I - O STJ tem considerado, para efeito de fundamentar o pedido de revisão de decisões penais, que os factos serão novos quando não foram apreciados no processo que conduziu à condenação, mesmo que não fossem ignorados pelo arguido no momento em que o julgamento teve lugar, e que sejam susceptíveis de levantar dúvidas graves sobre a
culpabilidade do condenado.
II - O recorrente F [condenado, por sentença que transitou em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no art. 3.º, n.º 1, do DL 2/98, de 03-01, com referência ao art. 121.º, n.º 1, do CE, na pena de 9 meses de prisão], através do documento que agora exibe, ao qual havia feito referência no interrogatório judicial subsequente à detenção, e bem assim na audiência de julgamento, mas que nunca
apresentou para apreciação pelo tribunal, pretende abalar a fé do documento emitido pela Câmara Municipal de P…, segundo o qual “este Município não emitiu qualquer licença de condução em nome de F”.
III - O documento apresentado é uma “licença de condução de velocípedes com motor” emitida em 16-08-1994 pela Câmara Municipal de P... que, nos termos do art. 54.º, n.º 1, do CE, aprovado pelo DL 39 672, de 20-05-1954, com a redacção do DL 47 070, de 04-07-1966, e face ao disposto nas Portarias n.º 23 209, de 13-04-1968, e n.º 330/71, de 23-06, habilitava o arguido à condução de veículos com características de ciclomotores.
IV - A validade das licenças de condução de velocípede com motor para conduzir ciclomotores, só sofreu alteração com a publicação do DL 209/98, de 15-07, que aprovou o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, que limitou a 1 ano [prorrogado até 30-06-2000, pelo art. 4.º do DL 315/99, de 11-08] o prazo em que os titulares de licença de condução de
velocípedes com motor estão habilitados a conduzir ciclomotores, podendo, nesse mesmo prazo, requerer na câmara municipal a troca daquele título por licença de condução de ciclomotor.
V - À data da infracção que motivou a condenação do recorrente vigorava o CE resultante das alterações introduzidas pelo DL 44/2005, de 23-02, que estabelece, no art. 121.º, n.º 1, que “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito”, constituindo a falta de título adequado o crime do art. 3.º, n.º 1, do DL 2/98,
de 03-01.
VI - O recorrente, como titular da licença de condução de veículo com motor emitida pela Câmara Municipal de P…, foi detentor de título que lhe permitiu conduzir ciclomotores até 30-06-2000, data a partir da qual deixou de vigorar o preceito que permitia a condução de um ciclomotor pelo titular de licença de condução de velocípede com motor.
VII - O documento apresentado, podendo embora ser considerado como elemento de prova novo, não tem qualquer virtualidade, por si, ou combinado com os demais meios de prova, para suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
Nesta instância, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu visto, emitiu bem fundado parecer, que lhe permitiu concluir que não existe real fundamento para considerar a situação abrangida pela previsão do art. 449º nº 1 als. c) e d) do Código de Processo Penal, pelo que entende dever ser negada a revisão.
2. O recurso extraordinário de revisão é um mecanismo processual destinado à reparação de erros judiciários para que a justiça substancial possa prevalecer sobre a formal. Permite, por isso, a impugnação duma decisão transitada em julgado que esteja inquinada por um erro de facto originado por motivos estranhos ao processo. Trata-se dum instituto com dignidade constitucional conforme prevê o nº 6 do art. 29º da Constituição da República: – os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e a indemnização pelos danos sofridos.
Os fundamentos que podem dar origem a um recurso de revisão, estão taxativamente indicados no art. 449º do Código de Processo Penal,:
a) uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;
b) uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;
c) os factos que servirem de fundamento à condenação serem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
d) descobrirem-se novos factos ou meios de prova que, de per si, ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
e) descobrir-se que serviram de fundamento à condenação provas proibidas;
f) ser declarada pelo Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;
g) ser inconciliável com a condenação ou suscitar graves duvidas sobre a sua justiça, uma sentença proferida por instância internacional, que seja vinculativa para o Estado Português,
A circunstância que o requerente indica como fundamento da sua pretensão, é a da al d); importa, por isso, atentar um pouco mais nela, nomeadamente para fazer a distinção entre “novos factos” e “novos elementos de prova”.
Conforme Cavaleiro de Ferreira (apud Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, pág. 214/215), factos «são os factos probandos», isto é, «os factos constitutivos do próprio crime, ou os seus elementos essenciais» e também «os factos dos quais, uma vez provados, se infere a existência ou inexistência de elementos essenciais do crime», enquanto que elementos ou meios de prova são «as provas destinadas a demonstrar a verdade de quaisquer factos probandos, quer dos que constituem o próprio crime, quer dos que são indiciantes de existência ou inexistência de crime ou seus elementos»
O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que são factos novos ou novos meios de prova aqueles que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação, e que, sendo desconhecidos da jurisdição no acto do julgamento, sejam susceptíveis de levantar dúvidas graves sobre a culpabilidade do condenado. Portanto, para efeito de fundamentar o pedido de revisão de decisões penais, os factos serão novos quando não foram apreciados no processo que conduziu à condenação, mesmo que não fossem ignorados pelo arguido no momento em que o julgamento teve lugar (cfr., por todos, os acs. do STJ de 14-04-2005, proc. 1012/05 e 8-10-2003, proc. 2285/03, constantes da bases de dados do ITIJ e os acs. de 9 de Julho de 1997, no BMJ, nº469, pág. 334, e de 22 de Outubro de 1998, no BMJ, nº 489, pág. 287).
3. Nos termos do disposto no art. 453º do Código de Processo Penal, sendo o fundamento da revisão o previsto no artigo 449.º, n.º 1, alínea d), o juiz deve proceder às diligências que se lhe reputem indispensáveis para a descoberta da verdade, mandando documentar, por redução a escrito ou por qualquer meio de reprodução integral, as declarações prestadas.
No presente caso, sendo a prova documental não houve que proceder a diligências.
4. No processo onde se verificou a condenação de AA foram dados como provados os factos seguintes:
1) No dia 5 de Dezembro de 2006, o arguido conduziu o ciclomotor de matrícula 1000-71-46, pela Rua d....., em Casais da Vestiaria, Alcobaça.
2) Porém, o arguido não possuía qualquer licença que o habilitasse a conduzir o referido veículo.
3) O arguido que tinha perfeito conhecimento de que só poderia conduzir veículos motorizados na via pública desde que fosse titular da respectiva licença de condução, não se absteve, no entanto, de tal comportamento exercido livre conscientemente e que sabia proibido.
4) O arguido presentemente está em cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional Regional de Leiria, não auferindo rendimentos.
5) Vive em casa arrendada com a companheira que trabalha na Junta de Freguesia e com dois filhos de 5 (cinco) e 7 (sete) anos de idade.
6) Paga mensalmente € 200,00 (duzentos euros) de renda de casa e € 100,00 (cem euros), em virtude de um crédito que lhe foi concedido.
7) Do certificado do registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:
Processo Sumário n° 85/99, do 2° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, pelo crime de condução sem carta, por sentença datada de 05/05/1999, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de Esc. 400$00;
Processo Sumário n° 98/01.4GANZR, do Tribunal Judicial da Nazaré, pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal, por sentença datada de 15/10/2001, na pena de 190 (cento e noventa) dias de multa, à taxa diária de Esc. 500$00;
Processo Sumário n° 872/02.4PBLRA, do 3° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, pelo crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 29/05/2002, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à razão diária de € 2,00 (dois euros);
Processo Comum Singular n° 209/00.7GBACB, do 1° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, por sentença datada de 22/11/2002, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 2,50 (dois euros e cinquenta cêntimos);
Processo Comum Singular nº 419/01.0GTLRA, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, pelo crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 16/01/2003, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
Processo Sumário n° 111/03.0GAANS, do Tribunal Judicial da Nazaré, pelo crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 17/1 0/2003, na pena de 10 ( dez) meses de prisão;
Processo Comum Singular n° 1290/03.2TALRA, do 3° Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, pelo crime de desobediência, por sentença datada de 07/02/2005, na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa por 3 (três) anos.
Não se provou qualquer outra matéria constante da acusação.
A convicção do tribunal relativamente à matéria dada como provada baseou-se na ponderação dos seguintes elementos de prova:
- Nas declarações do arguido quando confirma que nas circunstâncias de tempo e local mencionadas na acusação conduzia o veículo referido. Mais se valoraram as suas declarações no que concerne à sua situação sócio-económica.
- Nas declarações das testemunhas BB e CC, agentes da G.N.R. a prestarem serviço no Posto Territorial de Alcobaça que, de uma forma isenta e credível, explicaram como interceptou o arguido no exercício da condução, tendo constatado que o mesmo não tinha licença de condução, facto que confirmaram após pedirem informações às Câmaras Municipais de Alcobaça, Nazaré e Porto de Mós.
- Nos documentos juntos a fls. 3,4 e 5 e no certificado do registo criminal de fls. 52 a 57.
Não se provou qualquer outra matéria para além da consignada supra, pois não se produziu mais nenhuma prova que permitisse acrescentar aos provados outros factos, além dos aludidos.
Com efeito, não se valorou a versão do arguido quando menciona que é portador de licença de condução, a qual caducou por falta de renovação, uma vez que os documentos juntos a fls. 3, 4 e 5, emitidos pelas Câmaras Municipais de Alcobaça, Nazaré e Porto de Mós, respectivamente, dão informação no sentido de que aquele não é titular de habilitação para conduzir emitida por qualquer um deste Municípios.
5. O pedido formulado pelo condenado AA assenta, fundamentalmente, em que, “ponderando a matéria de facto provada, a motivação do tribunal a quo em condenar o arguido com base num documento emitido pela Câmara Municipal de Porto de Mós em como o arguido não é portador de licença e o documento ora apresentado pelo arguido comprovando ser portador de licença de condução, suscita dúvidas na forma de condenação do arguido” (conclusão 4).
Ou seja, através do documento que agora exibe, ao qual havia feito referência no interrogatório judicial subsequente à detenção, e bem assim na audiência de julgamento, mas que nunca apresentou para apreciação pelo tribunal, pretende o recorrente abalar a fé do documento emitido pela Câmara Municipal de Porto de Mós, segundo o qual “este Município não emitiu qualquer licença de condução em nome de AA”
6. O documento apresentado é uma “licença de condução de velocípedes com motor” emitido em 16 de Agosto de 1994 pela Câmara Municipal de Porto de Mós.
Nessa data estava em vigor o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39.672, de 20 de Maio de 1954, em cujo art. 54º nº 1, na redacção do Decreto-Lei nº 47.070, de 4 de Julho de 1966, se estabelece que “só poderão conduzir velocípedes na via pública os indivíduos habilitados com uma licença de condução apropriada passada por uma câmara municipal ou com uma carta de condução de ciclomotores e ou de motociclos.”
O art. 38º do Código da Estrada definia velocípedes como sendo “os veículos de duas ou mais rodas accionadas pelo esforço do próprio condutor por meio de pedais ou dispositivos análogos”, sendo velocípedes com motor, aqueles que tenham pedais ou dispositivos análogos que permitam ao condutor accionar o veículo a uma velocidade razoável, suficiente para o seu emprego normal, sem o recurso ao motor, cuja cilindrada não exceda 50 cm3, com velocidade máxima limitada a 50 km/h. Por sua vez são ciclomotores os veículos de duas ou mais rodas com motor de cilindrada não superior a 50 cm3 que não sejam considerados velocípedes. Mas, nos termos do nº 1 do art. 2º do mencionado Decreto-Lei n.º 47.070, os veículos com características de ciclomotores foram considerados, num período inicial, para todos os efeitos, velocípedes com motor, estando previsto um período de transição para serem matriculados como ciclomotores. Os períodos da fase inicial e da de transição seriam, nos termos do § único desse art. 2º fixados por portaria, o que sucedeu com a Portaria nº 23.209 de 13 de Abril de 1968, mas vieram a ser indefinidamente prorrogados pela Portaria nº 330/71, de 23 de Junho.
Deste modo, a licença de condução de velocípedes com motor de que o arguido era titular habilitava-o, então, à condução de veículos com características de ciclomotores.
Com a publicação do novo Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, desapareceu a categoria de velocípede com motor, passando o art. 115º a contemplar a categoria de ciclomotores, quando o veiculo de duas rodas seja dotado de motor com cilindrada não superior a 50 cm3 e a de velocípedes, quando é accionado pelo esforço do próprio condutor, através de pedais ou dispositivos análogos. Para a condução de ciclomotores, o Código da Estrada previa, no art. 132º, a “licença de condução”, ficando, segundo o nº 4, para definir em diploma próprio, as provas a que devam ser submetidos os candidatos a titulares de licença de condução ou à sua revalidação, bem como o conteúdo, as características e o prazo de validade desses títulos. O Decreto Regulamentar nº 65/94, de 18 de Novembro, estabeleceu, no art. 9º, uma norma transitória, segundo a qual, “os títulos de condução de velocípedes com motor … válidos à data da entrada em vigor do presente diploma conferem aos seus titulares a habilitação para conduzir … ciclomotores …”
Esta situação de validade das licenças de condução de velocípede com motor para conduzir ciclomotores, só sofreu alteração coma publicação do Decreto-Lei n.º 209/98, de 15 de Julho, que aprovou o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir. Por força do disposto no art. 47º nº 1, foi limitado a um ano o prazo em que os titulares de licença de condução de velocípedes com motor estão habilitados a conduzir ciclomotores, podendo, nesse mesmo prazo, segundo o nº 2, requerer na câmara municipal a troca daquele título por licença de condução de ciclomotor. Aquele primeiro prazo veio, depois, a ser prorrogado até 30 d Junho de 2000, conforme estabeleceu o art. 4º do Decreto-Lei n.º 315/99, de 11 de Agosto.
À data da infracção que motivou a condenação do recorrente vigorava o Código da Estrada resultante das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro. Estabelece-se, no art. 121º nº 1, que “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito”. A falta de título adequado constitui o crime do art. 3º nº 1 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. A emissão desse título, por força do disposto nos arts. 11º e 21º nº 4 do Decreto-Lei n.º 44/2005, passou a ser da competência da Direcção-Geral de Viação [hoje, Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres], tendo os titulares de licenças de condução de ciclomotores emitidas pelas câmaras municipais o prazo de 3 anos, para proceder à troca destes títulos por outros emitidos por aquela Direcção-Geral.
7. Em virtude dos preceitos acabados de referir, o recorrente, como titular da licença de condução de veículo com motor emitida pela Câmara Municipal de Porto de Mós, foi detentor de título que lhe permitiu conduzir ciclomotores até 30 de Junho de 2000.
Para poder continuar a conduzir estes veículos teria, porém, de requerer, no mesmo prazo, na câmara municipal da residência, a troca do referido título por licença de condução de ciclomotor. O que o recorrente não fez, conforme resulta das informações prestadas, quer pela Câmara Municipal de Porto de Mós, entidade que em 1994 tinha emitido a licença de condução de velocípede com motor, quer pela Câmara Municipal de Alcobaça, concelho onde residiu, quer pela da Nazaré, onde actualmente mora, que informaram que não emitiram em seu nome licença de condução de ciclomotores.
O recorrente, a partir de 30 de Junho de 2000, deixou, assim, de ter título que lhe permitisse conduzir ciclomotores, não porque o título tivesse caducado, mas porque deixou de vigorar o preceito que permitia a condução de um ciclomotor pelo titular de licença de condução de velocípede com motor, ou seja, que habilitava o titular desta licença a conduzir um ciclomotor. E, por isso, praticou actos integradores do crime do art. 3º nº 1 do Decreto-Lei n.º 2/98, por que veio a ser condenado.
8. Por tudo quanto se deixa exposto, o documento agora apresentado, podendo embora ser considerado como elemento de prova novo, não tem qualquer virtualidade, por si, ou combinado com os demais meios de prova, para suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em denegar a pretendida revisão.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC.
Lisboa, 16 de Outubro de 2008
Arménio Sottomayor(relator)
Souto Moura