NEGÓCIO CONSIGO MESMO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PROCURAÇÃO
REGIME DA SEPARAÇÃO
VENDA ENTRE CÔNJUGES
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
Sumário


I - Provando-se que os RR., casados segundo o regime de separação de bens, detinham procuração emitida pelos AA. conferindo-lhes poderes - que podiam ser exercidos em conjunto ou separadamente - para venderem, pelo preço e condição que entendessem, o apartamento em questão e que, no exercício desses poderes, o R. agindo separadamente da Ré mulher, em representação dos AA., vendeu à Ré, agindo esta em nome próprio, o referido apartamento pelo preço de 9.975.96€, não estamos perante um negócio consigo mesmo tal como vem definido no art. 261.º do CC.
II - Com efeito, o R. marido não vendeu o imóvel a si próprio, nem o negócio produz qualquer efeito na sua esfera patrimonial, atento o regime de bens que presidiu ao casamento dos RR., assim como não agiu em situação de dupla representação.
III - Não suscitando os Autores a questão da propriedade do apartamento em causa, limitando-se a alegar que o adquiriram por contrato de compra e venda, pretendendo apenas a anulação do aludido negócio, por se tratar, na sua opinião, de um contrato celebrado pelo R. marido consigo próprio, e uma vez que os R.R., por sua vez, nunca põem em causa que o negócio foi efectuado em nome e em representação do A., não pode configurar-se o mesmo como uma compra e venda entre cônjuges, proibida pelo art. 1714.º, n.º 2, do CC.
IV - O facto de se ter provado que foi o R. marido quem pagou o preço, pela compra do apartamento e todas as despesas inerentes à sua aquisição, bem com o condomínio e outras despesas relativas à sua utilização, sempre agindo como seu verdadeiro dono, sem qualquer oposição, não determina que tenha, no âmbito desta acção, de ter-se o R. marido como o verdadeiro proprietário do apartamento em questão, porque ninguém tal peticionou, nem a usucapião opera automaticamente.
V - Apesar de constar da escritura pública que o preço do negócio seria pago com dinheiro pertencente ao A., os RR., que impugnaram tal afirmação, podem provar a sua inveracidade por qualquer meio admissível em direito.
VI - A força do documento autêntico prova apenas que essa declaração foi feita perante o notário, mas não prova que corresponda à verdade, visto que não é um facto atestado por aquele oficial público com base na sua percepção (art. 371.º do CC).
VII - Trata-se aqui de matéria fáctica sujeita à livre apreciação do tribunal, não cabendo na competência do STJ sindicar a resposta ao quesito que versou sobre tal facto, por não se verificar qualquer das excepções previstas no art. 722.º, n.º 2, do CPC.

Texto Integral



Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Portimão,
AA e esposa, BB,
intentaram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra,
CC e mulher DD,

Pretendem os A.A. (sobrinhos dos R.R.) que se declare a anulabilidade da compra e venda celebrada pela escritura pública de 8/5/2002, respeitante a um apartamento sito na Praia dos Três Irmãos, freguesia do Alvor concelho de Portimão, designado por nº 505 da Torre G, nos termos da qual o 1º Réu, na qualidade de representante dos A.A., com
base em procuração por estes emitida, vendeu aquele prédio a Ré mulher, por um preço irrisório.
Alegam que a procuração em causa conferia também à Ré poderes para a venda do prédio, pelo que o posicionamento desta como compradora na aludida escritura configura um negócio consigo mesmo, anulável nos termos do Art.º 261º do C.C., do qual só tiveram conhecimento em 30/4/2003.

Citados os RR. contestaram.

Alegam, em resumo, que o imóvel em questão foi anteriormente adquirido pelo R., agindo com procuração dos A.A., mas com dinheiro do R.
O negócio foi efectuado em nome dos A.A., seus sobrinhos, no contexto dos laços afectivos que os uniam e por os RR. não terem filhos (agindo os R.R. de igual modo em relação a outros sobrinhos).
Porém, o R. marido sempre actuou em relação ao prédio como se dono fosse e para prevenir essa sua relação com o imóvel, os A.A. outorgaram ao R. e à Ré esposa todos os poderes respeitantes ao imóvel, que incluíam os poderes para vender a quem e nas condições que fossem entendidas.
No uso de tais poderes o R., em representação dos A.A. vendeu à Ré esposa o referido apartamento, sendo certo que se encontram casados segundo o regime de separação de bens, o que só por si afasta a ideia de negócio consigo mesmo.
De qualquer modo, os A.A. tiveram conhecimento da dita venda, à qual não se opuseram.
Invocam, ainda, ao excepção de caducidade, respeitante ao decurso do prazo de 1 ano para a propositura da acção de anulação (Art.º 287º nº1 do C.C.), na medida em que os A.A. tiveram conhecimento da dita venda logo no dia seguinte (9/5/2002), tendo a presente acção sido proposta em 28/5/2003, portanto, mais de um ano após o conhecimento do negócio.

Replicaram os A.A.

No despacho saneador relegou-se para sentença final a apreciação da excepção peremptória (caducidade).
Estabelecidos os factos assentes e organizada a base instrutória, foi realizado o julgamento, findo o qual se proferiu sentença final que julgou improcedente a acção, absolvendo-se os R.R, do pedido.
Na fundamentação da decisão, o tribunal considerou inexistir base legal para a anulação do negócio, não se pronunciando sobre a questão da caducidade, por entender que essa questão só se colocaria no caso de haver anulabilidade.
No essencial, argumentou o tribunal que não se está perante um negócio do representante consigo mesmo, porquanto os efeitos da venda não se repercutiram na esfera patrimonial do R. marido, mas só na da Ré esposa, por estarem casadas em regime de separação de bens, e na medida em que a Ré interveio como terceira compradora em nome próprio, e não como representante dos A.A., apesar de ter poderes para tanto, sendo certo que esses poderes de representação podiam ser exercidos conjunta ou separadamente pelos R.R.
Mais sustentou o tribunal que, ainda que houvesse negócio consigo mesmo o certo é que os A.A. aceitaram a venda por qualquer preço e condições e que não houve qualquer prejuízo para os A.A., em virtude de ter ficado provado que o R. custeou a aquisição do imóvel e suportou todas as suas despesas inerentes – estariam, assim, preenchidas as excepções à anulabilidade previstas no nº2 do citado Art.º 261 do C.C.

Inconformados recorreram os A.A., recurso que foi admitido como de apelação.

Apreciando a apelação a Relação sufragou a posição assumida pela sentença recorrida no que concerne à qualificação da compra e venda como não consubstanciando um contrato consigo mesmo, pelo que logo afastou a sanção da anulabilidade.
Em consequência, julgou prejudicada a questão de facto suscitada no recurso (alteração da resposta ao quesito 6º) uma vez que só se justificaria conhecê-la se se concluísse pela anulabilidade, e todavia não fosse de aplicar a sanção legal por força de excepção prevista no nº2 do Art.º 261 do C.C. (inexistência de conflito de interesses).

Novamente inconformados, voltam a recorrer os A.A., agora de revista e para este S.T.J., repetindo no entanto, no essencial, a mesma argumentação desenvolvida na apelação.

Conclusão:

Apresentadas tempestivas alegações, formularam os recorrentes as seguintes conclusões:

I - Com todo o devido respeito, os recorrentes continuam a entender que o caso dos autos traduz uma situação de negócio consigo mesmo.
II - A tese pugnada no douto acórdão recorrido atende à questão formal de no negócio dos autos intervir mais do que uma pessoa, desprezando o desiderato que preside ao estipulado no art.° 261° do Civil.
Que se encontra na protecção dos interesses do representado.
III - Analisando os factos dos autos, a possibilidade do sacrifício desses interesses é patente.
IV - A venda em causa nos presentes autos, da qual se pretende a anulabilidade, foi realizada pelo recorrido enquanto representante dos recorrentes, à sua mulher, também ela representantes destes.
Não pode a recorrida ter essa qualidade de representante e afirmar que interveio no negócio como se não a tivesse.
V - Com todo o devido respeito, na opinião dos recorrentes esta situação traduz um negócio consigo mesmo.
VI - Interpretação que é reforçada pelo disposto no n° 2 do art° 261° do C. Civil.
VI - Neste âmbito, os recorrentes defendem que a argumentação vertida na douta sentença recorrida, de que os recorridos são casados no regime de separação de bens, é, com todo o devido respeito, irrelevante.
VII - Porque casados na separação de bens, ou noutro regime qualquer, ambos os recorridos eram representantes dos recorrentes.
VIII - Por outro lado, ao contrário do estabelecido na douta sentença recorrida, a forma como o negócio se encontrava pré-determinado não afasta a possibilidade da existência do conflito de interesses.
IX - A pré-determinação existente, vender a quem entender pelo preço que entender, não exclui o conflito de interesses, uma vez que continuava a permitir a possibilidade de o representante se sentir tentado a sacrificar os interesses do representado em benefício dos seus.
X - O que até é patente nos presentes autos, em que o recorrido vendeu a fracção em causa à recorrida pelo preço de €: 9.975,96, quando a mesma fracção foi avaliada, para efeitos de fixação do valor desta acção em €: 64.843,73 ( cfr. relatório de avaliação a fls. (…….) dos autos).
XI - Sempre com todo o devido respeito, os recorrentes também defendem, ao contrário da douta sentença recorrida, que a existência, ou não, de prejuízo para os recorrentes, resultante do negócio dos autos, será uma questão sem relevância para a decisão a proferir.
XII - Esse não é um requisito previsto no art° 261° do C. Civil.
XIII - Além disso, para concluir pela inexistência desse prejuízo, a douta sentença recorrida estabelece que a fracção autónoma em causa sempre pertenceu, substancialmente, ao recorrido.
XIV - A ser assim, o negócio dos autos prefiguraria uma compra e venda entre conjugues, o que, atento o disposto no n° 2 do art° 1714° do C. Civil, conduziria também à procedência da acção.
XV - Entendendo-se que a questão do prejuízo é pertinente, nessa circunstância, os recorrentes impugnam a resposta à matéria de facto do art° 6 da Base Instrutória, transcrita no ponto 14 dos factos assentes da douta sentença recorrida, concretamente, de que "Foi o réu quem pagou o preço pela compra dos apartamentos e todas as despesas inerentes à aquisição".
XVI - A tese do "não prejuízo" para os recorrentes, do negócio celebrado pelos recorridos, suporta-se essencialmente neste facto.
XVII - Os recorrentes impugnam esse concreto ponto da matéria de facto, defendendo que a matéria do a rt° 6º da Base Instrutória deveria ter sido considerada "Não Provada".
XVIII - A escritura pública de compra e venda da fracção autónoma em causa, encontra-se junta aos autos como doe. n° 3 da petição inicial.
XIX - Nela outorgou o recorrido, como procurador do recorrente, ficando a constar na sua terceira folha (. ..)"que a presente aquisição é feita com dinheiro que faz parte dos bens próprios do seu mandante, AA" ( o agora recorrente).
XX - Vir dizer, como diz a resposta à matéria de facto do art° 6 da Base Instrutória, que essa aquisição foi realizada com dinheiro do recorrido, traduz uma convenção contrária ao conteúdo do documento autêntico que é a mencionada escritura pública.
XXI - Não existe em todo o processo, qualquer meio de prova, ou de princípio de prova, escrito, que conduza à resposta de "Provado" do art° 6º da Base Instrutória, o que é confirmado pelo teor da fundamentação à resposta à matéria de facto.
XXII - Atento o disposto no n° 1 do art° 394° do C. Civil, é inadmissível a prova por testemunhas sobre os factos do art° 6o da Base Instrutória.
XXIII - Pelo que essa matéria deverá ser considerada "Não Provada", tendo-se como assente que a fracção em causa foi adquirida com dinheiro do recorrente, com todas as consequências no âmbito das questões supra tratadas, nomeadamente a propósito do conflito de interesses e do prejuízo para os recorrentes que adveio do negócio realizado entre os recorridos.
XXIV - Articulada desta forma, esta pretendida alteração à resposta à matéria de facto é uma questão de Direito, e, por isso, enquadrada nas doutas competências do Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
XXVIII - A decidir como decidiu, na opinião dos recorrentes, a douta sentença recorrida violou o disposto no art° 261°; 1714° e 394°, todos do C. Civil.
Termos em que, e naqueles que Vossas Excelências superiormente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto acórdão e a douta sentença - recorridos é considerando-se a acção procedente, com todas as necessárias e legais consequências e como é de JUSTIÇA


OS FACTOS:

II - FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:
«1. Os autores são sobrinhos dos réus - al. A) dos factos assentes.
2. No dia 2.11.1979, na Secretaria Notarial de Vila Nova de Gaia os autores outorgaram procuração a favor dos réus conferindo-lhes os necessários poderes para, em conjunto ou separadamente, os representarem na escritura de aquisição à Torralta - Clube Internacional de Férias, SARL" do apartamento designado por 505, da Torre G, na praia do Alvor, sito na Praia ..., na freguesia de Alvor, concelho de Portimão (...), conferindo-lhes poderes de administração do referido imóvel e para o venderem pelo preço e condições que entenderem, conforme documento de fls. 54 a 56 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido - ai. B) dos factos assentes.
3. Em 16.11.1979, por escritura de compra e venda outorgada no 16° Cartório Notarial de Lisboa, o réu CC, na qualidade de procurador do autor AA, declarou comprar para o seu constituinte, à sociedade "Torralta, SARL", que por sua vez declarou vender, a fracção autónoma designada pelas letras "AAF" que constitui o apartamento 505, sito no 5o andar do prédio urbano em regime de propriedade horizontal designado por Torre G, sito na Praia ..., freguesia de Alvor, concelho de Portimão, registado na Conservatória do Registo Predial de Portimão, sob o n° 13414, do livro B-33, e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1398 - ai. C) dos factos assentes.
4. No dia 08.05.2002 no 2o Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia o primeiro réu, como procurador dos autores, vendeu em nome dos seus representados, à segunda ré, que aceitou comprar, pelo preço de € 9.975, 96, a fracção autónoma aludida em C), conforme doe. de fls. 57 a 60 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido - ai. D) dos factos assentes.
5. A aquisição aludida em D) encontra-se inscrita a favor da ré mulher, casada com o réu marido no regime de separação de bens, pela ap. 32/230502, n° 33.838 - al. E) dos factos assentes.
6. Os réus celebraram casamento em 13 de Abril de 1950, não tendo nascido filhos desta união - ai. F) dos factos assentes.
7. No dia 06.11.1979, o sobrinho do réu marido, EE, outorgou-lhe uma procuração pela qual lhe conferia os necessários poderes para o representar numa escritura de aquisição de um apartamento designado pela letra "M", no prédio urbano designado por banda TT, sito em Tróia, concelho de Grândola, à sociedade "Torralta Clube Internacional de Férias, SARL", escritura essa que veio a ser celebrada em 16.11.1979, conforme documentos de fls. 77 a 84 dos autos, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos - al. G) dos factos assentes.
8. Em 24.11.1993, o réu marido, na qualidade de procurador do sobrinho EE, vendeu à ré mulher o apartamento aludido em G), conforme escritura de compra e venda constante de fls. 91 a 93, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido - al. H) dos factos assentes.
9. No dia 20.08.1977, HA, sobrinha do réu marido, outorgou procuração na qual lhe concede poderes para vender à ré mulher ou a quem esta venha a indicar, uma casa de cinco pavimentos sita na Rua de ..., n° 2 a 8, na freguesia de S. Nicolau, na cidade do Porto, conforme documento de fls. 88 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido - al." I) dos factos assentes.
10. Em 13.12.1982, o réu marido, na qualidade de procurador da sobrinha HA, vendeu à ré mulher a casa aludida em I), em conformidade com o teor da escritura de compra e venda constante de fls. 94 a 96 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido al. J) dos factos assentes.
11. Por não terem filhos, os réus estabeleceram laços afectivos, de confiança e grande proximidade com os seus sobrinhos: AA (aqui Autor), EE e HA - resp. ao art° 2º da BI.
12. O réu decidiu que os apartamentos que iria adquirir à "Torralta, SA" ficariam em nome dos sobrinhos - resp. ao art° 3º da BI.
13. Os apartamentos em causa ficaram, de facto, na posse do réu - resp. ao art° 4º da BI.
14. Foi o réu quem pagou o preço pela compra dos apartamentos e todas as despesas inerentes à sua aquisição - resp. ao art° 6º da BI.
15. E foi o réu quem pagou o condomínio da fracção aludida em C), quem suportava as despesas inerentes à utilização do apartamento e pagou as contribuições autárquicas respectivas - resp. aos art.ºs 8º, 9º e 10° da BI.
16. Foi o réu quem comprou as mobílias existentes em tal fracção e fez uma marquise na mesma - resp. aos artos 11º e 12° da BI.
17. E sempre agiu o réu, desde 16.11.1979, como seu verdadeiro dono, nela passando férias, sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente sem oposição dos Autores - resp. ao quesito 15°.
18. Os autores não possuíam as chaves da referida fracção - resp. ao art° 16° da BI.
19. O irmão do autor sempre reconheceu o réu marido como o exclusivo proprietário do imóvel aludido em G) - resp. ao art° 20° da BI.»


Fundamentação
Perante as conclusões da revista, a questão essencial colocada será a de qualificar a compra e venda em causa nos autos, como um negócio consigo mesmo, ou, no limite, saber se não prefigurará uma compra e venda entre cônjuges.
Subsidiariamente, para a hipótese de, qualificado o contrato como negócio consigo mesmo, mas, não obstante, se entender que não ocorre conflito de interesses (isto é, que não ocorre prejuízo para os A.A. por ter sido o R. marido e não eles a pagar o preço do apartamento) e por isso não opera a sanção da anulabilidade – parte final do nº1 do Art.º 261 do C.C. -, pretendem, então, os recorrentes que o S.T.J. altere a resposta ao quesito 6º, segundo a qual foi o R. marido que pagou o preço pela compra do apartamento e todas as despesas inerentes à sua aquisição.

Nessa hipótese o quesito deve merecer a resposta de NÃO PROVADO, e tal alteração caberia nos poderes do S.T.J., porquanto a resposta dada pela 1ª instância contraria expressamente o que consta da escritura (consta dela que o apartamento em causa foi adquirido com dinheiro que faz parte dos bens próprios do A. como foi declarado pelo representante).
Assim, a resposta traduz-se numa convenção contrária ao conteúdo de documento autêntico, pelo que não podia basear-se, como se baseou, em prova testemunhal.
(Art.º 394º nº1 do C.C.).
Trata-se, pois, de uma questão de direito da competência do Supremo.


Comecemos por averiguar se estamos ou não perante um negócio consigo mesmo.

Diz o Art.º 261º nº1 do C.C. que é anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro.
Assim, o negócio consigo mesmo, ou negotium a semet ipso, é aquele que é celebrado por uma só pessoa, que intervém simultaneamente a título pessoal e de representante de outrem, ou como representante, ao mesmo tempo, de mais de uma pessoa.
Portanto se A. tem poderes para representar B. em determinado negócio, não pode, em nome do representado celebrar o negócio consigo próprio, do mesmo modo que, se tiver poderes para em nome do representado B vender determinada coisa e em nome de outro representado – C – para comprar, não pode em nome do 1º representado vender e em nome do 2º comprar a referida coisa.
Tal proibição, cujo objectivo é eliminar o perigo de sacrifício de um dos interessados em, benefício do outro, cessa, porém, como se vê do segundo segmento da norma, se o representado tiver especificadamente consentido na celebração do negócio ou se o negócio, por sua natureza, excluir a possibilidade de conflito de interesses. (Pense-se, por ex. na situação do empregado de uma loja, com poderes para vender certos objectos a preço fixo que compra um deles para si, pelo preço estipulado, que paga, ou no empregado de uma casa de espectáculos que adquire para si um bilhete – exemplos citados por J. Galvão Teles – Manual dos Contratos em Geral - 433/34-).
Em complemento do nº1, diz-se no nº2 do Art.º 261:
“Considera-se celebrado pelo representante, para o efeito do número precedente, o negócio realizado por aquele em quem tiveram sido substabelecidos os poderes de representação”.
Como observa Heinnich Hörster (A Parte Geral do C.C. Português – Teoria Geral do Direito Civil-483), prevê-se no nº2 a hipótese de o representante, no uso dos seus poderes, substabelecer os referidos poderes de representação, caso em que o representado continua o mesmo, mas os poderes para o representar foram transmitidos para um substituto do representante originário.

Vê-se, assim que o negócio consigo mesmo ou autocontrato, pressupõe ter sido praticado por uma só pessoa e que essa pessoa assume a qualidade de representante.
Regressando ao caso concreto.
Os R.R. detêm procuração emitida pelos A.A. conferindo-lhes poderes para vender, pelo preço e condição que entenderem, o apartamento aqui em questão.
Tais poderes podiam ser exercidos pelos R.R. em conjunto ou separadamente.
Os R.R. são casados segundo o regime de separação de bens.
No exercício desses poderes, o R. agindo separadamente da Ré, em representação dos A.A., vendeu à Ré esposa, agindo esta em nome próprio, o referido apartamento pelo preço de 9.975.96€.

É óbvio que não estamos perante um negócio consigo mesmo tal como vem definido no Art.º 261 do C.C., visto que o R. marido não vendeu o imóvel a si próprio, nem o negócio produz qualquer efeito na sua esfera patrimonial, atento o regime de bens que presidiu ao casamento dos R.R., assim como não agiu em situação de dupla representação.
No negócio em causa tiveram intervenção dois agentes, ou seja, o R. em representação dos A.A. e a Ré esposa, em nome próprio, como terceira (e portanto despida de poderes de representação) o que, desde logo, afasta a qualificação do contrato como negócio consigo mesmo.

E, por outro lado, não procede a comparação que os A.A. sugerem entre o caso concreto e a hipótese de a Ré compradora ter substabelecido os seus poderes de representação no R. marido.
A verdade é que, no caso, não ocorreu qualquer substabelecimento, nem podia ocorrer visto que o R. marido tinha, ele próprio, poderes para representar os A.A. e podia exercê-los (como exerceu) separadamente dos poderes de representação que tinham sido, também, conferidos à esposa, mas que ela, na circunstância não usou, agindo antes em nome próprio.
Não podem, pois, equiparar-se as duas situações, já que, não tendo sido transmitidos para um substituto (no caso para o R. marido) os poderes de representação dos A.A., detidos pela Ré esposa, a situação concreta não cabe nem na letra nem no espírito do nº2 do Art.º 261 do C.C.

Não pode, por conseguinte, anular-se o negócio nos termos do disposto no art.º 261 nº1 do C.C., nem os A.A. alegaram qualquer outra causa de invalidade do negócio.





Mas, será que, noutra perspectiva, o negócio em questão pode configurar-se como uma compra e venda entre cônjuges, portanto proibida pelo Art.º 171º nº2 do C.C., como sugerem os A.A., embora só em sede de recurso?

A questão, a nosso ver, nunca poderia equacionar-se face à conformação que as partes deram à presente acção.

De facto, os A.A. não suscitam a questão da propriedade do apartamento em causa, limitando-se a alegar que o adquiriram pelo contrato de compra e venda, pretendendo, não que se declare a propriedade sobre o imóvel, mas apenas a anulação do negócio, por se tratar, na sua opinião, de um contrato celebrado pelo R. marido consigo próprio. (Apesar disso, a alegada sugestão de se estar perante uma compra e venda entre cônjuges, não deixa de ser contraditória com toda a factualidade que constitui a causa de pedir).
Os R.R., por sua vez, embora alegando ter sido o R. marido quem pagou o preço da compra do dito apartamento, nunca põem em causa que o negócio efectuado pela R. o foi em nome e em representação do A.

Por outro lado, o facto de se ter provado que foi o R. marido quem pagou o preço, pela compra do apartamento e todas as despesas inerentes à sua aquisição, bem com o condomínio e outras despesas relativas à sua utilização, sempre agindo como seu verdadeiro dono, sem qualquer oposição, não determina que tenha, no âmbito desta acção, de ter-se o R. marido como o verdadeiro proprietário do apartamento em questão, se, mais não fosse, porque ninguém tal peticionou nem a usucapião opera automaticamente.

Aqui e agora, apenas interessa considerar que o dito apartamento foi adquirido pelo A. por escritura de compra e venda de 16/11/79, celebrada pelo R. marido em seu nome (do A. é claro) e representação e que, posteriormente, o mesmo R., também em nome e representação dos A.A. e vendeu à Ré esposa em 8/5/2002.
Tanto basta para, desde logo, afastar a incidência do Art.º 1714 nº 2 do C.C., tal como decidiu o acórdão recorrido.



Sendo assim, está, evidentemente prejudicada a questão subsidiariamente colocada pelos recorrentes.
Não obstante, sempre se dirá que não haveria nunca de alterar-se a resposta ao quesito 6º nos termos pretendidos, pois não se está perante qualquer convenção contrária ao conteúdo de documento autêntico.
O que se passa (e é bem diferente) é que apesar de constar da escritura de 16/11/79 que o preço do negócio seria pago com dinheiro pertencente ao A., os R.R. impugnam tal afirmação, podendo provar a sua inveracidade por qualquer meio admissível em direito.
A força do documento autêntico prova apenas que essa declaração foi feita perante o notário, mas não prova que corresponda à verdade, visto que não é um facto atestado por aquele oficial público com base na sua percepção (Art.º 371 do C.C.).
Consequentemente, estamos perante matéria de facto sujeita à livre apreciação do tribunal, não cabendo na competência do S.T.J. sindicar aquela resposta por não se verificar qualquer das excepções previstas no Art.º 722 nº2 do C.P.C.

Improcedem, pois, todas as conclusões.


Decisão.

Termos em que acordam neste S.T.J. em negar revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 09 de Dezembro de 2008

Moreira Alves (relator)
Alves Velho
Camilo Moreira Camilo