NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
BOA FÉ
Sumário



1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente. Constituem elas um resumo sintético dos pontos de discordância da decisão recorrida, delimitando, em princípio, o âmbito e o objecto do recurso.
As questões controvertidas, delimitadoras do recurso de apelação, foram colocadas pela recorrente, não tendo a recorrida suscitado a ampliação do âmbito desse recurso.
Por outro lado, decorre do teor do acórdão recorrido que não foram omitidas ou pura e simplesmente desconsideradas as considerações trazidas ao processo pela recorrida em suas contra-alegações. Agora, como não colocou questões controvertidas em sede de ampliação de recurso não havia que rebater ou tomar posição sobre os argumentos vertidos nessa peça processual.
Logo, a afirmação, inverídica, de que a recorrida não apresentara contra-alegações não integra a nulidade plasmada na al. d) do n° l do art. 668° C.Pr.Civil.
2. Para que a exceptio funcione exige-se que as prestações sejam correspectivas ou correlativas, isto é, que uma seja o motivo determinante da outra, e ainda que não haja prazos diferentes para o seu cumprimento.
Através desta excepção o excipiens não está a recusar a satisfação da prestação a que efectivamente está adstrito nem a negar o direito do autor ao seu cumprimento, apenas se dispõe a realizar essa sua prestação no momento em que receba simultaneamente a prestação a que tem direito.
A ligação existente entre o direito, nas suas diferentes vertentes, de reacção do dono da obra e o direito do empreiteiro ao recebimento do preço é a mesma que inicialmente existia entre o direito à entrega da obra sem defeitos e o direito ao preço.
Este nexo sinalagmático tanto une, por via de regra, as prestações fundamentais decorrentes da celebração do contrato (sinalagma genético), como abrange as prestações provenientes do desenvolvimento da relação contratual (sinalagma funcional).
Ainda que o dono da obra estivesse em mora quanto ao pagamento parcial do preço da empreitada, o certo é que ela apresentava defeitos. E o nexo sinalagmático funcional não ficou destruído só pelo facto do dono da obra se ter atrasado no seu cumprimento, já que o desenvolvimento da relação contratual obrigava à execução da obra sem defeitos nas suas diferentes fases.
3. No caso de cumprimento parcial ou defeituoso a exceptio deve ser correspondente à inexecução parcial ou à execução defeituosa, podendo o devedor recusar a sua prestação na parte proporcional ao incumprimento do outro contraente. É que só assim se garante o equilíbrio sinalagmático.
Também se o incumprimento parcial tiver importância reduzida para a outra parte, não poderá esta lançar mão da exceptio, sob pena de se violarem os princípios de lealdade e correcção que sempre devem presidir ao cumprimento das obrigações e exercício dos direitos correspondentes (n° 2 do art. 762° C.Civil).
4. Durante todo o período de execução do contrato devem as partes respeitar não só as suas imposições formais assim como adoptar comportamentos de lealdade e correcção em vista da prossecução dos interesses a obter com a sua celebração. Actuar com boa fé é uma exigência postulada pela necessidade de obstar a que a obrigação sirva para a prossecução de resultados intoleráveis para as pessoas de sã consciência.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, veio a executada AA, LDª, deduzir embargos de executado contra a exequente BB – ENGENHARIA E CONSTRUÇÕES, S.A., com o fundamento de que a exequente/embargada se constituiu na obrigação de a ressarcir dos prejuízos decorrentes do atraso na conclusão da obra que com ela contratara, além de que essa obra apresenta defeitos vários.

Contestou a exequente/embargada, impugnando, em síntese, quer o atraso na conclusão da obra, quer a existência de defeitos.


Saneado o processo e fixados os factos considerados assentes e os controvertidos, teve lugar, por fim, a audiência de discussão e julgamento.
Na sentença, subsequentemente proferida, julgaram-se os embargos improcedentes.

Inconformada com o assim decidido, apelou a executada/embargante, e com sucesso, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa revogou a sentença recorrida e julgou procedentes os embargos com a consequente extinção da execução.

É a vez de recorrer agora a exequente/embargada de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, defendendo a nulidade do acórdão recorrido e, subsidiariamente, pugnando pela improcedência dos embargos.

Contra-alegou a exequente/embargante em defesa da manutenção do decidido.



Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir


II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo da recorrente radica, em síntese, no seguinte:

1- O acórdão recorrido, além de referir que a ora recorrente não apresentou contra-alegações, decorre, igualmente, do conjunto do texto desta decisão que a mencionada referência não constitui mero lapso de escrita e que pura e simplesmente não foi conhecida e tida em conta toda a defesa e argumentação por si apresentada em sede de contra-alegações, que efectivamente apresentou.

2- O Tribunal omitiu um momento processual expressamente previsto na Lei (201°, n.° 1 C.Pr.Civil e violou o princípio da equidade, consagrado no artigo 20° Constituição da República Portuguesa, na vertente de assegurar a todos os cidadãos, não só o acesso à Justiça, mas também a um processo regulado por um conjunto de regras que postulam designadamente a igualdade das partes e o contraditório.

3- O que teve influência directa no exame e decisão da causa, que foi julgada sem apreciar a defesa apresentada pela ora recorrente no anterior recurso de apelação, pelo que está ferido de nulidade, nos termos do art. 668°, n.° 1, al. d) C.Pr.Civil.

4- Para além disso, a recorrida não demonstrou que tivesse sofrido, pelos alegados “defeitos”, quaisquer “prejuízos”, já que os factos por si alegados a esse respeito mereceram do tribunal respostas de “não provados”.

5- Mas também não pode proceder a invocada “excepção de não cumprimento”, prevista no artigo 428°, n.° 1 C.Civil, que se reporta a contratos bilaterais quando não haja prazos diferentes para o cumprimento das obrigações, o que não é o caso dos autos.

6- O dono da obra pode invocar o cumprimento defeituoso ou incumprimento parcial do empreiteiro para recusar o pagamento do preço – 428°, n.° 1 do Código Civil, mas desde que a obrigação de pagamento do preço não seja de vencimento anterior ao da entrega da obra – 428°, n.° 1 do Código Civil e que exista proporcionalidade entre a parte do preço cujo pagamento se recusa e a desvalorização provocada pelo defeito – artigos 227° e 762°, n.° 2 do Código Civil.

7- O que os autos revelam é que as facturas em dívida pela ora recorrida e, sobretudo, a letra exequenda – que tem data de vencimento de 09 de Janeiro de 1994 – se venceram muito antes de ter ocorrido a eventual obrigação de reparação dos pretensos e tardios “defeitos de obra”.

8- E que, entregues provisoriamente as obras, a recorrente cumpriu o seu dever de reparação de todos os defeitos denunciados e aceites, na expectativa, obviamente, de receber o devido pagamento, contrariamente à recorrida que só muito mais tarde veio invocar a existência de “defeitos”, para não pagar o que devia.

9- Não era a dona de obra que devia cumprir em segundo lugar, desde logo porque a letra exequenda não constitui “novação”, isto é, ela não foi emitida com intenção de se constituir uma nova obrigação, em substituição da antiga (qual seja o pagamento das facturas em dívida), que se extinguiria.

10- E cabia à executada/embargante, uma vez que alegou cumprimento defeituoso, por via do qual invocou a excepção de não cumprimento prevista no artigo 428°, n.° 1 do Código Civil, efectuar prova de que a obrigação de eliminação dos invocados defeitos é anterior à obrigação do pagamento do preço.

11- Também não pode proceder o entendimento defendido no acórdão recorrido, nos termos do qual cabia à exequente/embargada, por ser esta a parte a quem o facto aproveita – 516° do Código do Processo Civil -, alegar e provar que o custo global da eliminação dos (alegados) defeitos é igual ou inferior ao montante de € 1.234.250,90, já recebido pela executada/embargante, resultante da “cobrança” das garantias bancárias.

12- Após o recebimento dos montantes das garantias bancárias tinha a executada/embargante que ter alegado, e provado, enquanto matéria constitutiva do seu direito – cfr. 342°, n.° 1 C.Civil -, que o valor recebido não foi suficiente para cobrir os custos de eliminação dos defeitos de construção invocados.

13- E se dúvidas houvesse quanto à natureza destes factos, as mesmas deveriam ter sido resolvidas – contra a executada/embargante – pela aplicação do artigo 342°, n.° 3 C.Civil e não pela aplicação do artigo 516° C.Pr.Civil.

14- Acresce que, para a procedência da excepção de não cumprimento é necessário, para além dos requisitos do artigo 428° C.Civil, que não haja violação do princípio da boa fé (art. 227° e 762°, n.° 2 C.Civil), devendo existir “proporcionalidade entre o preço cujo pagamento se recusa e a desvalorização da obra provocada pela existência do defeito”.

15- Ora, a recorrida conseguiu receber os seus edifícios prontos nos prazos ajustados, concluídos à custa de manifesto esforço e particular dedicação da Empreiteira, aliás publicamente por ela reconhecidos, tal como conseguiu comercializar o desenvolver a sua normal actividade económica relacionada com o empreendimento, vendendo as fracções autónomas e dando o uso comercial previsto ao Shopping, dentro dos prazos ajustados.

16- Mas conseguiu não pagar as facturas da recorrente, em dívida, nem ao tempo do respectivo vencimento, nem quando as obras lhe foram entregues, com o significativo valor que têm.

17- O acórdão recorrido ao decidir neste sentido, legitimando a situação atrás descrita, violou o princípio da boa fé consagrado nos artigos 227° e 762°, n.° 2 C.Civil.


B- Face ao teor das conclusões formuladas, são, no essencial, duas as verdadeiras questões controvertidas que se colocam:
- nulidade do acórdão;
- excepção de não cumprimento do contrato.


III. Fundamentação


A- Os factos

No acórdão recorrido foram dados como assentes os seguintes factos:

1- A letra em causa destinou-se ao pagamento de parte dos encargos atinentes a dois contratos de empreitada celebrados entre as partes.

2- Esses contratos de empreitada são os seguintes:
a. Contrato de empreitada de construção do edifício Marina Forum / Funchal, de 4 de Abril de 1990 e que constitui o documento n° 5;
b. Contrato de empreitada de construção do edifício Marina Club / Funchal, de 22 de Abril de 1991 e que constitui o documento n° 2.

3- A obra constituía um empreendimento imobiliário destinado a ser vendido a terceiros, em regime de propriedade horizontal, e à instalação e exploração de um centro comercial e de parques de estacionamento.

4- A data da consignação da empreitada foi em 19 de Abril de 1990, ou seja, 15 dias após a assinatura do contrato.

5- O prazo de realização da obra terminaria em 17 de Novembro de 1991, nos termos da cláusula 33ª do respectivo contrato de empreitada.

6- A obra de construção do edifício Marina Club deveria estar concluída em 30-12-92.

7- O prazo inicialmente acordado para a conclusão da obra do edifício Marina Club era 30-12-92.

8- As partes acordaram uma prorrogação do prazo inicialmente previsto para a conclusão da obra.

9- Com base nesses acertos e a inúmera correspondência trocada entre as partes, a empreiteira remeteu ao dono da obra, em 18 de Março de 1993 um aditamento ao contrato de empreitada de construção do edifício Marina Club, com a alteração das cláusulas 4ª e 5ª.

10- Apesar do acordo efectivamente firmado nestas matérias, o dono de obra nunca remeteu à empreiteira o duplicado de tal aditamento devidamente assinado.

11- Em relação à construção do Edifício Marina Club foi celebrado escrito preliminar em 22 de Abril de 1991 onde podem ver-se as assinaturas da embargante, dona de obra, e da embargada, empreiteira, bem como várias reservas manuscritas.

12- Escrito sobre o qual as matérias de preço e quantidade de trabalhos ficaram com definições a produzir, de acordo com a obra concreta a executar, por invencível imposição de insuficiência do projecto.

13- Com efeito, na cláusula 53 estabeleceu-se que a obra deveria ser executada pelo valor global que resulta da aplicação dos preços unitários válidos para a empreitada às quantidades de trabalho que decorrem dos projectos e correspondentes mapas de quantidades a entregar pelo 1º outorgante.

14- Sendo os preços unitários da empreitada os que resultassem da aplicação de um coeficiente 1,16 aos preços acordados para a empreitada Marina Fórum, sendo o valor assim obtido acrescido de IVA à taxa em vigor.

15- Na cláusula 43 de tal convénio ajustou-se ainda que o prazo de execução da obra seria até 30 de Dezembro de 1992, incluindo sábados, domingos e feriados, contados a partir da presente data, tendo o dono de obra ficado obrigado, por força do disposto na cláusula 33, a entregar à empreiteira as peças escritas e desenhadas...até 30 dias após a data de assinatura do presente contrato.

16- Como mero prolongamento ou conclusão da empreitada de construção do Edificio Marina Club, as partes celebraram em 20 de Novembro de 1992 contrato escrito de empreitada referente à construção da ampliação dos pisos 9 e 10 do Edifício Marina Club, pelo preço global (a corpo, à forfait, ou per aversionem) de 43.090.475$00, acrescido de IVA à taxa em vigor.

17- Nos termos da cláusula 33 desse convénio o prazo de execução da obra iniciava-se a 02 de Novembro de 1992 e terminava a 31 de Março de 1993, tendo posteriormente sido acordado entre as partes um novo plano de trabalhos e um novo cronograma financeiro, prevendo-se o termo desta obra para o dia 30 de Abril de 1993.

18- Estabeleceu-se ainda na cláusula 53 daquele acordo que mensalmente seriam emitidas pelo empreiteiro facturas relativas a correspondentes situações de obra feita e que o dono de obra as pagaria no prazo de 30 dias contados da data da sua emissão.

19- E que eventuais atrasos de pagamento poderão dar lugar às correspondentes adaptações do plano de trabalhos.

20- Por último, ainda como mero prolongamento ou conclusão do Edifício do MARINA CLUB foi celebrada entre as partes a empreitada das LOJAS DO SHOPPING, objecto de orçamento especial, conforme proposta da embargada, sob a designação de trabalhos no Shopping nos Edifícios Marina Club e Infante.

21- Teve, por acordo entre aquela e a embargante, em posições respectivas de empreiteira e de dona da obra, a sua disciplina decalcada nas condições contratuais já estabelecidas e relativas à empreitada de execução do Edifício Marina Club.

22- Tendo sido acordado entre as partes que tais trabalhos atingiam o valor de 52.119.854$20 e que deveriam estar concluídos até ao dia 31 de Março de 1993.

23- [A embargada] até recebeu da ora embargante diversos elogios à sua postura no decurso da obra, nomeadamente, aquando da inauguração do Edifício Marina Club, com pompa, circunstancia e na presença do Presidente do Governo Regional da Madeira, ocorrida em 6 de Julho de 1993.

24- Apenas foi possível realizar a recepção provisória da obra em 27 de Março de 1992, e, mesmo assim, com os defeitos assinalados.

25- A recepção definitiva da obra teve lugar em 8 de Abril de 1994.

26- Aquando da recepção provisória da obra ainda havia alguns trabalhos a adaptar, pelo que, depois de efectuadas pela empreiteira e vistoriadas pelo representante do dono de obra tais afinações, procedeu-se, em 10 de Abril de 1992, a auto recepção provisória de trabalhos corrigidos referenciados em 1992.03.27.

27- Relativamente à obra de construção do edifício Marina Fórum foi anexado ao auto de recepção provisória um esclarecimento da ora embargada fazendo-se menção de que os trabalhos contratuais do projecto ficaram concluídos em 31-12-91.

28- Com efeito, em reunião de obra em que se encontravam presentes os representantes do dono de obra e da empreiteira, ocorrida em 8 de Janeiro de 1992, da qual se juntou à acção declarativa a respectiva acta, verificou-se que tinham ficado concluídos, no final do mês de Dezembro, todos os trabalhos contratuais que não tiveram implicações com alterações do projecto.

29- No dia 14 de Abril de 1994, a embargada escreveu à embargante dando conta da conclusão dos aludidos trabalhos, como se infere da fotocópia da carta que se juntou à acção declarativa sob doc. 11.

30- Apesar da justa pressão da embargada sobre a dona da obra, para se chegar àquela recepção e a esta liberação.

31- A recepção provisória da obra de construção do edifício Marina Club realizou-se em 26-04-94 — Resposta ao facto 20° da Base Instrutória.

32- A recepção definitiva das demais obras foi pedida pela embargada em 11 e 14 de Abril de 1994.

33- Desde o início das obras de construção do Marina Forum que a embargada se deparou com insuficiências e alterações aos projectos, as quais afectaram o desenvolvimento dos trabalhos.

34- Por outro lado, as decisões que se impunham ao dono de obra e/ou aos seus representantes para suprir essas indefinições eram sucessivamente adiadas, pelo que empreiteira se viu forçada a suspender alguns trabalhos ou a reduzir o ritmo dos mesmos.

35- Para além disso, a montagem dos elevadores, fora do âmbito da empreitada e a cargo de outra empresa por conta da embargante, foi efectuada com expressivo atraso, o que causou também transtornos e delongas no desenrolar dos trabalhos adjudicados à embargada.

36- Acrescente-se ainda que a embargante solicitou à embargada um significativo volume de trabalhos a mais, tendo só nesta obra do Marina Forum a empreiteira facturado e recebido do dono de obra um valor rondando os 190.000 contos, o qual corresponde a mais de 25 % do valor da empreitada.

37- No decorrer da obra de construção do edifício Marina Forum a embargante não pagou, no prazo acordado, a pluralidades das facturas, tendo algumas delas registaram atrasos superiores a 900 dias.

38- A embargada fez ver à embargante que tais atrasos no pagamento das facturas iria causar atrasos no termo dos trabalhos.

39- O atraso na conclusão da obra de construção do edifício Marina ficou a dever-se aos factos referidos sob os nºs 33 a 38.

40- A embargada deu a saber à embargante que não era possível cumprir o prazo inicialmente previsto, também em virtude da suspensão dos trabalhos em várias zonas de obra.

41- Tal veio a agravar-se com a suspensão dos trabalhos no piso 8 e na fachada do Edifício, decorrentes de uma ampliação de mais dois pisos pretendida pela embargante e sucessivamente adiada durante vários meses.

42- A embargada reduziu o ritmo de trabalhos da empreitada.

43- Em reunião de 6 de Outubro de 1992, a embargante garantiu à embargada que iria pagar os saldos em atraso e acordou que o prazo da empreitada geral do Marina Club terminaria em 30 de Março de 1993.

44- Já em Janeiro de 1993, decidiu a embargante adjudicar à embargada os trabalhos do Shopping, pretendendo a conclusão dos mesmos até 30 de Março de 1993, exigindo mesmo que os meios da empreiteira fossem concentrados essencialmente nesta obra.

45- Daí que os prazos da empreitada geral do Marina Club e da ampliação dos pisos 9 e 10 do mesmo edifício tivessem, por acordo das partes, passado para final de Abril pelas razões atrás apontadas.

46- Por outro lado, a embargante solicitou à embargada um enorme volume de trabalhos não previstos na empreitada, tendo sido facturados mais de 180.000 contos em relação ao edifício do Marina Club e mais de 17.000 contos no que toca ao Shopping.

47- No dia 9 de Junho, a embargante aceitou e entregou à embargada uma letra de câmbio no valor de 159.000.000$00, para liquidação de uma série de facturas que há muito se encontravam vencidas.

48- Após tal pagamento e por lhe ter sido prometido pela embargante que nada ficaria por pagar, retomou a embargada um ritmo mais vivo na execução dos trabalhos que faltavam terminar.

49- A embargante tem vindo a detectar em alguns locais da obra, o aparecimento de eflorescências, ou seja, de camadas pulverulentas nas paredes exteriores e interiores.

50- Têm também ocorrido ultimamente infiltrações de água, em particular nos pisos superiores e nas varandas.

51- Dada a arquitectura do edificio, em "quebrado", as varandas em floreiras situam-se sobre divisões assoalhadas dos pisos inferiores.

52- Em consequência desse facto, as infiltrações afectam as divisões assoalhadas dos pisos inferiores.

53- Igualmente têm aparecido e continuam a aparecer eflorescências no estuque das paredes interiores e tectos.

54- Muito recentemente, descolou-se uma pedra do alçado exterior, a qual caiu sobre a via pública, muito frequentada no local, ocasionando risco grave de atingir passantes.

55- Tais defeitos impõem à Embargante a necessidade de atender reclamações dos compradores e utentes do mesmo, com o consequente dispêndio em meios administrativos e outros.

56- E assumem particular gravidade, por a Madeira ser um meio pequeno, onde a existência deste tipo de situações corre com a maior celeridade.

57- Num futuro próximo é previsível que aconteçam mais descolagens de pedras dos alçados exteriores, infiltrações de águas das chuvas nas caixilharias de alumínio, levantamentos nos mosaicos das varandas, casas de banho e cozinhas e derrames de águas residuais no colector junto aos pisos de estacionamento.

58- Têm também ocorrido ultimamente infiltrações de água, em particular nos pisos superiores e nas varandas.

59- Dada a arquitectura do edifício, "em quebrado", as varandas floreiras situam-se sobre divisões assoalhadas dos pisos inferiores.

60- Em consequência desse facto, as infiltrações afectam as divisões assoalhadas dos pisos inferiores.

61- Igualmente têm aparecido e continuam a aparecer eflorescências no estuque das paredes interiores e tectos.

62- Tais defeitos impõem à Embargante a necessidade de atender reclamações dos compradores e utentes do mesmo, com o consequente dispêndio em meios administrativos e outros.

63- No dia 26-08-96, a embargante constatou o desprendimento da verga do tecto do apartamento n° 304, uma pedra de revestimento da fachada do edifício Marina Club, com cerca de meio metro quadrado.

64- Esse desprendimento ocorreu ao nível da separação entre o terceiro e quarto piso do edifício.

65- As partes referidas sob os nºs 62 e 63 desvalorizam a comercialização da parte do edifício que ainda o não foi.

66- A área de revestimento exterior é de cerca de 3000m2.

67- Para a colocação daquela pedra é necessário cerca de uma hora de trabalho e o custo total ronda os cem euros.

68- O desprendimento da pedra ficou a dever-se a defeito na execução dos trabalhos por parte da embargada.

69- No dia 5 de Abril de 1997, desprendeu-se da fachada principal uma pedra de revestimento do edifício Marina Club, com as dimensões de 45 cmx12 cm.

70- Tal facto ficou a dever-se a defeito de construção da obra.

71- O sistema de fixação da pedra executado pela embargada foi escolhido pela embargante.

72- O custo da recolocação da pedra é de cerca de cem euros.

73- Na manhã do dia 15 de Janeiro de 2003, desprenderam-se do apartamento 704, do sétimo piso, destinado a habitação, pedras do alçado nascente do Edifício Marina Fórum.

74- Essas pedras caíram na varanda do apartamento 505, sito no quinto piso, destinado a escritório.

75- No dia 4 de Junho de 2001, desprendeu-se uma pedra da floreira do apartamento 703, no sétimo piso.

76- No dia 18 de Janeiro de 2003, caiu uma pedra da base de um pilar da pérgola do edifício Marina Fórum.

77- Existe iminência de queda de pedras do alçado poente do Marina Fórum na janela do espaço ocupado pelo grupo BCP/Banco Português do Atlântico, numa altura de cerca de 5 metros.

78- O mesmo se verifica no alçado sul do piso -1 do Marina Fórum, a cerca de 8 a 9 metros de altura.

79- O mesmo se verifica com uma pedra da floreira do alçado sul do apartamento 704, no sétimo piso, sobre a varanda do apartamento 505, destinado a escritório, sito no quinto piso.

80- O mesmo se verifica com várias pedras do alçado sul junto do espaço ocupado por Alberto Oculista, Para Raio e loja de brinquedos e pela Companhia de Seguros Tranquilidade.

81- Em Setembro de 2002, quatro pedras sobre a verga da janela do escritório do 2° andar alçado sul do Edifício Marina Fórum, estavam afastadas da laje, quase soltas e apresentando iminente perigo de queda na via pública.

82- As partes inferiores das ditas pedras foram retiradas em face do risco de queda.

83- Quando da retirada constatou-se que existia um espaço de cerca de 10 cm entre elas e a parede, preenchido com uma argamassa com numerosos "chochos".

84- Os arames de ateamento das pedras, devido aos "chochos" ficaram desprotegidos contra a corrosão, originando o seu enferrujamento e consequentes enfraquecimento e apodrecimento.

85- No dia 6-10-2003, caíram mais duas floreiras do alçado Sul do Edificio Marina Fórum, do nível do apartamento n° 704.

86- As pedras que se encontram junto às duas outras que caíram estão também a deslocar-se da fachada.

87- As pedras a que se alude sob o nº 85 caíram sobre a varanda do apartamento n° 505, que é um escritório.

88- No dia 17 de Maio de 2001, 7 pedras sobre a verga da janela do escritório do 2° andar do alçado sul do edifício Marina Forum, estavam afastadas da laje subjacente, quase soltas e, apresentando iminente perigo de queda.

89- Cada uma daquelas pedras tinha as seguintes dimensões: a primeira, 1,10x0,20x0,02 m; a segunda, 0,50x0,20x0,020 m, e as outras com 0,40x0,40x0,02 m.

90- Entre cada uma das pedras e a parede havia um espaço com cerca de 10 cm, preenchido com argamassa com numerosos "chochos".

91- Parte dessa argamassa esmagava-se com a mão.

92- Os arames de ateamento das pedras devido ao "chocho" ficaram expostos à corrosão e consequente enferrujamento.

93- É fundado o receio de que outras pedras venham a cair da frontaria dos edifícios Marina Forum e Marina Club.

94- Em 10 de Abril de 2001, caíram pedras molianos, com a dimensão de 2,4x0,20x0,02 m, da janela do escritório 407.

95- Todos estes defeitos afectam a comercialização do empreendimento.

96- E assumem particular gravidade, por a Madeira ser um meio pequeno, onde a existência deste tipo de situações corre com a maior celeridade.

97- As areias usadas não eram excessivamente salitrosas e o betão foi correctamente fabricado.

98- A fiscalização e o dono da obra acompanharam os trabalhos e sabiam que a areia utilizada era extraída do mar, única fonte de areia na Região, sendo certo que todo o betão na Região é feito com esta areia.

99- Para minimizar a possibilidade de salitres decidiu-se lavar a areia com água doce e isolar a face exposta às intempéries com aditivos especiais, testados em obra e acordados com a fiscalização e o dono da obra.

100- Para além disso, o betão foi testado no Laboratório Regional de Engenharia Civil e foi aprovado, com a participação da fiscalização e do dono da obra.

101- O dono da obra aceitou que o betão fosse feito com tais areias.

102 - No dia 6 de Junho de 2005, pelas 9.30m, caiu uma pedra do revestimento da fachada, na varanda do escritório n° 505, sito no quinto andar do Marina Fórum.

103- Essa pedra desprendeu-se da fachada ao nível do sétimo piso e na parte respeitante ao apartamento n° 704.

104- Esta ocorrência verificou-se no alçado sul do edifício Marina Fórum e ficou a dever-se a defeito de construção.

105- No período de férias judiciais de 2005, a embargante acabou por interpelar e cobrar dos Bancos emissores das referidas garantias bancárias as respectivas importâncias.
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106- Relativamente às garantias bancárias emitidas pelo BANIF, SA, foi efectuado, no passado dia 30 de Agosto, o pagamento à embargante, no montante global de 84.129.86 Euros, dos valores garantidos que seguidamente se discriminam:
a) Garantia Bancária n° ................., no valor de 6.000.000$00, correspondente a € 29.927,87;
b) Garantia Bancária n° ............, no valor de 1.175.889$00, correspondente a € 5.865,31;
c) Garantia Bancária n° ............. no valor de 1.818.225$00, correspondente a € 8.071,67;
d) Garantia Bancária n° ............., no valor de 2.072.411$00, correspondente a € 10.337,14; e
e) Garantia Bancária n° ................... no valor de 6.000.000$00, correspondente a € 29.927,87.
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107- Quanto às garantias bancárias emitidas pelo Banco Espírito Santo, SA, foi efectuado, no dia 7 de Julho de 2005, o pagamento à embargante do valor global e € 406.119,56, correspondente aos valores garantidos que seguidamente se discriminam:
a) Garantia Bancária n..............., no valor de 5.593.025$00, correspondente a € 27.897,90;
b) Garantia Bancária n°..............., no valor de 8.108.225$00, correspondente a € 40.443,66;
c) Garantia Bancária n° ..............., no valor de 4.134.588$00, correspondente a € 20.623.24;
d) Garantia Bancária n° .........., no valor de 5.619.969$00, correspondente a € 28.032,29;
e) Garantia Bancári a n° .............., no valor de 5.563.146$00, correspondente a € 27.748,86;
f) Garantia Bancária n° ........., no valor de 10.273.209$00, correspondente a € 51.242, 55;
g) Garantia Bancária n° ............, no valor de 5.381.490$00, correspondente a € 26.842,76;
h) Garantia Bancária n° ............, no valor de 5.219.467$00, correspondente a € 26.034,59;
i) Garantia Bancária n° ......., no valor de 2.053.371$00, correspondente a € 10.242,17;
j) Garantia Bancária n° .........., no valor de 4.698.909$00, correspondente a € 23.438,06;
k) Garantia Bancária n° ..........., no valor de 3.000.000$00, correspondente a € 14.963,94;
l) Garantia Bancária n°.......... no valor de 1.120.671$00, correspondente a € 5.589,88;
m) Garantia Bancária n°........, no valor de 64.731$00, correspondente a €322,88;
n) Garantia Bancária n° .........., no valor de 4.000.000$00, correspondente a €19.951,92;
o) Garantia Bancária n°.........., no valor de 5.262.446$00, correspondente a €26.248,97;
p) Garantia Bancária n°..........., no valor de 563.965$00, correspondente a €2.813,05;
q) Garantia Bancária n° ............., no valor de 5.000.000$00, correspondente a €24.939,89; e
r) Garantia Bancária n° ............., no valor de 5.762.446$00, correspondente a €28.742,96.

108- O Banco Espírito Santo, S.A., debitou ainda à embargada as quantias de €1.656.00 e €66.24, correspondentes, respectivamente, a comissões e imposto de selo.

109- No que respeita às garantias bancárias emitidas pelo Banco BPI, SA- (Banco Fonseca & Burnay, S.A.), foi efectuado, no dia 16 de Agosto de 2005, o pagamento à embargante do valor global de € 42.511.92, por referência aos valores garantidos que seguidamente se discriminam:

a) Garantia Bancária n°.......... , no valor de 2.095.179$00, correspondente a € 10.450,71;
b) Garantia Bancária n° .........., no valor de 1.771.351$00, corresponden............., no valor de 2.296.399$00, correspondente a € 11.454,39;
d) Garantia Bancária n° .............., no valor de 787,093$00, correspondente a €3.926,00;
e) Garantia Bancária n° .........., no valor de 962.498$00, correspondente a €4.800,92; e
f) Garantia Bancária n° .........., no valor de 610.355$00, correspondente a €3.044,44.

110- Também o Banco Comercial Português, SA, (Banco Português do Atlântico), emitiu a pedido da embargada e a favor da embargante, diversas garantias e fianças, no montante global de € 701.489,60, que já foram pagos por esta instituição bancária.

111- A embargada requereu providência cautelar — de arresto — dos créditos constantes das Garantias, em processo que corre pela 2a Secção da 2a Vara Cível de Lisboa, sob o n° 3586/04.7TVLSB-A.

112- Após oposição da aqui embargante, foi ordenado o levantamento do arresto, que fora inicialmente decretado, e, tendo a embargada recorrido, o recurso foi admitido com efeito meramente devolutivo, por decisão de 10 de Março de 2005.


B- O direito


1. nulidade do acórdão

No relatório do acórdão recorrido, proferido em recurso de apelação interposto da sentença da 1ª instância, consignou-se expressamente que a autora/apelada não apresentou contra-alegações.
Porém, a recorrida havia efectivamente respondido às alegações de recurso apresentadas pela recorrente, produzindo e fazendo incorporar no processo as respectivas contra-alegações.
Perante esta afirmação, inverídica, parte a recorrente para a conclusão de que toda a argumentação que apresentou em suas contra-alegações não foi considerada no acórdão recorrido, assim violando o princípio constitucional da equidade, postergando as regras da igualdade das partes e do contraditório e assacando, consequentemente, ao acórdão a nulidade plasmada na al. d) do nº 1 do art. 668º C.Pr.Civil.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente. Constituem elas um resumo sintético dos pontos de discordância da decisão recorrida, delimitando, em princípio, o âmbito e o objecto do recurso.
Isso não significa, nem impõe, que haja que apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações, mas, somente, as questões essenciais suscitadas.
Para além disso, pode o recorrido requerer a ampliação do âmbito do recurso nas situações aludidas no art. 684º-A C.Pr.Civil.

As questões controvertidas, delimitadoras do recurso de apelação, foram elas colocadas pela recorrente, não tendo a recorrida suscitado a ampliação do âmbito desse recurso.
E todas as questões controvertidas que levaram à procedência do recurso já haviam sido ventiladas ao longo da acção, tendo a recorrida tomado posição sobre elas.
Por outro lado, decorre do teor do acórdão recorrido que não foram omitidas ou pura e simplesmente desconsideradas as considerações trazidas ao processo pela recorrida em suas contra-alegações. Agora, como não colocou questões controvertidas em sede de ampliação de recurso não havia que rebater ou tomar posição sobre os argumentos vertidos nessa peça processual.
Aliás, ao apreciar esta mesma nulidade afirmou-se no acórdão tirado em conferência que se ficou a dever a simples lapso material a afirmação de que não foram apresentadas contra-alegações. E o teor do acórdão assim o revela.

Improcede, pois, a invocada nulidade.


2. excepção de não cumprimento do contrato

2.1- No acórdão recorrido decidiu-se que a exequente/embargada não podia exigir o pagamento da quantia titulada pela letra dada à execução enquanto não procedesse à eliminação dos defeitos apresentados pela obra, assim julgando extinta a execução com base na excepção de não cumprimento.

Nos contratos bilaterais, desde que não haja prazos diferentes para o cumprimento das prestações, qualquer dos contraentes pode recusar a sua prestação enquanto o outro a não efectuar ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo –art. 428º, nº 1 C.Civil.
Para que a exceptio funcione exige-se que as prestações sejam correspectivas ou correlativas, isto é, que uma seja o motivo determinante da outra, e ainda que não haja prazos diferentes para o seu cumprimento.
Através desta excepção o excipiens não está a recusar a satisfação da prestação a que efectivamente está adstrito nem a negar o direito do autor ao seu cumprimento, apenas se dispõe a realizar essa sua prestação no momento em que receba simultaneamente a prestação a que tem direito, ou seja, como afirma Calvão da Silva (1), pretende tão só um efeito dilatório.

Resumindo numa breve síntese a matéria de facto tida por apurada e com interesse, verifica-se que a recorrente, empreiteira, e a recorrida, dona da obra, celebraram um contrato visando a construção de dois edifícios, Marina /Fórum e Marina/Club, destinados a serem vendidos a terceiros, em regime de propriedade horizontal e à instalação, em cada um deles, de um centro comercial e de parques de estacionamento.
Uma vez prontas as obras, verificou-se que apresentavam algumas deficiências.
A letra dada à execução, consequência de três reformas da letra original, representa uma parte do preço ainda em dívida.

Deve o empreiteiro executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que reduzam ou excluam o seu valor, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato -art. 1208° C.Civil.
Devendo, por sua vez, o preço ser pago, não havendo cláusula em contrário, no acto de aceitação da obra – art. 1211º, n° 2 do mesmo diploma.
Sobre o empreiteiro recai o dever de executar a obra sem defeitos. Caso contrário há um cumprimento defeituoso da obrigação ou a falta qualitativa de cumprimento da obrigação, a que se alude no art. 799º C.Civil.
O cumprimento defeituoso verifica-se não apenas quando o empreiteiro não executa a obra de acordo com o convencionado, mas também quando ela não corresponde, pela falta de qualidade ou qualquer outra irregularidade, ao objecto da obrigação a que o empreiteiro estava adstrito.
Perante o cumprimento defeituoso da obrigação pode o dono da obra reagir exigindo, e por esta ordem, quer a eliminação dos defeitos, quer uma nova construção, quer a redução do preço, e isto sem prejuízo do direito a ser indemnizado nos termos gerais –arts. 1221º, 1222º e 1223º C.Civil.
A ligação existente entre este direito, nas suas diferentes vertentes, de reacção do dono da obra e o direito do empreiteiro ao recebimento do preço é a mesma que inicialmente existia entre o direito à entrega da obra sem defeitos e o direito ao preço.
Este nexo sinalagmático tanto une, por via de regra, as prestações fundamentais decorrentes da celebração do contrato (sinalagma genético), como abrange as prestações provenientes do desenvolvimento da relação contratual (sinalagma funcional), como refere Antunes Varela (2).
Há um nexo sinalagmático entre o direito à execução da obra sem defeitos e o direito ao pagamento do respectivo preço.
Assente este vínculo sinalagmático entre os dois direitos, não pode o contraente que cumpre defeituosamente a sua obrigação exigir o pagamento do preço enquanto não proceder à correcção dos defeitos que a obra apresente. E poderá o devedor opor a excepção de não cumprimento do contrato prevista no art. 428º C.Civil se esse pagamento lhe for exigido, neutralizando temporariamente esse direito da outra parte.

Sustenta, todavia, a recorrente que esta excepção não lhe podia ser oposta por haver prazos diferentes para o cumprimento da obrigação, na medida em que a quantia titulada pela letra exequenda se reportava a facturas cujos montantes se haviam vencido muito antes da obrigação de reparação dos defeitos.
O pagamento do preço da empreitada vence-se com a execução e entrega da obra sem defeitos. Se antes do pagamento se revela a existência de defeitos, o vencimento daquela obrigação não ocorre enquanto eles não forem corrigidos, porque verdadeiramente o empreiteiro não cumpriu a obrigação a que estava adstrito.
Ainda que o dono da obra estivesse em mora quanto ao pagamento parcial do preço da empreitada, o certo é que ela apresentava defeitos. E o nexo sinalagmático funcional não ficou destruído só pelo facto do dono da obra se ter atrasado no seu cumprimento, já que o desenvolvimento da relação contratual obrigava à execução da obra sem defeitos nas suas diferentes fases (3) .

Nada obstava a que a recorrida excepcionasse com o não cumprimento do contrato.


2.2- Defende ainda a recorrente a improcedência da excepção de não cumprimento do contrato com o argumento de que não foi respeitado o princípio da boa fé, não existindo proporcionalidade entre a parte do pagamento preço recusada e a desvalorização da obra provocada pelo defeito existente.

Quanto a este aspecto há a reter, do essencial da factualidade dada como assente, que a quantia titulada pela letra exequenda, 159.000.000$00, correspondente a € 793.088,65, destinava-se a liquidar um conjunto de facturas que há muito se tenham vencido. A obra apresentava defeitos vários, cujo custo de reparação não foi apurado. Em 2005, a executada/embargante cobrou dos respectivos bancos emissores o valor de garantias bancárias, no montante total de cerca de 247.445.088$00, correspondente a € 1.234.250,90, que se destinavam a prevenir eventuais prejuízos por si sofridos com um eventual incumprimento contratual. As obras foram entregues à exequente/embargante que já procedeu à comercialização das suas fracções.

A recusa de cumprir com fundamento em exceptio non adimpleti contractus encontra justificação no facto da prestação do devedor ser o correlativo da prestação do credor, estando estas obrigações ligadas por um nexo de causalidade.
No caso de cumprimento parcial ou defeituoso a exceptio deve ser correspondente à inexecução parcial ou à execução defeituosa, podendo o devedor recusar a sua prestação na parte proporcional ao incumprimento do outro contraente. É que só assim se garante o equilíbrio sinalagmático.
Também se o incumprimento parcial tiver importância reduzida para a outra parte, não poderá esta lançar mão da exceptio, sob pena de se violarem os princípios de lealdade e correcção que sempre devem presidir ao cumprimento das obrigações e exercício dos direitos correspondentes (nº 2 do art. 762º C.Civil). Trata-se, nas palavras de Antunes Varela (4), de aplicar à exceptio, por analogia, o disposto no n.° 2 do artigo 802.° para a resolução do contrato.

Na situação vertente, temos como adquirido que a obra apresentava efectivamente algumas deficiências, deficiências que acarretaram prejuízos à dona, ainda que não tenha sido possível quantificá-los.
Porém, estas deficiências não obstaram a que recebesse a obra e procedesse à venda das fracções, pelo menos parte delas, que a integravam, objecto em vista do qual firmou este contrato com a empreiteira.
Para além disso, fez seus os montantes das garantias bancárias, no montante correspondente a € 1.234.250,90, que se destinavam precisamente a prevenir eventuais prejuízos decorrentes de um eventual incumprimento contratual, quando a parte do preço em dívida, destinado a liquidar um conjunto de facturas que há muito se tenham vencido, era correspondente a € 793.088,65.
A dona da obra já se fez ressarcir dos prejuízos que o incumprimento contratual lhe possa ter ocasionado.
Como já se deixara referido, o equilíbrio do sinalagma, no caso de cumprimento defeituoso, só é conseguido se a exceptio corresponder à execução defeituosa, podendo o devedor recusar a sua prestação na parte proporcional.
Nos presentes embargos, a defesa da executada/embargante, dona da obra, alicerça-se na invocação da excepção de não cumprimento do contrato, especificamente no cumprimento defeituoso da obra por parte da exequente/embargada, a empreiteira.
De acordo com os princípios de repartição do ónus da prova (art. 342º, nº 2 C.Civil) incumbe à executada/embargante alegar e provar que não cumpriu por causa legítima, do mesmo que lhe competia alegar e provar que os montantes das garantias bancárias que incorporou no seu património eram insuficientes para fazer face aos custos de eliminação dos defeitos da obra. Na verdade, tendo optado por se ressarcir deste modo, no uso, aliás, de um direito que lhe assistia, e opor depois à empreiteira a excepção de não cumprimento precisamente com base na existência de defeitos da obra, sobre ela recaía o ónus de demonstrar que não estava suficientemente ressarcida dos prejuízos decorrentes da execução defeituosa do contrato.
Não está, portanto, demonstrada a correspondência entre a execução defeituosa e a exceptio, ou seja, a proporcionalidade que deve existir entre a recusa da prestação do excipiens e o incumprimento do outro contraente, imprescindível ao equilíbrio sinalagmático, nem sequer que, neste momento, a dona da obra ainda esteja prejudicada, e prejudicada significativamente, com a sua execução defeituosa.

Por outro lado, a executada/embargante recebeu a obra, já lá vão cerca de 14 anos, tendo procedido à sua rentabilização económica. Não liquidou o pagamento do preço da obra e ainda fez suas as quantias constantes das garantias bancárias em montante muito superior à da fracção da dívida reclamada.
Preconiza o nº 2 do art. 762º C.Civil que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
Durante todo o período de execução do contrato devem as partes respeitar não só as suas imposições formais assim como adoptar comportamentos de lealdade e correcção em vista da prossecução dos interesses a obter com a sua celebração. Actuar com boa fé é uma exigência postulada pela necessidade de obstar a que a obrigação sirva para a prossecução de resultados intoleráveis para as pessoas de sã consciência.
De todo o circunstancialismo (para já) apurado, decorre que a actuação da executada/embargante não se acomoda à correcção e lisura que seria normalmente exigível nestas condições. Tendo recebido a obra há cerca de 14 anos, dando ao empreendimento imobiliário, objecto do contrato de empreitada, o destino para que fora construído, fazendo-se ressarcir dos prejuízos sofridos com o cumprimento defeituoso do contrato, sem provar que esse prejuízo não esteja integralmente satisfeito, está intoleravelmente a prejudicar os interesses da exequente/embargada ao recusar pagar-lhe parte do preço dessa obra. E esta falta de lisura é ainda chocante quando se não demonstrou ser o seu comportamento minimamente proporcional ao incumprimento do outro contraente.
É, por isso, permitido concluir que a actuação da executada/embargante é atentória do princípio da boa fé que deveria presidir ao exercício do seu direito, actuação que não poderá merecer acolhimento.

A apontada situação de falta de equilíbrio entre a exceptio e o cumprimento defeituoso do contrato, ou seja, a proporcionalidade que deve existir entre a recusa da prestação do excipiens e o incumprimento do outro contraente, bem como de inexistência de prejuízo significativo advindo para o dono da obra da sua execução defeituosa, por um lado, e da actuação da executada/embargante ser violadora do princípio da boa fé, o que levaria à revogação do acórdão recorrido, com a consequente improcedência dos embargos, apenas se verifica(ria)m no pressuposto de que os factos tidos por assentes eram os assim referenciados pelas instâncias.
Acontece que a ora recorrida, recorrente no recurso de apelação interposto para a Relação, impugnou a decisão sobre a fixação da matéria de facto, concretamente as respostas dadas aos quesitos 19º e 38º.
Esses quesitos espelham a quantificação, feita pela executada/embargante na petição inicial, dos danos que a execução defeituosa da obra lhe acarretou, aí se questionando concretamente se, no caso da obra da Marina/Fórum, os prejuízos já verificados são superiores a 120.000.000$00, a que acrescerá os que virão a verificar-se e que, de momento, não podem ainda ser liquidados –quesito19º. E se, na empreitada do edifício Marina/Club, os prejuízos já verificados, incluindo a desqualificação da obra devido à sua falta de qualidade, são superiores, neste momento a 200.000.000$00, a que acrescerá os que virão a verificar-se, e que, de momento, não podem ser liquidados –quesito 38º.
Ambos estes quesitos mereceram a resposta de não provado.
Contra estas respostas insurgiu-se a então recorrente, afirmando que os elementos probatórios produzidos impunham uma resposta positiva a esses quesitos.

No acórdão recorrido, contrariamente ao que aqui se deixa expendido, entendeu-se que era sobre a exequente/embargada que recaía o ónus de alegar e provar que o custo global da eliminação dos defeitos detectados na obra executada, e ainda não removidos, é igual ou inferior ao da importância total já embolsada pela executada/embargante, proveniente das garantias bancárias emitidas a seu favor e, consequentemente, que era operante a excepção de não cumprimento oposta.
Por isso, não se apreciaram as outras questões controvertidas colocadas pela então recorrente, designadamente a que se relacionava com a impugnação da decisão sobre a fixação da matéria de facto, apreciação essa que se teve por prejudicada face ao teor daquela decisão.

A ter-se por provada a factualidade vertida nos aludidos quesitos, poder-se-á então concluir que existirá a devida proporcionalidade entre a recusa da prestação do excipiens e o incumprimento do outro contraente e que será bem significativo o prejuízo decorrente da execução defeituosa da obra e, por outro lado, que não será violadora do princípio da boa fé a actuação da executada/embargante.

Mas para isso, terá a Relação, na apreciação daquela questão controvertida, que fixar os factos suporte da decisão a proferir, o que implica a anulação do acórdão recorrido para esse efeito, em conformidade com o que ressalta do estatuído nos arts. 729º, nº 3 e 730º, nº 2 C.Pr.Civil


IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em anular o acórdão recorrido para que seja fixada a matéria de facto e proferida nova decisão em conformidade, tudo nos termos que se deixam expostos.

Custas pela parte vencida a final.



Lisboa, 11 de Novembro de 2008

_________________________

(1)- in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., pág. 334
(2)-Parecer publicado na CJ, XII-4º,31
(3) -em sentido idêntico se decidiu no ac. STJ, de 2006/05/18, in CJ,XIV-2º,86(acs.STJ)
(4) - in Das Obrigações em Geral, 10ª ed., I, pág. 400