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EXPROPRIAÇÃO
NOMEAÇÃO DE ÁRBITROS
AUDIÇÃO PRÉVIA DAS PARTES
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário
I - O erro respeitante ao objecto do negócio abrange, não apenas a própria identidade do objecto, mas também as suas qualidades, dependendo a anulabilidade do negócio, neste caso, da circunstância de o declaratário conhecer, ou dever conhecer, a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual recaiu o erro, como resulta da remissão constante do art. 251.º para o art. 247.º, ambos do CC. II - Estando provado que só 3 meses antes da propositura da acção os Autores tiveram conhecimento do erro sobre o objecto do contrato de compra e venda que haviam celebrado com os Réus (por abranger a totalidade do prédio de que eram proprietários e não apenas a parte que tinha sido prometida vender), não ocorre caducidade do direito, antes se deve considerar a acção proposta dentro do prazo a que alude o art. 287.º do CC. III - O registo predial não prova que o conteúdo das declarações dos interessados (nas escrituras públicas em que se baseia) corresponda à realidade. A presunção registral no art. 7.º do CRgP pode ser ilidida, por prova em contrário. Assim, se o facto inscrito assentar em negócio nulo ou anulável, a presunção legal será afastada e a nulidade do negócio tem como consequência a nulidade do registo feito com base nele. IV - Não tendo o registo feição constitutiva, os eventuais interessados que não são parte nesta acção (no caso os proprietários da parte do prédio indevidamente integrada no negócio, que não tinham registado a sua anterior aquisição), não ficam condicionados ou limitados no exercício do seu direito (de propriedade).
Texto Integral
1
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I –AA, BB e mulher, CC, DD, EE e marido FF; GG e marido HH intentaram, a 20 de Março de 1997, no Tribunal da Comarca de Sintra, acção declarativa de condenação, com processo comum sob a forma ordinária, contra II e mulher JJ, pedindo que:
a – se declare a nulidade da compra e venda de determinado imóvel, ordenando-se o cancelamento do registo efectuado a favor dos réus;
b – sejam os réus condenados a indemnizá-los dos prejuízos que lhes causaram, montante a apurar no que se vier a liquidar;
subsidiariamente
c – seja declarada a nulidade parcial da aludida compra e venda.
Para tanto alegam, em síntese:
Foram instituídos herdeiros do remanescente da herança de KK, integrando esse remanescente parte da denominada Quinta da Saúde.
A dita KK prometeu vender ao réu marido parte dessa Quinta e, falecida a KK, prontificaram-se a celebrar o contrato definitivo. Só que, sem que se apercebessem, nele foi englobado toda a Quinta da Saúde, o que tudo foi ardilosamente preparado pelo réu comprador.
Devidamente citados, contestaram os réus, arguindo a sua ilegitimidade e sustentando, em síntese, que o contrato-promessa celebrado com a KK abarcava todo o prédio denominado Quinta da Saúde e foi esse mesmo prédio que compraram aos autores, o que eles bem sabiam quando outorgaram esse contrato.
Em reconvenção pediram os RR. a condenação dos AA. como litigantes de má-fé e, para a hipótese da acção proceder, formularam pedido de condenação dos AA. a devolverem-lhes a importância de 8.000.000$00, valor pago pela compra da Quinta e ainda a indemnizá-los das benfeitorias nela efectuadas, no valor de 7.500.000$00., quantias essas acrescidas dos montantes correspondentes à desvalorização monetária.
Replicaram os autores para refutarem a argumentação dos réus.
Falecido o A. FF, procedeu-se à habilitação dos respectivos sucessores.
Foi elaborado despacho saneador e fez-se selecção da matéria de facto assente e elaborou-se a base instrutória, sem reclamações.
Procedeu-se, com estrita observância do formalismo legal, à audiência de discussão e julgamento, tendo-se respondido à matéria de facto, que foi objecto de reclamações, todas indeferidas.
A final foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, declarado nulo, em parte, o contrato de compra e venda e ordenado, nessa parte, o cancelamento do registo, tendo sido declarado prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional.
Inconformados com o assim decidido, apelaram os réus, mas sem sucesso, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente a apelação.
Ainda irresignados, recorreram os RR. , de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça, imputando várias nulidades ao acórdão e continuando a pugnar pela improcedência do pedido dos autores.
O STJ decidiu que o acórdão recorrido não enferma dos vícios apontados às concretas questões apreciadas e revogou-o, para, em novo julgamento se proceder à reapreciação da prova relativamente aos pontos da matéria de facto impugnados.
A R. veio a proferir novo acórdão, no qual, negando provimento ao recurso se acordou em declarar a anulação do contrato de compra e venda, unicamente na parte em que AA, BB, DD, EE, FF, GG e HH, declaram vender ao terceiro outorgante marido, II, e este declara comprar, livre de quaisquer ónus ou encargos: a) casa de rés-do-chão, com a área de 70 m2, dependência com 70 m2 e logradouro com 100 m2, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Belas, sob o artigo 683; b) casa de rés-do-chão, com a área de 50 m2 e logradouro com 100 m2, inscrito na matriz predial urbana, da dita freguesia sob o artigo 684; c) casa de rés-do-chão com a área de 24 m2 e logradouro com 100 m2, inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia, sob o artigo 685, no mais se confirmando a sentença recorrida.
De tal acórdão vieram os RR. interpor recurso de revista, recurso que foi admitido.
Os RR. apresentaram as suas alegações, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
1. Os AA, aqui Recorridos, AA, BB, DD, EE e GG, foram instituídos herdeiros do remanescente da herança deixada por KK, conforme testamento lavrado no 1º Cartório Notarial de Lisboa em 21/04/1988 (Doc. 1 da P.I., fls. 13 a 18).
2. Pela Ap. ..........., foi registada a aquisição da Quinta da Saúde a favor dos AA., sem determinação de parte ou direito, por sucessão testamentária, constando da respectiva descrição nº .... a composição física da Quinta da Saúde descrita em 7.
3. Os AA, aqui Recorridos, e os RR., aqui Recorrentes, celebraram em 22/06/1989, por Escritura Pública, lavrada pelo 17º Cartório Notarial de Lisboa, o Contrato de Compra e Venda da dita Quinta da Saúde com a composição física descrita em 7.
4. Em Março de 1997, passados oito anos, os AA, intentaram a presente acção contra os RR., pedindo a nulidade do negócio entre eles celebrado, alegando que “Não se aperceberam, aquando da leitura da escritura, que o que estava a ser vendido, através da mesma, era toda a Quinta da Saúde” (Artigo 43º P.I.), “Por nunca antes ou depois da outorga da escritura terem tido em seu poder os documentos respeitantes à citada Quinta da Saúde (...), e que “Se de tal se tivessem apercebido, não teriam assinado a escritura (...), porque sempre ouviram a KK dizer: “que anos antes tinha vendido ao LL, três casas e respectivos logradouros”
5. E juntaram, então, uma escritura que atesta o negócio jurídico de compra e venda das ditas três casas, celebrado entre a então proprietária da Quinta da Saúde, D. KK e o seu arrendatário, Sr. LL, em 11/04/1984 (Doc. nº 1 da P.I., fls.46 a 50).
6. Com aqueles fundamentos, os AA., pediram que se: “Declarasse a nulidade da compra e venda do imóvel denominado “Quinta da Saúde”; a condenação dos réus no pagamento aos autores de uma indemnização (a liquidar em execução de sentença), pelos prejuízos que lhes causaram; o cancelamento a favor dos réus, do imóvel “Quinta da Saúde” ou, em alternativa, a declaração de nulidade parcial da compra e venda do mesmo imóvel
7. Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, declarando parcialmente nulo, por venda a non domino, o negócio celebrado entre os AA e os RR.
8. Os Recorrentes interpuseram Recurso de Apelação, mas o Tribunal Recorrido, sustentando, embora, que na presente acção estava em causa a anulação do negócio jurídico celebrado entre os AA e os RR, com fundamento em erro simples, negou provimento ao Recurso dos Apelantes pelo que estes, não resignados, interpuseram recurso para o S.T.J.
9. Por acórdão proferido em 8.11.2008, o Supremo Tribunal de Justiça conheceu apenas parcialmente o objecto do Recurso intentado pelos RR porquanto conheceu apenas do Recurso sobre a Matéria de Facto, tendo revogado nesta sede o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ordenando a baixa dos Autos àquele Tribunal para que efectue a reapreciação da prova produzida relativamente aos pontos da Matéria de Facto impugnados por via do Recurso.
10. Dos vícios apontados à Sentença de 1.ª Instancia, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se apenas e tão só sobre a invocada falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, não conhecendo as demais questões de Direito suscitadas naquele Recurso, prejudicadas pela decisão de Revogar o Acórdão no que se referia ao Recurso sobre a Matéria de facto.
11. Proferido novo Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no qual é efectuada a reapreciação da prova produzida relativamente aos pontos da matéria de facto impugnada pelos RR no seu Recurso de Apelação, mantendo na integra a decisão proferida sobre as questões de Direito suscitadas.
A) Da Nulidade do Negócio Jurídico celebrado entre a D. KK e o Sr. LL
12. O Tribunal Recorrido não se pronunciou sobre a arguida nulidade do negócio jurídico celebrado entre a D. KK e o Sr. LL, em virtude do mesmo contrariar as regras sobre fraccionamento da propriedade, nomeadamente o disposto no artigo 27º do D.Lei 289/73, de 6 de Junho.
13. Nos termos do DL. 289/73, a operação de fraccionamento do prédio misto ........, designado por Quinta da Saúde, só podia ser levada a cabo se da escritura de compra e venda constasse o número do alvará de loteamento ou, em alternativa, a certidão camarária que a isentasse do mesmo.
14. Da Escritura de Compra e Venda celebrada entre a D. KK e o Sr. LL não consta o número de alvará de loteamento nem a menção a qualquer certidão camarária que a isentasse de mesmo.
15. A omissão daqueles elementos na referida escritura desencadeou o efeito previsto no nº 2 do artigo 27º do D. L. 289/73, e nesse sentido se tem pronunciado este Tribunal assim como o Conselho Técnico da DGRN (cfr. Ac. STJ de 08-03- 77, 11-04-78, 30-05-78, 02-02--93, in www.dgsi.pt e Pareceres Técnicos da DGRN Proc. nº 80/90.R.P.4 e Proc. nº 85/96R.P.4. in www.dcirn.mj.pt e Ac. TRL de 02-02-93, CJ, ano 1, tomo 1, pp. 110/111).
16. Na sequência da violação daquelas regras sobre fraccionamento da propriedade, o Sr. LL não pode registar as três casas em seu nome, sendo pouco verosímil que se tenha “esquecido”, até porque, à data da celebração da Escritura de Compra e Venda das ditas casas, era ainda obrigatório submeter a registo todos os factos a ele sujeitos, “…quando incidam sobre prédios rústicos, urbanos ou mistos, situados nos concelhos onde esteja em vigor o cadastro geométrico da propriedade rústica” nos termos do previsto no artigo 14º do DL. 47611, de 28 de Março de 1967.
17. Confrontado com o efeito previsto no nº 2 do artigo 270 do DL. 289/73, ou seja, com a proibição de efectuar o registo das casas em seu nome, infere-se dos acontecimentos subsequentes, que o Sr. LL e a D. KK, acordaram num distrate do negócio, face à impossibilidade de desanexar as casas senão através dum processo de loteamento.
18.Distrate que explica e fundamenta o facto da D. KK ter mantido na sua posse todos os documentos relativos àquelas casas, e ter continuando a pagar sempre os respectivos impostos até à sua morte, conforme se alcança de documentos do processo (cfr. os documentos que foram juntos ao requerimento de registo da Quinta da Saúde em nome dos AA, Doc. de fls 324 a 329, e a certidão das finanças que declara ter a D. KK e os herdeiros pago os impostos até à aquisição da Quinta da Saúde pelos RR., Doc. de fls 415 a 416).
19. Distrate que torna compreensível o facto dos testamenteiros terem considerado as ditas casas no remanescente da Quinta da Saúde, para efeitos de Imposto Sucessório, quando até foram eles a tratar da escritura de compra e venda entre a D. KK e o Sr. LL, conforme afirmou peremptoriamente a testemunha LL, ex-empregada da D. KK (Doc. fls. 91 a 96).
20. Distrate conhecido dos AA., pois só desse modo se justifica que tenham recebido as ditas casas como herança da D. KK e as tenham registado em seu nome, quando, como afirmam, “sempre ouviram a Joana KK dizer: que anos antes tinha vendido ao LL, três casas e respectivos logradouros”.
21.Distrate, que também justifica o comportamento do Sr. LL e do seu genro 00, de apoiar a aquisição da Quinta da Saúde pelo R. II, quando este lhes comunicou a intenção da D. KK lhe vender a Quinta, mostrando-se o LL, desde logo, interessado na aquisição das ditas três casas e numa parcela de terreno que constituíssem um lote, o que o R. prometeu e considerou no levantamento do terreno e no projecto de loteamento apresentado na Câmara (Doc. 11 da PI., fls. 52 e Doc. nº 1 da Apelação).
22. Distrate, que torna compreensível, também, o facto dos herdeiros do Sr. LL, aquando da sua morte, ocorrida em 30/01/1990, não tivessem declarado a propriedade das ditas casas, para efeitos sucessórios, em 27/03/1 990, conforme se alcança do documento junto aos Autos (cfr. Doc. de fls. 344 e 345 e a certificação das datas no verso de fls. 345),
23. Quando, à data do óbito do Sr. LL, estava vivo e de boa saúde o seu genro, 00, que estava por dentro dos negócios celebrados quer com a D. KK quer com o R. II, pois era quem tratava das questões financeiras do sogro, na altura, e tinha todo o interesse em declarar a propriedade das ditas casas uma vez que era casado, em regime de comunhão de bens, com a NN.
24. Assim, ao não apreciar a nulidade arguida, o Tribunal Recorrido não só não cumpriu o dever de se pronunciar sobre questão que lhe foi colocada, como violou as normas relativas à arguição de nulidades prevista no artigo 286º do Código Civil, as normas relativas ao fraccionamento da propriedade previstas no D.L. 289/73, de 6 de Junho, e nomeadamente o seu artigo 27º, assim como o artigo 294º do C. Civil que estipula que os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos.
25. Termos em que, neste Tribunal, deve ser apreciada a nulidade arguida e, a final, ser declarado nulo o negócio jurídico celebrado entre a D. KK e o Sr. LL, por violação das disposições conjugadas dos nºs 1 e 2 do artigo 27º do DL. 289/73, de 6 de Junho, e dos artigos 286º e 294º do C. Civil, com as demais consequências legais, designadamente, as que se reflectem na decisão da presente acção.
B) Das Nulidades da Sentença:
26. O Tribunal Recorrido considerou que não tinha ocorrido a nulidade prevista no artigo 668º, al.c) do C.P.C., conforme alegado pelos Recorrentes (153 a 156 da Apelação)
27. Os Recorrentes continuam a sustentar que a Sentença é nula por os fundamentos invocados pelo Tribunal conduzirem logicamente a uma conclusão diferente da que consta da Decisão.
28. Isto é, tendo em conta a causa de pedir que é a mesma quer para o pedido principal quer para o pedido alternativo, o Tribunal devia ter invocado o mesmo fundamento e sustentado o mesmo raciocínio lógico para o pedido alternativo que o invocado para o pedido principal, o que levaria à anulação do negócio jurídico com fundamento no alegado dolo dos RR e não à nulidade do negócio jurídico por venda a non domino, como veio a ser decidido.
29. Considerou, ainda, o Tribunal Recorrido, que não tinha ocorrido a nulidade da sentença prevista nos termos conjugados do artigo 668º/1, d), segunda parte, e artigo 660º/2, do C.P.C., conforme alegado pelos Recorrentes (157 a 174 da Apelação).
30. Os Recorrentes mantêm que tal nulidade se verificou, pois o Tribunal condenou no pedido formulado, mas utilizou um fundamento que excedia a causa de pedir, ou seja declarou a nulidade parcial do negócio jurídico por força do disposto nºs artigos 892º e 292º do C. Civil, quando a causa de pedir era a anulação do negócio com fundamento num alegado erro dos AA.
31. Aliás, não se compreende que, por um lado, o Tribunal Recorrido sustente que «esta acção não visa o reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre determinados bens, mas antes (e apenas) apurar se subsistem os fundamentos de anulação de determinado negócio celebrado entre autores e réus», e, por outro lado, confirme a declaração de nulidade do negócio por venda a non domino (sublinhado nosso).
32. Assim sendo, o Tribunal Recorrido não só não reapreciou devidamente a questão alegada como, ao confirmar a Sentença recorrida, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, 668º/1, d) segunda parte, e ocupou-se de questão que não foi suscitada pelas partes, segunda parte do nº 2 do artigo 660º, ambos do C.P.C.
33.Termos em que, neste Tribunal, deve ser declarada a errada qualificação jurídica dos factos e a errada aplicação do direito processual, com as legais consequências.
C) Da violação do Direito Substantivo
34. Os Recorrentes alegaram que as três casas estavam registadas em nome dos AA., que eles as herdaram da D. KK e não alegaram nem a sua ilegitimidade sucessória, nem a falsidade do registo, sendo certo que segundo as regras registrais, constitui presunção que o direito registado existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que ele o define (162 a 165 da Apelação), e que tudo visto e conjugado, atenta a forca probatória plena do registo predial, as três casas integravam e integram o acervo hereditário dos AA.
35. O Tribunal Recorrido, argumentou que a força probatória dos documentos autênticos é a prevista no artigo 371º do CC, que a presunção registral prevista no artigo 7º do CRPr. é elidível por prova em contrário, e que a nulidade do negócio tem como consequência a nulidade do registo feito com base nele.
36. Mas, os Recorrentes consideram que o Tribunal Recorrido fez uma errada interpretação e aplicação do direito aos factos.
37. Por um lado, a elisão do valor dos factos registados, só opera se o impugnante provar (e, para isso, alegar) que não correspondem à verdade os factos demonstrativos da titularidade da propriedade inscrita, nos termos conjugados do artigo 344º/1, 349º e 350º do C. Civil conjugados com artigo 7º do CRPr.
38. Por outro lado, os AA. não alegaram nem provaram que o facto registado em seu nome era falso, quando era este o único meio de prova admitido nos termos do previsto no artigo 347º do C.Civil, assim, como não pediram nem foi declarado o cancelamento do registo das três casas em nome dos AA.
39. Deste modo, com a declaração de nulidade do negócio celebrado entre os AA. e os RR., com fundamento na venda a non domino e com o cancelamento do registo das ditas três casas em nome dos RR., o Tribunal Recorrido não evitou uma decisão contraditória (174 da Apelação).
40.Sobre a questão o Tribunal Recorrido diz não haver qualquer contradição por esta acção não visar o reconhecimento do direito de propriedade dos AA. sobre determinados bens, e que os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente se peça o cancelamento do registo pelo que, tendo sido formulado esse pedido, a decisão é inatacável.
41. Porém, a Sentença declarada pelo Tribunal foi precisamente no sentido de não reconhecer o direito de propriedade dos AA., sobre as três casas que venderam aos RR., e de ordenar o cancelamento do registo dessas casas em nome do RR.
42. Assim, a manutenção da Decisão Recorrida e o cancelamento do registo das três casas em nome dos RR., conduzirá à repristinação do registo anterior, e,
43. O registo anterior ao dos RR., foi efectuado em nome dos AA., através da Ap. ............... a que corresponde a descrição 10.537 que integra as três casas que os AA. venderam aos RR. (Doc. de fls. 82 a 84 e 324 a 329).
44. Assim, a manter-se a decisão Recorrida, irá subsistir na ordem jurídica portuguesa a seguinte contradição: por um lado, e nos termos do artigo 892º e 292º do C. Civil os AA. não foram reconhecidos como proprietários das ditas três casas, tendo vendido coisa alheia. Mas, por outro lado, com o cancelamento oficioso do registo das casas em nome dos RR. e consequente repristinação do registo anterior, em nome dos AA. cujo cancelamento não foi pedido nem declarado, estes vão, continuar a ser os proprietários das referidas casas, nos termos do artigo 7º do CRPr.
45. Termos em que, neste Tribunal, deve ser declarada a errada aplicação do direito aos factos e a violação do princípio da coerência do sistema jurídico previsto no artigo 9º do Código Civil, com as legais consequências.
46. Relativamente ao alegado erro dos AA., os Recorrentes demonstraram que não havia meios de prova suficientes para sustentar o alegado dolo por parte dos RR., considerando que, quando muito, e sem conceder, poderia ter havido erro dos AA., relativamente ao objecto do negócio (167 a 172 da Apelação).
47. Mas, que, a ter havido tal erro, ele configuraria uma anulabilidade do negócio celebrado e não uma nulidade, anulabilidade que só pode ser invocada pelo errante, e só podia ser invocada dentro do ano subsequente à cessação do vício nos termos do previsto no nº 1 do artigo 287º do C.Civil.
48. Sobre esta questão do erro, o Tribunal Recorrido confirmou que não havia elementos probatórios juntos aos Autos para se dar a situação como erro qualificado pelo dolo, mas considerou que estava demonstrado o erro simples, devendo ser aplicável ao caso o regime previsto nos artigos 251º, 247º e 292º do Código Civil.
49. Os Recorrentes continuam a sustentar não ter havido erro na formação da vontade dos AA., e que se erro houve os RR. desconheciam a essencialidade que tal erro tinha para os AA, porquanto para os RR., os AA. sempre souberam o que herdaram, o que registaram em seu nome e o que estavam a vender aos RR., tanto assim que não vieram alegar a falsidade do registo das três casas em seu nome nem pediram o cancelamento desse registo.
50. Os Recorrentes alegaram a caducidade do direito dos AA. à anulação do negócio, em virtude de ter passado mais de um ano entre o conhecimento do alegado vício e a propositura da acção.
51. Porém, o Tribunal Recorrido considerou a alegação da caducidade improcedente por, conforme os factos provados (v. ponto 31) a acção ter sido proposta dentro do prazo a que se alude no artigo 287º, CC.
52. Ora, os Recorrentes não só impugnaram o quesito nº 21 (facto provado nº 31) como indicaram os concretos meios de prova junto aos Autos que demonstravam ter sido a acção proposta um ano depois do conhecimento do alegado vício.
53. De facto, resulta da transcrição dos testemunhos supra alegados, que o pretenso erro dos AA, era do seu conhecimento alguns anos antes de ter sido proposta a acção, assim, como resulta da data da certidão da escritura celebrada entre os AA. e os RR., (Doc. nº 9 da PI., fls. 29), que os AA., pelo menos desde vinte e três de Janeiro de 1996, data da emissão da certidão, tinham conhecimento do alegado erro sobre o negócio celebrado com os RR.
54. Termos em que este Tribunal deve declarar a errada aplicação do direito aos factos e a violação, designadamente, dos artigos 251º, 247º e 287º/1 do Código Civil e, em conformidade, declarar a improcedência do pedido dos AA., quer porque os factos alegados e os meios de prova não sustentam a tese de erro na formação da vontade dos AA., quer porque, a ter havido erro, o direito a invocar a anulação do negócio com fundamento nele, estava caducado à data da propositura da acção.
55. Os Recorrentes alegaram que o Tribunal violou as regras sobre fraccionamento da propriedade ao considerar que pela Escritura celebrada entre a D. KK e o Sr. LL se tinham destacado e desanexado da Quinta da Saúde, as três casas objecto daquele negócio jurídico.
56. O Tribunal Recorrido considerou que esta não era a sede própria para apreciar a questão colocada e que os imóveis vendidos pelos entretanto falecidos KK e LL, por escritura pública de 11/04/1984, foram (na sequência deste acto notarial) desanexados do imóvel a que pertenciam.
57. Ora, com o devido respeito, mesmo que a Escritura celebrada entre os falecidos D. KK e LL fosse válida, aquele acto notarial nunca podia operar de per si o destaque ou a desanexação das referidas três casas porque, sobre a matéria, dispunha o DL. 289/73, já referido.
58.Por outro lado, desanexar, significa dividir um prédio por forma a que dele se destaca uma parte para formar um novo prédio, que vai ter descrição própria, havendo que atentar nas disposições legais que consentem tal divisão, designadamente as que respeitam ao loteamento urbano de um prédio (J.A. Monteira Guerreiro, Noções de Direito Registral (Predial e Comercial”, 2ª edição, Coimbra Editora, p.198).
59. Termos em que o Tribunal Recorrido fez uma errada aplicação do direito, designadamente das disposições legais sobre fraccionamento da propriedade, em vigor à data da celebração da escritura entre a D. KK e o LL, que era o já supra citado D.L. 289/73.
Nestes termos, deve este Tribunal conceder provimento ao Recurso de Revista e,
a) Com fundamento na errada aplicação do direito aos factos e na violação, designadamente, dos artigos 251º, 247º e 287º/1 do Código Civil declarar a improcedência do pedido dos AA., quer porque os factos alegados e os meios de prova não sustentam a tese de erro na formação da vontade dos AA., quer porque, a ter havido erro, o direito a invocar a anulação do negócio com fundamento nele, estava caducado à data da propositura da acção, e
b) Apreciar a nulidade arguida e, a final, declarar nulo o negócio jurídico celebrado entre a D. KK e o Sr. LL,
pois só assim se fará a costumada,
JUSTIÇA.
Houve resposta pelos AA., defendendo a improcedência do recurso dos RR.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
II.A. De Facto
É a seguinte de facto fixada pelas instâncias:
1– Os autores AA, BB, DD, EE e GG, foram, por testamento de KK , lavrado a 21/4/1988, de fls. 41 a 43 do livro 434 do 1º Cartório Notarial de Lisboa, instituídos herdeiros do remanescente da herança deixada pela testadora.
2– Dos bens pertencentes a KK, fazia parte um prédio denominado Quinta da Saúde, localizada no lugar do Machado, freguesia de Belas, confrontando a Norte com PP, Sul com QQ, Nascente com Estrada Nacional e Poente com Estrada Municipal, compondo-se:
a) a parte urbana, de casa de rés-do-chão com a área de 100 m2 e logradouro com 586 m2 (art. 2.883);
b) a parte rústica, de vinha e cultura arvense (art. 7).
3– Com data de 8 de Março de 1988, o réu II apresentou à KK o documento denominado de “contrato promessa de compra e venda”, que ambos assinaram, constante de fls. 22, onde se declara, para além do mais que “o objecto deste contrato é a promessa de Compra e Venda da propriedade mista, denominada “Quinta da Saúde”, composta de casas e terreno, conforme consta na respectiva Conservatória do Registo Predial de Queluz, livre de quaisquer ónus ou encargos”, pelo preço de 8.000.000$00.
4– Após o falecimento de KK, ocorrido a em 02.05.1988, foram os seus herdeiros, contactados pelo réu II, que os informou de que tinha acordado com a falecida KK comprar-lhe o remanescente da Quinta da Saúde, sita no lugar do Machado, pelo preço de 8.000.000$00.
5– Mais os informou de que tinha entregue àquela, como sinal e princípio de pagamento do preço acordado, a quantia de 2.500.000$00.
6– Os autores e o réu II vieram a outorgar a escritura pública constante de fls. 30 a 41 dos autos, em 22/06/89, a qual ficou inscrita a fls. 421v do livro de notas 107, do 17º Cartório Notarial de Lisboa, onde, para alem do mais, declaram que: “... que pela presente escritura, vendem ao terceiro outorgante marido II e este compra livre de quaisquer ónus ou encargos e pelo preço de oito milhões de escudos, que já receberam, um prédio misto designado por Quinta da Saúde, no lugar do Machado, na freguesia de Belas, no concelho de Sintra, compondo-se,
– a parte urbana:
a) de casa de rés-do-chão, com a área de setenta metros quadrados, dependência com setenta metros quadrados e logradouro com 100 m2, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Belas, sob o art. seiscentos e oitenta e três, com o rendimento colectável de mil quatrocentos e quarenta escudos e o valor tributável de trinta e um mil novecentos e sessenta e oito escudos;
b) de casa de rés-do-chão, com a área de cinquenta metros quadrados e logradouro com 100 m2, inscrito na matriz predial urbana, da dita freguesia, sob o artigo seiscentos e oitenta e quatro, com o rendimento colectável de quatrocentos e sessenta e dois escudos e o valor tributável de dez mil duzentos e cinquenta e seis escudos;
c) de casa de rés-do-chão, com a área de vinte e quatro metros quadrados e logradouro com cem metros quadrados inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia, sob o artigo seiscentos e oitenta e cinco com o rendimento colectável de oitocentos e sessenta e quatro escudos e o valor tributável de dezanove mil cento e oitenta e um escudos,
d) de casa de rés-do-chão, coma área de cem metros quadrados e logradouro com quinhentos e oitenta e seis metros quadrados, inscrito na matriz predial urbana, com o rendimento colectável correspondente de catorze mil e oitocentos e cinquenta escudos e o valor tributável de trezentos e vinte e nove mil seiscentos e setenta e oito escudos;
e a parte rústica:
de vinha e cultura arvense, inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo sete da secção M, com o rendimento colectável de trezentos e oitenta e dois escudos e o valor tributável de nove mil seiscentos e vinte e sete escudos.
7– Mais declararam no referido documento que: “... do indicado preço global de oito milhões de escudos, corresponde aos ditos prédios os seguintes preços:
ao prédio referido na alínea a), o preço de novecentos mil escudos;
ao prédio referido na alínea b), o preço de setecentos mil escudos;
ao prédio referido na alínea c), o preço de setecentos mil escudos;
ao prédio referido na alínea d), o preço de cinco milhões de escudos;
à parte rústica do referido prédio, o preço de quinhentos mil escudos...
8– Os réus RR e SS outorgaram na qualidade de procuradores, em nome e representação do Banco Português do Atlântico,
9– Para pagamento de parte do preço do imóvel, os réus contraíram um empréstimo de 5.500.000$00 junto do BPA, tendo para o efeito sido dada como garantia ao mesmo banco a referida Quinta da Saúde.
10– Por escritura pública outorgada no dia 11.04.1984, no 1º Cartório Notarial de Sintra, exarada a fls. 25 a 26-verso do livro de notas 13-E, KK e LL declararam vender e comprar, respectivamente, os prédios descritos e identificados no documento de fls. 46 a 50, onde, para além do mais, consta que: (...)“A primeira outorgante, pelo preço global de cento e sessenta mil escudos já recebido, vende ao segundo os três imóveis seguintes, livres de ónus ou encargos, sitos no lugar do Machado a Quinta da Saúde da freguesia de Belas deste concelho.
Por cem mil escudos, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão com sessenta metros quadrados, de dependência com setenta metros quadrados e de logradouro com cem metros quadrados, a confrontar do Norte com PP, do Nascente com o comprador e do Sul e Poente com a vendedora, inscrito na matriz sob o artigo seiscentos e oitenta e três, com o valor matricial de vinte e oito mil e oitocentos escudos;
Por trinta mil escudos, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão com cinquenta metros quadrados e de logradouro com cem metros quadrados, a confrontar do Norte com PP, do Nascente e Poente com o comprador e do Sul com a vendedora, inscrito na matriz sob o artigo seiscentos e oitenta e quatro, com o valor matricial de nove mil duzentos e quarenta escudos;
Por trinta mil escudos, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão com vinte e quatro metros quadrados e de logradouro com cem metros quadrados, a confrontar do Norte com PP, do Sul com a vendedora, do Nascente com a via pública e do Poente com o comprador, inscrito na matriz sob o ...................., com o valor matricial de dezassete mil duzentos e oitenta escudos.
11– E ainda que: “Os três prédios vendidos – estrutural e funcionalmente autónomos – foram neste acto desanexados do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n............ a folhas cento e quarenta e cinco verso do livro B-vinte e cinco – Primeira Secção, que se encontra registado em nome da vendedora pela inscrição numero q........................., a folhas cento e setenta e uma do livro quarenta e seis
12– O falecido LL ficou a viver num dos prédios referidos na mencionada escritura pública.
13– A denominada Quinta da Saúde fazia parte do remanescente da herança deixada por KK aos ora autores.
14– Alguns anos antes de morrer a KK pretendeu levar a efeito a divisão, em lotes, do remanescente da Quinta da Saúde.
15– Para tal, a KK veio a entregar a documentação necessária à divisão, ao réu II por este lhe ter referido que possuía bons conhecimentos nas diversas repartições de Finanças onde o loteamento teria de ser concretizado.
16– Sendo um para a empregada NN; outro para LL; outro para vender ao réu II; e outro para aumentar o logradouro da Vivenda S. .........., onde habitava.
17– À data de tal pretensão, a KK prometera vender ao LL um lote com a área de 753 m2.
18– A KK veio a adoecer gravemente antes de concluído o loteamento.
19– Na fase de grave estado de saúde, o réu II efectuou com esta negociações com vista à compra de parte da Quinta da Saúde.
20– Na elaboração do documento de fls. 22, denominado de “Contrato promessa de compra e venda”o réu II, com o intuito de enganar a KK, fez mencionar que a compra e venda se referia a uma propriedade mista, composta de parte urbana e rústica, mencionando no respectivo documento apenas o n.º .......... (referente à descrição da Conservatória do Registo Predial de Queluz quanto a toda a Quinta da Saúde), em vez de mencionar os artigos matriciais do prédio urbano (nº ....... e da parte rústica (art. 7º secção M).
21– Após o falecimento da KK, o réu II deu conhecimento integral aos autores do teor do documento de fls. 22 dos autos, denominado de “contrato promessa de compra e venda”.
22– Foi o réu II quem tratou de toda a documentação necessária à efectivação da escritura pública, inclusive a indicação de Notário.
23– No acto de outorga da mesma e aquando da leitura respectiva, os autores não se aperceberam de que a venda incluía a totalidade da Quinta da Saúde, por nunca, antes ou depois da referida outorga, terem tido em seu poder os documentos respeitantes à citada Quinta da Saúde;
24– Se tivessem tido o conhecimento de que, pela escritura referida, se vendia a totalidade da Quinta não a teriam assinado, por ser do conhecimento dos mesmos que anos antes a KK lhes ter dito que vendera a LL três casas e respectivos logradouros.
25– Apenas três meses antes da propositura da presente acção os autores vieram a ter conhecimento de que afinal constava na escritura pública a venda da totalidade da Quinta ao II, quando estes se vieram arrogar donos de toda ela.
26– O réu II tinha conhecimento do negócio descrito no documento de fls. 46 a 50 dos autos, à data em que efectuou a escritura pública com os autores.
27– O réu II e mulher JJ eram visita assídua da casa de LL, gozando da confiança de toda a família, aí passando fins de semana e inteirando-se da situação em que se encontravam os prédios do LL.
28– Na posse de toda a documentação registral da Quinta da Saúde, o II veio a saber que o LL não registara na Conservatória do Registo Predial os prédios que comprara, nem tinha pedido a desanexação dos mesmos da Quinta da Saúde.
29– Que o réu II chegou a prometer vender a 00 1.630 m2 da parte rústica da Quinta da Saúde que ele então se propunha adquirir a KK, contíguos aos logradouros de LL.
30– Antes de subscrever o contrato-promessa junto aos autos, o réu deslocou-se à Conservatória do Registo Predial em que o mesmo estava inscrito e aí confirmou a respectiva composição, a inscrição a favor da promitente vendedora e que sobre ele não incidiam ónus ou encargos.
31– No acto da escritura pública de compra e venda da Quinta da Saúde, estiveram presentes todos os subscritores do documento constante de fls. 30 a 41.
32– A escritura em causa foi lida em voz alta a todos os outorgantes.
33– Na casa identificada sob o artigo 2883 os réus fizeram obras de melhoramento no telhado, nas paredes, no pavimento, portas, janelas, canalizações e electricidade, gastando em tais obras montante não apurado.
II.B. De Direito
II.B.1. Como se sabe, o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.º 684.º. n.º 3, e 690.º, n.os 1 e 3, do CPC), importando ainda decidir as questões nela colocadas e bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.º 660.º, n.º 2, também do CPC.
São as seguintes as questões suscitadas:
a) Nulidade do acórdão por omissão e excesso de pronúncia;
b) Nulidade do negócio jurídico celebrado entre e a D. KK e o Sr. LL (violação das disposições conjugadas dos n.os 1 e 2 do artigo 27.º do D.L. 289/73, de 6 de Junho, e dos artigos 9.º, 286.º e 294.º do C. Civil;
c) Violação do disposto nos artigos 251.º, 247.º e 287.º, n.º 1 do Código Civil.
II.B.2. Começaremos pela apreciação das nulidades, dada a sua precedência.
Entendem os RR. recorrentes que a sentença é nula, nos termos do art. 668.º, n. º1, al. d), do Código de Processo Civil.
Segundo os recorrentes, o acórdão ao não se pronunciar sobre a arguida nulidade do negócio jurídico entre a D. KK e o Sr. LL cometeu a nulidade do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, por não ter conhecido de questão que lhe cumpria apreciar.
Nova infracção à mesma norma cometeu, segundo os recorrentes, o acórdão recorrido na medida em que confirmou a sentença, com base em fundamento que excedia a causa de pedir e, consequentemente, conhecendo de questão que não podia conhecer.
Não têm, patentemente, razão.
A nulidade referida está relacionada com o comando fixado no n.º 2 do artigo 660.º do mesmo código.
Refere-se o excesso de pronúncia ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes e que não sejam de conhecimento oficioso e a omissão, ao não conhecimento das questões suscitadas ou de conhecimento oficioso.
Que não houve omissão de pronúncia resulta de forma incontroversa da própria alegação dos recorrentes.
A questão da nulidade do negócio jurídico citado foi expressamente tratada, tendo-se sustentado:
“É também inconsistente a alegação de que o tribunal violou as normas sobre fraccionamento da propriedade, pois, como já se disse supra, o que se aprecia nesta acção é saber se o contrato de compra e venda celebrado entre as partes deve ou não ser anulado por erro. Por conseguinte, não é esta a sede própria para apreciar a questão colocada, tanto mais que (como decorre dos autos) os imóveis vendidos pela entretanto falecida a LL, por escritura pública de 11/4/1984, foram (na sequência deste acto notarial) desanexados do imóvel a que pertenciam e a aquisição deu origem a novas descrições e a um registo de aquisição a favor do comprador (v. fls. 82, 307 e 325 dos autos).
Finalmente, dir-se-á que a decisão em causa em nada belisca os princípios gerais do direito registral a que já fizemos referência e, muito menos, os princípios constitucionais invocados pelos apelantes.”
Finalmente, quanto ao excesso de pronúncia disse-se no acórdão recorrido que “os apelantes parecem confundir fundamentos com argumentos, esquecendo que o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664.º, n.º 1, do CPC).”
Mas acrescente-se que o fundamento para a anulação parcial do negócio não foi a venda a non domino, mas antes o erro simples, pelo que a fundamentação da decisão com base em causa de pedir não invocada (a referida venda de coisa alheia) não ocorre no acórdão recorrido.
Trata-se, como é bom de ver, em ambos os casos, de mera discordância dos recorrentes com o decidido e não com qualquer nulidade.
II.B.3. Nulidade do negócio jurídico celebrado entre e a D. KK e o Sr. LL
Sobre este tema haverá que subscrever o que se disse no acórdão recorrido e que já se citou.
Em síntese, dir-se-á que o objecto desta acção é a apreciação da existência de erro, a determinar a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre as partes.
Não foi controvertida a venda efectuada ao LL de parte da Quinta da Saúde, tendo ao mesma sido levada à matéria assente.
Também não foi controvertida a validade dessa venda nem o alegado, em sede de alegações, distrate do negócio.
Não há sequer elementos de facto a permitir concluir pela nulidade dessa venda, sendo certo que é o contrário que se extrai dos elementos documentais constantes dos autos (os imóveis vendidos pela D. KK a LL, por escritura pública de 11/4/1984, foram, na sequência deste acto notarial, desanexados do imóvel a que pertenciam e a aquisição deu origem a novas descrições e a um registo de aquisição a favor do comprador, como consta de fls. 82, 307 e 325).
II.B.4. Violação do disposto nos artigos 251.º, 247.º e 287.º, n.º 1 do Código Civil.
O artigo 251.º do Código Civil refere-se ao erro sobre os motivos determinantes da vontade, o chamado erro-vício, reportado ao objecto do negócio – o objecto foi aqui o prédio vendido aos RR. – e o artigo 252.º do mesmo diploma legal ao erro sobre os motivos não reportado à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, distinguindo nestes motivos (nos diversos da pessoa e do objecto) os de carácter geral (artigo 252.º, n.º 1) e os referidos à base do negócio (artigo 252.º, n.º 2).
De ambas as disposições – da verificação dos respectivos facti species – decorrem as seguintes três situações de anulabilidade negocial: no caso do artigo 251.º (erro quanto à pessoa ou ao objecto), “[...] desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro” (artigo 247.º do CC, para o qual o artigo 251.º remete); no caso do artigo 252.º, n.º 1 (erro respeitante a outros motivos), “[...] se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo” (artigo 252.º, n.º 1); no caso previsto no artigo 252.º, n.º 2 (erro respeitante a outros motivos reportados à base do negócio), bastando o conhecimento das partes, sem necessidade de acordo entre elas (V. MENESES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo 1, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 834).
Quanto ao erro respeitante ao objecto — o tipo de erro que a decisão recorrida considerou existir e que se reconduz ao artigo 251.º do CC —, tem--se entendido abranger este, não apenas a própria identidade do objecto, mas também as suas qualidades (Ac. da Relação de Lisboa, de 8 de Janeiro de 1975, BMJ n.º 243.º, p. 313, MENESES CORDEIRO, Tratado..., cit., p. 825, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 1987, p. 235).)
A anulabilidade do negócio depende neste caso, conforme já se indicou e resulta da remissão constante do artigo 251.º para o artigo 247.º, ambos do CC, da circunstância de o declaratário conhecer, ou dever conhecer, a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual recaiu o erro.
Esta articulação entre essencialidade e conhecimento é caracterizada por António Menezes Cordeiro (Tratado..., cit., p. 817), nos seguintes termos:
“[…]
A essencialidade permite excluir o erro indiferente e o erro incidental: no primeiro caso, o declarante concluiria o negócio tal como resultou, no final; no segundo, concluí-lo-ia igualmente, ainda que com algumas modificações. A bitola da essencialidade é subjectiva: cada um determina, livremente, os factores que o possam levar a contratar.
O conhecimento da essencialidade do elemento, por parte do declaratário é, também, um dado subjectivo: ou conhece ou não conhece. Em regra, o conhecimento derivará duma comunicação expressa, nesse sentido: todavia, ele poderá advir do conjunto das circunstâncias que rodeiem o negócio.”
Entendeu-se no acórdão recorrido que:
“…muito embora não se esteja perante um erro provocado por dolo, tendo em conta a matéria de facto provada, não há dúvidas de que estão verificados os pressupostos do erro simples, a que alude o art. 251.º, do CC, designadamente quanto à essencialidade do elemento sobre que recaiu o erro, bem como sobre o seu conhecimento pelo declaratário.
Consequentemente, o regime do erro é, nos termos do art. 251.º, CC, o previsto no art. 247.º, do mesmo Código, o que torna o acto anulável, ainda que apenas parcialmente, por aplicação do artigo 292.º, do mesmo Código.”
Nada a objectar ou a acrescentar, sendo certo que atento o que se disse supra sobre os pressupostos do erro simples e a matéria de facto apurada, não há razões para divergir do entendimento subjacente ao decidido.
Quanto à invocada caducidade, a mesma foi igualmente tratada no acórdão recorrido, em termos isentos de censura.
De facto, estando provado que os autores só tiveram conhecimento do erro sobre o objecto do negócio que haviam celebrado com os RR. três meses antes da propositura da acção (ponto 31. dos factos provados) a acção foi proposta dentro do prazo a que se alude no art. 287.º do Código Civil, não ocorrendo, por isso, caducidade do direito.
Tudo o resto que se possa dizer são extrapolações infundadas, porque sem apoio na matéria de facto provada.
O que se disse acima sobre a relevância do erro não colide com o valor do registo.
Alegam os recorrentes que, sendo o registo um documento autêntico, faz prova plena de que os três imóveis integravam o acervo hereditário, sendo certo que, para além disso, ainda gozam da presunção derivada do registo.
Como igualmente se disse no acórdão recorrido, também aqui a razão não está ao lado dos recorrentes.
Na verdade, a força probatória dos documentos autênticos limita-se aos factos que neles se referem como sendo praticados pela autoridade ou oficial público que os emitiu, assim como aos factos que neles são atestados, com base na percepção da entidade documentadora (art. 371.º, CC).
Afirma VAZ SERRA (RLJ, 111.º, p. 302) que “os documentos em que o documentador (v.g., o notário) atesta determinados factos só provam plenamente o que neles é atestado com base naquilo de que o documentador se certificou com os seus sentidos. Assim o documento não prova plenamente a sinceridade dos factos atestados pelo documentador ou a sua validade e eficácia jurídica, dado que disso não podia o documentador aperceber-se. Daí que o documento, provando plenamente terem sido feitas ao notário as declarações nele atestadas, não prova plenamente que essas declarações sejam válidas e eficazes”.
Consequentemente, o registo predial não prova que o conteúdo das declarações dos interessados corresponda à realidade. Considerações estas igualmente válidas para a escrituras públicas referidas nos autos, uma vez que o conteúdo das declarações dos outorgantes não está abrangido por aquela força probatória.
O registo não dá nem tira direitos. A função do registo é meramente declarativa e destina-se a publicitar a situação dos prédios nele inscritos, como resulta do artigo 1.º do Código de Registo Predial.
A função publicitadora do registo visa permitir a terceiros actuar em conformidade com a confiança que o conteúdo do registo transmite, na medida em que se presume a sua fidelidade à realidade (v. J. LORENZO GONZALEZ, Noções de Direito Registal, p. 66).
Não tendo o registo, no nosso direito, feição constitutiva (cf. o citado art. 1.º, do CRP), o direito (de propriedade) de eventuais interessados, que não são parte nesta acção (o referido LL ou os seus sucessores), não ficam condicionados ou limitados no seu exercício.
Como dizia MANUEL ANDRADE (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 20), “…os prédios são inscritos a favor de determinadas pessoas apenas sobre a base de documentos de actos de transmissão a favor das mesmas pessoas, e não depois de uma averiguação em forma, com audiência de todos os possíveis interessados. O registo não pode portanto assegurar a existência efectiva do direito da pessoa a favor de quem esteja registado um prédio, mas só que, a ter ele existido, ainda se conserva – ainda não foi transmitido a outra pessoa.”
Por outro lado, se é certo que os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente se peça o respectivo cancelamento (art. 8.º, do CRP), não é menos verdade que tal pedido foi formulado pelos AA., pelo que, também deste prisma, a decisão é inatacável.
Acresce que, a presunção registral prevista no art. 7.º, do CRP, é elidível por prova em contrário. Assim, se o facto inscrito assentar em negócio nulo ou anulável, a presunção legal será afastada e a nulidade do negócio tem como consequência a nulidade do registo feito com base nele (cf. ISABEL PEREIRA MENDES, Código do Registo Predial Anotado, p. 103).
Uma última nota para salientar que nesta acção se discute essencialmente a nulidade substantiva do título, o que nos remete para outro plano que não o relativo à prioridade do registo e o da sua oponibilidade a terceiros.
Está, por isso, a decisão devidamente fundamentada e fez-se correcta aplicação das normas dos artigos 251.º, 247.º e 287.º, n.º 1, do Código Civil.