DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
AQUISIÇÃO TABULAR
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
Sumário


I - Provado que à data da escritura de justificação notarial em que o réu se apoia para afirmar a aquisição do seu domínio os outorgantes, seus pais, não eram donos do imóvel, pois já antes tinham disposto dele a favor dos pais e sogros dos autores através de compra e venda verbal celebrada há mais de trinta anos; que, primeiramente seus pais e sogros, e depois eles, autores, exerceram sobre o imóvel posse pública, pacífica, titulada, e de boa fé, os autores adquiriram o prédio por usucapião.
II - Fundando-se este direito na usucapião, ele vale por si, produzindo efeitos contra terceiros independentemente do registo e inutilizando as situações registrais existentes.
III - A justificação notarial não é mais do que um expediente técnico simplificado posto pela lei à disposição dos interessados para o efeito de dar real consistência prática ao princípio do trato sucessivo (artºs 34º e 116º do Código do Registo Predial).
IV - Conforme se decidiu no acórdão de uniformização de jurisprudência nº 1/2008 deste Supremo Tribunal – acórdão de 4.12.07, publicado no DR I Serie, de 31.3.08 – a inscrição do direito de propriedade no registo com base em escritura de justificação não dá origem à presunção do artº 7º a favor do justificante; e menos ainda poderá basear, acrescentamos nós agora, uma aquisição tabular, que só nos casos excepcionais previstos no artº 291º do Código Civil, e 5º, 17º, nº 2 e 122º do Código do Registo Predial, poderá ter lugar.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Síntese dos termos essenciais do litígio e do recurso
AA e seu marido BB propuseram uma acção ordinária contra CC e sua mulher DD, pedindo a condenação dos réus:
a) A reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o prédio descrito no artigo 1º da petição;

b) A verem ilidida a presunção do artº 7º do CRP e cancelada a inscrição que, sobre o mesmo prédio e em seu nome, consta no Registo Predial;

c) A pagarem-lhes indemnização correspondente aos prejuízos que lhes causaram e como litigantes de má fé; e,

d) Subsidiariamente, a verem declarada a verificação da acessão industrial imobiliária, nos termos referidos na petição.

Em resumo, alegaram factos tendentes a demonstrar que adquiriram derivadamente a propriedade do prédio rústico situado na freguesia de Lordosa, inscrito na matriz sob o artº 7370 e descrito na CRP de Viseu sob o nº 4634, através de doação feita à autora por seus sogros, pais do autor, que, por sua vez, o tinham comprado verbalmente, há mais de 30 anos, pelo preço de 1.500$00, aos pais do réu, EE e FF.

Alegaram de igual modo a aquisição originária, por usucapião, do mesmo prédio, já que vêm exercendo actos de posse sobre ele, consecutivamente, há mais de 30 anos, por si e antepossuidores. E invocaram ainda, subsidiariamente, a sua aquisição por acessão industrial imobiliária.

Contestou o réu, impugnando os factos alegados e sustentando que seus pais, através de escritura de justificação e doação outorgada no dia 29.8.96, lhe doaram com dispensa de colação o terreno objecto do litígio, identificado no artigo 11º do seu articulado, que se encontra inscrito na CRP a seu favor. E, tal como os autores, alegou ainda a sua aquisição por usucapião.

Em reconvenção, alegou que desde Agosto de 2001 os autores ocupam uma parte do prédio descrito no seu articulado, com a área de cerca de 700 m2, onde em 2002 e 2003 implantaram uma construção nova destinada a habitação, estando assim obrigados a indemnizá-lo, nos termos gerais de direito, pelos prejuízos causados, que ascendem a 42.000,00 € (danos patrimoniais) e 5.000,00 € (danos morais).

Pediu, em conformidade, a improcedência da acção e a procedência da reconvenção, mediante a condenação dos autores a reconhecerem que o prédio identificado no artigo 11º da contestação lhe pertence e a pagarem-lhe uma indemnização de 49.000,00 € por perdas e danos, além de 5.000,00 € como litigantes de má fé.

Os autores responderam, concluindo pela improcedência da excepção de ilegitimidade passiva, bem como do pedido reconvencional.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que julgando a acção em parte procedente e improcedente a reconvenção, condenou os réus a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio descrito no artigo 1º da petição e ordenou o cancelamento da aquisição inscrita a favor deles na Conservatória do Registo Predial.

Apelou o réu, mas sem êxito, pois a Relação confirmou por inteiro o decidido na 1ª instância.

Mantendo-se inconformado, o réu interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que lhe reconheça o direito de propriedade sobre o prédio ajuizado, declare ilegal a ocupação levada a cabo pelos autores/reconvindos, e ineficaz e de nenhum efeito a escritura de justificação e doação de 30.7.99, por forma a que os autores não possam através dela registar quaisquer direitos sobre o prédio que nela se identifica, ordenando-se o cancelamento dos registos efectuados com base nesse documento.

Apontou como disposições legais violadas os artºs 2º, 20º, nº 1, e 205º, nº 1, da Constituição; 5, nº1, 6º e 7º do Código do Registo Predial; e 291º, 342º, 363º, nºs 2 e 3, e 371º, nº 1, do Código Civil.

Não foram apresentadas contra alegações.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto (destaca-se somente a relevante para a apreciação do recurso, visto o âmbito deste):

1. No lugar de Moitadas, freguesia de Lordosa, concelho de Viseu, existe um prédio rústico composto de terra de semeadura, a confrontar do Norte com GG, do Nascente com HH, do Sul com o caminho, e do Poente com II, inscrito na matriz predial sob o artigo 7370, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Viseu na ficha nº....................;

2. Em 30.7.99, no 2° Cartório Notarial de Viseu, foi outorgada escritura de justificação e doação, tendo os primeiros outorgantes, JJ e sua mulher KK, declarado, entre o mais, “que são donos e legítimos possuidores com exclusão de outrem, de um prédio rústico, composto de uma terra de semeadura, com a área de mil duzentos e dezoito metros quadrados, sito às Moitadas, freguesia de Lordosa, concelho de Viseu, a confrontar do norte com GG, do nascente com HH, do sul com caminho e do poente com II, inscrito na matriz sob o artigo 7370, com o valor patrimonial de 1.671$00, omisso na Conservatória do Registo Predial de Viseu e atribuem a este prédio o valor de duzentos mil escudos”;

3. Mais declararam que são titulares do direito de propriedade, “pois têm possuído o aludido prédio há mais de vinte anos, ininterruptamente, com o conhecimento de toda a gente, sem a menor oposição de quem quer que seja, posse essa que se tem materializado no aproveitamento agrícola de que o prédio é susceptível, colhendo dele os frutos e legumes, sendo por isso uma posse contínua, pública e pacífica, pelo que, quanto mais não seja, o adquiriram por usucapião”;

4. Em tal acto notarial, seguidamente, declararam que “sendo, portanto, donos e legítimos possuidores do mencionado prédio, dele fazem doação à segunda outorgante, sua nora”, AA, que a aceitou;

5. Tal escritura foi publicada no “Jornal Via Rápida”, em 12.8.99;

6. A autora construiu no referido terreno uma casa de habitação, mediante Alvará de Licença de Construção nº ...../01 emitido pela Câmara Municipal de Viseu;

7. Sobre o referido prédio pendem duas inscrições registrais, uma efectuada em 16.9.99 a favor dos autores, e outra datada de 12.2.97 a favor dos réus;

8. Por carta datada 5.3.04 o réu marido foi convocado para comparecer no dia 11.3.04 pelas 9,30 horas, na Conservatória do Registo Predial de Viseu, a fim de rectificar o registo do prédio matriciado no artigo 7370, o qual se encontra duplamente descrito sob os nºs 3625 e 4634 da freguesia de Lordosa;

9. No dia 29.8.96, no 1° Cartório Notarial de Viseu, foi celebrada escritura de justificação e doação, sendo outorgantes EE e sua mulher FF, LL e CC, tendo os primeiros declarado que são donos e legítimos possuidores de um “terreno de semeadura, sito às Moitadas, limite da freguesia de Lordosa, a confrontar do norte e do sul com caminho, do nascente com HH e do poente com II, inscrito na matriz, sob o artigo 7370, com a área de 1218 metros quadrados, com o valor patrimonial de 1.671$00, ao qual atribuem o valor de cem mil escudos, omisso na Conservatória do Registo Predial de Viseu”;

10. Mais declararam que “estão na posse deste prédio há mais de vinte anos e por eles foi possuído à vista de toda a gente, em nome próprio, sem oposição de quem quer que seja e sem qualquer interrupção desde o seu início, cortando o mato e pinheiros e colhendo a resina do inculto e lavrando, semeando e colhendo os frutos do culto, sendo portanto uma posse pacífica, contínua e pública e de boa fé, pelo que eles justificantes adquiriram o aludido prédio por usucapião”;

11. Ainda na referida escritura, os primeiros outorgantes declararam que doam ao terceiro outorgante (seu filho) com dispensa de colação, o prédio acima identificado, tendo este declarado que aceita a doação nos termos exarados;

12. Mais consta que os segundos outorgantes declararam que “confirmam as declarações dos primeiros”;

13. Tal escritura foi publicada na edição nº 1142 do Jornal “Notícias de Viseu”, em 5.9.96;

14. O prédio identificado no nº 1 adveio à posse e propriedade dos doadores referidos no nº 2, por contrato de compra e venda verbal celebrado com os pais do réu marido, EE e FF, há mais de 30 anos;

15. Os autores, por si e antepossuidores, vêm possuindo o referido terreno que adquiriram, de forma continuada, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, especialmente os réus, seus pais e sogros, na convicção de estarem a exercer um direito próprio de proprietários, não lesando direitos de outrem, ali semeando milho e centeio, por mais de 20 anos, e pagando as contribuições e impostos devidos;

16. Os autores permutaram verbalmente parte do dito prédio com vizinhos, de modo a obter área suficiente para a construção da casa a seu gosto;

17. Sem qualquer oposição e à vista de toda a gente, vedaram com um muro parte do prédio referido em 1), bem como a parcela agora adquirida por permuta com GG;

18. Apesar do facto referido no nº 13, ninguém reclamou, contestou ou impugnou, a qualquer título, o facto justificado, ou seja, a posse do prédio situado às Moitadas;

19. No período compreendido entre 2002 e 2003, os autores edificaram uma casa de habitação, com muros circundantes, em parte do prédio referido nos nºs 1, 2, 3, 9, 10 e 11, ocupando uma área de sensivelmente 800 m2, situada do lado norte, junto ao caminho e a confrontar com este.

b) Matéria de Direito

A questão nuclear que ressalta das conclusões do recurso é a de saber se o réu/reconvinte, em detrimento dos autores e contrariamente à decisão convergente das instâncias, adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio ajuizado.

O recorrente sustenta que sim, defendendo que o direito lhe pertence porquanto não foi proposta uma acção de impugnação do facto que notarialmente justificou em 29.8.96 e inscreveu no registo em 12.2.97 (pontos 7 a 11 da matéria de facto).

Semelhante posição, todavia, contraria os dados legais e toda a doutrina e jurisprudência firmadas sobre o assunto.

Efectivamente, dos factos coligidos resulta com clareza que à data da escritura de justificação judicial em que o réu se apoia para afirmar a aquisição do seu domínio os outorgantes EE e mulher, seus pais, não eram donos do imóvel, pois já antes tinham disposto dele a favor dos pais e sogros dos autores através de compra e venda verbal celebrada há mais de trinta anos (facto 14). E também resulta que os autores adquiriram o prédio por usucapião, na medida em que, primeiramente seus pais e sogros, e depois eles, autores, exerceram sobre o imóvel posse pública, pacífica e titulada, isto é, susceptível de ser conhecida pelos interessados, obtida sem violência e fundada num modo legítimo de adquirir – artºs 1259º, 1261º, 1262º e 1287º. Na medida em que tal posse foi ainda de boa fé, pois o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, a usucapião deu-se ao fim de quinze anos, por não haver registo do título nem da mera posse – artº 1296º. Não há qualquer dúvida, perante o exposto, e considerando ainda o instituto da acessão da posse - artº 1256º - que o direito de propriedade, originariamente alojado, por via da usucapião, na esfera jurídica dos pais e sogros dos autores, se transmitiu depois para estes, mediante a doação a que alude o facto nº 4. Assim, mesmo sustentando que a inscrição tabular subsequente à escritura de justificação notarial constitui base suficiente para o titular inscrito beneficiar da presunção do artº 7º do Código do Registo Predial, certo é que no caso presente essa presunção foi de todo ilidida mediante a prova de que o direito registado pertence, não ao recorrente, titular inscrito em 12.2.97, mas aos recorridos, apesar de estes terem inscrito o seu direito em data posterior (16.9.99). Fundando-se este direito na usucapião, ele vale por si, produzindo efeitos contra terceiros independentemente do registo e inutilizando as situações registrais existentes. Tal o entendimento que temos seguido e vem sendo uniformemente adoptado por este Supremo Tribunal e pela doutrina mais representativa (1) Conforme refere o autor citado, aquele que beneficie da usucapião, mesmo que não tenha registo desse facto, fica a coberto do efeito atributivo do registo predial, de tal modo que o terceiro de boa fé que esteja nas condições previstas em qualquer dos preceitos que funda o efeito atributivo do registo predial nada poderá fazer contra o titular do direito real na ordem substantiva se o facto aquisitivo do direito deste for a usucapião. Ora, os únicos casos de aquisição tabular previstos no nosso ordenamento jurídico são os do artº 291º do Código Civil, e 5º, 17º, nº 2 e 122º do Código do Registo Predial. Nunca vimos defendido que a inscrição no registo subsequente a uma justificação notarial tivesse efeito atributivo, que é, no fundo, a posição defendida no presente recurso. A justificação notarial não é mais do que um expediente técnico simplificado posto pela lei à disposição dos interessados para o efeito de dar real consistência prática ao princípio do trato sucessivo (artºs 34º e 116º do Código do Registo Predial). Apenas isso. Conforme se decidiu no acórdão de uniformização de jurisprudência nº 1/2008 deste Supremo Tribunal – acórdão de 4.12.07, publicado no DR I Serie, de 31.3.08 – a inscrição do direito de propriedade no registo com base em escritura de justificação não dá origem à presunção do artº 7º a favor do justificante; menos ainda poderá basear, acrescentamos nós agora, uma aquisição tabular, que só nos casos excepcionais atrás indicados poderá ter lugar. De qualquer modo, e como já se referiu, mesmo admitindo, teoricamente, que a presunção poderia valer, não sofre dúvida que ela foi ilidida na situação ajuizada.

Resta dizer que de nada vale argumentar com o disposto no artº 371º do CC, que estabelece a força probatória material dos documentos autênticos, uma vez que esta se circunscreve aos factos atestados com base nas percepções do notário que exarou a escritura de justificação. O documento prova plenamente que os justificantes disseram ser donos do prédio, mas não que o fossem nessa data; e isto porque, justamente, este último facto excede aquilo que o notário podia atestar com base nas suas percepções enquanto funcionário que exerce a função notarial – a de dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais (artº 1º, nº 1, do Código do Notariado).

Torna-se de igual modo patente, em razão do exposto, que não vem ao caso a norma do artº 291º do CC, também porque, revestindo-se de carácter excepcional, é insusceptível de aplicação analógica, contrariamente ao que se defende no recurso (artº 11º do CC).

Improcedem, assim, ou mostram-se deslocadas todas as conclusõe

III. Decisão

Nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 30 de Setembro de 2008

Nuno Cameira (Relator)

Sousa Leite

Salreta Pereira

__________________________________

(1) Entre outros, cfr. os Ac. de 2.3.99 (Revª 1043/98), 1.2.04 (Revª 4684/05) e 12.4.05 (Revª4784/04); na doutrina, por último, José Alberto Vieira, Direitos Reais, pág. 313/314 (Coimbra Editora, 2008).