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CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VENDA AD CORPUS
ERRO
ESSENCIALIDADE
Sumário
I) - Se o comprador de dois prédios que conhecia os adquire em conjunto por certo preço negociado com o vendedor, sem voluntariamente atender à área, nem ao preço/m2, celebrou um contrato de compra e venda “ad corpus” e não “ad mensuram”, sendo aplicável o normativo do art. 888º do Código Civil.
II) – O facto de posteriormente ter verificado que os terrenos tinham área inferior à que supunha não evidencia defeito intrínseco da coisa, nem erro essencial, porquanto não foi determinante da decisão de comprar o facto dos terrenos terem uma certa área.
III) – Nem todo o erro na declaração é juridicamente relevante, são requisitos de relevância do erro na declaração: a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual o erro incidiu e a cognoscibilidade da essencialidade pelo declaratário.
IV) – A essencialidade do erro, ou a essencialidade do elemento sobre que incidiu, não significa outra coisa senão que o declarante não teria emitido a declaração de vontade negocial com o sentido que veio a ser exteriorizada.
Texto Integral
1
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA, propôs, em 5.8.2002, no Tribunal da Comarca de Braga, a presente acção declarativa, com forma de processo ordinário contra: BB
CC e mulher, DD.
Pedindo a condenação solidária dos RR. a pagarem-lhe a quantia de € 461.734, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da escritura, e uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, decorrente dos danos de natureza patrimonial e não patrimonial sofridos em consequência do cumprimento defeituoso do contrato.
Alega para tanto, em síntese, que:
- antecedido de outorga de contrato promessa, por escritura pública de 30 de Agosto de 2001, celebrou com os RR. um contrato de compra e venda, na qual figura como compradora e os RR. como vendedores, através do qual adquiriu aos RR., pelo preço de 140.000.000$00 (€ 699.000,00), que pagou, os prédios que identifica, vindo posteriormente a verificar que, ao contrário do que consta da identificação matricial e registral e da descrição deles no contrato promessa, eles possuem apenas a área global de 244.419 m2 e não 574.000 m2;
- ao projectar e efectuar a transacção, na aceitação do preço foi determinante da sua opção de compra a área dos prédios; os RR. sabiam que eles não possuíam a área que lhe garantiram pelo que lhe assiste o direito à redução do preço proporcionalmente à verificada redução da área global dos prédios, no montante global de € 461.734, bem como ao recebimento de uma indemnização pelo atraso na rentabilização comercial dos prédios e pelo incómodo e preocupação que a situação lhe acarreta.
Contestaram os RR., por excepção, invocando os 2ºs RR. a incompetência territorial do Tribunal, pugnando pela competência do Tribunal da Comarca de Vila do Conde, e a ineptidão da petição, e o 1º R. a do abuso do direito, e por impugnação, aduzindo que venderam os prédios pelo preço global acordado, face às potencialidades dos mesmos e independentemente da área que possuíam, que também desconheciam e, se existe erro, ele afectou as vontades de ambas as partes, e, deduzindo pedido reconvencional, pedem que seja anulado o negócio com as legais consequências, restituindo-lhes a Autora os prédios e eles à Autora o preço, e que seja ordenado o cancelamento dos registos posteriores efectuados sobre os imóveis.
Terminam pela procedência das excepções e da reconvenção e pela improcedência da acção, peticionando ainda os 2ºs RR. a condenação da Autora como litigante de má fé, no pagamento de multa e indemnização.
Replicou a Autora no sentido da improcedência das excepções e dos pedidos reconvencionais, e, para além de reafirmar o alegado e concluindo como na petição inicial, pede a condenação dos RR. como litigantes de má fé, no pagamento de multa e indemnização, esta não inferior a € 25.000,00.
Na procedência da excepção de incompetência, em razão do território, arguida pelos 2ºs RR., foram os autos remetidos ao Tribunal da Comarca de Vila do Conde, – 1º Juízo Cível – onde veio a ser proferido despacho saneador que, afirmando a validade e regularidade da instância, desatendendo a excepção de ineptidão da petição inicial e não admitindo o pedido reconvencional formulado pelos RR., declarou a matéria assente e elaborou base instrutória.
Tendo os RR. agravado do despacho saneador na parte em que não admitiu o pedido reconvencional, agravo a que o Tribunal da Relação do Porto deu provimento, foi, em obediência ao mesmo, aditada a base instrutória.
Após instrução da causa, com realização de prova pericial colegial, procedeu-se a julgamento com gravação e observância do formalismo legal, em que foram parcialmente atendidas as reclamações deduzidas pelos RR. quanto à selecção da matéria de facto, e, sem que a decisão da matéria de facto tivesse sido objecto de censura.
A final foi proferida sentença que, considerando inexistir litigância de má fé, julgou improcedentes a acção e as reconvenções, absolvendo RR. e Autora dos respectivos pedidos.
Inconformada a Autora recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por Acórdão de 21.2.2008 – fls. 673 a 687 – julgou o recurso improcedente e confirmou a decisão apelada.
De novo inconformada a Autora recorreu para este Supremo Tribunal e, alegando, formulou as seguintes conclusões:
I – Com o devido respeito, entendemos que o tribunal de segunda instância não apreciou, como devia, as questões suscitadas na apelação;
II – Os prédios vendidos à Autora não possuem a área constante das certidões prediais e matriciais de 574,000m2, que foram pressuposto da celebração do contrato de compra e venda, pois possuem, apenas, a área de 240.419m2;
IIII – A recorrente adquiriu tais prédios no pressuposto de que os mesmos possuíam a área exarada nos documentos públicos;
IV – Como tal área foi pressuposto da negociação e concretização do negócio, a compradora fez constar, expressamente, as áreas dos dois prédios no contrato-promessa de compra e venda, celebrado por recorrente e recorridos, em 31.05.2001;
V – Como é óbvio, caso não tivesse sido pressuposto dessa compra aquelas áreas, de 261.000m2 e 3 13.000m2, não teria, seguramente, feito constar tais áreas, expressamente, nesse contrato;
VI – Sucede que a Autora que pensava adquirir dois prédios com 574.000m2 adquiri-os com menos 333.581 m2 ou seja, menos trinta e três hectares e meio, pois, aqueles prédios possuem apenas 240.419 m2, com um valor igual ao da compra, mais de seis anos após a sua aquisição, quando vem provado que a recorrente é mulher experimentada nos negócios...;
VII – Como é óbvio, essa redução de área, de mais de 300.000 m2, desvaloriza, acentuadamente, o valor dos imóveis adquiridos, como, aliás, ficou provado ao considerar-se que os mesmos possuem 6 anos depois um valor equivalente ao preço da aquisição;
VIII – Na verdade, como resulta da resposta ao quesito 35, os prédios adquiridos pela Autora, com a área que, efectivamente, hoje possuem, tinham à data da sentença – 2007 – o valor da aquisição do ano 2001, ou seja, seis anos antes...!;
IX – Conforme tem sido entendimento pacífico, à compra e venda de coisa defeituosa, como ocorre, é aplicável o regime do incumprimento dos contratos e não o da anulabilidade;
X – Por isso, a problemática da acção deve ser enfocada sobre o enquadramento do incumprimento contratual, ou seja, pelo prisma do cumprimento defeituoso – art. 913 do Código Civil;
XI – Ora, estando assente que a Autora pretende ficar com o bem, embora com a aludida redução de área de 333.581 m2, como ressalta da posição processual que assumiu, há lugar à redução do preço;
XII) – É consabido que, atenta a matéria factual assente, a Autora pode usar do meio de redução do preço – art. 911º do Código Civil;
XIII) – De todo o modo, caso se entendesse que a redução não poderá ser operada por simples cálculo, com base no preço pago, área contratada e efectivamente vendida, sempre o montante da redução deveria e deverá ser encontrado nos termos do disposto no artigo 661º, n°2 do Código de Processo Civil, para que se proceda à necessária avaliação;
XIV) – Ora, atenta tal factualidade, entendemos, salvo o devido respeito, que a acção teria e terá que ser julgada procedente e, consequentemente, reduzido o preço de compra, na proporção da área efectivamente adquirida e do preço pago, no pressuposto daquela outra área de 574,000 m2 nos termos peticionados;
XV) – Ademais, sempre tal preço teria e terá que ser reduzido, atento os critérios de equidade que tal caso pressupõe e exige.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida.
Os RR. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:
Constantes da Matéria de Facto Assente:
1) Entre a Autora, como promitente-compradora, e os Réus, como promitentes-vendedores, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, através de documento, datado de 31 de Maio de 2001 (Al. A).
2) Por força do mesmo contrato, os Réus prometeram vender à Autora, dois prédios rústicos, sitos no lugar de M.......V.........o, freguesia de Ribeirão, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob os números ........ e ..........., da freguesia de Ribeirão e inscritos na matriz predial rústica, sob os artigos 165 e 167 (Al.B).
3) O preço da prometida venda foi de cento e sessenta milhões de escudos, ou seja, de cerca de setecentos e noventa e nove mil euros (Al. C).
4) Do qual a Autora pagou, a título de sinal, aos Réus, a quantia de vinte milhões de escudos, ou seja, de cerca de cem mil euros (Al. D).
5) Devendo a restante parte do preço ser liquidada no acto da outorga da escritura pública, que titularia o prometido contrato de compra e venda (Al. E).
6) No dia 30 de Agosto de 2001, no Primeiro Cartório Notarial de Vila do Conde, foi celebrada uma escritura pública de compra e venda, entre os Réus, como vendedores e a Autora, como compradora, tudo como melhor consta da escritura pública junta aosautos a fls. 12 a 16, que no mais aqui se dá por integralmente reproduzido (Al. F).
7) Tendo a Autora, nesse acto, pago aos Réus, por meio de cheque, a restante parte do preço convencionado, a quantia de cento e quarenta milhões de escudos, ou seja, cerca de seiscentos e noventa e nove mil euros (Al. G).
8) A Autora notificou judicialmente os Réus, através da notificação judicial avulsa, em 24 de Maio de 2002 e de 20 de Maio de 2002, respectivamente, para que estes lhe restituíssem a quantia de noventa e dois milhões, quinhentos e sessenta e nove mil e trezentos e cinquenta e seis escudos, ou seja, de quatrocentos sessenta e um mil e setecentos e trinta e quatro euros (Al. H).
9) Tendo-se os Réus recusado a proceder a tal restituição, conforme comunicaram à Autora, através de cartas que lhe enviaram, datadas de 29 de Maio de 2002 de 5 de Junho de 2002, também respectivamente (Al. I)
Resultantes das respostas dadas à Base Instrutória:
10) Após a realização da escritura pública referida em F), a Autora solicitou a realização de um levantamento topográfico – (resposta ao quesito 1).
11) No levantamento topográfico feito por iniciativa da Autora, foi apurado que a área dos referidos prédios era de duzentos e quatro mil quatrocentos e dezanove metros quadrados, e não a área que constava na respectiva matriz dos dois prédios vendidos à Autora – (resposta aos quesitos 2 e 3).
12) O que consta do contrato-promessa junto aos autos a fls. 10, cujo teor aqui se dá por reproduzido – (resposta ao quesito 4).
13) As partes (Autora e Réus) acordaram, quer no contrato promessa junto aos autos a fls. 10, quer na escritura junta aos autos a fls. 12 a 16, cujo teor aqui se dá por reproduzido, que o preço global dos dois prédios era de 160 000 000$00 – (resposta ao quesito 5).
14) Os contactos negociais prévios foram realizados entre a Autora, o intermediário – EE – e o Réu EE – (resposta ao quesito 11).
15) Antes da concretização do negócio do contrato-promessa a Autora visitou, pelo menos uma vez, os prédios a adquirir – (resposta ao quesito 12).
16) Os prédios estavam delimitados com estremas definidas por muros, com interrupções pontuais – (resposta ao quesito 13).
17) Dada a irregularidade geométrica perimetral e a topografia do terreno que impede uma visão abrangente, a Autora não se pôde aperceber da real dimensão dos dois prédios – (resposta ao quesito 14).
18) O constante do contrato promessa junto a fls. 10, cujo teor aqui se dá por reproduzido e da escritura pública junta aos autos a fls. 12 a 15 – (resposta aos quesitos 15 e 16).
19) Foi fornecido ao intermediário da Autora (EE), uma planta com a localização e configuração do terreno – (resposta ao quesito 17).
20) O preço dos terrenos foi negociado de uma forma global, nos termos do contrato-promessa junto aos autos a fls. 10, cujo teor aqui se reproduz, com descrição dos dois imóveis, tal como constava da respectiva matriz – (resposta ao quesito 18).
21) Após ter sido acordado o preço global de 160.000 contos dos prédios, foi aposta no contrato-promessa junto a fls. 10 dos autos, cujo teor aqui se reproduz, com descrição dos dois imóveis, tal como constava da respectiva matriz – (resposta ao quesito 19).
22) A Câmara Municipal de V.N. Famalicão deu uma informação prévia favorável a uma utilização construtiva em parte (pequena parte) dos prédios, em parecer do ano de 1995 – (resposta ao quesito 20).
23) Os RR. haviam adquirido os dois prédios em Agosto de 1991 e não fizeram qualquer levantamento topográfico – (resposta ao quesito 21).
24) As partes acordaram, quer no contrato-promessa junto aos autos a fls. 10, quer na escritura junta aos autos a fls. 12 a 15, cujo teor aqui se dá por reproduzido, que o preço global dos dois prédios era de 160 000 000$00 – (resposta ao quesito 23).
25) Os RR. tinham adquirido o prédio em Agosto de 1991, com base naqueles mesmos documentos, sem terem mandado medir ou fazer qualquer levantamento topográfico – (resposta ao quesito 26).
26) Da mesma forma, em Maio de 2001, negociaram a sua venda por um preço global, sem atenção à área total – (resposta ao quesito 27).
28) A Autora é uma mulher de negócios experiente e habituada a negociar em terrenos – (resposta ao quesito 34).
29) Os prédios têm hoje um valor global aqui não concretamente apurado, ainda que superior a 160 000 000$00 – (resposta ao quesito 35).
30) Os RR. nunca venderiam os prédios em causa à Autora, pelo ora pretendido valor de 68.000 000$00 – (resposta ao quesito 36).
31) Com o levantamento topográfico a área encontrada é de 244.419 m2 – (resposta ao quesito 39).
32) Antes da concretização do negócio do contrato-promessa, a Autora visitou, pelo menos uma vez, os prédios a adquirir – (resposta ao quesito 40).
[Há ainda que considerar provados, resultantes das respostas dadas aos quesitos 37º e 38º da base instrutória, mas omitidos na sentença recorrida, os factos seguintes]:
33) Os RR. não negociaram com a Autora a venda dos imóveis cujo preço era por m2, nem procederam a um levantamento topográfico dos mesmos – (resposta ao quesito 37).
34) Os RR. apenas quiseram o negócio de venda total do terreno pelo preço de 160.000.000$00, não quiseram, nem acertaram, qualquer outro negócio – (resposta ao quesito 38).
Fundamentação:
Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se, no caso, a Autora tem direito à pretendida redução do preço pago pela compra dos prédios que fez aos RR; tal questão passa por saber se se está perante venda de coisa defeituosa, ou erro sobre os motivos determinantes da decisão de contratar.
A Autora sustenta que apenas comprou aos RR. os terrenos em causa, em função das áreas respectivas, constantes do contrato-promessa que precedeu o contrato de compra e venda – aérea que foi elemento essencial da decisão de comprar – e que, já depois de celebrada a escritura de compra e venda, mandou proceder à medição dos terrenos verificando que possuem área muito inferior à que consta das matrizes e do contrato-promessa.
Os RR. sustentaram que a venda foi feita sem atender à área e ao preço/m2, sendo que negociaram com base nos elementos que dispunham, desde a data em que, eles mesmos, haviam comprado o terreno em 1991, e jamais procederam, sequer, à medição.
Vejamos:
O art. 913º do Código Civil estatui:
“1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”.
Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 205, comentam a certo trecho.
“...O artigo 913º cria um regime especial (cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica [...]) para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas:
a) Vício que desvalorize a coisa; b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afectadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos. Como disposição interpretativa, manda o nº2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria [...]”.
O relevante para se aferir da correcta execução da prestação do contraente vendedor é saber se a coisa vendida é hábil, idónea, para a função a que se destina.
A lei consagra, pois, um critério funcional.
A venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspectiva de funcionalidade, contém:
“ Vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina. Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º,nº2,)” – cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas Conformidade e Segurança”, de Calvão da Silva, pág. 41.
“A coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado.
O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado.
Os vícios e as desconformidades constituem defeito da coisa” – “Direito das Obrigações” – Pedro Romano Martinez, edição de Maio 2000, pág. 122-123.
Da conjugação do disposto nos arts. 913º, nº1, e 914º do Código Civil com os arts. 908º a 910º e 915º e segs., do mesmo diploma, resulta que o comprador de coisa defeituosa goza de vários direitos; assim o de exigir do vendedor a reparação da coisa; de anulação do contrato, direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo.
Como ensina Calvão da Silva, obra citada, pág. 56:
“Além da anulação do contrato e da redução do preço, cumuláveis com a indemnização, o regime da venda de coisas defeituosas reconhece ainda ao comprador um quarto direito: o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela (art.914°, 1ª parte); mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece (art.914°, 2ª parte).
Esse desconhecimento tem de ser alegado e provado pelo próprio vendedor, visto tratar-se de facto impeditivo do direito contra si invocado pelo comprador (art.342°, nº2) e estar obrigado a prestar a coisa isenta de vícios ou defeitos.
Equivale a dizer, noutra formulação, que o direito à reparação ou substituição da coisa repousa sobre a culpa presumida do vendedor, cabendo a este ilidir tal presunção mediante prova em contrário (art. 350°, nº2), isto é, a prova da sua ignorância, sem culpa, do vício ou da falta de qualidade da coisa, como facto impeditivo do direito invocado pelo comprador...” [destaque e sublinhados nossos].
Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, vol. III, págs. 119 e 120, escreve:
“Em relação à venda de coisas específicas, o art. 913°, nºl, qualifica-a como defeituosa se ela “sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor, ou necessárias para a realização daquele fim”…
[…] A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual.
… A não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor ocorre sempre que este tenha certificado ao comprador a existência de qualidades na coisa e esta certificação não corresponda à realidade, estando-se assim também perante uma concepção objectiva de defeito”.
O mesmo tratadista, no Volume I dos “Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles”, em escrito doutrinal denominado “Caveat Venditor”, depois de acentuar a discrepância de regime legal entre a venda de coisas genéricas (art. 918º do Código Civil) e específicas (art.913º) defeituosas, escreve – págs. 267 e 268:
“Muito mais benéfico para o comprador se apresenta, por isso, o regime da venda de coisas genéricas (art. 918. °) […].
[…] Por esse motivo, existem na doutrina posições que se pronunciam contra esta dualidade de regimes e propugnam igualmente o enquadramento da venda de coisa específica no regime do incumprimento, através da defesa da tese de que o erro referido nos arts. 913.° e 905.° e ss. diz respeito não à fase da formação, mas da execução do contrato.
Outros autores mantêm, porém, o entendimento de que o regime da venda específica de coisas defeituosas não se reconduz ao cumprimento defeituoso, exigindo antes um erro em sentido técnico, posição que, embora não sendo a melhor de jure condendo, nos parece ser a encontra consagrada de jure condito”.
Pedro Romano Martinez, in “Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada” – págs.264/265:
“As consequências do cumprimento defeituoso advêm todas elas da violação de um contrato.
Na realidade, […] a qualidade do objecto inclui-se na própria declaração negocial, pelo que o comprador não está em erro quanto à falta de atributos da coisa.
Na medida em que os direitos do comprador derivam do incumprimento do contrato, devem ser vistos à luz da responsabilidade contratual e não enquadrados no regime do erro.
Se a lei pretendesse, com efeito, aplicar o regime do erro à compra e venda de coisas defeituosas, não se justificaria, por um lado, que o comprador estivesse sujeito aos prazos curtos de caducidade dos arts. 916° e 917° e, por outro, que tal limitação não fosse válida com respeito ao vendedor.
O regime do cumprimento defeituoso, estabelecido a propósito do contrato de compra e venda, tem como finalidade restabelecer o equilíbrio entre as prestações. E, não sendo esse equilíbrio possível, então pode-se pôr termo ao contrato. Em caso de erro parte-se de um pressuposto inverso: o contrato é, em princípio, inválido, mas pode ser convalidado. Esta diversidade de pontos de vista não se coaduna com uma contemporização de regimes; não se pode, por conseguinte, recorrer em parte às regras do erro e, noutra, às do incumprimento.
As várias consequências do cumprimento defeituoso, no que tange aos respectivos pressupostos, têm de ser homogéneas.” (destacamos e sublinhamos).
Vejamos, desde logo, se se trata no caso de venda de coisa defeituosa pelo facto da área dos terrenos ser inferior à área suposta pela Autora.
Não consta qual a finalidade que a Autora visava com a aquisição dos prédios o que poderia ter especial relevo se, por exemplo, nele pretendesse implantar construção com certas características que demandavam a existência da aérea suposta e que, tendo os terrenos aérea inferior, esse facto inviabilizaria a sua pretensão.
No caso não é essa a questão.
Pese embora constar do contrato-promessa a área dos terrenos, por referência às matrizes – [área que foi aposta já depois de ter sido celebrado o contrato-promessa – ut. resposta ao quesito 19º] – as áreas não constam da escritura pública de compra e venda. Provou-se que o negócio não foi celebrado tendo em conta a área dos terrenos, nem o preço/m2, o que deixa entrever que esse elemento do negócio não foi relevante, essencial, para a consumação do contrato.
Tratou-se, pois, de uma venda ad corpus e não ad mensuram, pese embora o que a Autora agora sustenta.
É aplicável, então, o regime legal do art.888º do Código Civil:
“1. Se na venda de coisas determinadas o preço não for estabelecido à razão de tanto por unidade, o comprador deve o preço declarado, mesmo que no contrato se indique o número, peso ou medida das coisas vendidas e a indicação não corresponda à realidade.
2. Se, porém, a quantidade efectiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, o preço sofrerá redução ou aumento proporcional”.
Em anotação a este artigo pode ler-se no “Código Civil Anotado”, II Volume, págs. 179-180 de Pires de Lima e Antunes Varela:
“O caso previsto, correspondente na venda de imóveis (especialmente de prédios rústicos) à venda ad corpus, difere do regulado no artigo anterior.
Não se fixa agora preço por unidade, mas sim um preço global, embora se indique o número, peso ou medida da coisa vendida […].Do facto de as partes não terem indicado o preço unitário extrai-se a conclusão de que elas formaram a sua vontade sobre o preço e a coisa globalmente consideradas, sendo apenas incidental a referência à quantidade, peso ou medida das coisas vendidas”. (destaque e sublinhado nossos).
Por outro lado, o facto de um terreno ter área inferior à área vendida – que o comprador após o negócio constata – não corresponde a um defeito intrínseco da coisa.
No caso dos autos como a compra e venda não foi negociada com base na área, nem no preço, tendo os terrenos sido comprados pela Autora em conjunto, sendo certo que se provou que ela mesmo visitou e conhecia o terreno antes da compra, reforça a convicção que relevante foi o seu propósito de comprar em conjunto aqueles prédios pelo preço ajustado.
Mas será que, no caso, se pode considerar que a Autora foi induzida em erro que determinou a sua vontade de contratar?
O artigo 911°, nº1, do Código Civil, consigna – “Se as circunstâncias mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à redução do preço, em harmonia com a desvalorização resultante dos ónus ou limitações, além da indemnização que no caso competir”.
O normativo protege o adquirente que comprou, mesmo se, apesar do erro queria o negócio, ainda que por preço inferior, consentindo-lhe, nesse caso, o direito de redução do preço, que pode cumular com o direito a ser indemnizado pelo vendedor.
Importa saber se a Autora incorreu em erro provocado pelos vendedores.
A declaração negocial, para ser válida e eficaz, pressupõe que os sujeitos contratantes representem correctamente, ou seja, de harmonia com a sua vontade livre e esclarecida, a realidade determinante e decisiva para a celebração do contrato.
A declaração de vontade, para ser válida não deve ter sido provocada por “erro”, entendido este como a “ignorância ou falsa representação de uma realidade que poderia ter intervindo ou interveio entre os motivos da declaração negocial” – Castro Mendes, “Teoria Geral”, 1979, III, 60.
Como ensina Heinrich Hörster, in “A Parte Geral do Código Civil Português”, pág. 532: “Por via de regra a vontade e a manifestação da mesma coincidem na declaração negocial. Mas podem surgir situações em que falte a coincidência entre o substrato volitivo interno e a sua aparência externa. A vontade que aparece como manifestada não existe como tal”.
Dispõe o art. 252º do Código Civil:
“ 1. O erro que recaia nos motivos determinantes da vontade, mas se não refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio, só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo a essencialidade do motivo”.
“2. Se, porém, recair sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, é aplicável ao erro do declarante o disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído”.
Nem todo o erro na declaração é juridicamente relevante.
Segundo o art. 247°, são requisitos de relevância do erro na declaração: a essencialidade para o declarante, do elemento sobre o qual o erro incidiu; a cognoscibilidade da essencialidade pelo declaratário.
A essencialidade do erro, ou a essencialidade do elemento sobre que incidiu, não significa outra coisa senão que o declarante não teria emitido a declaração de vontade negocial com o sentido que veio a ser exteriorizada.
No erro que atinge os motivos determinantes do negócio: “O objecto não se identifica neste caso, com os efeitosdo negócio, mas com aquilo sobre que versa o negócio. É o objecto mediato e não objecto imediato ou conteúdo do negócio que está em causa” – “Código Civil Anotado” de Pires de Lima e Antunes Varela, Volume I, pág. 235.
Na lição do Professor Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 386, 1976:
“O erro-vício traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância – se tivesse exacto conhecimento da realidade – o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou. Trata-se, pois, de um erro nos motivos determinantes da vontade – daí que os juristas alemães falem de erro-motivo (Motivirrtum) a propósito do erro como vício da vontade”.
O Professor Menezes Cordeiro no seu – “Tratado de Direito Civil Português”, Tomo I, págs. 547, escreve:
“Quanto aos concretos elementos que integrem a base do negócio e ao quantum de erro que justifique a intervenção do tribunal, há que apelar para o regime da figura, no seu todo. A lei manda aplicar o regime da alteração das circunstâncias. Pois bem: integram a “base do negócio” os elementos essenciais para a formação da vontade do declarante e conhecidos pela outra parte, os quais, por não corresponderem à realidade, tornam a exigência do cumprimento do negócio concluído gravemente contrário aos princípios da boa fé”.
“Se o ilícito pré-contratual for o do errante, que culposamente tenha cometido o erro declarativo, a forma privilegiada da respectiva sanção será a irrelevância jurídica da divergência valendo o negócio com o conteúdo que resultou da declaração”. – “Notas sobre Responsabilidade Pré-Contratual”, pág. 108.” – Ana Prata.
Castro Mendes, in “Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 178, tomando posição sobre o papel da declaração e da vontade no negócio jurídico, inclina-se, também, para o acolhimento da chamada teoria da responsabilidade, escrevendo:
“Mas se a situação for tal que a divergência entre a vontade real e a vontade declarada seja imputável ao declarante, então a lei trata esta situação em termos de responsabilidade, isto é, procurando estabelecer aquela situação que se verificaria se a divergência entre vontade e declaração não houvesse existido (cfr. artigo 562.° do Código Civil). Ora, é fácil estabelecer tal situação, é dar o negócio como válido” – citação em nota de rodapé da obra da Ana Prata – pág. 108.
Tendo em conta que a Autora negociou a compra dos terrenos em conjunto, visitou o local antes do negócio preliminar e era pessoa experiente no ramo imobiliário, seria avisado que, antes de contratar, tivesse mandado proceder à medição da área do terreno.
Mas, atentas as circunstâncias em que contratou, ter-se-á que concluir que esse elemento não se revestiu de essencialidade, porquanto a compra foi acertada com o vendedor pelo conjunto dos prédios e por um preço global.
Assim, à luz da teoria da impressão do destinatário – art. 236º, nº1, do Código Civil – os vendedores apenas podiam contar com a intenção e vontade da Autora em adquirir os terrenos em conjunto, já que não se provou qualquer facto que fizesse razoavelmente supor aos RR. vendedores que a intenção da Autora ao comprar seria atender à área dos prédios.
Por outro lado, os RR. venderam os terrenos com base nos documentos que possuíam, aquando da compra que deles fizeram em 1991, não tendo procedido nunca a qualquer medição.
No erro sobre os motivos determinantes da vontade de contratar há uma vontade que se forma na ignorância acerca de factos que, se ponderados ou conhecidos, não levariam à conclusão do negócio.
No erro-vício, previsto no nº1 do art. 252º do Código Civil, a anulação do negócio só ocorre se as partes houverem reconhecido, por acordo a essencialidade do motivo.
A essencialidade, mesmo se exigida por acordo, pode resultar de factos concludentes, não carece de expressão formal.
No Volume IV de “Estudos em Homenagem ao Professor Inocêncio Galvão Telles”, Paulo Mota Pinto, em estudo intitulado “Requisitos da Relevância do Erro nos Princípios de Direito Europeu dos Contratos e no Código Civil Português” (1).
– páginas 44 a 139 – depois de vincar que a essencialidade no erro-vício é um requisito geral de atendibilidade e tem de ser tal que sem ele o errante não concluiria o negócio, afirma, pág. 72:
“...A essencialidade tem de ser encarada sob o aspecto subjectivo do errante, e não sob qualquer outro. Trata-se do carácter determinante do erro, pelo menos como concausa da declaração apreciada subjectivamente e “in concreto” – e não para um declarante razoável ou em abstracto. A função do requisito da essencialidade é, na verdade, atestar o peso do erro para o declarante, efectuando-se a tutela do declaratário, de acordo com a opção do legislador, não através dela, mas pelo requisito relativo ao declaratário que é a cognoscibilidade da essencialidade do elemento sobre que recaiu o erro”.
Não se pode dizer que a Autora celebrou o negócio na errada convicção acerca das áreas e, por isso, não se pode considerar que contratou induzida em erro, muito menos por actuação dos RR. vendedores, pelo que, mesmo que fosse essencial para a Autora a existência de certa área, os RR. ignoravam de boa-fé a “essencialidade” dessa circunstância.
“A simples constatação da diferença entre a área constante da escritura de compra e venda do imóvel adquirido e a que resultou da medição posterior efectuada pelo comprador não confere, por si só, a este a faculdade de ver reduzido o preço que pagou, com base no erro ou outro vício de vontade justificativos da anulação ou alteração do negócio” – Acórdão deste STJ, de 20.10.2005 -Revista nº3056/05 – 2.ª Secção.
Pelo quanto dissemos não há lugar à pretendida redução do preço, pelo que o recurso soçobra.
Decisão.
Nestes termos nega-se a revista.
Custas pela Autora-recorrente.
Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Setembro de 2008
Fonseca Ramos (Relator)
Cardoso Albuquerque
Azevedo Ramos
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(1) - Relacionado com o tema, cfr. Estudo do Professor Armindo Ribeiro Mendes – “Os Vícios de Consentimento na Formação do Contrato (Comparação da Regulamentação Constante dos "Princípios dos Contratos Comerciais Internacionais" do UNIDROIT com acolhida no Código Civil Português) in “Themis-Revista da Faculdade de Direito da UNL”, Ano I, 2, 205.