permitiria a importação da máquina a adquirir pela aceitante e destinou-as, pelo desconto, a solver uma dívida da sacadora para com ele AA, sabendo que assim frustraria a aquisição da máquina.
Admita-se que o AA, ao receber as letras por endosso, tinha à face das estritas regras da LULL o direito de as destinar ao que bem entendesse ou ao que tivesse convencionado apenas com a CC. Mas, pelos factos provados N) a Q), agiu em abuso do seu direito nos termos do artigo 334º do Código Civil. E assim agiu porque sabia que a sua aquisição das letras tinha uma finalidade completamente diferente da que lhes deu, assim frustrando conscientemente a finalidade da emissão e aceite dos títulos, com prejuízo para o aceitante que assim não pôde adquirir a máquina cujo preço estava representado no montante das letras.
Tinha a embargante inteira justificação legal para não pagar as letras, como não pagou. E a execução, destinada ao pagamento coercivo do montante das letras, também carece de fundamento legal.”
Acompanhamos o decidido na Relação, na medida em que se aplicou correctamente, face à matéria provada, o artigo 17.º da LULL.
Como se sabe, no direito cambiário há que distinguir entre relações imediatas e relações mediatas.
Nas relações imediatas – que são, por via de regra, as que se estabelecem entre os subscritores originais da letra – esta ainda não entrou em circulação, pelo que não há interesses de terceiros a proteger.
Nesse domínio não desempenha a letra a sua função autónoma e abstracta, pelo que qualquer das partes pode demonstrar o conteúdo da relação extracartular que esteve na origem do título cambiário.
Nas relações mediatas – as que se verificam quando a letra está na posse de pessoa estranha à convenção extracartular – o título já entrou em circulação, pelo que, havendo interesses de terceiros em jogo, que é preciso garantir, prevalece o princípio da autonomia, abstracção e literalidade da relação cambiária, independente por isso mesmo da causa que deu lugar à sua assunção e assim os subscritores da letra não podem discutir com terceiros a convenção extra-cartular, a menos que se verifique a situação prevenida no já citado artigo 17.º do LULL (vide Ac. da Relação do Porto, de 15.5.79, na CJ, ano III, tomo III, p. 949 e Ac do STJ de 1. 7.2003, proc. 03A1811, in www.dgsi.pt).
No caso que se discute, a letra, quanto a Recorrente e Recorrido, situa-se no campo das relações mediatas; pelo que só se o Banco, ao adquirir essa letra pelo endosso, tiver procedido conscientemente em detrimento da aceitante, a esta é lícito opor-lhe as excepções fundadas sobre as relações pessoais dela com a sacadora.
Do acórdão do STJ, a que acima fizemos referência, transcrevemos o seguinte:
“A propósito do significado da fórmula empregada na parte final da referida disposição legal têm-se desenhado duas correntes doutrinais.
Para uma delas é suficiente, para que possa funcionar o dispositivo da parte final daquele artigo, que o adquirente, conhecendo as excepções, tivesse, ao adquirir a letra, consciência do prejuízo do devedor; para a outra torna-se indispensável que a aquisição seja feita com a intenção de prejudicar o devedor ou vontade de lhe causar prejuízo.
A primeira orientação foi defendida pelo Professor Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, III, págs. 69) e tem sido a adoptada no Supremo Tribunal de Justiça (Acs. de 21-5-1965, 16-11-1965 e 26-11-1974, in Boletins nºs. 147, págs, 313, págs. 283 e 241, págs. 315, respectivamente).
Fundamentando aquela sua posição, argumenta o referido Professor:
«Confrontando o art.º 17.º com o art.º 16.º logo se alcança que o pressuposto necessário, segundo aquele preceito, da oponibilidade da excepção não é a simples má-fé: conhecimento do vício anterior. Mais se exige, além do simples conhecimento, que o portador tenha agido, ao adquirir a letra, com a consciência de estar a causar um prejuízo ao devedor. E quando é que se verifica a consciência de causar um prejuízo? Ao que parece, quando o portador «tenha tido conhecimento da existência e legitimidade das excepções que o devedor poderia opor ao seu endossante», (dele portador).
Não basta, pois, o mero conhecimento, por parte do portador, do facto que fundamenta a excepção. O portador deve ter sabido da existência e legitimidade desse meio de defesa – e também que da transmissão da letra resultaria ficar o devedor dele privado. E se o portador acreditar justificadamente, dadas as circunstâncias do caso, que o devedor renunciara à excepção em face do seu endossado – então é certo que o conhecimento da mesma excepção não envolve aquela consciência de causar um prejuízo que segundo o art.º 17.º constitui o elemento decisivo» (ob. cit. págs., 57 e 68/69).”
Continuamos a recorrer ao acórdão do STJ de 1 de Julho de 2003 que, por sua vez continua a citar FERRER CORREIA:
«Por outro lado, o momento decisivo para determinar se o referido pressuposto se verifica é o da aquisição da letra pelo portador. É claro o art.º 17.º neste sentido e nem outra solução se justificaria: gravemente ameaçada ficaria a circulação da letra se relevasse o tomar posteriormente o portador consciência de que a aquisição do título havia causado um prejuízo a um subscritor cambiário anterior. É caso, pois, de dizer que mala fides superveniens non nocet» (ob. cit. págs. 18).
O entendimento de FERRER CORREIA é também a doutrina dominante, sendo perfilhada, por exemplo, pelo PROF. PINTO COELHO (Lições de Direito Comercial, 2.º vol., fasc. IV – As Letras, pp. 66 e ss.
Todavia, PINTO COELHO, depois de acentuar que é fora de dúvida que a expressão «ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor» comporta a interpretação de que nela se considera a simples consciência do prejuízo no momento da aquisição da letra, e o conhecimento de que a aquisição da letra acarreta de facto um prejuízo para o devedor, pela impossibilidade em que o coloca de se valer das excepções que tinha contra o sacador ou contra qualquer endossante, sendo até aquela fórmula mais adequada a exprimir a ideia do que a de uma intenção ou propósito de prejudicar o devedor, acaba por concluir que o exame cuidado das circunstâncias em que decorreu a discussão no seio da conferência (de Genebra) vem realmente a admitir que é a intenção de prejudicar o devedor com a aquisição da letra que se pretende visar com a restrição da parte final do art.º 17.º, sendo essa intenção que corresponde à exceptio doli generalis – a que se refere o relatório da Comissão de Redacção –, em termos que revelam tratar-se de uma qualificação jurídica da restrição final do artigo, e que insistentemente se invocara já, no decurso da discussão do preceito em Genebra (ob. cit. pp. 70 e 71)»
Considera-se das duas orientações expostas mais aceitável a primeira, isto é, aquela que afirma ser suficiente que o adquirente, conhecendo as excepções, tivesse, ao adquirir a letra, consciência do prejuízo do devedor, a qual é, de resto, como já se deixou indicado, a que colhe a apoio jurisprudencial mais consistente.
É, de facto, a mais favorável ao devedor e, por isso, aquela que melhor protecção lhe dispensa.
No mesmo sentido veja-se o acórdão deste STJ de 27.06.06, proc. 06A1875, igualmente em www.dgsi.pt.
Bem se decidiu, por isso, ao julgar extinta a execução.