DIREITOS DE AUTOR
COMPETÊNCIA MATERIAL
CAUSA DE PEDIR
CONCESSIONÁRIO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
GESTÃO PRIVADA
GESTÃO PÚBLICA
SOCIEDADE ANÓNIMA
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
Sumário


I - A legitimidade do recorrente é um dos pressupostos processuais específicos do recurso.
II - Tem legitimidade para recorrer a parte para a qual a decisão é desfavorável, qualquer que tenha sido o seu comportamento na instância recorrida e independentemente dos pedidos por ela formulados no tribunal a quo.
III - É com base na forma como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, que se afere do tribunal materialmente competente para dela conhecer.
IV - Com o ETAF aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02, foi alargada a competência dos tribunais administrativos a todas as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente de se saber se são regidas pelo direito privado ou pelo direito público.
V - A Metro do Porto, S.A., sociedade anónima de capitais públicos, é uma pessoa colectiva de direito privado.
VI - Como tal, são competentes os tribunais judiciais para conhecer do pedido de indemnização por responsabilidade civil extracontratual da referida sociedade.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



AA veio intentar acção, com processo ordinário, contra BB, S.A. e CC AGRUPAMENTO DO METROPOLITANO DO PORTO, ACE, pedindo:
a) que se reconheça e declare que os réus, sem qualquer autorização do demandante, utilizaram, na execução das obras de construção e implantação da denominada Linha do BB (Campanhã) – Gondomar (S. Cosme), a ideia de traçado, de inserção urbanística e de projecto de autoria do demandante, assim como o direito deste a ser indemnizado dos danos patrimoniais correspondentes;
b) que se reconheça e declare que os réus, sem consulta prévia ao demandante, introduziram alterações no referido projecto, assim como o direito de ser indemnizado dos danos morais daí advenientes;
c) que se condenem os réus, solidariamente, a pagarem ao demandante, em montante adequado ao ressarcimento integral dos referidos danos patrimoniais (nunca inferior ao que resultar da aplicação dos critérios estabelecidos no regime estabelecido para o cálculo de honorários referentes a projectos de obras públicas, constante da Portaria de 7/2/72, e morais, a quantia que vier a liquidar-se em execução de sentença.

Alegando, para tanto, e em suma:

Sendo o autor arquitecto, com o grau de Mestre em Urbanismo, apetrechado com elevadas competências teóricas e práticas nesta específica área, sendo de sua autoria a ideia e o projecto base de traçado para o troço Campanhã/Gondomar, da Linha de BB, tendo, para o efeito, elaborado vários estudos, foram os mesmos, sem sua autorização, ora aproveitados, ora alterados, aquando da efectiva execução, construção e implementação do sub-troço daquele percurso da referida Linha, por parte das rés, a primeira enquanto dona da obra, a segunda, na qualidade de executora, como empreiteira da respectiva adjudicação.
Tal utilização abusiva constitui as rés na obrigação de o indemnizarem, quer por danos patrimoniais, quer não patrimoniais, que melhor descreve na sua p. i.

Citadas as rés, vieram as mesmas, em separado, contestar.

Alegando, também em síntese, a prescrição do arrogado direito do autor, impugnando os factos atinentes à utilização abusiva do projecto pelo autor idealizado para a implementação do referido troço da Linha do Metro.

Replicou o autor, pugnando pela improcedência da arguida excepção.

Realizada uma audiência preparatória, julgou o senhor Juiz de 1ª instância, oficiosamente, o tribunal incompetente em razão da matéria, sendo para o efeito competentes os tribunais administrativos, tendo, em consequência, absolvido as rés da instância.

Inconformado, veio o autor interpor recurso de agravo para a Relação do Porto, que obteve provimento.

Agora irresignada, veio a Ré BB interpor o presente recurso de agravo, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:

1ª - A decisão do Tribunal de 1ª Instância resultou de cuidada aplicação do direito aos factos sub judice, sustentada por abundante fundamentação de jurisprudência e doutrina, não merecendo qualquer reparo, pelo que deveria a mesma ter sido mantida pelo Tribunal da Relação do Porto.
2ª - A Recorrente BB S.A. é uma "sociedade anónima constituída por capitais públicos", pelo que bem andou o Tribunal de 1ª Instância ao considerá-la uma pessoa colectiva de direito público, decidindo competir, por aplicação da alínea g) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação deste litígio, por ter por objecto uma questão de eventual responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público.
3ª - Por outro lado, a Recorrente BB S.A. é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, à qual foi concedida, em regime de serviço público e de exclusividade, a execução da concessão de exploração do sistema de Metro Ligeiro da Área Metropolitana do Porto.
4ª – Dispõe também o ETAF, na al. i) do nº 1 do seu art. 4º, que compete aos tribunais de jurisdição administrativa a apreciação dos litígios que tenham por objecto:”Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”, pelo que, também por imposição deste normativo é claramente aplicável à ora recorrente o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
5ª – A recorrente discorda também do acórdão recorrido quando este entende não estar em causa entre as partes um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, uma vez que o pedido do autor se funda num suposto acto ilícito – utilização abusiva de um projecto – de uma obra que é pública: a construção do sistema de Metro Ligeiro da Área Metropolitana do Porto.
6ª – A competência material para julgar a questão sub judice é dos Tribunais Administrativos.
7ª – Em suma, quer por aplicação da alínea g), quer por aplicação da alínea i) do nº 1 do artigo 1º do ETAF, a competência para a apreciação da presente acção pertence aos Tribunais Administrativos, pelo que não merecia qualquer reparo a decisão proferida pela 1ª instância, parcialmente revogada pelo acórdão recorrido, que deveria ter sido integralmente mantida.

Contra-alegou o agravado, sustentando a falta de legitimidade do agravante para recorrer e, de qualquer modo, a bondade do decidido na Relação.

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.



São as conclusões da alegação dos recorrentes, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.
Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pelos recorrentes nos são colocadas que urge apreciar e decidir.

A única questão aqui a decidir prende-se com a de saber se os tribunais comuns são os competentes para conhecer deste litígio.

Tendo o Tribunal recorrido entendido que, estando-se perante uma acção emergente de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos autorais do autor, por alegada utilização indevida, por banda das rés, de trabalho desenvolvido por este como arquitecto, violação essa geradora de danos de ordem patrimonial e não patrimonial, mas sendo a dita ré BB pessoa colectiva de direito privado – não sendo de direito público ao invés do afirmado a respeito na 1ª instância – nada legitima a aplicação do art. 4º, nº 1, al. g) do ETAF.
Não sendo, de igual modo, aqui aplicável o preceituado na al. i) do citado nº 1 do mesmo art. 4º, já que o regime em vigor à data da instauração da acção, (DL 40.051, de 18 de Setembro) não prevê a aplicabilidade da responsabilidade nele regulada às pessoas colectivas de direito privado, nem se vislumbrando a sua aplicação por força de legislação que directamente contenda com o exercício da actividade desenvolvida pela dita ré.
Competentes para conhecer do litígio serão, pois, os tribunais comuns.

Sustentando a recorrente BB – apenas agora, neste agravo, já que na acção nunca defendeu tal tese, limitando-se a, por via de excepção, arguir a prescrição do arrogado direito do autor - que é uma sociedade anónima constituída por capitais públicos, à qual foi concedida, em regime de serviço público e de exclusividade, a execução da concessão do sistema de Metro Ligeiro da Área Metropolitana do Porto.
Sendo, pois, uma pessoa colectiva de direito público.
Cabendo, por isso, a competência para dirimir o pleito aos tribunais administrativos, face à previsão da al. g) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Sempre sendo a jurisdição administrativa a competente, por força do preceituado na al. i) do mesmo nº 1, já que à recorrente é claramente aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Estando aqui em causa a “responsabilidade civil extracontratual conexionada com a execução da relação jurídica administrativa envolvida pelo referido contrato de empreitada de obras públicas”.

Vejamos:

Analisando-se, antes de mais, a alegada ilegitimidade da recorrente, por não ter ficado vencida na decisão recorrida, já que esta, oficiosamente ditada, não versou sobre qualquer pedido, requerimento ou excepção que a agravante tenha sujeitado à apreciação do Tribunal.

De facto, a legitimidade do recorrente é um dos pressupostos processuais específicos do recurso, sendo certo que, quer o despacho do relator, no Tribunal recorrido, quer o do relator, neste STJ, sobre a admissibilidade do recurso interposto, são sempre provisórios, bem podendo ser modificados pela conferência.

Determinando, a respeito, o art. 680º, nº 1 do CPC:
“Os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.”

Equivalendo a palavra “vencido” a “prejudicado”, não podendo considerar-se tal requisito – o do vencimento - apenas como uma exigência lógica do instituto, tendo antes o seu fundamento, principalmente, numa razão prática.

Não se devendo concluir que parte vencida, sendo aquela a quem a decisão causa prejuízo, seja aquela cujo pedido, pretensão ou requerimento seja desatendido.

Havendo que atender à decisão para se concluir se a parte é ou não vencida e não aos respectivos fundamentos.
Sendo irrelevante a razão da derrota ou da vitória. – neste sentido A. Reis, CPC Anotado, vol. V, p. 265 e ss.

Vindo a doutrina portuguesa maioritariamente a entender dever a propósito ser adoptado um critério material, o qual implica ter legitimidade para recorrer a parte para a qual a decisão for desfavorável (ou não for a mais favorável que podia ser), qualquer que tenha sido o seu comportamento na instância recorrida e independentemente dos pedidos por ela formulados no tribunal a quo – Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 3º, p. 19.

Ora, a recorrente BB, ré na acção, foi, na 1ª instância, embora por conhecimento oficioso de excepção não arguida por qualquer das partes - a da incompetência absoluta do tribunal - absolvida da instância.

Tendo o autor recorrido para o Tribunal da Relação, decidiu-se neste revogar tal decisão, determinando-se o prosseguimento da acção no tribunal comum.

Assim, sem necessidade de mais, fácil é concluir ter a dita ré legitimidade para recorrer de tal decisão, embora proferida sem requerimento seu a respeito da respectiva excepção, já que a mesma, no confronto com a de 1ª instância, lhe é desfavorável.

Prossigamos, então:

A competência de um tribunal - pressuposto processual - é a medida da sua jurisdição, a parte da jurisdição que a lei lhe assinala, tratando-se de determinar, quanto á competência em razão da matéria, em que tribunal é que a acção deve ser pro­posta, se num tribunal comum, se num tribunal de jurisdição especial.

Ora, é sabido que é com base na forma como o autor configura a sua acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, tendo-se ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo Tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que se afere da determinação do tribunal competente para dela conhecer – Acs do STJ de 6/11/08 (Pº 08B3356), de 10/4/08 (Pº 08B845), de 13/3/08 (Pº 08A391) e de 11/10/05 (Pº 05B2294), entre outros.
Escrevendo, a propósito, M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, I, pags 88 e 89:
"A competência do tribunal constitui, portanto, um pressu­posto processual que se determina pela maneira como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir".
Acrescentando, ainda, acerca dos elementos determinativos da competência dos tribunais: "São vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc), seja quanto aos elementos subjacentes (identidade das partes).
A competência do tribunal - ensina Redenti, (vol. I, p. 265) afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para as pessoas dos litigantes".

E, assim, questão prévia à verificação e determinação do tribunal competente é a da natureza da matéria que fundamenta ou estrutura a acção, a qual, no sentido de direito de acção judicial, consiste no direito de uma pessoa recorrer ao tribunal pedindo solução para um litígio (concreto) em que se ache envolvida. Na generalidade dos casos o direito de acção judicial pretende fazer valer um determinado direito substantivo. Existe, por isso, uma relação muito íntima entre o direito de acção judicial e o direito substantivo que serve de meio de tutela.

E, como o nosso processo civil se rege - ainda e em prin­cípio - pelo princípio do dispositivo, é através da matéria de facto invocada pela parte que se estrutura e fundamenta o direito de acção e se delimita a pretensão ou pedido - BoI. 477, p. 393, em anotação ao Ac. do STJ de 20/5/88.
Sendo, pois, através daquilo que o autor alega e pede que se aferirá a correcta correspondência da forma de processo por si utilizado com os critérios a tal propósito abstractamente definidos na lei.

Ora, na acção intentada pretende o autor obter a condenação solidária das rés BB e CC no pagamento de quantia que se vier a liquidar, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, imputando-lhes responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos (violação de direitos autorais, quer por usurpação do projecto que efectuou como arquitecto, quer pelo seu desvirtuamento).
Ocorrendo tal violação no âmbito da concessão de exploração do serviço público do sistema de metro ligeiro atribuído à ré BB e do contrato de empreitada entre esta celebrado e a outra ré CC, de concepção, construção, equipamento e operação do SMLAMP (Sistema de Metro Ligeiro da Área Metropolitana do Porto).
Estamos, pois, perante uma acção de indemni­zação fundada na responsabilidade civil extracontratual das rés.

Assim, face ao confronto em apreço, entre os tribunais judiciais comuns e os administrativos, para dirimir o pleito atrás delimitado, vejamos, então, qual a competência de uns e de outros.

Prescreve, desde logo, o art. 211º, nº 1 da CRP que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

Determinando, ainda a propósito, o art. 66º do CPC, que são da competência dos tribunais judiciais, na ordem interna, em razão da matéria, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Estando tal preceito também em natural consonância com o art. 18º, nº 1 da LOFTJ, o qual atribui aos tribunais judiciais a competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Podendo, assim, resumir-se o critério geral residual para a determinação do tribunal competente em razão da matéria: todas as causas que não forem por lei atribuídas a jurisdição especial são da competência do tribunal comum.

E, assim, tendo em conta este critério residual - sabendo-se, também, que, segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial (Teixeira de Sousa, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, p. 76) – haverá que, como salientou Palma Carlos (CPC Anotado, p. 230), ao intentar-se qualquer acção “… proceder-se a um breve trabalho de pesquisa: há alguma lei que estabeleça jurisdição especial para a acção que vai propor-se?
Se tal existir, a acção deverá ser intentado ante essa jurisdição especial.
No caso contrário, deverá a causa ser proposta perante o tribunal comum …”.

Ensinando, também, a propósito, A. Reis, in Comentário ao CPC, vol. I, p. 201:
“Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais especiais e de se ter verificado que nenhuma disposição da lei submete a acção em vista a jurisdição de qualquer tribunal especial.”

Ora, segundo os arts 1º e 4º do ETAF, os tribunais de jurisdição administrativa são os competentes para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, competindo-lhe, no que ora pode relevar, a apreciação dos litígios que tenham por objecto:
“g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico de responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” (estas alienas são do citado art. 4º).

Tendo deixado, com o presente ETAF (Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, com republicação efectuada pela Lei 107-D/2003, de 31 de Dezembro), de vigorar a norma do anterior diploma estatutário de 1984 que excluía da jurisdição dos tribunais administrativos o julgamento de questões de direito privado mesmo que alguma das partes fosse de direito público.

Tendo, assim, sido alargada a competência dos tribunais administrativos a todas as questões atinentes a responsabilidade civil extracontratual que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente de se saber se são regidas pelo direito privado ou pelo direito público, pese embora continue a relevar a distinção entre actos de gestão privada e actos de gestão pública para a determinação do direito substantivo aplicável á relação jurídica controvertida, quer nos termos do DL 40.051, de 21/11/67, quer no da actual Lei 67/2007, de 31 de Dezembro.

Devendo, pois, submeter-se o litígio à apreciação dos tribunais administrativos sempre que o mesmo envolva uma entidade pública, por a ela ser imputável o facto gerador do dano ou por ela ser uma das partes envolvida no contrato – Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, GPS 34 a 36.

Prossigamos, então, analisando agora a natureza jurídica da ré recorrente, METRO PORTO, já que a ré CC é um agrupamento complementar de empresas a quem foi adjudicada, em concurso público aberto no dia 4/1/95, no Suplemento do Jornal das Comunidades Europeias, nº 1, p. 159 e DR III S, de 11/1/1995, a realização dos trabalhos e prestações relativas à concepção e realização do projecto e das obras de construção, por contrato celebrado com aquela outra, cuja minuta foi aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 142-A/98, publicada no DR II S. de 15/12/98, sendo, assim, competente para a resolução do litígio que a opõe ao autor, aquele que para a agravante o for.

Com o DL 71/93, de 10 de Março foi criado o enquadramento legal necessário ao desenvolvimento do projecto do metropolitano ligeiro de superfície da área metropolitana do Porto, nele se optando por atribuir o exclusivo da exploração de tal sistema de transporte a “… uma sociedade anónima, a constituir nos termos da lei comercial, fixando-se tão só as condições mínimas a que a composição e o funcionamento da sociedade devam obedecer para que o exclusivo lhe seja atribuído, bem como os meios que garantam o necessário controlo por parte do Estado de que as regras por si criadas conduzem, de facto, aos fins em vista.”
Podendo ler-se no art. 1º, nº 1 de tal diploma legal:
“A exploração, em regime de exclusivo, de uma rede de metropolitano ligeiro de superfície da área metropolitana do Porto é atribuída a uma sociedade anónima de capitais públicos, a criar nos termos da lei comercial, desde que obedeça às seguintes condições.”

Tendo sido constituída tal sociedade anónima de capitais públicos no dia 6 de Agosto de 1993, sob a firma BB, SA.

Tendo, entretanto, antes de se iniciarem as actividades e obras que concretizarão a implementação do referido meio de transporte, sido repensado o quadro jurídico respeitante à exploração exclusiva em causa, sendo, pelo DL 394-A/98, de 15 de Dezembro, por diversas vezes alterado, a última delas pelo DL 192/08, de 1 de Outubro, aprovadas as bases de tal concessão de exploração.
Nele se prescrevendo, nomeadamente:
“A BB, SA é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, que se rege pela lei comercial e pelos seus estatutos, salvo no que no presente diploma ou disposições legais especiais disponham diferentemente” – art. 2º, nº 3 do anexo III (Estatutos da BB, S. A.).
“Em todo o omisso serão observadas as normas aplicáveis às sociedades anónimas e às constantes do diploma legal que institui as bases da concessão do sistema de metro ligeiro da área metropolitana do Porto” – art. 28º dos mesmos Estatutos.

Bem se podendo, ainda, atentar, no âmbito da análise que agora fazemos, no DL 558/99, de 17 de Dezembro, que revê o regime jurídico do sector empresarial do Estado, “profundamente alterado ao longo dos últimos anos”, consagrando “soluções ditadas pela preocupação de criar um regime muito flexível, susceptível de poder abranger as diversas entidades que integram o sector empresarial do Estado e que deixaram de estar submetidas à disciplina do DL 260/76, de 8 de Abril (lei de bases das empresas públicas), passando a actuar de harmonia com as regras normais do direito societário”.
Lendo-se, a seguir, no preâmbulo do diploma legal que ora versamos:
“Essa, é, aliás, a linha essencial do presente diploma, que consagra o direito privado como o direito aplicável por excelência a toda a actividade empresarial, seja ela pública ou privada”.
Tendo-se entendido poder justificar-se a existência de entidades empresariais de natureza pública, que se integrarão no regime estabelecido no capítulo III de tal diploma legal, que abrange as pessoas colectivas de direito público, com natureza empresarial, criadas pelo Estado e denominadas “entidades públicas empresariais”. Abrangendo-se nestas as empresas públicas a que se refere o art. 1º do citado DL 260/76, existentes à data da entrada em vigor do diploma ora em apreço (art. 23º). Ocupando-se tal capítulo III do protótipo de empresa pública, enquanto pessoa colectiva de direito público, que traduz a manifestação mais apurada da iniciativa económica pública.

Ora, não tendo esta categoria – de entidade pública empresarial – a sociedade ré aqui em apreço, sendo aquela criada por decreto-lei, devendo ser integrada na sua denominação a expressão “Entidade Pública Empresarial” ou as iniciais “E.P.E.” (art. 24º do DL 558/99), se bem que inserta no sector empresarial do Estado (arts 2º e 3º, nº 1) – nele se incluindo os sectores empresariais regionais e municipais (art. 5º), regendo-se, em princípio, pelo direito privado (art. 7º, nº 1), constituída nos termos da lei comercial (citado art. 3º, nº 1), cremos poder concluir, por todo o atrás exposto, que a sociedade BB é uma pessoa colectiva de direito privado – neste mesmo sentido, Acs do STJ de 10/4/08, já citado (e também pela agravada) e da RL de 18/11/04 (Pº 8848/2004-6), este a propósito de outra sociedade anónima de capitais públicos, in www.dgsi.pt e, se bem que no direito brasileiro, Clóvis Cunha da Gama Malcher Filho, in artigo publicado no DireitoNet, Sociedade Anônima – Conceito e características.
Nas mesmas águas parecendo navegar Pinto Furtado, Curso do Direito das Sociedades, p. 357 e ss, quando, ao falar da sociedade pública, que geralmente se apropria da estrutura da sociedade anónima, cujo tipo adopta, formal e nominalmente, sendo como verdadeiras sociedades anónimas que, na prática, se têm constituído e se têm feito inscrever no registo comercial, com o indicativo de semelhante espécie social (“SARL” ou “SA”), adoptando como órgãos sociais os previstos para tais sociedades anónimas (conselho de administração, conselho fiscal e assembleia geral), sendo o capital social representado por acções que as entidades associadas subscrevem, conclui que tal sociedade pública se tem tradicionalmente reconduzido à feição institucional da sociedade de direito privado, sendo, assim, uma sociedade anónima institucional.
Se bem que tal conceito de sociedade pública lhe pareça, para já, condenado, com a reforma legislativa introduzida pelo citado DL 47/99, que adoptou antes o conceito de empresa pública para toda a sociedade da lei comercial em que o Estado ou outras entidades públicas estaduais possam exercer uma influência dominante, com ressalva da continuação da existência de entidades empresariais de natureza pública estabelecidas no aludido capítulo III, enquanto – tais entidades em si mesmas, moldadas pelo aludido DL 260/76 – pessoas colectivas de direito público.
Ensinando Coutinho de Abreu, Curso de direito Comercial, vol. I, p. 248 e ss que as ditas empresas públicas societárias (ao invés das entidades públicas empresariais previstas no aludido capítulo III), são pessoas colectivas privadas)mesmo quando sejam sociedades de capitais exclusivamente públicos (mesmo autor, Da Empresarialidade, p. 134, nota 345) – com a sua organização e funcionamento regidos basicamente pelo direito privado, embora, porque empresas públicas, dominadas por entidades públicas e visando (só ou também) finalidades públicas, sejam nelas naturais também algumas especialidades ou excepções.

Não tendo, assim, aplicação a al. g) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Pois, de pessoa colectiva de direito público não curamos.

Nem se vislumbrando, na lei em vigor, ser-lhe aplicável, quanto à responsabilidade extracontratual da sociedade anónima de capitais públicos em apreço, o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Sendo, assim, competentes para conhecer do litígio, os tribunais judiciais.
Pelo que improcede o recurso.
*

Concluindo:
1 – A legitimidade do recorrente é um dos pressupostos processuais específicos do recurso.
Tendo legitimidade para recorrer a parte para a qual a decisão é desfavorável, qualquer que tenha sido o seu comportamento na instância recorrida e independentemente dos pedidos por ela formulados no tribunal a quo.
2 – É com base na forma como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, que se afere do tribunal materialmente competente para dela conhecer.
3 – Com o ETAF aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, foi alargada a competência dos tribunais administrativos a todas as questões atinentes a responsabilidade civil extracontratual que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente de se saber se são regidas pelo direito privado ou pelo direito público.
4 - A BB, S.A., sociedade anónima de capitais públicos é uma pessoa colectiva de direito privado.
5 - Sendo competentes os tribunais judiciais para conhecer do pedido de indemnização por responsabilidade civil extracontratual da mesma sociedade.
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Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar provimento ao agravo.
Custas pela recorrente.



Lisboa, 27 de Novembro de 2008

Serra Baptista (Relator)
Duarte Soares
Santos Bernardino