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ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
POSSE
ANIMUS POSSIDENDI
MERA DETENÇÃO
USUCAPIÃO
Sumário
I - A relação material com a coisa (isto é o corpus), em si mesma, não chega para caracterizar a posse, visto que é idêntica na posse e na detenção, daí que seja o elemento subjectivo (o animus) que fará a diferença, caracterizando a situação de facto como posse em nome próprio ou como detenção, consoante a intenção com que o detentor exerce o poder de facto sobre a coisa. II - Havendo título, é por ele que se determina a natureza do animus e, portanto, se caracteriza a relação material com a coisa. III - Pode falar-se em animus domini, enquanto: a) intenção de exercer o direito de propriedade (animus possidendi); b) intenção de exercer um direito real sobre coisa alheia, ou mesmo de um animus de exercer sobre a coisa um direito pessoal. IV - Faltando o título, como acontece na aquisição unilateral, em que não existe qualquer colaboração do anterior possuidor na constituição da nova posse (cf. art. 1263.º do CC.), presume-se, em caso de dúvida, que o possuidor possui em nome próprio, ou, como se diz no art. 1252.º, n.º 2, do CC “… presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto…”. V - No caso concreto, não tendo o A. provado o invocado empréstimo dos bens ao seu falecido irmão e à Ré, mulher deste, nem tendo esta provado a alegada doação desses bens, não há título a justificar a entrega dos mesmos e a caracterizar a detenção deles pela Ré e seu falecido marido. VI - Não se podendo dizer que este detinham os bens em nome do Autor, antes se provando que agiram directamente sobre as coisas reivindicadas com animus dominii (o qual, aliás, também se podia presumir), conclui- se que adquiriram a posse dos bens que lhes foram entregues, unilateralmente, pela prática reiterada, pacífica e pública dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade - art. 1263.º, al. a), do CC. VII - O direito de propriedade do A. sobre os bens entregues, não impedia a posse em nome próprio da Ré e falecido marido. Atenta a duração da posse pelo tempo necessário ao funcionamento da usucapião, deu-se a aquisição da propriedade dos bens pelos possuidores, assim se destruindo a propriedade do A. sobre esses bens.
Texto Integral
Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca do Porto., AA, intentou a presente acção de reivindicação, com processo ordinário, contra, BB;
Alegando resumidamente:
- O A. é dono e legítimo possuidor de um conjunto de bens móveis (mobiliário e objectos de decoração) que descrimina.
Tais bens foram legados ao A. por morte do seu anterior proprietário, ou foram pelo A. adquiridos na Alemanha, constituindo o recheio da habitação que possuía em Munique;
- Em meados de 1990, o A. deixou de residir na Alemanha e fixou-se em Portugal, num apartamento situado na Rua ....– Porto;
- Até meados de 1993 os referidos bens do A. estiveram guardados nas instalações pertencentes a uma sociedade da família;
- Em finais de 1993, a referida sociedade foi trespassada e os móveis foram retirados das suas instalações.
- Nessa altura o irmão do A., CC (entretanto falecido) e a esposa deste, ora Ré, prontificaram-se a guardar temporariamente os referidos bens do A.
- Então o A. entregou-os ao seu mencionado irmão e cunhada para que estes os guardassem.
- Entretanto, já após o falecimento do irmão do A., este solicitou à Ré a restituição dos móveis, recusando-se esta a fazê-lo.Formula então os seguintes pedidos:
- a) deve a Ré ser condenada a reconhecer o A. como dono e legítimo possuidor dos bens identificados no artigo 1º da p. inicial;
-b) a restituir ao A. os referidos bens e
-c) a pagar ao A., a título de sanção pecuniária compulsória a quantia de 20€, contados desde a citação, por cada dia de atraso na restituição dos bens móveis em causa até à sua integral devolução ao A.Contestou a Ré, alegando resumidamente que o A. doou ao falecido irmão e a ela própria todos os bens que se encontram em seu poder, e que se tal título não existisse, sempre os teria adquirido por usucapião (alegou a factualidade pertinente).Replicou o A., precisando que …”emprestou os bens à Ré e ao irmão CC para seu uso na casa de Canelas ou noutra, até que os reclamasse de volta ou aqueles não pretendessem guardá-los mais”.Proferiu-se despacho saneador, fixaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.Instruídos os autos realizou-se a audiência de discussão e julgamento, findo a qual se publicitou a decisão sobre a matéria de facto.Proferiu-se, de seguida, sentença final que julgou a acção improcedente, tendo absolvido a Ré dos pedidos.Inconformado recorreu o A. e com êxito, visto que a Relação, apreciando a apelação a julgou procedente, e consequentemente, revogou a sentença recorrida, julgando a acção parcialmente procedente, declarando ser o A. o proprietário dos bens em causa e condenando a Ré a restituí-las ao A.
Quanto ao demais (sanção pecuniária) julgou a acção improcedente.É agora a Ré quem, inconformada, recorre do acórdão da Relação, recurso que foi admitido como de revista.
ConclusõesOferecidas tempestivas Alegações, formulou a
recorrente as seguintes conclusões:
Conclusões da Revista
1ª.— Tem o corpus da posse aquele que, sem violência, recebeu do anterior proprietário certos bens móveis, que passou a utilizar diariamente (por si, seus familiares, amigos e visitas da casa, neles incluindo o próprio Autor), à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja (Autor, incluído), cuidando deles e procedendo à sua limpeza;
2ª —Tem, também, o animus rem sibi possidendi, se ficou provado que exerceu esses poderes de uso e de fruição, "assumindo-os como coisa própria" (nomeadamente, perante outras pessoas, nelas si incluindo o próprio Autor).
3ª —Tal posse deve ser caracterizada com verdadeira posse, no sentido de posse em nome próprio e,
4ª— Se exercida durante doze anos ininterruptos, pelo menos, a propriedade dos bens assim possuídos foi adquirida por usucapião.
Por outro lado:
4ª — Presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (art. 1252°., n°. 2), ou seja, presume-se o animus naquele que exerce o corpus.
5ª. —Aquele que exerce o corpus está dispensado de provar que também tem o animus (art. 350°., n° 1°.), recaindo sobre o Autor/reivindicante o ónus da respectiva contraprova (arts.342°.; 346°.; e3478.).
6ª — Se, verificada a base daquela presunção legal, o reivindicante não a lograr ilidir, os factos materiais que a integram são considerados provados contra ele,
7ª — Com a inelutável consequência juridico-processual (cfr. art. 346°., in fine e a contrario) de os bens reivindicados serem considerados na posse legítima da demandada.
Por último:
8ª. — Se a Ré não conseguiu fazer prova de ter recebido os bens reivindicados por um alegado contrato de doação, nem por isso o Autor se devia considerar dispensado da prova de lhos ter transmitido por virtude de um também alegado contrato de empréstimo ou de depósito, que obrigasse à sua futura restituição, por ser esse um facto constitutivo do direito que este se arrogou.
9ª — Só assim não seria se a situação configurasse um "caso especial" (art. 343o.) ou de inversão do ónus da prova (art. 344°.), o que, seguramente, aqui não acontece.
10ª — Por aquelas três razões (usucapião, falta de contraprova e incumprimento do ónus da prova), tem-se por demonstrada a legitimidade da posse exercida pela Ré, pelo que a presente acção de reivindicação só pode improceder.
11ª. — Ao decidir que a posse exercida pela Ré não era em nome próprio (e, portanto, não podia conduzir à usucapião) e que era ilegítima (porque não conseguiu provar a alegada doação), O Acórdão recorrido violou as disposições dos artigos 342°.; 344°.; 346°.; 347°.; 349°.; 350°., n°. 1°:; 1252°., n° 2º.; 1253°:, 1257°.; 1263°.; 1265°.; 1267°., n° 1º., alíneas c) e d) e n° 2°.; 1287°.; e 1299°., todos do Código Civil.
Por isso,
12ª — Deve ser revogado e substituído por outro que reponha a decisão proferida na 1ª Instância.Contra-alegou o A. pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.Os Factos.
São os seguintes os factos que as instâncias tiveram por provados:
a) Encontram-se em poder da Ré os seguintes bens:
I - Uma mesa de jantar dinamarquesa, em madeira castanha, de forma rectangular, com duas abas compridas, as quais, quando fechadas, ficam próximo do chão. A mesa tem cerca de 1,6 metros de comprimento e 80 cm de largura.
II - Uma mesa redonda, em madeira escura, com duas abas e duas gavetas, com cerca de 1,4 metros de diâmetro.
III - Dois candeeiros de velas em metal dourado de pendurar na parede.
IV - Duas cadeiras tipo safari em lona verde e madeira, desdobráveis.
V - Uma mesa quadrada com pés em madeira castanha e tampo de vidro, de um metro de comprimento e largura.
VI - Dois maples pequenos em tecido branco com pernas e madeira.
VII - Um cadeirão de orelhas em couro e madeira. Cfr. fotografia junta aos autos como Does. n. 5 e 6 - publicadas nas revistas "Schõner Wohnen", edição Março/78, pág. 7, e "Maison Française", edição Agosto/80, página 33, bem como fotografia junta aos autos como Doc.. n° 7.
VII - Um tapete chinês, preto com franjas brancas e flores pretas em relevo, com 3,5m de comprimento e 2,5m de largura - Cfr. fotocópia junta aos autos como Doe. n° 7.
IX - Uma cómoda da Baviera em madeira pintada, com flores em cores beije, verde e vermelho, com gavetas, abaulada.
X - Dois candeeiros, tipo castiçal, em latão dourado com abajur amarelo - Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n. 8, publicada na revista "Wohndecor", n° 3/79, pág. 63.
XI - Uma escrivaninha em madeira de carvalho com gavetas e tampo.
XII - Uma mesa em madeira de carvalho com uma gaveta (mesa tipo empire), com um metro de comprimento e 40 em de largura - Cfr. fotografia com a letra B da folha de fotografias junta aos autos sob o n.° 3 e fotografia publicada na revista architektur whonen, n.° 3, pág. 38 junta aos autos como Doc.. n.° 9.
XIII- Um candeeiro feito de um frasco grande com um abajur branco - Cfr. Doe. n° 9 junto aos autos.
XTV - Um maple em xadrez castanho e beije, marca cassina.
XV- Uma cama de solteiro da marca "Treca" - Cfr. fotografia com a letra F junta como doe. n.° 3.
XVI - Uma cadeira em madeira castanha. Cfr. fotografia junta como doe. n.°
10.
XVII - Duas mesas em meia lua com três pés, que formam juntas uma mesa redonda com um diâmetro de aproximadamente um metro - Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n.° 10.
XVIII - Uma cama larga em forrada a xadrez azul, da marca Treca - Cfr.
fotografia junta aos autos como Doe. n.° 11 e fotografia com a letra D junta aos autos como Doc.. n.° 3.
XIX - Um maple em xadrez azul - Cfr. fotografia junta aos autos como Doc. n.°ll.
XX- Uma mesinha de cabeceira em madeira castanha - Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n° 12.
XXI - Um candeeiro com pé em madeira tipo tripé com abat-jour em xadrez azul e branco - Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n.° 11.
XXII - Um armário da Baviera em madeira pinho nórdico (Fichte), trabalhado, de duas portas - Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n.° 11 e fotografia junta como Doe. n.° 4 publicada na revista "madame", n. 3, pág. 190.
XXIII - Uma mesa comprida em madeira de convento, com 2 metros de
comprimento e 50 cm de largura - Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n.° 13.
XXIV - Dois bancos de convento 2 metros de comprimento - (Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n° 13.
XXV - Um conjunto de móveis em palhinha verde, composto por um sofá de três lugares, dois maples, uma cadeira, um banco e uma mesa octogonal com tampo em vidro - Cfr. fotografias juntas aos autos como Does. n. 14 e 15 e fotografia junta como Doe. n.° 16 publicada na revista "Architektur & Wohnen", página 41.
XXVI - Um armário da Baviera em madeira pinho nórdico (Fichte), de duas portas, com 1,2 m de largura e 1,9 m de altura - Cfr. fotografia com a letra F do Doe. n. 3 junto aos autos.
XXVII - Cinco chocalhos (sino de vacas) com cinto de couro e fivela, em vários tamanhos - Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n° 17 e fotografia junta como - Doe. n° 4 publicada na revista "madame11, n° 3, pág. 190.
XXVIII - Uma mesa com tampo em acrílico com pés metálicos cromados, com 2 metros de comprimento e 70 em de largura - Cfr. fotografia junta aos autos como n.º 18.
XXIX - Um tapete persa vermelho, azul e beije com 2,5 metros de comprimento e 2 metros de largura.
XXXI - Uma mesa em madeira rectangular, castanha com 80 cm de altura, um metro de comprimento e 40 cm de largura - Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n°19 "Besser Wohnen", n°. 2/80, pág. 31 e Doe. junto como n°. 8.
XXXII - Uma mesa em madeira castanha, quadrada, castanha, baixa - Cfr. Doc. nº 8 e fotografia junta aos autos como Doe. n° 19.
XXXIII - Um cavalo em madeira - Cfr. fotografia junta aos autos como Doe. n° 20.
b) O Autor terá herdado os referidos móveis de um seu amigo chamado DD, cidadão alemão residente em Munique, que faleceu em 1985.
c) Em meados de 1990, o Autor deixou de residir na Alemanha e fixou-se em Portugal, habitando um apartamento situado na Rua do ..., n°. 000, 6o. Dtº.- frente, no Porto.
d) O irmão do Autor, CC, faleceu em 16 de Outubro de 2000.
e) Entre finais de 1990 e 1993, o Autor entregou os bens em causa ao seu irmão CC e à sua mulher, ora Ré.
f) O Autor solicitou à Ré os bens em causa em 2005.
g) Os bens em causa foram ininterruptamente usados pelo falecido CC e pela Ré (bem como pelos seus familiares - o Autor inclusive -, amigos e demais visitantes da casa daqueles), desde a data em que tais bens lhes foram entregues.
h) Assumindo-os como coisa própria.
i) O que sempre aconteceu à vista de toda a gente, sem violência ou oposição de quem quer que fosse (e, nomeadamente, do Autor).
j) A Ré e o seu falecido marido (CC) sempre cuidaram e procederam à limpeza dos bens em causa, desde a data em que os mesmos lhes foram entregues.FundamentaçãoEstamos perante uma acção de reivindicação em que não foi posta em causa a aquisição da propriedade do A. sobre os móveis em lide, os quais terá herdado de um amigo seu já falecido.
Portanto, até ao momento em que o A. entregou os bens ao seu falecido irmão e à Ré, está aceite que o A. era o dono e legítimo proprietário dos ditos bens.
A controvérsia só surge com a dita entrega, já que o A. alega que simplesmente emprestou o mobiliário em causa ao irmão e sua esposa, a ora Ré, para que os usassem temporariamente e restituíssem quando ele lhos solicitasse, enquanto a Ré alega que em 1990 o A. fez doação desses bens móveis ao falecido irmão e à Ré, sua esposa, pelo que os vem possuindo, com base em tal título. Porém, se título não pudesse invocar, sempre os teria adquirido por usucapião, que expressamente invoca, razão porque não os tem de entregar ao A.Porém, realizado o julgamento, verifica-se que, nem o A. provou o alegado empréstimo, nem a Ré a alegada doação.Provou-se apenas que “entre finais de 1990 e 1993 o A. entregou os bens móveis em causa ao seu irmão CC e à sua esposa, a ora Ré” (cof. Resposta aos quesitos 2º e 4º).
Deu-se, no entanto, por provado que os referidos bens, que se encontram em poder da Ré, foram ininterruptamente usados pelo falecido CC e pela Ré, desde a data em que lhes foram entregues, sendo que a Ré e o seu falecido marido (CC) sempre cuidaram e procederam à sua limpeza desde a data em que os mesmos lhes foram entregues, assumindo-os como coisa própria, o que fizeram sempre à vista de toda a gente, sem violência ou oposição de quem quer que fosse (e nomeadamente, do A.).Ora, perante este quadro factual, decidiu a 1ª instância julgar a acção improcedente, porquanto, tendo a Ré e o marido exercido sobre os bens em causa posse em nome próprio, pelo tempo suficiente, os haviam adquirido por usucapião.Sob recurso do A., a Relação revogou a sentença recorrida, julgando a acção procedente.Argumentou que, não tendo a Ré provado a invocada doação e estando assente ser o A. proprietário dos bens quando deles fez entrega ao irmão CC e à Ré, estes não podiam senão ser tidos como meros detentores ou possuidores precários dos aludidos bens móveis.
Portanto, como decorre do disposto no art.º 1290 do C.C. , a Ré e o falecido marido não podiam adquirir para si, por usucapião, o direito possuído a menos que tivessem adquirido posse por inversão do título.
Porém, a inversão do título da posse só ocorreria, no caso, se tivesse havido oposição dos detentores do direito contra aquele em cujo nome possuíam, sendo certo que tal oposição tem de traduzir-se num comportamento exterior do detentor que signifique inequivocamente essa alteração do título, isso é, a oposição tem de ser categórica e ser praticada na presença do titular ou levada ao seu conhecimento directo, não bastando uma mudança de animus de índole subjectiva.
Tal mudança de animus tem de ser exteriorizada de modo a poder ser conhecida pelo titular do direito possuído.Ora a Ré não provou qualquer comportamento expresso de oposição ao titular, pelo que não pode ter-se por provada a inversão do título.
Consequentemente a sua detenção, porque não transformada em posse em nome próprio, não pode levar à aquisição da propriedade por usucapião.Salvo melhor opinião, não decidiu bem a Relação.Vejamos.É certo que estamos perante uma acção de reivindicação daí que, provando o A. ser o legítimo dono dos bens móveis em questão, a restituição só pode ser negada se a Ré demonstrar que os detinha por título válido, oponível ao proprietário, ou que os bens lhe pertencem a ela própria.
E também é verdade que o A. pelo facto de não ter provado o alegado empréstimo não perdeu, por isso, automaticamente, a propriedade dos bens que entregou ao irmão e à cunhada, nem estes as adquiriram por doação, visto que também este negócio ficou por provar. No entanto, provou-se que a Ré e o falecido marido exerceram directamente sobre os bens em causa, actos materiais reiterados, correspondentes ao direito de propriedade (não necessitavam, para caracterizar a posse, de exercer todos os actos – poderes – que integram o conteúdo do direito de propriedade) e fizeram-no na convicção de exercerem um direito próprio, como reconhece a Relação, publicamente, à vista de todos e sem qualquer oposição de quem quer que seja, designadamente do A.Mas será que tal materialidade (que sem dúvida, pode caracterizar o corpus da posse) uma vez exercida com animus domini, não pode ser tida como posse verdadeira, em nome próprio, mas como simples detenção precária, em nome do A., como pretende a Relação?
Será necessária a inversão do título?
O que parece estar na base da decisão da Relação é alguma confusão entre a posse e a propriedade, que, no entanto são realidades distintas, nem sempre coincidentes. A relação material com a coisa (isto é o corpus da posse), em si mesma, não chega para caracterizar a posse, visto que é idêntica na posse e na detenção, daí que seja o elemento subjectivo (o animus) que fará a diferença, caracterizando a situação de facto como posse em nome próprio ou como detenção, consoante a intenção com que o detentor exerce o poder de facto sobre a coisa.
Como ensinava Manuel Rodrigues, “O que eleva a detenção a posse é a intenção de exercer um determinado poder no próprio interesse – é o animus sibi habendi.
Sem ele, a relação material é pura detenção que não pode invocar-se para justificar qualquer efeito possessório” (cof. A Posse - Estudo de Direito Civil Português – revisto e anotado por F. Luso Soares-).Havendo título, é por ele que se determina a natureza do animus e, portanto, se caracteriza a relação material com a coisa.
Pode falar-se em animus domini
- intenção de exercer o direito de propriedade – animus possidendi
- intenção de exercer um direito real sobre coisa alheia, ou mesmo de um animus de exercer sobre a coisa um direito pessoal.Faltando o título, como acontece na aquisição unilateral,situação em que não existe qualquer colaboração do anterior possuidor na constituição da nova posse (cof. Art.º 1263ª) do C.C.), é a própria lei que, em caso de dúvida, presume que o possuidor possui em nome próprio, ou, como se diz no Art.º 1252 nº2 do C.C. “… presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto…”Ora, no caso concreto, não tendo o A. provado o empréstimo dos bens ao irmão e à Ré, nem esta tendo provado a alegada doação desses bens, é claro que não há títuloa justificar a referida entrega dos bens e a caracterizar a detenção deles pela Ré e marido.
Quer dizer, a relação material com as coisas não se funda em qualquer título que defina e caracterize essa relação, daí que não possa dizer-se que a Ré e marido detinham os bens em nome do A.
Diferentemente, a Ré e o marido adquiriram a posse dos bens unilateralmente, agindo directamente sobre as coisas com animus domini (que se provou, mas que podia presumir-se).
Verifica-se aqui uma aquisição originária e unilateral da posse (Art.º 1263 a), não tendo por isso, qualquer sentido trazer à colação a figura da inversão do título, que é outro meio de adquirir a posse (Art.º 1263 d), mas que, em situações como a dos autos, exige uma prévia detenção em nome de 3º, fundada naturalmente em determinado título.No caso, como se viu, não se provou qualquer título que houvesse de inverter para adquirir a posse.Portanto, a Ré e marido, adquiriram a posse dos bens que lhes foram entregues, unilateralmente, pela prática reiterada, pacífica e pública dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade – Art.º 1263 a) do C.C. –
E, também se podia concluir que o A., se posse tivesse (já se disse que posse e direito de propriedade são realidades diferentes) e tal não se provou (cof. resposta ao quesito 1º), a teria perdido pela posse da Ré e marido, mesmo contra a sua vontade, visto que a nova posse se prolongou por muito mais de um ano (Art.º 1267 d)).O direito de propriedade do A. sobre os bens entregues, não impedia a posse em nome próprio da Ré e falecido marido.
O que aconteceu, até, foi que a duração da posse pelo tempo necessário ao funcionamento da usucapião levou à aquisição da propriedade dos bens pelos possuidores, assim se destruindo a propriedade do A. sobre esses bens.Concluindo, não havendo lugar à inversão do título e atenta a prova disponível, não pode negar-se que a Ré e falecido marido são verdadeiros possuidores (em nome próprio, portanto) dos bens em questão.
Como bem se refere na sentença de 1ª instância, tal posse não é titulada, devendo presumir-se de má-fé.
É, porém pacífica e pública.
Foi mantida pelo período de tempo suficiente (no caso 6 anos) para levar à aquisição da propriedade dos bens por usucapião (Art.º 1299 do C.C.)Por conseguinte, não obstante o A. ser proprietário dos bens à data em que os entregou, a verdade é que veio a perder esse direito nas condições referidas nos autos.
Quer dizer, a Ré demonstrou ter adquirido, juntamente com o falecido marido, a propriedade dos móveis em causa, por meio de usucapião.
Logo, provou a excepção arguida, pelo que, provado o seu direito, não podem os bens ser restituídos ao A. o que implica a improcedência da acção, tal como decidiu a 1ª instância.Nas contra-alegações diz o A. que, face à lei alemã é herdeiro do falecido irmão, pelo que, nessa qualidade, é também dono e legítimo possuidor em comum e sem determinação de parte ou direito dos bens aqui em questão, o que lhe deve ser reconhecido.Tal questão é matéria nova que o A. não suscitou nos articulados da acção, pelo que nunca aqui teria de ser conhecida.
Além disso, atender a uma tal situação implicaria alterar a causa de pedir, o que não pode ser feito em sede de recurso, e, em qualquer caso, implicaria considerar matéria nova, não alegada, para fundamentar a decisão, a que é processualmente inadmissível.
Acresce que a apreciação de tal questão implicaria a aplicação de legislação alemã, que se desconhece e o A. não disponibilizou, além de que, não é esta a fase própria para fazer uma tal apreciação, que até suporia a produção de prova face ao que, a respeito, se alegou nas contra-alegações oferecidas pela Ré na apelação.
DecisãoTermos em que acordam neste S.T.J. em conceder revista e, consequentemente:
- revogam o acórdão recorrido, e
- julgam a acção improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos.Custas pelo A/ recorrente (também nas instâncias).